sábado, 27 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25450: 20.º aniversário do nosso blogue (12): Alguns dos melhores postes de sempre (VII): Guileje, "colónia penal militar", com pelo menos meio século de história? (Nuno Rubim, 1938-2023)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > Outubro de 1968 > "Guileje, Colónia Penal, Terra Ingrata, de Mau Signo, Terra de Bandidos, Terra da Fome"... Nesta altura, a unidade de quadrícula de Guileje era a CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969).

Foto (e legenda) : © Gabriel Chasse / Nuno Rubim (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Mapa do Sul da Guiné no Final do Séc XIX, segundo Pélissier (vd. René Pélissier - História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. 2ª ed. Lisboa: Editorial Estampa. 2001. 2 volumes).  Cortesia de Nuno Rubim (2008)
  

Pormenor do mapa (ou carta) de Guileje (escala 1:50000): no quadro das Convenções, pode ler-se que há um símbolo que representa as aldeias abandonadas, como é o caso de Sare Morsô... Só um estudioso como o Nuno Rubim era  capaz de ter olho clínico para estes detalhes que escapam à vista desarmada do leigo...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Excertos de três mensagens do nosso saudoso Nuno Rubim (1938-2023), coronel de artilharia na reforma, historiador militar, esteve em Guileje, à frente de duas unidades, a CCAÇ 726, Out 1964/Jul 1966, e a CCAÇ 1424, Jan 1966/Dez 1966; foi ainda cmdt da CCmds CTIG, em 1965; e voltou ao CTIG nos anos 70.

No 20.º aniversário do nosso blogue, apraz-nos recordar aqui o que ele escreveu sobre "Guileje, colónial penal" (sic)...


Guileje, "colónia penal militar",  com pelo menos meio século de história? 

(1) Durante anos, após a minha permanência em Guileje, ouvi referências sobre o facto de serem enviados para lá militares punidos ou indesejados de outras unidades do CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné].

Apesar de ter tido uma experiência pessoal que parece ter confirmado este facto, só agora descobri, no AHM [Arquivo Histórico Militar], um documento oficial que esclarece totalmente a questão !

Mensagem Com-Chefe, Guiné, Dezembro 1969.

Retransmitido pelo Batalhão de Artilharia 2865, reponsável pelo Sector S3 (nessa altura em Catió), que englobava o subsector de Guileje. (AHM )

Por determinação superior “… Considerada a situação de Guileje, cancelamento de mais transferências por motivos disciplinares para aquela guarnição” !!!



(ii) Trago à liça mais uns elementos que consubstanciam essa tese.

Porque vem de longe ... Pélissier, no 2º volume da sua obra sobre as guerras na Guiné, escreve, na página 191:

"Em 1916, um dos tenentes de Abdul Injai, Alfa Modi Saidou, foi convidado a instalar-se em Guileje com 300 a 400 indígenas franceses provenientes dos bandos de Abdul Injai. As mulheres seriam exclusivamente prisioneiras feitas durante a campanha de 1915." 

Ora isto sucede numa altura em que já tinham terminado as negociações entre Portugal e França que tinham definido as fronteiras na região (1906). (Vd. Mapa, acima).

Cabe aqui abrir um parêntese. Toda a região a Leste de uma diagonal traçada no eixo do rio Cacine, para NE até perto do Rio Balana, pertencia à Guinée, colónia francesa [hoje Guiné-Conacri]. Por isso aparecem no mapa supra as designações de Poste Français [posto francês] em Caconda e Cacine. 

Aquando da delimitação de fronteiras, essa região passou para o domínio português, por troca com a zona do Casamansa no Senegal.

Pormenor do mapa (ou carta) de Guileje (escala 1:50000): no quadro das Convenções, pode ler-se que há um símbolo que representa as aldeias abandonadas, como é o caso de Sare Morsô... Só um estudioso como o Nuno Rubim é capaz de ter olho clínico para estes detalhes que escapam à vista desarmada do leigo... (LG).

Mas a anterior linha fronteiriça era praticamente inexistente, não se sabendo realmente as áreas que pertenciam a cada país. Ora constatei, com surpresa, que, segundo Pélissier / vol. II, pp 60- 69, os portugueses instalaram em Sare Morsô, em 1897, um posto militar, a que deram o nome de Posto de D. Maria Pia (como era uso na altura, em quase todas as colónias portuguesas, nomes de rainhas ou princesas ) e que só foi desguarnecido cerca de 1901.

Surge essa designação, como tabanca abandonada, na carta 1:50000 da Guiné. Quando agora passei pelo chamado cruzamento do corredor [da morte ou de Guileje] ainda tive esperanças de lá poder dar uma saltada (cerca de 2,5 km do cruzamento ), mas infelizmente não tive tempo.

Segundo algumas informações,  o PAIGC teria ali instalado uma base durante a guerra.


(iii) Continuando com a saga de Guileje, Colónia Penal:

Pois parece-me que nos tempos modernos fui eu quem deu continuidade a essa triste fama..

De facto, no final de 1965, enquanto Cmdt da Companhia de Comandos da Guiné e em virtude de um contencioso que se abriu com o Cmdt do CTIG ( relacionado, a meu ver, com a indevida utilização que estava a ser dada aos Grupos de Comandos da Companhia ), tive um dia uma acesa discussão com o referido senhor.

O resultado não se fez esperar ! Mandou-me sair imediatamente do seu gabinete e disse-me que no dia seguinte receberia guia de marcha para seguir imediatamente para Guileje !

Lá fui, pois ... substituir o Cmdt da CCAÇ 726, companhia que na altura já tinha cerca de 16 meses de comissão, em finais de Janeiro de 1966.

Mas isto não ficou por aqui ! Ainda durante a permanência desta companhia em Guileje, chegou a CCAÇ 1424, que a ia render. Pois retiraram-na do comando do seu Capitão, que a tinha formado em Portugal e que o pessoal muito estimava e puseram-na sob as minhas ordens ! Incrível, mas assim aconteceu !

Depois há um vácuo temporal ... ou possívelmente não, mas não me foi dado saber se até 1973 houve mais casos de corrécios despachados para lá ... O que é certo é que me deparei, no AHM [ Arquivo Histórico Militar] com mais dois casos, já em 1973.

Segundo notas da 1ª Rep / CTIG, a 22 de janeiro é transferido do GA 7 para o COP 5, o alf mil art José A. C. Branco da Costa, por motivo disciplinar. E logo a seguir, a 9 de fevereiro, o fur mil op esp Delfim J. Marques dos Santos, é transferido da CCAÇ 3373 para a CCAV 8350, pelo mesmo motivo !

Realmente a inscrição que amavelmente o nosso camarada Gabriel Chasse, que esteve em Guileje, me enviou (ver foto acima ), sintetiza melhor do que quaisquer palavras o que foi o inferno naquele local.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


Vd. tamnbém poste de 23 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25432: 20.º aniversário do nosso blogue (9): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (VI): Na sua já famosa carta aberta a Salazar e Caetano, de 2010, o 'sínico' António Graça de Abreu recomendava-lhes vivamente a leitura do nosso blogue, lá no além...

8 comentários:

Patricio Ribeiro disse...

A nova jornalista da Lusa na Guiné visitou ontem o quartel museu em ns companhia do Camissa da Ong AD. Nos próximos dias vamos ter a opinião dela.
Hoje vai até Caboxanque fazer um trabalho sobre a produção do arroz naquela zona
Local, onde o Pepito criou um centro de
investigação deste cereal...que agora teve uma grande subida de preço e é dificil de encontrar na Guiné

Abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Patrício, obrigado pela notícia. O Jorge Handem também me escreveu, graças aos teus bons ofícios... Vamos retomar as nossas relações com os nossos amigos AD, com quem perdemos o contacto depois da morte do Pepito... Vou fazer um poste:

Jorge Camilo Handem
terça, 23/04/2024, 19:45

Luís Graça,

A ONG AD, depois de muitos e longos anos de instabilidade institucional, os sócios decidiram eleger uma nova direção em 2022 com o objetivo de retomar as dinâmicas a que a nossa ONG sempre nos acostumou. Por isso solicitamos o envio de mensagens para o seu atual Diretor Executivo (Jorge Camilo Handem, jorgito.handem@gmail.com), que está a trabalhar juntamente com a Isabel Levy e a Catarina Schwarz (Filha do Pipito).

Mais uma vez reiteramos a vossa colaboração de sempre. O nosso amigo Patrício Ribeiro nos chamou a atenção acerca das diversas publicações que retiraram da nossa página que atualmente encontra-se em ativo, ao contrário de alguns anos atrás.

Abraço

Jorge Handem

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Espanto este mural...É um grito de alma... Guileje era, fisica e simbolicamente, toda a Guiné... Como foi possível ? Lugar de desterro, exílio, banimento,abandono, sofrimento, dor, morte, violência, alienação, guerra...

Foi a Guiné desde, pelo menos, 1961, para a nossa geração... Até 1974. 13 anos!.. E ainda queriam, os "bandidos", que a gente lá continuasse mais 13 anos, até 1987, e outros 13 até 2000...

E aí talvez se arranjasse um jeito de nos mandarem para casa, aos 60 anos, velhos, cansados, estropiados, mortos, humilhados e ofendidos...Só quem lá esteve pode entender isto...

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Antes da França apoderar-se de Futa-Djalon em finais do sêculo XIX, toda a zona de Forrea e Cubucaré esteve sob dominio deste poderoso estado teocrático, atravês da Diwal (provincia) de Labé, mais concretamente do distrito de Kadê, situada perto da actual fronteira, do lado da Guiné- Conakri a Nordeste de Gadamael, que tinha sido afecto ao Modi Iaia, futuro rei de Labé, antes da morte do pai, Alfa Ibrahima Mo Labé, carrasco dos mandingas de Kaabu e vencedor da histórica batalha de Cansalá.

O topónimo Guileje significa campos de malagueta na lingua fula e que metafóricamente também pode ser local/lugar amargo, inóspito ou pouco hospitaleiro.

E, quanto a localidade de Morsó, o nome original seria Umaro Só cujo diminuitivo ficou Morsó com o tempo por ser mais curto e mais facil pronunciar.

Cordialmente,

Cherno Baldé

PS: O Jorgito foi meu colega de estudos em Kiev entre 1986/90.

Valdemar Silva disse...

Luís, afinal por cá, e não só com o nosso país, havia a pena do degredo nas colónias.
Havia as mais leves para os Açores e pra colónias de África as mais graves. Até para a longínqua Timor servia de degredo para presos políticos como aconteceu com Sarmento de Beires e outros que fizeram parte de uma revolta em 1931.
Parte do povoamento da Austrália, por europeus, é feito com presos do Império Britânico.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Ao fim de 50 anos, Bissau já tem uma Rua com o nome de afilhado de Marcelo Caetano.
Rua Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
As voltas que o mundo dá!
Foi inaugurada em 16-11-23, soube agorinha mesmo.

Patricio Ribeiro disse...

Rosinha.
Mas a rua que lhe atribuíram está cheia de buracos...será por ele ser filho de um Governador de Moçambique ? Ou é, para ele mandar dinheiro para a reparar?

José Teixeira disse...

Um Amigo meu fez tentativas de fuga para França. A primeira, com 18 anos foi apanhado pela Guardia espanhola e entregue à Pide, que o devolveu à família. Mais tarde voltou a ser apanhado noutra tentativa e foi parar a Guilege, onde levou com os acontecimentos de 1973, sendo um dos que fugiu para a Bolanha e foi recolhido pelo barco da marinha, quando já se sentia perdido. Veio completamente "apanhado pelo clima" e com o resto da vida estragada. perdi-lhe o rastro há anos.
José Teixeira