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terça-feira, 30 de abril de 2024

Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > s/ d > Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito.  Adapt. de Foto: © Cherno Baldé (2013).  



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita do gen Spínola (atrás de si, o seu ajudante de campo, que nos parece ser o cap Tomás).

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dr. Cherno Baldé,
em Bissau (2019)

1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé já confessou que estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos,  e que ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)... 

O sonho daqueles miúdos, filhos de príncipes, fulas de Sancorlã, era poderem ir ainda a tempo para a tropa,  receber o "crachá" dos "Comandos" e conquistar a "Honra e Glória" na luta contra os "homens do mato"!... Mas, para ele, Cherno. puto rafeiro,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé",  Spínola, o Desejado.

(...) "Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local." (...) (*)

Já não nos lembrávamos desta história, contada na série "Memórias do Chico, menino e moço"... Mas lá estava, contava em maior detalhe no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**). Todo o poste, que vamos dividir em duas partes, merece ser antologizado, nesta efeméride (o 20º aniversário do nosso blogue), como um dos nossos melhores postes de sempre. (***)


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - PARTE I (**)
 
por Cherno Baldé


O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam (1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida,  em forma de uma reflexão retrospetiva sobre a política “Por uma Guiné Melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuido de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

(i) qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

(ii) alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? 

Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático chefe da guerra colonial ou guerra do ultramar português que, com a condução da política “Por uma Guiné Melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25Abril74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o general Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso à metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. 

Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, mesmo, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLÃ

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens que desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante à eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do Partido-Estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de um certo Portugal e em nome de uma certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorlã omo Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau  (1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: 

"Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ (2) da nossa aldeia contra os homens do mato."

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25 de Abril, na Guiné a expetativa de um hipotético regresso do general, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorlã que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo, sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.


SPÍNOLA CONTRA OS IRÃS DE BANDIM


Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no início dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho general, “amigo” dos guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto governador, parecia estar distante da realidade atual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. 

Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da política por ele conduzida na Guiné, desde que chegara àquela província em 1968 e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente à deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé” (3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. 

E a evidência demonstrara que, a política “Por uma Guiné Melhor”,  sendo uma empreitada que, em muitos aspetos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação prática, tratando-se de um ato que,  mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga,  e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. 

Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num paí
s, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. 

Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o general provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF (África Ocidental Francesa).

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um ato de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso Partido-Estado,  e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num cto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo. (...)
 
(Continua)

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

(Revisão / fixação de texto: LG)

______

Notas do autor:

(1) - Guelá Baldé – Alferes,  comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a capitão de milícias, antes da sua morte).

No cômputo geral, havia no regulado de Sancorlã mais de 5 alferes/tenentes e 1 capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorlã); 

  • Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) 
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) 
  • 2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • Mamadu Baldé (Mama Djamara);
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; 
  • Alanso Candé, 2.ª Companhia de Comandos; 
  • Bodo Djau,  Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. 

Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. 

Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. 

O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”. Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.

Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida à linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

____________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 29 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Vd. poste de 26 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

(***) Nota atualizada do Cherno Baldé (em comentário ao poste P25458):

Caro amigo Luis,

Não sei se se deve empolar muito esta história que, na altura, nos causou um choque tremendo e muita incompreensão, pois durante todo o período anterior ao gen Spínola, nunca tinha acontecido uma cena igual.

O ex-capitão Carvalho ainda é vivo e residente, ao que parece, na zona de Arruda dos Vinhos, segundo a sua ex-esposa que, na altura, me contatou amigavelmente, mas para desmentir que o capitão tivesse levado uma chapada na cara. 

Acontece que não me contaram, eu vi com os meus olhos estando no mesmo sítio que, curiosamente, estaria mais tarde quando houve o morticínio do dia 2 de abril de 1972, provocado pelo soldado ("comando"?) Almeida e onde morreram o capitao Carlos Borges Figueiredo (CCAÇ 2742), o alferes Félix, (que era muito estimado também e que acompanhava com muita frequência as atividades da nossa escola), o furriel Alcino e mais outros soldados. O primeiro sargento (velha raposa) conseguiu fugir a tempo, mas ainda assim levou com um estilhaço no rabo. Foi a companhia do cap Carvalho que, praticamente, construiu o aquartelamento de Fajonquito e foi uma companhia extremamente sacrificada e, nãoo admira que não tenham representantes no Blogue, se calhar, como nos diz o Joaquim Luís Fernandes, devem estar fartos da guerra e da tropa até aos cabelos, para não falar do desgosto que tiveram com este acontecimento.

Se relatei o caso foi porque me marcou para sempre e fez do incompreendido gen Spínola o meu herói predileto, sobretudo com a dececão que depois tivemos no reinado do PAIGC.

A citação que acabas de recuperar ainda é da actualidade e reconfirmo, pois: 

(...) "Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este ´Show-off´' público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar.

"Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do 'gentio' rebelde e num território em guerra." (...)


Antes de terminar queria dizer que, revendo as datas com a ajuda preciosa do trabalho de pesquisa do amigo José Marcelino Martins, graças ao qual descobri o Blogue, cheguei à conclusão que, a quando da nossa mudançaa de Cambaju para Fajonquito, em 1967, a companhia que estava no subsector de Fajonquito era CCAÇ 1685 ("Os Insaciáveis") do cap Raiano (cap de infantaria Alcino de Jesus Raiano), homem alto e possante que,  sentado no seu pequeno jipe, parecia que estava de pá. Os nossos deram-lhe a alcunha de "Lello Dadhe",  o cabeça inclinada.

Quanto à CCAÇ 2435, alguns dias após o acontecido, foi substituida pela CCAÇ 2436 (a 20 de Abril 1970), do cap inf José Rui Borges da Costa que antes estava em Contuboel, até ao fim da comissão (13/08/1970).

30 de abril de 2024 às 15:11



segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (167): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca. (*)

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Cherno Baldé, com data de 1 do corrente:

Conforme prometido, junto envio mais um texto fruto de algumas notas de leitura feitas à volta da figura mítica, entre os fulas, de Alfa Moló e a criação do reino de Fuladu. Neste texto faço sobressair a importante figura de El-Hadj Omar (Foutyou) Tall, que as crónicas sobre Firdu e sobre Fuladu conferem o papel primordial no levantamento da população fula contra os soninquês pagãos (mandingas) do reino de Gabu na segunda metade do séc. XIX.(*)

Espero que tenha interesse e possa ser publicado no nosso blogue da Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos, Cherno Baldé




2. Notas de leitura (**):

ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - Parte I

por Cherno Baldé


Em Junho de 2010, no poste P6661 (*), falando sobre os acontecimentos ocorridos no regulado de Sancorlã, nos períodos de antes e após independência (1903-1974), tinha escrito:

“Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana dos últimos séculos, nada acontecia por acaso. Tudo se fundamentava e se justificava, partindo de pressupostos de ordem mística que, aparentemente, estariam na génese de todos os acontecimentos, fossem eles bons ou maus, fossem de natureza política, económica ou social, sempre explicados a partir da conjunção de determinados factores de ordem mística, muitas vezes sob a forma de pactos com seres invisíveis ou simplesmente entre indivíduos ou grupo de pessoas e cujo (in)cumprimento poderia ser sancionado ou premiado a seu justo valor e no devido tempo ».

Estes, eram tempos em que não havia só um Deus, mas muitos deuses, não havia só uma crença, mas uma pluralidade delas, tempos em que a África ainda não se orientava por Meca ou pelo Vaticano, mas sim através dos deuses (Irãs) que habitavam ao seu lado e com os quais podiam falar na sua própria língua.

Os povos que habitavam no reino mandinga de Gabu, mesmo se chegaram em tempos diferenciados, com origens diversas e viviam sob condições sociais diferentes, tinham em comum o facto de partilharem o mesmo espaço sócio-económico e ambiental, obrigando-os, necessariamente, a uma interação económica e mestiçagem cultural constante. Nessas condições, deveras adversas, que os indivíduos fossem de puro sangue (se o termo faz algum sentido) ou que fossem de sangue mestiço ; que fossem homens livres ou de condição servil, as identidades não eram imutáveis, mas submetidas a uma permanente construção, como foi o caso da família de Alfa Moló Baldé.

[Recorde-se: (i) Gabu foi a capital do Império Kaabu (também conhecido por Ngabou ou N’Gabu), um reino Mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na chamada Senegâmbia, região que abarcava o nordeste da atual Guiné-Bissau, mas que se estendia até Casamança, no Senegal. 

(ii( Antes disso, Gabu, ou Kaabu, fora uma província do Império Mali que se tornara independente depois do declínio do império. 

(iii) No século XIX, os fulas estabeleceram a sua supremacia na região, pondo fim ao domínio de Kaabu. 

(iv) Durante o período colonial a cidade passou a ser designada por Nova Lamego, mas recuperou o seu nome tradicional após a independência do país." Fonte: Gabu (região). In: Wikipédia, com a devida vénia...]

(i) A chegada e a instalação de familias Fulas no território mandinga de Gabu

Segundo Abdarahmane Ngaindé, os mandingas do reino de Gabu enquanto guerreiros e esclavagistas, tinham construido fortins (tatas),) cobrindo este grande espaço territorial. Citando Michel Benoît, ele escreve :

 "Uma provincia, muitas vezes, não era mais que um tata instalado no meio da floresta que algumas famílias de pastores fulas percorriam com as suas manadas de gado bovino" (Benoît 1988, 510). 

Esta ocupação descontinua do território e a facilidade de instalação dos pastores fulas permitiam amplo aproveitamento do espaço para a criação itinerante dos seus animais.

Os especialistas da história do império de Gabu não são unânimes quanto à data exacta da chegada das primeiras vagas de famílias fulas nesta região de África Ocidental. As testemunhas, quando solicitadas, perdem-se sempre nas neblinas de longas histórias invocadas com muita emoção, mas pontuadas de muitas fantasias e imprecisões. As migrações, dizem, teriam sido feitas por escalas incessantes, facto que dissipa e impossibilita qualquer tentativa de descrever em detalhes a origem e percurso exacto desta ou daquela vaga de habitantes fulas.

Todavia, é sabido que as populações fulas de Fuladu são de origens diversas, podendo-se dinstinguir as originárias de Macina (actual Mali) ], como é o caso da família do autor destas linhas, o Cherno Baldé], de Bundu e Futa-Toro (actual Senegal), assim como do Futa-Djalon (Guiné-Conacri). A chegada desta última categoria é mais recente e data da segunda metade do séc. XIX.

Alguns autores, tais como Mamadu Mané ou Djibril Tamsir Niane, pensam que uma parte desta população se teria fixado nesses territórios com as primeiras vagas mandingas cuja chegada remonta aos séculos XIII/XIV, baseando-se num provérbio popular entre os mandingas segundo o qual "quando um mandinga chega de manhã, invariavelmente, o fula chega à tarde".

No entanto, pensam outros, é bem possível que tenham chegado um pouco mais tarde do Futa-Djalon na sequência das repressões que se seguiram à tomada de poder dos letrados muçulmanos, contra as populações pagãs a quando da revolução teocrática de 1725 (Ngaide, 1998).

De notar que estes movimentos de populações fulas para esta região foram muito semelhantes à digressão conduzida pelo célebre Coli Tenguella que chegou ao Futa-Toro (Senegal) em 1512 para fundar o primeiro reino fula dos Denyankês, tendo atravessado o Futa-Djalon e o actual território da Guiné-Bissau onde teria tido confrontos com os Biafadas, atravessando o rio Corubal (para os fulas o rio Corubal é Mayôh-Côli, isto é, rio Coli, em homenagem ao lendário chefe fula que teria abandonado o Mali, após a morte do pai «Tenguella Bâ », durante o reinado de Askia Mohamed),  o que teria favorecido o aumento da população fula, juntando-se aqueles que ja lá estavam.

A abundância de pastagens,  aliada à existência de extensas bacias hidrográficas, permitiram-lhes consolidar as suas bases económicas e sociais em todas as províncias que os acolheram, reforçadas pelos dons e oferendas aos príncipes e aos diferentes governadores (Farins) dos clãs mandingas reinantes naquelas províncias. Mais tarde e paulatinamente, eles se sedentarizam e se  passaram a dedicar-se, também, a uma agricultura pouco extensiva aos cuidados dos seus escravos ou servos, a fim de garantirem seu sustento.

Em conclusão, diz-nos Ngaidé Abdurahmane, poder-se-ia dizer que, desde finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, os fulas, chegados em vagas sucessivas, predominam em várias províncias de Gabu e as riquezas destas mesmas províncias dependiam, em larga medida, do número destes últimos. Isto é confirmado, diz-nos Ngaindé, pelo testemunho de Francis Moore [c. 1708 - c. 1756],  citado por Mamadou Mané. Este autor sublinha que « …sem estes estrangeiros (os fulas), os mandingas correriam o risco de passar fome, pois eles tiram deles todo o seu sustento » (F. Moore, 1978).

Este testemunho do inglês F. Moore, é datado do início do sec. XIX (1804). Um pouco mais tarde, na segunda metade do mesmo sêculo, o residente francês em Karabane (Casamansa), E. B. Bocandé (1812-1881), oferece-nos um testemunho similar ao afirmar:

«…é em proporção do número de Fulas estabelecidos no seu território que os chefes das aldeias mandingas devem a sua força, poder, a riqueza e a consideraçao de que beneficiam, porque aqueles o dão presentes de forma continua".

Ainda, segundo Abdarahmane, citando um outro testemunho inglês, Joye Bowman Hawkins « Os fulas eram tratados como sujeitos sob dominação e, como tal, deviam pagar uma taxa anual pela utilização das zonas de pastagens. Nessas condições, cada família era obrigada a pagar um determinado número de cabeças de gado. Os chefes mandingas davam-se ao luxo de escolher os melhores animais da manada, às vezes de forma abusiva, o que tornava as coisas cada vez mais insuportáveis na perspeciva dos fulas" (Bowman,  1981), para os quais aqueles animais não eram simples animais, mas considerados como membros da própria família.

E, é neste mesmo sentido que Mamadou Mané sublinha:  « Porque eram detentores das riquezas materiais (gado e produtos agrícolas como algodão e milho) os fulas eram constantemente abusados e explorados mais que todos os outros, pela aristocracia kaabunké" (Hawkins, 1981 et Quinn, 1971).

Estes testemunhos, entre muitos outros deixados por administradores e aventureiros europeus em África, permitem fazer-nos ver, para além dos abusos recorrentes e das suas consequências sociais, o papel fundamrental que detinham os fulas no reino mandinga de Gabu.

A acumulação de vexames e a situação económica e social no interior do reino no periodo após a abolição da escravatura, pelos ingleses, e o consequente declinio do comércio atlántico, vão estar na origem da revolta que vai derrubar os alicerces do reino e afastar os mandingas dos seus territorios de dominio tradicional.


(ii) Alfa Moló e o nascimento do reino de Fuladu

« Os primeiros anos do reino de Alfa Moló coincidem com a constituição do reino (1867-1881). Durante este período o povoamento fula se reforça e as populações ocupam zonas bem determinadas no antigo reino Gabunké, espalhando-se através do território recentemente 'libertado'. A sociedade fula implanta-se progressivamente e os diferentes elementos da sua organização económica e social se estabilizam. A secunda fase (1881-1903) coincide com o reino do seu filho, Mussa Moló. Este período é caracterizado por uma guerra fratricida que opõe Mussa ao seu tio Bacar Demba e de seguida ao seu irmão Dicori Cumba. Será um período dominado pela recrudescência da violência e das destruições humanas que acompanham-no" (Abdarahmane Ngaindé, 1998).

A juventude de Alfa Moló, diz-nos Abdarahmane citando De Roche, parece ter tido "um carácter particular" (Roche, 1985) na medida em que numerosas fontes de informação confirmam que ele foi educado pelo seu mestre, Samba Egué, que não tinha um filho varão , pelo que considerava aquele como seu filho legítimo a quem, de resto, tinha dado o seu apelido, facto que explica os privilégios que Alfa Moló vai beneficiar durante a sua juventude.

Com efeito, ele teria sido educado como um nobre, beneficiando de toda a atenção requerida e, em vez de se ocupar do gado, ele gostava de se entreter nas lides de cavalos, as idas à caça e ao maneio das armas, actividades reservadas, exclusivamente, aos homens corajosos e também livres. Mais tarde, ele será um caçador destemido, tendo à sua volta auxiliares (aprendizes) aos quais ele introduzia na arte do ofício. Naquela época, os caçadores eram muito considerados, gozando de um grande prestígio, fruto da sua coragem para enfrentar os diversos perigos visíveis e invisíveis escondidos na floresta africana.

Mas, apesar de tudo o que se pode dizer sobre Alfa Moló, que seja de origem nobre ou servil, de nada diminui a importância e o valor da acção que ele e seus companheiros vão realizar e a notoriedade que ele vai adquirir no periodo subsequente. Todavia, o nome de Alfa Moló Baldé só entra, verdadeiramente, em cena depois da passagem de El-Hadj Omar Tall (mais tarde imperador do Sudão), o Marabu que vai estar na origem do mito que envolve o surgimento do reino de Fuladu e os seus principais protagonistas.

sábado, 20 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné-Bissau > s/l >  s/d (c. 1983) > À esquerda, Lino Bicari; à direita, Amilcare Giudici (1941-2008). Foto reproduzida com a devida vénia... Fonte: blogue dos amigos do ex-padre, do PIME,  Amilcare Giudici (1941-2008), teólogo e escritor, defensor das comunidades de base e de uma igreja sem padres para o 3º milénio.


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P19116 (*)

[Foto à esquerda: o nosso colaborador permanente, Cherno Baldé, especialista em questões etnolinguísticas da Guiné-Bissau; tem mais de 170 referências no nosso blogue]


Caros amigos,
Cherno Baldé (n. circa 1960)
estudante universitário em Kiev,
em 1989.   É membro
da nossa Tabanca Grande
desde junho de 2009 (**)

Fui estudante do Ciclo Preparatorio e do Liceu Hoji-Ya-Henda em Bafatá, de 1975 a 1979, onde Lino Bicari, um ex-padre Italiano filiado no partido "libertador", era muito conhecido e estimado. 

Mais tarde, viria a conhecer e casar-se com uma das filhas do antigo régulo de Sancorlã (Sambel Koio Baldé) e minha prima, de nome Francisca Ulé Baldé. 

O Sambel Coio Baldé foi fuzilado pelos esbirros do PAIGC em Bambadinca,  após a independência, destino que teriam mais 4 ou 5 dos seus irmãos, todos eles príncipes de Sancorlã e ex-chefes de milicias do lado português e em defesa do seu chão sagrado. 

O ex-padre Lino é que foi o defensor da tese segundo a qual  a mãe verdadeira de Amílcar Cabral era uma mulher fula do Geba com laços de parentesco com a familia régia de Ganadu (a familia do famoso rei M'bucu ou Umbucu do tempo do tenente Marques Geraldes de Geba). 

Actualmente, vivem em Portugal, mas desconheço se continuam ou não juntos.

Sobre a questão dos Balantas / Brassa:

Segundo as fontes orais a que tivemos acesso, o termo ou etnónimo Brassa vem do termo mandinga Birassu, Brassu, Buraçu ou Braçu,  conforme as fontes em Mandinga ou Fula, Portugués ou Francés, que era a provincia ocidental do reino mandinga de Gabu (ou Kaabu) e que viria a tomar várias formas nas diferentes línguas dos povos que ai viviam antes e após o fim do imperio, na sua grande maioria mandingas, fulas, balantas, djolas, etc.

Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da regiao de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga provincia, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a capital provincial e, donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandirem mais ao sul do pais, até as regioes de Quinara e Tombali.

Partindo deste ponto de vista analitico, na Guiné, os Balantas não seriam os unicos "Birassu" ou "Brassa", pois também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem histórica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades próprias da língua e cultura ainda hoje existentes, alias muito parecidas com as dos seus históricos vizinhos mandingas e balantas do norte.

Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula se identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raízes ou origens geográficas, em estreita ligação ao território/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relação aos outros. 

Não esquecer que em Africa, os processos de formação das identidades com base em determinados territórios ou estados nação,  iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituidos por relações comerciais e outras,  baseadas no tráfico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa, e que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em entre meados do séc. XV e fins do séc. XIX.

Cherno Baldé

19 de outubro de 2018 às 11:55
 
2. Comentários dos leitores:

(i) Antº Rosinha:

O professor Cherno Baldé já nos ensinou mais coisas,  em meia dúzia de comentários, do que aprendemos em 24 meses de comissão na "guerra do Ultramar".

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

É verdade, Rosinha, é sempre com grande prazer, curiosidade, apreço e respeito que lemos os postes e os comentários do nosso professor Cherno Baldé.

Chermo, o Mundo de facto é Pequeno e a nossa Tabanca é... Grande! Não conheço o Lino Bicari mas gostaria ainda de o encontrar em Lisboa... Espero que esteja bem de saúde, com os seus 80 e picos anos. Nos anos 90, em Portugal, esteve ligado à ONGD Oikos. Vejo-o citado como profundo conhecedor da realidade educativa da Guiné-Bissau. 

Gostaria que ele nos pudesse ler, ficando a saber que tem aqui, entre os colaboradores permanentes do nosso blogue, um seu aluno, do tempo do liceu de Bafatá. da segunda metade da década de 1970, e primo da Francisca Ulé Baldé, o hoje dr. Cherno Baldé, um filho da Guiné, quadro superior, que optou, corajosamente, por viver e trabalhar na sua terra.

Prometo ao Cherno que vou tentar descobrir o seu paradeiro (***). 

Mantenhas para o meu irmãozinho Cherno Baldé.

Luís Graça

_____________


(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16321: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (51): Os portugueses tiveram tendência para menosprezar o PAIGC, antes e depois da guerra... Recordando uma cilada dos "homens do mato" aos homens grandes de Sancorlã/Cambaju, ao tempo da CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Regulado de Sancorlã > Cambaju > A família reunida em Cambaju, ano de 1965/66 > Em cima: Mãe (Cadi Candé), pai (Aliu Tamba Baldé) e Aua (prima irmã). Em baixo: Tulai (minha irmã), Eu (de boina verde), Carlos (hoje médico) e Aissatu (irmã da Aua). Esta foto foi tirada por um soldado português amigo da família. (*)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > 1991 > Festa de Ramadão  > El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), o pai do Cherno > Em 1937 fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel para receber e homenagear os combatentes de Sancorlã que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós)... 

[Em rigor, foi uma expedição punitiva, contra os bijagós que se recusavm a pagar o "imposto de palhota", também conhecida por "quarta e última campanha de Canhabaque", decorrendo de 10 de novembro de 1935 a 20 de fevereiro de 1936... O pai do Cherno faleceu  em Bissau em setembro de 1999, porvavelmente com 80 anos.  Recorde-se aqui que El Hadj  é um título honorífico reservado ao crente muçulmano que, em vida, consegue ter a felidadade de fazer, com sucesso, pelo menos uma  peregrinação anual,  Hajj,  a Meca (LG)



Guiné-Bissau > Bissau > Maio de 1977 > Eu e a minha mãe (*) [Em 2011 ainda viva, embora já cega... O Chern fala dela com uma imensa ternura... Teria 80 anos de idade: disse ao filho que, por volta de 1936/37, quando o pai voltou de Canhabaque, a última batalha da "campanha de pacificação",  ela teria aproximadamente 9/10 anos de idade. (LG)]


Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados [Edição do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P16317 (**):


Caros amigos JDinis e MLLomba,

Aproveito esta abertura para apresentar um exemplo típico de acontecimentos que foram reais, mas que, na altura devida, não mereceram a atenção devida dos portugueses e foi assim:

Em meados de 1964/5, salvo erro, como nos contaram (***), os elementos da guerrilha que actuavam na zona Norte (eixo Cuntima-Sitato-Cambaju), confrontados com a forte resistência do regulado de Sancorlã,  apoiado por um pelotão de metropolitanos de uma companhia sediada em Bafatá (penso que a companhia do Alcídio Marinho, CCAC 412,  Bafatá, 1963/65), contactaram os grandes de Cambaju e solicitaram um encontro para conversações "entre irmãos", longe dos olhares dos brancos.  Na realidade era uma cilada.

No dia combinado, os grandes de Sancorlã desconfiados, no lugar dos homens grandes e dos régulos, resolveram enviar os filhos mais velhos para negociar, divididos em dois grupos. O primeiro grupo ia preparado para as conversações, mas na retaguarda ia um segundo grupo discretamente armado para o que desse e viesse.

Antes de chegar ao local combinado,  o primeiro grupo caiu numa emboscada dos homens do mato que sem pré-aviso abriram fogo, matando duas pessoas e ferindo outras. Nao fosse a pronta intervenção dos homens da retaguarda, provavelmente, seriam todos chacinados.

Todavia, os portugueses não tiraram as devidas ilações deste acontecimento macabro, na primeira fase da guerra,  talvez porque os mortos eram civis armados e nativos guineenses ou por outras razões que nunca saberemos,  e não se tomaram as medidas que se impunham para que não viesse a repetir-se.

E, pasmem-se, esta mesma estratégia seria utilizada alguns anos mais tarde (1970) no chão manjaco, no que ficou conhecido como a tragédia dos 3 Majores, talvez o crime que mais abalou os portugueses e a sua cúpula dirigente na Guerra da Guiné e a retaliação não se faria esperar com a invasão de Conakri, em Novembro do mesmo ano.

Para terminar, acho que, muitas vezes houve tendência de menosprezar o PAIGC e as suas forças, antes e depois da Guerra, quando, na minha opinião, devia de ser tudo ao contrário.

Um abraço amigo,

Cherno AB

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Notas do editor:



(***) 31 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12200: Memória dos lugares (247): Fajonquito em Festa (1971) (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, um dos nossos meninos de Fajonquito, com data de hoje, 25 de Outubro de 2013:

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal,

O amigo José Bebiano, ex-Furriel Mil. que fez a sua comissão em Fajonquito, enviou-me estas fotos que quero compartilhar com os amigos da Tabanca Grande.

Numa das fotos está o Cap Figueiredo (Carlos Borges de Figueiredo) morto em Fajonquito a poucos meses do fim da sua comissão por um ex-soldado Comando.

O ambiente de Fajonquito nos anos 70 é deveras inesquecível, devido ao largo horizonte de liberdade e relativo bem-estar social que se prefigurava, com abertura de escolas e muita abertura com a tropa.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé



FAJONQUITO EM FESTA (1971)



Com a CART 2742 (1970-72) o ambiente entre a tropa e a população melhorou bastante, atingindo níveis nunca antes vistos. A foto de 1971 (amigavelmente enviada pelo ex- Furriel Mil. José Bebiano), mostra uma calorosa recepção de um grupo de artistas vindos da metrópole para animar a malta.

Ao meio e ao lado de uma das artistas pode-se ver o nosso saudoso Cap. Carlos Borges de Figueiredo. O rapazinho nas mãos do homem dos óculos escuros é o Carlitos, filho de um soldado Português que, mais tarde, iria à procura do pai, tendo aquele recusado o encontro à última da hora.

O ex-Furriel, José Bebiano, que era de rendição individual, tendo feito toda a sua comissão em Fajonquito poderia, eventualmente, identificar os soldados que acompanham o seu Comandante nesta foto.


PRINCESAS DE CANHAMINA 

Na foto vê-se a(s) mulher(es) de Nharó Baldé, ex-Alferes e comandante de um pelotão de Milícias na área de Sancorla/Fajonquito.

NOTA: Faleceu na noite do dia 19 Outubro, em Bissau, o nosso pai e tio, Sidi Baldé, que exercia a função honorifica de Régulo, o último dos príncipes de Sancorlã do período da guerra colonial, ex-Alferes e comandante de pelotão de milícias em Sare Uali e Sumbundo (área de Fajonquito).

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé

Comentário do editor:
Em nome dos editores e da tertúlia, apresento ao nosso amigo Cherno Baldé, assim como à sua família, o nosso pesar pela morte do seu tio Sidi Baldé, Régulo e Príncipe de Sancorlã, ex-Alferes, CMDT de Pelotão de Milícias.
Mais um camarada e amigo que lutou a nosso lado e que nos deixou no dia 19 de Outubro.
Paz à sua alma. Honremos a sua memória.
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12011: Memória dos lugares (246): Gabu / Nova Lamego, 1972/73 (Joaquim Cardoso)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7301: (In)citações (22): Testemunhas (guineenses, de dentro e de fora do país) dos acontecimentos do pós-independência (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso querido amigo Cherno Baldé (na foto à esquerda, quando jovem estudante universitário, Kiev, Ucrânia, 1989):

Data: 14 de Novembro de 2010
Assunto: A propósito das testemunhas sobre os acontecimentos do pós-independência


Amigo e irmão Luis,

Num dos postes do blogue (P7153), com data de 21 de Outubro, com mensagem do senhor Hugo Moura Ferreira a dar conta do falecimento do Joaquim Djassi, está postada uma foto onde aparece um familiar meu (Braima Baldé) que é um antigo milícia, tendo inclusive perdido uma das pernas numa mina A/P.


Na foto, à direita, o  Braima Baldé (de pé); sentados, da esquerda para a direita o António Pimentel,  o A. Marques Lopes,  e o Joaquim Djassi (falecido). Foto: Hugo Moura Ferreira (2007).


Se conseguirem convencê-lo a falar, certamente que terão muita informação acerca das perseguições e fuzilamentos a que foram alvo os que combateram do lado dos Portugueses no regulado de Sancorlá.

É pouco provável que ele se lembre de mim mas se quiserem falar-lhe de mim digam-lhe que sou filho de Aladje Tambá Baldé,  de Fajonquito, antigo empregado da casa comercial Ultramarina.

Na verdade, não é fácil encontrar pessoas, testemunhas oculares do que se passou pela simples razão de que o PAIGC estava habituado a matar e fazia-o na maior discrição possível para não chamar a atenção. Este facto fez avolumar o diz-que-diz secreto porque ninguém tinha a certeza absoluta do que tinha acontecido. Normalmente as pessoas eram presas e transferidas para lugares longínquos e,  mesmo depois de mortas,  os corpos não eram devolvidos deixando os familiares sempre na dúvida.   
Depois, dentro do mesmo PAIGC, começaram as divisões, perseguições e, mais uma vez, as matanças; de modo que, pouco a pouco,  as memórias e imagens mais antigas são substituídas pelas mais recentes, fazendo esquecer e/ou mesmo perdoar tacitamente os crimes cometidos em outros tempos.

Os últimos acontecimentos ligados com as mortes do Presidente Nino e do Chefe do Estado Maior e outros que se seguiram não têm nada de assombroso para quem conhece a verdadeira face do PAIGC, revelam simplesmente que os guerrilheiros perderam o controlo da situação e já não conseguem trabalhar com a mesma discrição como dantes.

E,  de mais a mais, neste país que o próprio comandante 'Nino' Vieira, numa entrevista ao Independente em 1999 (depois do seu afastamento) chamou de "terra de intrigas, de mentiras e de crimes" sempre impunes, a quem interessa arriscar a sua vida e a dos seus familiares coleccionando material radioactivo altamente perigoso ? Muitos dos que cometeram aqueles crimes ainda estão vivos e todos os dias vimo-los a passear nas ruas de Bissau e noutras cidades.

Quem sabe, através do Braima,  podem entrevistar muitos ex-combatentes que hoje estão refugiados em Portugal.

Um abraço fraterno,
 Cherno AB.
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Nota de L.G.:

Último poste da série > 18 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7300: (In)citações (26): 14 de Novembro de 1980, uma data que mudou a vida do meu país e a minha (Nelson Herbert)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã




Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina), dizem os nossos especialistas José Corceiro, Mário Dias, Nelson Herbert... Conhecida na Guiné, coloquialmente,  como ganga...

Foto: Armando Pires (2010)



Guiné-Bissau > Bissau > 2004 > Cherno Baldé e família, no Tabaski  ou festa do carneiro (i)


Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > Família Baldé > Construir hoje e amanhã...


Fotos: © Cherno Baldé (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Cherno Baldé (ii)

Data: 16 de Junho de 2010 17:20

Assunto: Envio de mais uma crónica

Caro amigo e irmão Luís Graça,

Envio mais uma das minhas crónicas habituais, cabendo a vocês, da incansável equipa do blogue, a decisão de publicar ou não.

Juntamente envio, também, a imagem de uma ave pernalta, que encontrei no poste (P6536) do Sr. Armando Pires, onde ele pede ajuda para a identificação da ave. Esta ave pernalta corresponde exactamente à descrição da 'gueloghal' do conto que acabo de vos enviar.

Com um grande abraço

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)



2. Memórias do Chico, menino e moço (16): Canhámina, o  fim do triângulo da vida e do poder de Sancorlã 

por Cherno Baldé (ii)

Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel (ii) estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O Primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.
- Tcherno!...Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!...Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!...A esquerda!...A esquerda!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.

Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:
- Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:
- Eu sou!..
O Comissário perguntou-lhe:
- Tu és o quê?
- Eu sou! - respondeu.
-Tu és da FLING, não é? - sugeriu o Comissário.
-Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas (iii)  na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.

No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:
- Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... - E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado.

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

***
Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.
-
Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A
Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.

Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu
djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:
- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [, ou Saracolés, gravura à direita, 1890, co
rtesia de Wikipédia], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:
- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer. 

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:
- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos
Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).

Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina/Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974),  se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

***

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (
surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De
Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três  km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago
Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (
diwal): A área de Canhámina (ângulo sudoeste), a área de Lenkebembe/Cambaju (ângulo noroeste) e a área de Panambo/Kerwane (ângulo nordeste) e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.


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Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem
vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses,  ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos,  eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês. 

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida,  a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que,  juntando-se a colecta da borracha,  se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.


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Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.

Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.



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Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas,  etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: “A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):
 - Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

 Bissau, Junho de 2010.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de Cherno Baldé:


 (1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo! 

 (2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

 (4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto
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 Notas de L.G.:

 (i) Tabaski ou festa do carneiro: comemoração da vontade de Abraão de sacrificar o seu filho por vontade de Alá... Uma das mais importantes festas do calendário religioso muçulmano.

 (ii) Vd. último poste da série > 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

Vd. os postes anteriores, e em especial o de 13 de Julho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

 (...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] . (...)


(iii) AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK),  Calibre 7,62 mm

 (iv) Soninquês (também chamados Saracolês): grupo etnolinguístico mandinga maioritarimente islamizado. Habitam a África ocidental. Em francês, Soninkés.