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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Angola, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), ao poste P24012 (*)

É a primeira vez que encontro uma referência à especialidade de desempanador. Para mim é uma completa novidade, não sabia que existia semelhante especialidade. Que eu saiba, no meu batalhão em Angola,  não havia nenhum mecânico desempanador, porque todos acabavam por sê-lo, mais cedo ou mais tarde.

Na região dos Dembos, em todas as colunas auto seguia obrigatoriamente um mecânico, porque a vetustez das viaturas e o acidentado do terreno a isso obrigava. 

O "desempanador-mor" da minha companhia era um soldado mecânico chamado Mota (ainda está vivo, e espero que por muito mais tempo ainda), que resolvia sempre todos os problemas da maneira mais criativa possível. Servia-se de paus de fósforos (para substituir algum parafuso partido, por exemplo, renovando os paus quando eles mesmos também se partiam), chicletes (nomeadamente para vedar alguma fuga de óleo ou de combustível), etc. 

Com ele, todas as viaturas chegaram sempre ao seu destino pelos seus próprios meios. Uma vez, partiu-se a mola do acelerador de um unimog, mola esta que tinha por função manter o pedal do acelerador levantado. O Mota resolveu o problema substituindo a mola partida pelo elástico que tirou das suas próprias cuecas!

27 de janeiro de 2023 às 03:05

2. Comentário do editor LG:

Uma história incrível, Fernando, essa do Mota, o mecânico "desenrascador" e "desempanador". Que importa que não tivesse o "diploma" nem o "título"?! 

Também os houve na Guiné, havia mecânicos das Daimlers, por ex., que conseguiam manter operacionais essas relíquias da II Guerra Mundial... O Mota, mesmo que  vocês tenham estado em Angola, merece um poste no blogue dos amigos e camaradas da Guiné. Uma homenagem a todos os nossos mecânicos. Tens uma foto dele ou com ele? Candando (abraço, em angolês). 

Luís

3. Resposta do Fernando Ribeiro:

Data - sábado, 28/01/2023, 03:01

Caro Luis,

A única fotografia que tenho do mecânico Mota é esta (à esquerda), que data de 2016 e foi feita no convívio do meu batalhão realizado aqui no Porto. Ninguém o conhecia por Mota, mas sim pela alcunha de Matraquilho.

Quando a minha companhia chegou a Zemba, estavam num canto do bar dos soldados uns matraquilhos estragados. O Mota foi pedir ao capitão, Lamas da Silva, licença para reparar os matraquilhos. O capitão respondeu-lhe que não tinha que lhe dar licença nenhuma, porque os matraquilhos não faziam parte do espólio da companhia e, por isso, não tinham dono. Acrescentou que, se o Mota quisesse ficar com os matraquilhos, que ficasse, e fizesse deles o que muito bem entendesse. 

Isto foi música para os ouvidos do Mota, que tratou logo de reparar os matraquilhos e pô-los a render. E como renderam! Zemba era um cu-de-judas onde não havia comerciantes, nem "meninas", nem nada onde a malta pudesse gastar o seu dinheiro, a não ser o bar dos soldados. 

Os matraquilhos do Mota foram por isso um enorme sucesso, que a malta toda usava de manhã até à noite, metendo todas as moedas necessárias para jogar. O Mota a partir de então passou a ser conhecido pela alcunha de Matraquilho, o mecânico que personificava o portuguesinho desenrascado.

Um abraço, Fernando Ribeiro

4. Novo comentário do editor LG:

O teu Matraquilho faz-me lembrar, com as devidas distâncias (até geográficas e históricas...) o MacGyver, o herói de uma série que passou na RTP, em 1987, e era muito popular... É caso para perguntar quem imitou quem... Entre um e outro há uma distância de 15 anos... 

Lembras-te das aventuras do MacGyver?

(i) Aqui vai um excerto da RTP > Programas TV

"As aventuras de MacGyver: a sua mente é um autêntico canivete suíço

Richard Dean Anderson é Macgyver (foto à esquerda, cortesia da RTP), um agente astuto e muito inteligente, que opta por resolver situações de conflito sem recurso às armas e à violência. Um herói que arrisca a sua vida em delicadas operações de salvamento, utilizando como únicas armas, os utensílios que existem à sua volta" (...)

(ii) Na Wikipédia também se pode ler:

MacGyver (Profissão: Perigo no Brasil) foi uma série de televisão americana de ação-aventura criada por Lee David Zlotoff (...) . MacGyver durou 7 temporadas, de 1985 a 1992, no canal ABC nos Estados Unidos. A série foi filmada em Los Angeles  (...) e  em Vancouver (...) . O último episódio foi exibido a 21 de maio de 1992.

A série segue o agente secreto Angus MacGyver, interpretado por Richard Dean Anderson, que trabalha como “um solucionador de problemas” para a Fundação Phoenix em Los Angeles e como agente para o Departamento Governamental de Serviços Externos (DXS), ambas fictícias. 

Educado como cientista, MacGyver serviu na Guerra do Vietnã como técnico da brigada antibombas ("Countdown"). 

Muito versátil e possuidor de um conhecimento enciclopédico de ciências físicas, MacGyver resolve problemas complexos ao criar coisas a partir de objetos comuns, grande parte das vezes com a ajuda do seu canivete suíço; MacGyver também porta consigo fósforos e fita adesiva em alguns episódios. Prefere resolver suas missões sem violência e não gosta de usar armas de fogo devido a uma morte acidental que envolveu um de seus amigos de infância. (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos



Foto nº 2 > Angola > CCAÇ 3535  (1972/74) >  O grupo de combate do alf mil  Fernando de Sousa Ribeiro no decurso  da operação que levou à conquista e destruição da base de Catoca, da UPA / FNLA. Foto do álbum do  fur mil  Luís Macedo.






Crachá da Companhia de Caçadores 3535, baseado no suposto brasão pretensamente pessoal do capitão miliciano Lamas da Silva. Eu nunca andava com este crachá ao peito. A Idade Média acabou há séculos. Eu
não tinha nada que trazer ao peito o presumido brasão alegadamente do Lamas, como se o Lamas fosse meu senhor feudal. Se ele quisesse brincar aos fdalgos, que brincasse sozinho. Por outro lado, e o que era muito mais grave, eu não podia aceitar um lema tão repugnante como o que se encontrava no crachá. 


lema, "A cada um a sua própria morte", foi cirurgicamente retirado de uns versos do Livro das Horas de Rainer Maria Rilke, de tal forma que o seu sentido fcou completamente adulterado. Os versos dizem o seguinte: Senhor, dá a cada um a sua própria morte. / Morrer que venha dessa vida / durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte. O que era uma frase que fazia parte de uma oração a Deus foi transformado num lema que é um incitamento ao homicídio! Se dúvidas eu tivesse a propósito do verdadeiro significado do lema, elas dissiparam-se quando foram distribuídos, pelo pessoal da companhia, lenços de cor preta, para proteger a cara do pó da picada durante as colunas auto. 

Tal como o lema, a cor preta dos lenços não foi escolhida por acaso. Com um tal lema assassino e com tais fúnebres lenços pretos, quiseram fazer de nós emissários da morte. Porém, nós agimos de modo precisamente contrário




Foto nº 1 > Na picada que subia da Ponte do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento.


Fotos (e legendas): © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:


(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado, e 
vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(v) tem página no Facebook;

(vi) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(vii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(viii) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 

(Episódios do Meu Serviço Militar)

 > Crimes de guerra 
(pp. 49-63)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



Pouco tempo antes da nossa partida para Angola, quando ainda estávamos em Santa Margarida aguardando o dia da partida, os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 fizeram uma espécie de juramento. Digo «uma espécie», porque não foi um juramento formal, mas sim um compromisso que os aspirantes tomaram uns perante os outros. Se não todos, pelo menos quase todos (eu incluído), levaram esse compromisso a sério, como se de um verdadeiro juramento se tratasse.

Foi num dia ao imm da tarde que esse compromisso teve lugar, enquanto tomávamos banho e nos arranjávamos para irmos jantar à messe de oficiais do Campo Militar de Santa Margarida. Alguns de nós preparavam-se para tomar banho, completamente nus e prontos para entrar no chuveiro. Outros tinham acabado de tomar banho e
saíam do chuveiro, igualmente nus. Outros ainda, incluindo eu próprio, estavam a fazer a barba, com uma toalha à cintura. Sem que ninguém o fizesse prever, um dos aspirantes presentes no local chamou a atenção dos restantes, dizendo:

— Ó malta, vamos assumir um compromisso!

Não me lembro de quem foi que falou, mas tenho a vaga ideia de ter sido o falecido aspirante Leite, que viria a ser alferes miliciano da CCaç 3537.

Nós interrompemos o que estávamos a fazer, para ouvirmos o que ele tinha para nos dizer. E ele disse, muito aproximadamente, o seguinte:

— Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Nem sequer sabemos se vamos estar no lado certo ou no lado errado da guerra. Só quando chegarmos a Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos no lado certo ou no lado errado da guerra, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, havemos de agir sempre de acordo com o que a nossa consciência nos determinar. Não sabemos se tal será possível no meio de uma guerra.

E continuou:


— Poderemos enfrentar situações que nos levem a cometer atos que em condições normais nunca cometeríamos. Não sabemos. Mas mesmo assim e
independentemente de tudo, procuraremos agir sempre de acordo com a nossa consciência, custe o que custar.

E, quando já todos nos manifestávamos a favor do compromisso, assumindo-o, ele repetiu, martelando as palavras:

— CUS...TE... O... QUE... CUS...TAR!

— Custe o que custar — repetimos.

Apesar de terem sido ditas numa circunstância e num lugar pouco apropriados a um juramento solene, estas palavras valeram como tal. Os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 comprometeram-se assim, uns perante os outros, a seguir os ditames da sua consciência na sua conduta durante a guerra. Foi com esta
disposição que eles partiram para Angola.

Após uma curta estada no quartel do Grafanil, nos arredores de Luanda, onde ficou assim que chegou a Angola, a minha companhia viajou para Zemba, o seu destino na guerra. Não houve quaisquer incidentes durante a viagem, felizmente. 


De entre as paragens que se fizeram durante a deslocação, destaca-se uma que se fez no Mucondo. Esta paragem durou cerca de meia hora, talvez, antes da partida para Santa Eulália e Zemba, já ao fim da tarde. Enquanto permanecemos no Mucondo, eu estive na messe de oficiais a descansar. Sem que nada o fizesse prever, os oficiais da companhia local, que ainda não tinha sido rendida pela CCaç. 3537, começaram a gabar-se perante nós, "maçaricos", dizendo:

— Nós somos os "Assassinos do Mucondo"! Nós não fazemos prisioneiros. Tudo o que encontrarmos na mata a mexer-se é turra, é para abater, seja homem, mulher, criança, cão ou galinha. Somos os "Assassinos do Mucondo". Não perdoamos a ninguém. Nunca fazemos prisioneiros. Atiramos primeiro e perguntamos depois. Somos implacáveis. Somos os "Assassinos do Mucondo"!

Eu achei graça àquilo, pensando que eles estavam a tentar impressionar-nos, novatos que nós éramos, cheios de medo a caminho da guerra. Não levei aquelas palavras a sério, de maneira nenhuma.


Na picada que subia da Ponte 

do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento 

[Foto nº 1, acima; e em pequeno reduzido à direita]


Quando chegamos a Zemba já era de noite. Logo a seguir ao jantar, fui para o quarto, juntamente com os restantes alferes da 3535, arrumar as minhas coisas.

Nessa altura, os alferes da companhia que fomos render (a CCaç 3346, do BCaç 3840), também foram ao nosso quarto, mas para falar connosco com toda a seriedade. O que eles nos disseram foi o seguinte:

— Nós temos uma revelação para vos fazer, que é muito constrangedora para nós. Mas é preferível que vocês saibam da nossa boca do que por terceiros. A revelação é: a nossa companhia cometeu um massacre.

Perante a nossa surpresa, exclamaram logo a seguir:

— Por amor de Deus, não nos interpretem mal! Nós condenamos o que se passou, tanto como vocês. A sério! Mas a verdade é que houve um massacre cometido por militares da nossa companhia. Infelizmente houve. Nós condenamos, mas houve.

Passaram então a contar o que se passou:

— Uma vez, no Zemba "Turra", um alferes mandou fuzilar 21 prisioneiros que tinham acabado de ser capturados. Ele confessou que estava aterrorizado por se encontrar num sítio tão perigoso como era o Zemba "Turra". Mandou alinhar os prisioneiros e ordenou aos soldados que os fuzilassem. E assim aconteceu. O alferes já não está cá.

Foi castigado por causa disso e transferido, embora o texto da punição não faça referência ao massacre.

E os alferes da 3346 repetiram e voltaram a repetir:

— Vocês não pensem que nós costumávamos agir desta forma. De maneira
nenhuma! Nós condenamos o massacre tanto como vocês. Mas a verdade é que aconteceu. Foi o único massacre que houve na nossa companhia, por culpa de um cobarde. Ele mesmo confessou que estava aterrorizado e já não está cá. Por amor de Deus não pensem mal de nós! Nós também condenamos o massacre. Acreditem que é verdade! Nós sempre procuramos respeitar as vidas humanas. Aquele cobarde é que não respeitou.

Depois de terem contado o episódio do massacre, envergonhados, os alferes da 3346 saíram, para nos deixar ficar a arrumar as nossas tralhas no quarto. O alferes Arrifana, da minha companhia, saiu também de imediato e dirigiu-se diretamente para a caserna do seu grupo de combate. Reuniu os seus soldados e cabos e contou-lhes o que tinha acabado de saber. Por fm, acrescentou:

— Vocês livrem-se de cometer atos semelhantes a este! Se algum de vocês matar um só inocente que seja, vai ter que se haver comigo! Juro que lhe faço a vida num inferno! Se há coisa que eu não admito no meu grupo de combate é cobardes. Se algum de vocês for cobarde e assassino, garanto que me vai ter à perna. Nunca mais terá sossego comigo!

No dia seguinte de manhã, quando entrei na caserna do meu próprio grupo de combate, ouvi os meus homens comentarem o sucedido uns com os outros. O "sermão" do Arrifana também tinha chegado ao conhecimento deles. Diziam os meus cabos e soldados:

— Um homem que é homem não dispara contra quem não se pode defender. Se o outro estiver armado, pode disparar, pois nesse caso estarão de igual para igual; se ele não disparar, o outro disparará primeiro. Mas atirar contra uma pessoa desarmada é cobardia.

E diziam uma frase que ouvi repetida por eles várias vezes ao longo dos dias que se seguiram:

— Só quem tem medo de tudo e de todos é que está disposto a matar tudo e todos. É um cobarde.

Perante tais palavras, achei que não valia a pena eu fazer também um "sermão" aos meus homens. O do Arrifana chegou.

Passaram-se vários meses. Quantos? Não me lembro. Só me lembro de que um dia ouvi o comandante do batalhão fazer referência aos "Assassinos do Mucondo". Não me lembro das circunstâncias em que ouvi tal referência, nem tenho a certeza de que ele tenha pronunciado textualmente as palavras «Assassinos do Mucondo». Só
me lembro de ouvir o tenente-coronel lamentar o facto de a CCaç 3537 não se comportar como a companhia que a antecedeu, que varria tudo à sua frente. Achava ele que o terror espalhado pela companhia anterior deveria ser continuado pela CCaç 3537, mas «infelizmente» não era. «Aquilo é que era uma companhia que impunha respeito», disse ele sobre a companhia anterior. Quase só lhe faltou chamar
mole e piegas à 3537.


Eu ouvi as palavras do tenente-coronel Azevedo com um certo espanto. «Será que no princípio da comissão os autodenominados 'Assassinos do Mucondo' tinham-nos mesmo falado verdade?», interroguei-me. «Até o comandante se refere a eles! Como foi que ele soube?» Instalou-se a dúvida no meu espírito a respeito dessa companhia.

Algum tempo mais tarde realizou-se uma operação ao Catoca, na qual o papel principal foi desempenhado pelo meu próprio grupo de combate. O grupo não foi comandado por mim, mas sim pelo valente furriel Macedo, porque eu estava em gozo de licença anual. 

Além da conquista e destruição da base do Catoca propriamente dita, o resultado final dessa operação ultrapassou em muito tudo quanto se tinha esperado dela: a UPA/FNLA abandonou, pura e simplesmente, toda a zona do Catoca! Os guerrilheiros fugiram para o Mufuque, que era a base principal do movimento na região do Mil e Vinte (assim chamada por nela haver três montes com a mesma altitude de 1020 metros), e deixaram entregue à sua sorte a população nos acampamentos que tinham controlado na zona do Catoca.

 
Foto nº 2 (acima; em formato 
reduzido, à direita) Fotografia feita pelo furriel Luis Macedo na zona do Catoca


Em Zemba, ninguém se tinha dado ainda conta do das verdadeiras consequências da operação, com o abandono do Catoca por parte da UPA/FNLA, até ao momento em que chegou um SITREP, que era um relatório semanal distribuído pelos batalhões dando conta da evolução da guerra em Angola. 

Neste relatório em concreto, o batalhão de Vista Alegre dava conta da apresentação, naquela localidade, de numerosos elementos da população e, até, de guerrilheiros armados, oriundos da zona do Catoca. O batalhão de Vista Alegre congratulava-se vivamente com o facto, que atribuía à ação psicológica por si mesmo desenvolvida.

O comandante do nosso batalhão, assim que leu o SITREP em questão, foi a correr ao posto de rádio, para comunicar ao brigadeiro de Santa Eulália que as apresentações registadas em Vista Alegre não se deviam a ação psicológica nenhuma, mas sim à ação militar empreendida pelo Batalhão de Caçadores 3880, que conquistou o Catoca. O brigadeiro respondeu-lhe, do outro lado, que já sabia,
porque também se estavam a verificar apresentações em Santa Eulália de pessoas vindas do Catoca. O brigadeiro aproveitou a oportunidade para dar os parabéns ao tenente-coronel pelo êxito militar.

As apresentações de pessoas vindas do Catoca só se verificaram em Vista Alegre e Santa Eulália. Significativamente, ninguém se apresentou no Mucondo. Absolutamente ninguém. Quando o brigadeiro perguntou aos que se apresentaram em Santa Eulália porque motivo percorreram tantos quilómetros até lá chegarem, em vez de se apresentarem no Mucondo, que ficava muito mais perto do Catoca, recebeu a seguinte resposta:

— A tropa do Mucondo mata.

É claro que não era a Companhia de Caçadores 3537 que matava, mas sim a sua antecessora, a companhia dos "Assassinos do Mucondo", cuja fama permaneceu depois da sua saída.

De um momento para o outro, o tenente-coronel deixou de elogiar os "Assassinos do Mucondo", que tinha apresentado como exemplo a seguir, para passar acondená-los:

— Se não fossem aqueles sacanas, — dizia — teria havido apresentações no Mucondo. Esse seria mais um ponto a nosso favor.

Cerca de meio ano depois, estive em Luanda mais ou menos durante um mês. Ao longo desse tempo, dei alguns passeios pela região envolvente à capital angolana.

Num desses passeios fui até à barragem das Mabubas. Para meu espanto, encontrei aquartelada nas Mabubas, junto à barragem, a companhia dos "Assassinos do Mucondo"! Reconheci logo o capitão, que aliás era do quadro permanente. Não falei com ninguém da companhia. Falei apenas com o médico militar que lá se encontrava e que eu conhecia de vista do Porto.

O médico falou longamente de uma epidemia de cólera que se iniciou muito perto dali, na Barra do Dande, e que já se estava a espalhar por Angola inteira, tendo já causado dezenas de mortos. Ele estava indignadíssimo com o comportamento das autoridades sanitárias coloniais, as quais, em vez de tomarem medidas para combater a epidemia, tudo fizeram para escondê-la, «para que o inimigo não saiba e não a aproveite para fazer propaganda». Resultado: a doença espalhou-se para lá do que era possível esconder e O MUNDO INTEIRO, e não só o "inimigo", ficou a saber que havia uma epidemia de cólera em Angola!

A certa altura da conversa, e sem que eu lhe fizesse qualquer pergunta a respeito da companhia que estava colocada lá nas Mabubas, o médico começou a falar dela, comentando que nem parecia uma companhia veterana, já em fim de comissão.

Acrescentou, por sua própria iniciativa, que os militares da companhia se chamavam a si mesmos "Assassinos do Mucondo". O médico nunca tinha estado no Mucondo, mas sabia que aquela companhia era dos "Assassinos do Mucondo"!

— Se eles foram ou não assassinos lá no Mucondo, não sei, mas que se chamam a si próprios assassinos, chamam, e eu acredito que tenham sido, — disse o médico — porque são uma tropa muito fraca.

A corroborar a falta de qualidades militares da companhia, o médico passou a relatar um episódio passado algum tempo atrás, lá mesmo nas Mabubas:

— Certa noite, um soldado sentiu necessidade de defecar. Ou porque estava aflito com diarreia ou por outro motivo qualquer, em vez de se dirigir aos sanitários, resolveu fazer o "serviço" no meio do capim, no escuro, do lado de fora do quartel.

Passou para o exterior do arame farpado e, a uma certa distância do quartel, começou a "arriar o calhau". Um sentinela viu um vulto na escuridão e começou a disparar sobre ele. O pobre soldado, vendo-se alvejado, pôs-se a gritar para não dispararem, porque era ele, Fulano, que estava ali. Mas quanto mais ele gritava, mais
o sentinela disparava. De um momento para o outro, toda a companhia desatou a disparar para todos os lados, numa barulheira infernal! 


Era suposto esta companhia ser constituída por veteranos, que já tinham feito uma guerra no Mucondo, e não por "maçaricos" cheios de medo, acabados de chegar do "Puto". Pois foi como "maçaricos" que estes veteranos se comportaram. 

No fim, quando o tiroteio acabou, o soldado que tinha estado na origem desta confusão saiu do capim, branco como a cal da parede, mas incólume. Gastaram-se muitas centenas ou mesmo milhares de
munições em poucos minutos e nem uma só acertou no homem… Felizmente! 

Uma semana depois, dizia-se em Luanda que as Mabubas tinham sido atacadas!

Como se vê, os indícios de que a companhia aut
odenominada "Assassinos do Mucondo" cometeu crimes de guerra,  foram-se acumulando no meu espírito à medida que o tempo passava. Só o facto de os militares dessa companhia terem escolhido chamar-se "assassinos" é, só por si, muito preocupante. 

A palavra "assassino" tem uma carga negativa fortíssima. Ninguém gosta de ser chamado "assassino". No entanto, foi este nome, e não outro, que eles escolheram para si próprios. Era deste nome que eles se orgulhavam, como eu próprio testemunhei. Por algum motivo o terão feito. Mesmo que tenham provocado uma só morte de um inocente, esta morte já é de mais. 

É verdade que eu não tenho provas concretas, factuais, de que algum crime tenha sido cometido por elementos dessa companhia. Tenho apenas as suspeitas que acabo de expor, mais o que passo a expor a seguir.

Muito recentemente, soube através da internet,  que um antigo militar que tinha estado no Mucondo tinha publicado um livro. Fiquei cheio de curiosidade. O antigo militar em causa chama-se Rogério Pires de Carvalho, foi furriel miliciano e o seu livro tem como título "Alenterra". Um título destes pode sugerir tudo menos a guerra colonial ou a tropa em geral, mas enfm, quer tenha sido bem ou mal escolhido, foi este o título que o autor deu ao livro. Encomendei um exemplar, recebi-o e li-o.

Pouco tempo depois, descobri que este antigo militar tinha pertencido à companhia dos "Assassinos do Mucondo". Voltei a pegar no livro e reli-o, agora sob uma nova perspetiva. Tudo se encaixou.

O livro "Alenterra", de Rogério Pires de Carvalho, é uma pequena obra autobiográfca de 91 páginas, que aborda, sobretudo, a experiência militar do seu autor. 

É um livro muito bem escrito, que revela um escritor de primeira água. Embora seja autobiográfco, o livro é tudo menos monótono e linear, graças aos numerosos saltos no tempo que contém, para a frente e para trás, que são dados sem aviso. Por isso, este livro exige do leitor um certo cuidado, para não se perder relativamente à época a que o autor se refere a cada momento.

Eu não vou fazer aqui um resumo do livro. Vou apenas respigar uma ou outra passagem que possa esclarecer o pensamento e, sobretudo, a ação do autor, assim como da companhia a que pertenceu. Comecemos então.


(...) «Há coisas que nem nos segredos se devem aflorar. Coisas de nada, mas também outras coisas, densas, plúmbeas, excessivas. Como o remorso, o reverso do acto irreversível.

«Ou a dor, que mesmo descrita, não passa de retórica aos ouvidos dos outros. Sente-se na carne, nos ossos, na pele, nas unhas, mas dela nada se pode dizer, porque ela existe para ser sentida nas entranhas. A palavra não a redime, nem a dissolve.» (Rogério Pires de Carvalho, "
Alenterra"!, 2010, Prólogo, pág. 13)

(...) «Como o soldado que se vangloriava de... olhe, não sei se lhe conte, porque não são coisas fáceis de escutar. Histórias de gente que se mata à bala e à faca, gente que sangra outra gente, é sempre gente sofredora. Gente é gente, desde que nasce até que morre, e gente que se mata mal acaba de nascer também é gente, ou poderia tê-lo sido. E é dessas histórias que me recuso a contar-lhe, porque tenho vergonha. Apesar deste tempo todo, ainda tenho vergonha, do que fiz e do que não fiz, do que vi fazer e do que ouvi contar. E por isso não lhe conto, porque não precisa de sofrer o que os outros já sofreram. Ponto final.» (Ibid., pág. 43)

(...) «Aqui e além, disfarçadas na vegetação que começava a revelar-se mais densa, vislumbrámos as primeiras cubatas feitas de paus e palha grossa. Alguns vultos andrajosos voltavam na nossa direção o inexpressivo rosto da hostilidade. Bastava aquele aparente alheamento em relação à nossa presença, para percebermos que não éramos bem-vindos. Nós éramos homens de guerra e era a guerra que carregávamos connosco, embora restasse em nós alguma reserva de inocência. A inocência dos que ainda não tinham trilhado os caminhos da infâmia.» (Ibid., pág. 56)

(...) «O sofrimento cicatriza as emoções. Cobre-as com uma casca rija, casca grossa onde a crueldade se instala. A guerra promove esta neurose, alimenta-se dela, porque só sobrevivem os mais coriáceos. É preciso pôr a humanidade de lado para fazer nascer a verdadeira natureza humana: feroz, assassina e impiedosa. O homem finalmente despido de todas as roupas civilizadas e morais, deixando à solta a sua natureza instintiva e primária, é isto que a guerra autoriza.» (Ibid., pág. 85)

(...) «Ao fim de quatro dias de combates, fomos recolhidos pelos helicópteros, e tivemos a recepção que só é concedida aos heróis. Mas todos estávamos vazios, ocos por dentro, como um saco roto. Não havia nada em nós, nem emoções, nem sentimentos, nem um traço de humanidade. Nada. Um deserto interior feito de apatia e desinteresse por tudo e por todos.

«De uma vez por todas, tinha conseguido atingir o objectivo supremo: já não ia sofrer mais com os males dos outros ou com os meus próprios, porque uma parte de mim tinha deixado de existir. A batalha deixara sobreviver uma legião de fantasmas, articulados por
fora como bonecos, mas mortos por dentro.

«No sítio da alma havia um buraco negro.» (Ibid., pág. 87)

Como se vê, ele emprega palavras como «remorso», «infâmia», «vergonha», «crueldade», etc. Todas estas palavras apontam no mesmo sentido, o da confirmação de que existiram atos que foram, no mínimo, reprováveis e de que há um arrependimento por parte do autor do livro. Existe, contudo, uma passagem, em que ele talvez procure uma desculpabilização e que eu não posso deixar passar em claro.

Nesta outra passagem, o autor ofende quem agiu de modo diferente. A passagem é a que se segue:

(...) «E aquele ser sem eira nem beira lá ia de camarada com os restantes, todos feitos da mesma massa, todos ruminando pensares que iam e vinham, desatinados. Sôfregos de atenção, sôfregos de estima, que quem ali ia não ia para ser estimado, mas para ser odiado. E temido, claro, temido como só os bravos o sabem ser. Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» (Ibid., pág. 61)

É inacreditável esta frase: «Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» Esta frase é um insulto aos meus maravilhosos camaradas de armas que, apesar de todos os perigos e de todas as provações por que passaram (que em nada ficaram a dever às que foram vividas pelo autor do livro), se comportaram SEMPRE como valentes seres humanos, abnegados e generosos, mesmo nas circunstâncias mais extremas. 


Ao contrário do que Rogério Pires de Carvalho afrma, os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos. DE MANEIRA NENHUMA! Agora sou eu que digo: «Ponto final».







Capa do livro Alenterra, de Rogério Pires de Carvalho, "Alenterra", edições Alfarroba, 2010, 96 pp.


Excerto de notícia do jornal 'on line' TInta Fresca, sobre o lançamento do livro, em Torres Novas, em 24/5/2012:

(...) O autor, nascido em Zibreira [, Torres Novas,]  nos idos de 1948 e residente em Castelo Branco, é professor, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em literatura e cultura portuguesa pela Universidade Nova. Trabalhou na Segurança Social e foi arqueólogo no IPPAR. Alenterra constitui-se como um romance autobiográfico, centrado na Guerra Colonial, onde o trauma e a culpa definem as coordenadas da narrativa. (...)

Mais dados biobliográficos sobre o autor:

(...) encontra­‑se aposentado do ensino secundário. Entre os anos de 1969 e 1973 cumpriu o serviço militar obrigatório, tendo sido mobilizado para a região dos Dembos, em Angola.

Publicou:

- As três guerras do Mucondo (2001), Roma Editora; 

- Os funerais de dona Soledade; (2003), Roma Editora; 
- Alenterra (2010), Alfarroba Editora; 
- Histórias Parvas (2013), Fonte da Palavra Editora. (...)


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20182: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte V: O que nos fizeram foi criminoso (pp. 43-48)


"De tudo quanto vejo me acrescento", Fernando de Sousa Ribeiro dixit, 
citando a grande poetisa do Porto (e de Portugal) Sophia de Mello Breyner Andresen, 
cujo centenário se celebra este ano.


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;
(v) vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vi) tem página no Facebook;

(vii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(viii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo;  as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(ix) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 
(Episódios do Meu Serviço Militar)

por Fernando de Sousa Ribeiro




O QUE NOS FIZERAM FOI CRIMINOSO (pp. 43-48)(*)


Que finalmente seja reconhecido o extraordinário valor dos operacionais do nosso batalhão, cujas vidas estiveram nas mãos de gente, no mínimo, sem escrúpulos... Depois de tudo o que suportou, o Batalhão de Caçadores 3880 mostrou ser o melhor do mundo. Mostrou mesmo.

Em Santa Margarida, onde estivemos durante cerca de dois meses antes de partirmos para Angola, não tivemos Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). Diziam-nos os nossos superiores hierárquicos que só iríamos ter IAO em Angola, quando o batalhão ficasse completo com a integração dos angolanos que iriam constituir o chamado Grupo de Mesclagem. 


Por isso, o que o nosso pessoal teve em Santa Margarida foi uma instrução meio a sério e meio a brincar, apenas para ir mantendo a malta ocupada e minimamente ativa até ao dia da partida para Angola. Enquanto isso, o Batalhão de Caçadores 3885, que também se encontrava em Santa Margarida e estava mobilizado para Moçambique, passou o tempo todo em IAO, numa atividade frenética que contrastava de forma chocante com a semi-indolência do nosso. 

Se eu próprio não tivesse tomado a iniciativa, que foi exclusivamente minha e de mais ninguém, de dar uma instrução intensiva aos meus próprios subordinados em Santa Margarida, ter-me-ia visto em situações muito complicadas em Angola. Ninguém, em todo o comando do nosso batalhão, parecia estar minimamente preocupado com a nossa preparação para a guerra.

Em Angola também acabamos por não ter IAO nenhuma. À nossa chegada disseram-nos que ela iria acontecer no Úcua, que era onde os cursos de Comandos costumavam fazer as semanas de campo, mas isso não aconteceu. Não houve IAO no Úcua, nem houve em lado nenhum. Partimos do Grafanil diretamente para a guerra, sem qualquer IAO que se visse.

Aos nossos magníficos companheiros angolanos ainda fizeram pior do que a nós. Mal aqueles nossos camaradas acabaram a especialidade, em Sá da Bandeira, foram levados diretamente para o Grafanil, para se nos juntarem e irem para a guerra connosco. Em janeiro de 1972, eles tinham começado a recruta; cinco meses depois já estavam na guerra! Tal como aconteceu connosco, também eles não receberam nenhuma instrução que se parecesse com uma IAO. Fomos todos para a guerra com uma preparação de merda, brancos, negros e mestiços. Poucas unidades terão partido para a guerra tão mal preparadas como o nosso batalhão.

Se o que se passou até então foi de uma imperdoável gravidade (e foi), o que dizer do que nos fizeram a seguir? 

O que nos fizeram a seguir foi simplesmente isto: durante os primeiros seis meses de comissão, obrigaram-nos a fazer a guerra completamente sozinhos. Exatamente, sozinhos, como se não houvesse mais tropas ou apoios em todo o território de Angola! Não, não estou a exagerar nem um bocadinho. Desde junho de 1972 até janeiro de 1973, as companhias operacionais do nosso batalhão foram as únicas (!) forças militares que combateram nas zonas de Zemba, Cambamba e Mucondo. 

Repito, para que não restem dúvidas. Ao longo dos nossos primeiros seis meses de comissão, nenhuma outra força atuou na área do nosso batalhão, além das companhias operacionais do próprio batalhão. Não houve qualquer intervenção de Comandos, nem de Paraquedistas, nem de companhias de intervenção, nem de TE, nem de GE, nem de "Flechas", nem de Artilharia, nem de Aviação, nem de nada! Nada de nada!

Estivemos completamente sozinhos (!) frente aos guerrilheiros da FNLA e do MPLA, que eram mais numerosos do que nós e atuavam num terreno que nós não conhecíamos e que era de uma extrema dificuldade. Durante esses primeiros seis meses, só a Força Aérea é que deu sinais de vida, e foi só para evacuar os nossos infelizes companheiros feridos! 

Acho que até hoje ainda ninguém chamou a atenção devida para a gravíssima situação em que nós nos encontramos durante esse tempo e nesse lugar, situação ocorrida precisamente numa ocasião em qua ainda éramos inexperientes e, ainda por cima, estávamos mal e porcamente preparados. Numa altura em que, mais do que nunca, deveríamos ter recebido apoio, não tivemos apoio absolutamente nenhum, fosse de quem fosse, fosse de que forma fosse. O que nos fizeram foi criminoso.

Foi ainda mais criminoso porque foi deliberado. Sim, esta solidão forçada a que estivemos sujeitos durante os primeiros seis meses de comissão foi propositada, por vontade do próprio comandante do nosso batalhão, o então tenente-coronel Azevedo. 


Foi lá mesmo, em Zemba, que eu tive conhecimento desta vontade do comandante. Ouvi-a revelada por um alferes da CCS, já não me lembro de qual. Talvez tenha sido o Sousa. Ou então foi o Rico. Enfim, não importa saber qual foi. O que importa é que o comandante conseguiu convencer o brigadeiro de Santa Eulália a não enviar tropas de intervenção ou quaisquer outras forças para o subsetor de Zemba. E, pelos vistos, o brigadeiro era um banana e satisfez a vontade ao ten cor Azevedo.

Inacreditável! E porque é que o Azevedo não queria que forças estranhas ao batalhão atuassem no subsetor? Porque queria ser ele a ficar com os louros e mais ninguém. Todos os êxitos militares que acontecessem no subsetor seriam da exclusiva responsabilidade do batalhão; logo, dele mesmo, como comandante do batalhão que era. [ O 
comandante do Batalhão de Caçadores 3880 foi promovido a coronel quando ainda só tinha passado um ano de comissão, mas manteve-se no comando do batalhão até ao fim.]

Se o comandante e o segundo comandante do batalhão, tenente-coronel Azevedo e major Lacerda, fossem bons comandantes, teriam pelo menos tentado apoiar-nos e animar-nos. Mas não só não fizeram nada disso, como fizeram precisamente o contrário. O comandante, sobretudo, não fazia outra coisa que não fosse ofender-nos e insultar-nos, chamando-nos coirões, sacanas e, nas nossas costas, outros nomes menos reproduzíveis, aqui, em público. Salvo uma única e solitária vez, nunca ele reconheceu o nosso esforço e o nosso sacrifício. Para ele, fizéssemos o que fizéssemos ou deixássemos de fazer, éramos sempre uns sacanas de uns coirões!

O major não nos insultava, é verdade que não, mas não só nunca manifestou o mais pequeno reconhecimento pelo esforço sobre-humano que estávamos a empreender, como fez ainda pior: não contente com os feridos que a minha companhia tinha sofrido, exigiu que sofresse ainda mais baixas!!! Ainda mais! 

Por mais inacreditável que isto possa parecer, aconteceu mesmo! Juro! Ele não exigiu que causássemos mais baixas ao inimigo, como seria de esperar que um militar fizesse. O homem exigiu que fôssemos nós a sofrê-las!!! Juro que ele o fez! Juro mesmo! 

Custa a acreditar? Eu sei que custa, mas é absolutamente verdadeiro! Ele disse-me pessoalmente, em duas ocasiões distintas, no meio da parada de Zemba, o seguinte, textualmente, tal e qual: «Exijo que vocês sofram mais baixas. Não se ganham guerras sem sofrer mortos e feridos. Por isso exijo que vocês sofram mais baixas». E repetiu, martelando as sílabas: « E... XI... J O !». Tais palavras ficaram gravadas a ferro em brasa na minha memória.Os guerrilheiros que nos combatiam eram chamados terroristas. Com razão ou sem ela, a verdade é que os guerrilheiros lutavam por uma causa e estavam dispostos a matar-nos por ela. O comandante e o major, por outro lado, não lutavam nem defendiam causa nenhuma, mas estavam dispostos a matar-nos para receber louvores, medalhas e promoções. Queriam mostrar ao mundo uma elevada estatística de mortos e de feridos sofridos pelo batalhão, à semelhança de um velho leão que exibe as suas cicatrizes como testemunho de lutas e de vitórias passadas. A diferença em relação ao leão é que, enquanto os leões lutam, o comandante e o major não queriam lutar e não lutaram, nem quando tiveram a obrigação de o fazer.

Queriam que fôssemos NÓS a lutar e a morrer, para que eles pudessem exibir as "cicatrizes" e receber os louros por elas. Os verdadeiros terroristas não estavam na mata; estavam dentro do quartel de Zemba.

Em janeiro de 1973, deu-se uma reviravolta na guerra do nosso batalhão. O brigadeiro de Santa Eulália (um tal Rebelo de Andrade, que veio transferido do setor do Cuanza Norte) resolveu criar um comando operacional só para combater o MPLA.

Foi chamado COP1 (Comando Operacional nº 1) e nele foram integrados o batalhão de Quicabo e as companhias de Santa Eulália e do Mucondo. Ficando com a companhia 3537, do Mucondo, fora da sua alçada operacional, o nosso batalhão passou apenas a poder contar com a 3535 e a 3536. 

Além disso, as regiões da FNLA que tinham sido da responsabilidade da companhia do Mucondo (concretamente as regiões do Catoca e do Mufuque) passaram também para a 3535 e a 3536. Como a partir de então só podia contar com duas companhias, o tenente-coronel não teve outro remédio senão aceitar a intervenção de forças estranhas ao batalhão no subsetor. 

Foi então que vieram os Paraquedistas, vieram os "Flechas", veio a Artilharia, vieram os aviões e vieram os helicópteros. Finalmente! Foi o fim do nosso isolamento operacional. Deixamos de estar sozinhos e submetidos apenas ao terrorismo psicológico do Azevedo e do Lacerda.

As operações a nível de batalhão deviam ser comandadas pelo comandante ou pelo segundo comandante do batalhão, como é evidente. Não era por acaso que elas eram chamadas «a nível de batalhão». No entanto, no Batalhão de Caçadores 3880 tais operações nunca foram comandadas por nenhum dos dois. Nem uma só! O tenente-coronel ou o major atribuíam a responsabilidade pelo comando de uma tal operação a um capitão ou a um alferes (chegaram a atribuí-lo a mim mesmo) e
ficavam refastelados à espera dos resultados, bebendo whisky, o major,  e insultando-nos pelas costas, o tenente-coronel. 

Como é evidente, nenhum capitão nem nenhum alferes, com pouco mais de vinte anos de idade e ainda por cima miliciano, tinha conhecimentos ou preparação suficientes para poder comandar cem e mais homens num teatro de guerra! Comandaram como souberam e puderam, só Deus sabe em que condições. 

Em contraste, as operações a nível de batalhão que eram feitas no subsetor de Quitexe, pelo Batalhão de Caçadores 3879 (vizinho do nosso na geografia e na numeração), eram efetivamente comandadas pelo próprio comandante do batalhão em pessoa, e assim é que devia ser. 

No nosso caso, depois de terminada uma operação a nível de batalhão, o tenente-coronel ou o major exigiam ao alferes ou ao capitão, que a tivesse comandado, que escrevesse um relatório sobre a mesma. Este era um relatório sem qualquer valor, que se destinava apenas a servir de rascunho a um outro relatório, este sim oficial, a ser enviado ao brigadeiro de Santa Eulália e onde era contado um grande filme, no qual o tenente-coronel ou o major é que tinham comandado a operação!

Em ocasiões diferentes, a CCaç 3535 foi comandada pelo capitão Lamas da Silva, pelo alferes Arrifana, por mim e pelo capitão Antunes. As pessoas podem ter gostado ou não do capitão Lamas da Silva. Podem ter gostado ou não do alferes Arrifana. Podem ter gostado ou não do alferes Ribeiro. Mas se houve alguma coisa que o Lamas da Silva, o Arrifana e o Ribeiro fizeram, de meritório, foi defenderem e protegerem os militares da CCaç 3535 dos caprichos do comandante, sempre e em todas as circunstâncias. 

Com efeito, o comandante do batalhão estava decididamente apostado em fazer dos militares da 3535, e só os da 3535 (já se vai ver porquê), uns escravos às suas ordens e para todo o serviço, por mais absurdo que fosse este serviço, e muitas vezes era. 

Como se não bastasse a intensíssima atividade operacional da companhia, que esgotava até extremos inimagináveis os seus elementos, tanto do ponto de vista físico como psicológico, o comandante queria que eles fizessem todo o tipo de tarefas e de trabalhos enquanto estivessem no quartel, por mais penosos e desnecessários que fossem. 

Ao mesmo tempo, os militares da CCS mantinham-se de costas ao alto. Nem saíam para a mata, nem trabalhavam como uns desgraçados no quartel, porque o seu comandante de companhia, capitão Óscar, protegia os seus subordinados e não aceitava que o tenente-coronel interferisse nas competências que ele considerava serem suas. 

O capitão Óscar era um homem carismático, que só com a sua presença infundia respeito. Nem o próprio comandante tinha coragem para se lhe impor. Assim, como não se atrevia a impor-se ao capitão Óscar, insistia em querer impor-se a quem estivesse à frente da C. Caç. 3535.

[Foto à esquerda: Capitão Óscar Augusto de Oliveira, o carismático comandante da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 3880]

O que aqui fica escrito pode parecer de uma violência verbal excessiva. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não estou. Juro que não estou. Esta minha violência verbal nada é, comparada com o tratamento que recebemos da parte de quem teve os nossos destinos nas mãos durante o nosso serviço militar obrigatório.

Ora vamos lá ver se nos entendemos. Quem tivesse enveredado por uma carreira de oficial das Forças Armadas, então seguiu uma carreira para a qual a vida humana pouco ou nada valia. Isto dito assim parece uma ofensa gratuita dirigida aos oficiais do quadro permanente, mas não é. É a verdade, tirando algumas exceções (algumas delas insuspeitas), que eram muito honrosas, sem dúvida nenhuma, e às quais presto a minha homenagem mais sincera, mas eram exceções. 

De resto, sempre que acontecia algum incidente do qual resultassem baixas, por exemplo, a primeira pergunta que os oficiais do quadro permanente faziam era: «Quantos mortos? Quantos feridos?» Números. 

«Exijo que vocês sofram mais baixas», dizia-me o major Lacerda com toda a brutalidade. Números. «Quantos hectares de lavras foram destruídos?», perguntavam o tenente-coronel e o oficial de operações em Zemba, assim como o brigadeiro em Santa Eulália, que queriam provocar a fome à população civil e obrigá-la a entregar-se. Números. 

Era verdadeiramente chocante verificar até que ponto podia chegar a fria insensibilidade perante a morte e o sofrimento dos outros, mesmo dos mais inocentes, da parte destes oficiais oficiais de carreira.

Aliás, a palavra "carreira" era, sem qualquer sombra de dúvida, a palavra mais usada por eles nas suas conversas. A propósito de tudo e de nada, lá falavam eles na sua carreira militar. Nada lhes interessava a não ser a sua progressão na carreira. Em face deste seu desígnio supremo, todos os valores morais e humanos se apagavam
para eles. Mortos e feridos? Números.


(Continua)

[Fixação / revisão de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)


Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures, em pleno centro da cidade, na Av Nkrumah,   um velho mural do MPLA,  meio escondido e já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças, dos velhos e dos estropiados: está lá o intelectual, o guerrilheiro, o operário, a camponesa... (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Angola > CCAÇ 3535 (1972/74) > Portugueses e angolanos formando uma equipa de futebol



Angola > Zemba, na região dos Dembos, norte de Angola, 1973. Em Zemba não havia mais do que isto: um quartel, ao centro, e uma pequena sanzala com cerca de 100 habitantes, à esquerda. Mais nada. O fumo que se vê à esquerda resulta de uma queimada. No quartel estava instalado o comando de um batalhão, a respetiva Companhia de Comandos e Serviços (CCS) , uma das três companhias operacionais do batalhão e um pelotão de morteiros independente. No meu caso, o batalhão era o BCaç 3880, a companhia operacional era a CCaç 3535 e o pelotão de morteiros era o Pel Mort 3060, primeiro, e o Pel Mort 3029, a seguir. Por sua vez, a CCaç 3536 e a CCaç 3537, do meu batalhão, estavam destacadas em Cambamba e Mucondo, respetivamente.

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)


por Fernando de Sousa Ribeiro

O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI  (continuação) (pp. 33-42) (*)



À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render.  tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional [IAO]  teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.

No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade de Sá da Bandeira, que agora se chama Lubango.

«Estou salvo», pensei, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que ficarem comigo, serão bons com certeza».

Como já tinha acontecido na Metrópole, o capitão Lamas da Silva mandou os angolanos formar em linha e ordenou:

— Os alferes escolham os homens que querem.

— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.

— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!

— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo».

Acrescentei:

— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado. Eles são seres humanos, não são animais.

Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».

Os angolanos foram a seguir encaminhados para a respetiva caserna, onde já estavam os seus camaradas portugueses, para que se instalassem junto destes. Finalmente, os pelotões estavam completos.

Na caserna, enquanto os angolanos se instalavam e arrumavam as suas coisas, os portugueses observavam-nos com curiosidade e comentavam em voz baixa uns com os outros:

— Ih, que pretos que eles são! É cada tição!

— Oh, pá, os gajos são todos iguais, são todos pretos… Como é que vamos conseguir distingui-los uns dos outros?

Por sua vez, enquanto faziam as suas arrumações, os angolanos mostravam-se descontraídos e faladores, para enorme surpresa minha, pois esperava que eles se apresentassem tristes e acabrunhados, porque estavam quase a partir para a guerra. Eu ainda não conhecia a maneira de ser espontânea e extrovertida que caracteriza a maioria do povo angolano.

Assim que terminaram as suas arrumações, os angolanos dirigiram-se aos seus camaradas portugueses, de sorriso no rosto e mão estendida, dizendo-lhes:

— Parece que vamos ter que nos aturar uns aos outros durante dois anos… Então, o melhor é começarmos já a conhecer-nos. Eu sou fulano de tal, sou de tal sítio e na vida civil tinha a profissão tal. E tu? Como te chamas? De que terra és? O que é que fazias na vida civil?

Com este seu gesto, os angolanos quebraram a desconfiança e o acanhamento dos portugueses. Estabeleceu-se de imediato um relacionamento tão natural e tão intenso, que quem os visse diria que eram velhos amigos que já não se viam há muito tempo e que estavam a pôr as conversas em dia. Eu, que a tudo assisti, fiquei encantado com a facilidade com que se iniciava aquela amizade entre brancos, negros e mestiços, amizade esta que iria durar até ao fim da comissão e que iria ser uma amizade para a vida e para a morte.

Ao fim do dia, quando ficamos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo estado colocados a quase mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa…

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar.

O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra…

— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.

Avançamos para Zemba, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida…», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».

Ao longo da comissão militar, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados, portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Tudo, mesmo tudo. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.

Eles foram mais longe do que quaisquer outros militares tinham ido desde o início da guerra. Eles entraram onde as tropas ditas especiais não tinham tido coragem de entrar. Eles passaram a menos de cem metros de sentinelas inimigas sem terem sido descobertos. Eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado e depois de, numa operação anterior, já um seu camarada ter ficado sem uma perna por ter pisado uma mina. Eles conquistaram sozinhos uma base da FNLA, sem qualquer apoio e comandados pelo bravo furriel Luis Cândido Passos de Macedo (eu encontrava-me ausente de férias), desalojando a tiro e de peito descoberto os guerrilheiros entricheirados na base.

[Foto à direita:] 

Primeiro-cabo Afonso Dias Nogueira, um dos bravos do meu grupo de combate, que regressou de Angola são e salvo, apesar de todos os perigos por que passou. Alguns anos mais tarde ficou sem uma perna em consequência de um acidente de trabalho


Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como parecia estar expresso no repugnante lema da companhia: "A cada um a sua própria morte". Aliás, de maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.

Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou.

— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os camaradas do 1º grupo de combate a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.

Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes tinha sido negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

 Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram das pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração:

Domingos Amado Neto, 
Silva Alfredo dos Santos, 
Domingos Cangúia, 
Diogo Manuel, 
Ramiro Elias da Silva, 
Domingos Jonas, 
Mateus Tchingúri, 
Jonas Vitorino, 
Lucas Quinta, 
Henrique Luneva, 
Raimundo Nunulo, 
Domingos Dala, 
Fortunato Francisco João Diogo 
e Simão João Leitão Cavaleiro. 

Nunca os esquecerei.


[Foto à direita:] Não é fácil reconhecê-lo nesta fotografa, mas este militar parece ser Diogo Manuel, um dos inesquecíveis camaradas angolanos do meu grupo de combate. Era natural de uma sanzala próxima de Malanje. No início da comissão militar, ao contrário do capitão e dos outros alferes da minha companhia, que nomearam guarda-costas para sua proteção, eu não nomeei. «Para que é que preciso de um guarda-costas?» — pensei. — «Tenho um pelotão inteiro para me guardar as costas, não preciso de guarda-costas para nada. Nós guardamos as costas uns aos outros». Tendo verificado que eu não tinha guarda-costas, este soldado, que era extremamente calado, tomou a decisão de ser ele próprio meu guarda-costas sem me dizer nada, seguindo atrás de mim sempre que era possível no decurso das operações. 

Afinal, acabei por ter também um guarda-costas, o Diogo Manuel. Ainda bem que o tive, confesso. Ele parecia adivinhar quando eu estava assustado. Nessas ocasiões, abria-me um sorriso tranquilizador e dava umas palmadinhas na sua espingarda, querendo dizer-me: «Vai descansado, que eu estou aqui pronto a defender-te». E eu ficava mesmo mais descansado. Foi muito bom ter o Diogo Manuel como guarda-costas


Os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E eles foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia.

Encontrando-se na mesma situação que nós, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível. Eles travaram os mesmos combates que nós. Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós. Eles desafiaram as mesmas minas que nós. Eles contornaram as mesmas "bocas-de-lobo" que nós. Eles suaram os mesmos cansaços que nós. Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós. Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós. Eles tremeram os mesmos medos que nós. Eles riram as mesmas alegrias que nós. Eles choraram as mesmas saudades que nós. Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós. Eles foram nós. Todos fomos nós.


[Foto à esquerda:] No seio da Companhia de Caçadores 3537, a convivência entre portugueses e angolanos era também de grande harmonia. 

No Mucondo, onde esta companhia esteve aquartelada, havia uma piscina, que uma companhia anterior tinha feito e que o comandante da 3537, capitão Jardim, mandou restaurar. Apesar de a água não ser filtrada nem desinfetada, nunca ninguém apanhou alguma doença por ter nadado nela.

Durante o seu serviço militar, os nossos camaradas angolanos faziam uma vida muito frugal, porque queriam amealhar algum do dinheiro do pré que recebiam, a fim de que, quando acabassem a tropa e regressassem à condição civil, pudessem pagar o alambamento (dote que, segundo a tradição bantu, o noivo tem que pagar à família da noiva) e assim casar-se e constituir família. Esperavam igualmente poder vir a arranjar um emprego minimamente estável e razoavelmente remunerado, tanto quanto era possível a africanos vivendo na Angola colonial.

Subitamente, quase no fim do nosso serviço militar, deu-se a Revolução do 25 de Abril. A Revolução abriu novos horizontes e gerou novas esperanças no coração de todos, angolanos e portugueses, eu incluído. A partir dessa data, os nossos camaradas angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que tinham tido até então, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Quando no fim nos separamos, as nossas vidas — as dos portugueses por um lado e as dos angolanos por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto nós, os portugueses, pudemos recomeçar as nossas vidas (melhor ou pior, consoante a condição psíquica e física em que ficamos) num Portugal em paz, os nossos camaradas angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e nós tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos nossos camaradas angolanos eram oriundos de Nova Lisboa (atual Huambo), de Silva Porto (atual Cuito), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes nossos camaradas apanharam em cheio com um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas, as bombas e sabe-se lá que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que a seguir ao 25 de Abril estes nossos camaradas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De maneira nenhuma eu desejo diminuir o valor dos meus camaradas portugueses, que em tudo era igual ao dos angolanos, sem qualquer sombra de dúvida. Não é disso que se trata. O que apenas pretendo neste momento fazer é prestar uma homenagem muito sincera, ainda que canhestra, a pessoas que tive o enorme privilégio de conhecer, cheias de humanidade, de sensibilidade e de coragem, que me deram extraordinárias lições de vida e que eram as últimas pessoas no mundo a merecer a sorte que o destino lhes tinha reservado: os nossos antigos camaradas de armas angolanos. Faço-o com um nó na garganta.

(Continua: O que nos  fizeram foi criminoso, pp. 43-48)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior da série > 25 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)

E ainda:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)