quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25443: 20.º aniversário do nosso blogue (11): Seleção de poemas do "corredor de Guileje" ou "corredor da morte" (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Furriel Gomes, do Pelotão de Caçadores Nativos (Pel Caç Nat 68), o Amadú, um guia e amigo do mesmo pelotão, e eu, carregado de cadernos e livros apreendidos no 'corredor da morte' [ou corredor de Guileje]. De salientar a quantidade de livros escolares em português que o PAIGC tentava fazer chegar às zonas por eles controladas".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Um momento de descanso nas operações diárias de patrulhamento, picagem e montagem de segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Formosa (Quebo) - Mampatá - Salancaur...  Lendo e escrevendo... O fur mil arm pes inf, op esp, MA, José Manuel Lopes (Josema, como poeta). 

Fotos (e legendas) : © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. É um apanhado de alguns dos melhores poemas do Josema, escritos com "sangue, suor e lágrimas", no Sul da Guiné,  no "corredor de Guileje" ou "corredor da morte", entre 1972 e 1974, em lugares tão estranhos e já esquecidos (hoje,  à distância de 50 anos) como Mampatá, Nhacobá, Colibuía, Salancaur, Uane... 

A fonte é a série "Poemário do José Manel",  por nós publicada,  entre março de 2008 e setembro de 2009 (trinta postes, muitos deles com mais de um poema). A maior parte dos poemas não têm título, e nem todos são datados.  

Esta seleção, pessoal, feita pelo nosso editor LG, é também uma forma singela de homenagear o poeta de Mampatá (e do Douro) e de  o associar aos 20 anos do nosso blogue (**),


Naquela picada havia a morte,
havia a morte naquela picada,
de vinte e quatro
foi tirada a sorte,
para um foi a desgraça,
o diabo o escolheu
ou foi Deus que o esqueceu,
havia a morte naquele caminho,
naquela picada havia a morte.


Estrada de Nhacobá, 1973

Olhos semi cerrados 
querendo ver
para além das árvores,
passo controlado,
procurando caminho
já calcado e pisado,
orelhas a pino,
a querer ouvir
além da neblina,
todos os sentidos
são poucos,
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane, 1972

 

O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

s/l, s/d


Estradas amarelas

corpos cobertos de pó,
pica na mão à procura delas,
o polegar ferrado no pau,
tac, tac, tac, tac, tac, tac,
tateando por sons diferentes,
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo o ferrão da pica,
tac, tac, tac, tac, tac, TOC...
o calafrio,
depois o grito,
anunciando o perigo,
o grupo é mandado parar,
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar,
de joelhos no chão,
numa simulada carícia,
afaga a terra com a mão,
com gestos simples e perícia,
vai cavando devagar:
hei-la... está aqui,
lisa preta a brilhar;
parece inofensiva, a maldita,
deita-lhe a mão e grita:
és minha, já te tenho;
volta-a,
tira-lhe o detonador
e, entre dentes, diz:
esta não,
esta não causará dor.

s/l, s/d


Pior

que o inimigo
é a rotina,
quando os olhos já não veem,
quando o corpo já não sente,
quando já se não recorda
o nosso último abraço,
e a arma se tornou
um apêndice do braço;
pior
é quando nos esquecemos
dos afagos e carícias
que uma mão pode fazer,
da mensagem e melodia
que uma canção pode conter;
pior
que as chagas nas virilhas
ou o aço a entrar no corpo,
são os delírios sem sentido,
e o procurar esquecer
as pessoas mais queridas;
pior
é o despertar
do mal que há em nós,
e é preciso pensar
e é preciso parar
e é preciso sentir
que ainda estamos a tempo.


Salancaur, março 1973


Sangue derramado

Puseste o pé em sítio errado,
um som violento, o pó levantado,
escondeu por algum tempo
teu corpo violentado.

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro,
o sangue fugia de teu corpo
e o hélio não chegava.

tua cara, ainda de criança,
ficava cada vez mais pálida,
tudo, num silêncio angustiado.

apesar dos teus vinte anos,
a vida fugia-te em golfada.
porquê tanto sangue derramado?

s/l, s/d

Sabes o que é morrer

com a vida por viver?
sabes o que é sentir
toda uma vida a fugir?
ter de cerrar os olhos
para voltar a sorrir?
eu fecho-os
para ver as vinhas e os montes,
eu fecho-os
para ver o Douro correr,
eu fecho-os
para ver uma mulher,
eu fecho-os
para não pensar
nem me lembrar
que também posso morrer.


Mampatá, 1973

Gostava de vos falar
dos esquecidos,
dos heróis que a história
não narra,
que as viúvas choraram
mas já não recordam,
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem,
descendentes
que os lembrassem,
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai,
vítimas de guerras
que não inventaram,
em tempo que já lá vai,
falar deles é prevenir,
se bem que de nada lhes valha,
de guerras que possam vir,
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.

s/l, s/d


Calor, cansaço, suor,
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior,
pois há ali o Corubal,
com sombras e água boa,
nem tudo é mau, afinal,
não é o Douro, eu sei,
nem o Tejo de Lisboa,
são outros os horizontes,
falta o xisto e o granito,
as encostas e os montes,
mas diga-se, na verdade,
há o Carvalho, há o Rosa,
há um hino à amizade,
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira,
há o Farinha e o Polónia,
gestos e solidariedade,
há o Esteves e o Pinheiro,
amigos e sinceridade,
há o Nina e até amor,
também sofrimento e dor,
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Mampatá, 1974

As duas faces da verdade 

a outra face da verdade
é só
o outro lado da história,
é apenas
outra maneira de sentir,
é só
o reverso da medalha,
o outro ângulo,
outra maneira de ver,
e põe em causa
a minha razão,
mas terei nunca
vergonha
desta farda que me cobre,
quero sim é entender
a outra face da verdade.

Mampatá, 1974

Ao Albuquerque (#)

O teu sangue não manchou
só a terra onde caiste,
apagou o futuro e
os filhos que não terás,
causou dor
nos que te perderam,
despertou loucuras
em noites perdidas
a recordar-te,
o teu sangue vertido
marcará para sempre
bem fundo, dentro de nós,
prometo não mais chorar,
quero rir por ti,
quero viver por ti,
quero gritar ao mundo
como foi inútil o teu sacrifício,
assim nunca serás esquecido.

Mampatá, 1973



É tempo de regressar às minhas parras coloridas

e ver a água a gelar,
esquecer mágoas e feridas,
e a todos abraçar, 
olho por cima dos ombros,
vejo a mata, lembro Amadú,
e nem tudo são escombros,
há a ilha de Bolama,
há Susana, há Varela,
as ilhas de Bijagós
e a vida pode ser bela,
se nunca estivermos sós,
houve prazer e amor
em terras de Mampatá,
senti a raiva e a dor,
saudades do lado de lá,
a distância e tanto mar,
mas não há ódio ou rancor
e um dia... vou voltar.


Bissau, 1974
____________

Nota do autor:

(*) O Albuquerque era um soldado do 3º grupo de combate. A segunda baixa da nossa companhia em Abril de 1973. Vítima de uma mina antipessoal quando o seu grupo procedia à picagem na frente de trabalhos da estrada [Quebo-Salancaur] que a Engenharia estava a abrir. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente de trabalhos, foram detectadas dezenas de minas antipessoal e anticarro. Era um trabalho que aqueles homens faziam com muito rigor e segurança, e que correu bem até aquele dia. 

O Albuquerque era um jovem alegre, quase sem barba, ainda hoje o vejo na vespera de Natal de 1972 a tourear uma cabra entre os arames farpados de Mampatá. O furriel Vieira um dos furriéis do 3º. grupo assistiu também à cena pois já o ouvi num dos nossos encontros referir-se a ela.

(Seleção, revisão e fixação de texto: LG)
___________

Notas do editor:

(*) 25 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: ""Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"...A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camaradas, são "gritos de alma", estes poemas... singelos mas que calam fundo... Merecem figurar numa próxima antologia da poesia da guerra colonial... Importante, é que não se percam, como outros textos 1que temos publicado aqui ao longo destes 20 anos... LG

Juvenal Amado disse...

O José Manuel merece pela a sua poesia e pelo homem que é.
Neste dia de comemoração nunca é demais lembrar aqueles dias de chumbo.

Obrigado

Anónimo disse...

Não é só por ter sido seu camarada, não é só por ser seu amigo até morrer, é sobretudo por o conhecer melhor do que a mim próprio e saber da sua grandeza como ser humano sério e justo. Mas é também por me ver dentro destes poemas de uma extraordinária beleza e tradutores da realidade da guerra que felicito o nosso blog pela escolha que fez. O Zé Manel foi sempre um combatente lealíssimo e corajoso, mas foi também um construtor de paz na sua relação com a população civil de Mampatá, dedicando horas do seu descanso na alfabetização e na introdução das crianças na prática desportiva. Fico muito feliz por esta publicação.

Um grande abraço a todos os combatentes, neste dia tão especial.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Uma prova da grande honestidade intelectual do Zé Manel:

"Não acabei a especialidade de operações especiais, tive uma lesão grave num joelho e nem fui perito em minas e armadilhas. Tudo que sei de minas aprendi com o Fernandes e Vilas Boas que levantaram dezenas delas."

Comentou ele no Facebook da Tabanca Grande, hoje, às13h02. Vou corrigir, o erro (factual) é nosso...

https://www.facebook.com/p/Tabanca-Grande-Lu%C3%ADs-Gra%C3%A7a-100001808348667/

Anónimo disse...

Eu sabia que ele iria fazer a correcção, porque pode haver gente tão humilde e honesta como ele, mas mais é quase impossível. O Lopes da Régua é daquelas pessoas a quem se pode comprar um carro em segunda mão, com a certeza de que ele próprio denunciará as mazelas de que a viatura sofra. O rapaz tem alguns defeitos, como qualquer um dos mortais, mas de falta de honestidade e frontalidade ninguém que o conheça pode acusar. tenho um enorme orgulho por o contar como amigo.

Um grande abraço

Carvalho de Mampatá.