terça-feira, 31 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20794: Manuscrito(s) (Luís Graça) (181): Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.


Camilo Pessanha 150 Anos  > Capa (Com a devida vénia...)




1. No dia mundial da poesia,19 de março de 2020 (*), passei uma parte do dia  a dizer, em voz alta, sonetos da "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha" [, org. João de Castro Osório, 6ª ed, Lisboa, Edições Ática, 1973,210 pp, (Coleção Poesia)]. 

Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): um autor que, confesso, conhecia mal, e em relção qual tinha algum preconceito, justamente pela sua poesia finessecular, de" fim de século", simbolista, decadentista, orientalista... Não devemos, todavia,  fixar-nos nos preconceitos, nos estereótipos, nas ideias feitas..., que são vendas nos olhos.

A força imagética, a originalidade e a musicalidade  dos seus sonetos acabaram por surpreender-me e encantar-me, tal como um melhor conhecimento da sua biografia: sabia apenas que se tinha "autoexilado" em Macau, durante três décadas (1894-1926), comunidade com quem manteve uma relação de amor-ódio,  e que era um sinólogo (aprendeu cantonês,  conhecia 3500 caracteres e foi tradutor de poetas chineses,) e que, em Macau, prolongou a boémia coimbrã e tornou-se dependente do ópio, tendo ali exercido funções como professor, advogado e juiz. Parece que não era bem amado pela comunidade macaense da época, conservadora, puritana, de moral judaico-cristã.

Expoente máximo do simbolismo, entre nós, é  considerado o Verlaine português...  É, na realidade, mais do que isso: é um dos grandes poetas europeus, um "poeta maior" e, no nosso caso, um dos grandes percursores da nossa poesia moderna, tal como o Cesário Verde, poeta de quem gosto muito. Influenciou ou marcou outras poetas, de quem também eu gosto muito (o Mário Sá Carneiro, o Fernando Pessoa, a Forbela Espanca, a Sophia de Melo Breyner Adresen, o Eugénio de Andrade...). 

No Camilo Pessanha, também aprecio o lado artesanal da construção poética, a obsessiva procura da perfeição, da maestria... Espantoso, era um poeta que decorava os seus poemas e depois rasgava os seus autógrafos, os seus escritos...

É muito provável que parte da sua obra se tenha perdido...A 1ª versão da "Clépsidra" foi publicada em 1920 (,seis anos antes do poeta morrer), em Lisboa, longe de Macau, por iniciativa da sua amiga, a feminista de 1ª geração, republicana, escritora e pedagoga Ana Castro Osório (Mangualde, 1872 - Lisboa, 1935) por quem ele tivera uma paixão nunca correspondida (, fizera-lhe um pedido de casamento, que ela recusou, mas mantiveram a sua amizade até à morte do poeta, em 1926, aos 58 anos, vencido pelo ópio e a tuberculose pulmonar). 

Selecionei, da "Clépsidra" (**), quatro poemas, para serem ditos em voz alta às nossas varandas, nestes dias estranhos em que estamos confinados nas nossas casas, em plena pandemia da COVID-19. 

Gritar ou dizer poesia em voz alta, à janela ou à varanda, pode ser uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.

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Inscrição

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
O! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
(p. 27)



Caminho 

I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d' harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.


II


Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.



III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...

Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...

Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar 
- encher a alma.

(pp. 31/33)



Camilo Pessanha 

in: "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha", org. João de Castro Osório, 6ª ed (Lisboa, Edições Ática, 1973, 210 pp, Coleção Poesia).


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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20759: Manuscrito(s) (Luís Graça) (180): De quarentena, no Dia Mundial da Poesia... Revisitando o poema "Da Falagueira a Buruntuma"


(**) clepsidra | s. f.

clep·si·dra

substantivo feminino

Relógio antigo, de origem egípcia, que media o tempo pelo escoamento de água num recipiente graduado.

"clepsidra", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/clepsidra [consultado em 31-03-2020].

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Amigos/as, camaradas,poetas ou não:

Uma sugestão de leitura para estes dias estranhos...Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.

A COVID-19 não passará!

Abreijos. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mandei para um amiga e colega minha:


Marta: sei que gosta de poesia... Precisamos, nestes dias (estranhos), de proteger a nossa saúde, não só física e mental, como também espiritual, aquela que nos liga ao universo, a todos os seres vivos, incluindo os vírus, as bactérias, os bacilos, os protozoários,mas também os "irãs das nossas tabancas",os bons e os maus... "Boa quarentena", para si e todos os que ama...Estou "aquarentenado" na Lourinhã... Luís Graça

E ela respondeu-me logo a seguir:



Marta Albuquerque Salavisa
11:33 (há 25 minutos)
para mim

​Caro Professor,

Este é o melhor e-mail que recebi desde o início da quarentena.
Precisamos de poesia como de álcool para as mãos!

Muito obrigada por se ter lembrado de mim.

Espero que esteja tudo bem consigo e com os seus.
Um beijinho,
Marta Salavisa


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não toleramos a dor... Para ela temos hoje imensos recursos terapêuticos e farmacológicos...do paracetamol à morfina... Sem falar do parto sem dor e da eutanásia, ou seja, do bom nascer e do bom morrer... Só não temos ainda o "elixir da juventude", nem uma "pastilha" para o bem viver...

E, no entanto, como diz o poeta,

Sem ela [, a dor,] o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tão apropriado aos dias (estranhos) de hoje:

(...) Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente. (...)

Mas também gosto da ideia solidária:

(...) - Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

(...) chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto. (...)


Enfim, tomemos este tempo de quarentena para "carregar as nossas pilhas" que estavam em baixo:

(...) Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada (...)

Mas não deixemos, pelo caminho, os nossos sonhos:

(...) Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar - encher a alma. (...)

Anónimo disse...

Depois deste excelente conjunto de poemas, não posso ficar indiferente, não tenho nenhum jeito para isto, vou mandar por email aquilo que comecei a escrever para passar o tempo;
A Pandemia do Século XXI.

Ab,

VT.

Anónimo disse...


Virgilio Valente [Macau]
a abril 2020 13:12


Obrigado Luís.
Como sempre, oferece-nos do melhor.
Bem hajas.

Também aqui se sente o isolamento, duplamente.
Vivi o isolamento antes desta pandemia vos isolar em Portugal. Porém, o isolamento continua por estas bandas, embora mais atenuado mas, contudo, preocupante.
Ao mesmo tempo vivo o vosso isolamento e o de não poder abraçar os meus filhos em Portugal como esperava fazê-lo esta Páscoa.

Por isso é bom parar e serenamente escutar poesia!

Abreijos
Fiquem bem!

"Ama-me quando menos o mereça, pois é quando mais o necessito."
"Love me when I least deserve it, because that's when the more need."
(Chinese proverb)