Amigos e camaradas da Guiné
Nem sempre a minha actividade me dá o tempo necessário para escrever sobre os diversos temas aqui abordados. Esta mensagem está relacionada com o meu comentário de 10 de Julho de 2022, sobre as Directivas do Gen. Bettencourt Rodrigues e o MFA, espero que o debate sobre este tema não esteja fechado.
Guardo na memória uma das minhas primeiras patrulhas de reconhecimento feita num local do rio Mansoa próximo da travessia de João Landim durante a noite com o objectivo de verificar se havia movimento do IN.
Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos"
Partimos ao anoitecer no fim de Março de 1974, a fim de realizar uma patrulha de reconhecimento e verificar se havia movimento nas proximidades da travessia do rio. As nossas armas eram apenas as G3 e carregadores. O condutor do Unimog levou-nos até ao fim duma picada e aí nos deixou.
Ele voltou para o Quartel e nós iniciámos a patrulha pela mata até chegar a uma bolanha, conheço bem este tipo de terrenos, cresci junto e exerço a actividade de Aquacultura Marinha no Estuário do Rio Mondego.
Sirvo-me da proteção duma maracha coberta de vegetação meio-seca, (pequenos muros de terra), que corriam na direção do Rio, estávamos na época seca e o terreno encontra-se seco e duro, eu ia à frente da secção a visibilidade era boa e a progressão decorria sem dificuldade, mandei aumentar a distância entre nós e paramos algumas vezes durante o percurso para escutar sons que viessem do rio.
Ao chegar ao aluvião brilhante constatei que tinha chegado à praia (sapal) na zona de influência das marés, estava baixa-mar e era bem visível a água turva do rio e a praia, não avancei mais. O nosso peso podia dificultar muito os nossos movimentos se o aluvião não fosse compacto, por isso continuamos a nossa progressão pelo terreno seco ao longo da margem, até ao nosso objectivo.
Procurei um local seguro e ali ficamos umas horas protegidos e envoltos pela vegetação, a vigiar a praia e as águas do rio procurando não fazer movimentos. Era uma noite de luar e a visibilidade era boa. Tinham já passado umas horas e não vimos quaisquer movimentações de pessoas, decidi iniciar o regresso, para ir ao encontro do Unimog.
Depois de sairmos da bolanha voltamos a entrar na mata, vi um mangueiro e uma pequena clareira e reconheci que já tínhamos passado ali no início da missão, estávamos perto do ponto de reunião. O mangueiro pareceu-me um bom local, mandei o pessoal aproximar-se do tronco da árvore e aguardar.
O Soldado Silva tinha à data mais de 26 anos e era o mais velho da Secção, era um militar experiente, chamou-me à parte e perguntou-me se iríamos continuar naquele local e como eu confirmei, comentou: - Olhe que não me parece um sítio bom, se aparece um turra com um RPG e faz pontaria ao mangueiro, pode lixar-nos! - E com o dedo indicador apontou para a malta junto ao grosso tronco do mangueiro e continuou, olhe que nós estamos no fim da Comissão, o nosso último morto foi no dia 7 de Janeiro deste ano e eu quero regressar a casa.
Bati na real, estava a receber uma lição dum soldado e ainda mais, nunca tinha ouvido falar nem conhecia o RPG, não pensei duas vezes, o mais sensato era ouvir o que o "velho" dizia e seguir o seu conselho, ia arriscar para quê? Assim foi, continuamos dentro da mata, fizemos o reconhecimento do local fomos aguardar próximo do ponto de reunião, para escutar o som da chegada do Unimog, que chegou quase ao romper do dia.
Como era possível nunca ter ouvido falar de RPG nem me ter passado pela cabeça aquela forma de utilização. Aquilo para os "velhos" era rotina, uma coisa simples e banal, para mim foi aprender e começar a pedir a sua opinião. Assim se formou um grupo coeso, tudo o que eles precisavam eu procurava resolver e tudo o que eu pedia era feito, minha integração foi tão simples, que passado umas seis semanas a CCaç 4541/72 elegeu-me para a delegação do MFA.
As bolanhas podem ser cultivadas e nós devíamos conhecer e ter presente que a guerra obrigou algumas populações ao abandono das culturas de muitos destes terrenos, em alguns locais desenvolveu-se um sentimento hostil, a maioria das NT nem ligava a isto e por isso uma simples travessia podia pôr-nos numa posição de desvantagem perante o IN.
Existe uma fotografia demonstrativa, no Blogue, do que parece ser um pelotão de homens com água pela cintura a atravessar uma bolanha rodeados de plantas aquáticas, que me parece no mínimo insensato, mas é também um desafio ao heroísmo (tangente à loucura) que se enquadra no livro "homens, espadas e colhões", que Rainer Daehnhardt descreveu sobre a coragem dos nossos antepassados.
A instrução de tiro instintivo é muito importante desde que os instruendos tenham aptidão para isso. Dominar uma arma e o tiro instintivo torna-nos mais confiantes e seguros, mas não o conseguimos sem treinar bastante e gastar muitas munições, o tiro instintivo na guerra não é o suficiente mas ajuda muito, eu dominava essa técnica.
Eu não conhecia as Directivas do Com-Chefe Bettencourt Rodrigues e por isso ver escrito preto no branco "Um cartucho por homem serve para detectar um mau atirador", conhecer a realidade dos factos e não ver uma única palavra escrita sobre a má alimentação, os seiscentos escudos por mês que as praças recebiam, a insuficiente preparação militar das NT, desde praças, sargentos e oficiais milicianos, o livro do combatente - patrulhas - o desconhecimento sobre o terreno da Guiné e a sua ideia que a carne para canhão continuava disponível para tudo, incluindo resistir até à exaustão e deixar cair a Guiné, mas nunca negociar com o PAIGC, foi uma desilusão ler estas Directivas e a sua visão da Guerra.
Não podemos no entanto esquecer que este problema era do conhecimento dos militares que compunham o estado embrionário do MFA, também nunca foi uma prioridade para o MFA. A seguir ao 25 de Abril, havia uma vontade da tropa regressar e quanto mais depressa melhor, o TCoronel Almeida Bruno deslocou-se a Bissau em representação do MFA no dia 7 de Maio de 1974 para promover a reestruturação e apelar à preservação da disciplina e da hierarquia das FA como consta da 1.ª pág. do BI do MFA n.º 1 na Guiné.
Essas decisões foram reforçadas pela Circular n.º 1703 da 2.ª Rep do EME e do Com-Chefe das FA da Guiné de 28 de Maio de 1974, também publicada aqui no Blogue, com as negociações de paz a decorrerem, a disciplina e a hierarquia eram mais importantes do que nunca, só um exército forte e coeso pode fazer uma boa negociação.
Sabendo disto alguns oficiais do MFA preferiram fazer política, Otelo Saraiva de Carvalho admitiu as fragilidades do seu pensamento político ao declarar em (os dias loucos do PREC, pág. 324 José P. Castanheira) "Faltou-me estrutura política que me podia ter possibilitado, desde o início ser o líder da Revolução, se tivesse cultura livresca, podia ser o Fidel Castro da Europa" e quantos membros do MFA quiseram ser os líderes da revolução? Não sabemos, o que sabemos é que foram todos para a Academia para seguir uma carreira militar, mas alguns mudaram de opinião, quiseram ser também revolucionários e nunca tiveram a coragem de assumir que estiveram perto lançar o povo numa guerra civil. Ainda bem que não estive sob as suas ordens, porque tinha que sujeitar-me a ver mais um livro publicado cheio de boas intenções e com a sua opinião sobre a sua verdade dos factos.
Tinha apenas 22 anos, mas percebi perfeitamente o que se passava em Bissau. Apenas um pequeno número de elementos do MFA tomava as decisões, mesmo assim sujeitas à direção do "comité central" de Lisboa, a maioria eram figurantes como eu , o que aconteceu às NT africanas, não devia ter acontecido e o MFA é o único responsável por não saber estar à altura da situação.
Eu nunca precisei do RDM para ser respeitado e exercer a disciplina, mas devo dizer àqueles que à data estavam a 4.000 km de distância que gostavam de ler o RDM e tresler uns Boletins e sabiam de tudo, que a única vez que obriguei um Superior a cumprir com aquilo a que ele estava obrigado, foi precisamente por causa de documentos do MFA e apenas precisei de levantar o braço, acenar um papel com a mão direita e o aviso e, passadas 48 horas, os documentos estavam na minha mão e o problema resolvido.
Em anexo:
Duas fotografias do Rio Mansoa e arredores de João Landim.
Cópia da capa e contracapa do livro de Instrução do Combatente-Patrulhas.
Cópia da capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Ad. Gomes e José P. Castanheira.
Cópia da capa e contra capa do livro de Rainer Daehnhardt.
Cópia do papel que exibi na mão direita a um superior.
Cultura de amendoim
Travessia em João Landim
Capa e contra-capa do livro de Instrução do Combatente
Capa do livro "Os dias loucos do PREC"- Adelino Gomes e José Pedro Castanheira
Capa e contra-capa do livro de Rainer Daehnhardt
Papel que exibi na mão direita a um superior
Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)