Guiné < Região do Cacbeu > Jolmete > CCAÇ 3306/BCAÇ 3833 (Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73)> . outubro / novembro de 1972 > O álcool é euforizante e socializante... O tabaco, ansiolítico... Foto do álbum do ex-fur mil Augusto Silva Santos (vive em Almada).
Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra CCAV 2483 (1969/80) : Num mês, talvez atípico, com o de junho de 1970, a escassos, dois ou três meses de mudarem para Tite (sede do sector S1) onde foram acabar a comissão (setembro/dezembro de 1970), os camaradas desta subunidade gastaram 89,4 contos, na cantina (que era comum a oficiais, sargentos e praças). 46% desse valor foi em cerveja e uísque. 89,4 contos (=30,7 mil euros, a valores de hoje) era bastante dinheiro: a dividir por 160 militares, dava 560 escudos "per capita" (=192 euros, a valores de hoje). (*)
Ora, o que sabemos da História é que nunca se fez a guerra sem álcool (ou outras drogas). Matar e morrer é a experiência-limite do ser humano. Não imagino o Inocêncio Cani (que eu não sabia que tinha sido catequista!) a matar o Amílcar Cabral, à porta de casa, a sangue frio. Tinha que estar com a "cabeça grande", sob o efeito do álcool. O mesmo para os matadores do Pelundo, os carrascos dos 3 majores e seus acompanhantes em abril de 1970.
O consumo de álcool, de um e do outro lado da "barricada", na guerra da Guiné (1961/74) está mal documentado. Pelo menos do outro lado, do lado do PAIGC.
1. Militares portugueses na Guiné (1961–1974)
(i) Disponibilidade e tipos de bebidas
Cerveja era comum nas unidades portuguesas, especialmente marcas nacionais enviadas pela Manutenção Militar (Sagres e Cristal). À Guiné não chegava a cerveja angolana nem moçambicana, nem convinha aos cervejeiros metropolitanos.
Uísque, aguardente, vinho e licores eram consumidos sobretudo por oficiais e sargentos, bem aqueles que tinham melhores possibilidades logísticas ou económicas. Por exemplo, bebi-se melhor em Bissau, Bambadinca e Bafatá. A Marinha, por sua vez, bebia (e comia) muito melhor que o Exército...E também não ouvimos queixas da Força Aérea.
No que diz respeito à tropa do recrutamento local, grosso modo podemos dividi-la em muçulmanos, animistas e cristãos ou assimilados.
- Lazer e coesão: beber em grupo ajudava a criar um sentimento de companheirismo (à mesa) e camaradagem (na caserna, no mato...) em situações difíceis; bebia-se em grupo, os bebedores solitários seriam a exceção à regra.
- Socialização, ritual social: celebrações, aniversários, outras efemérides (data da chegada à Guiné, por exemplo), momentos de descompressão entre operações, e até o ritual do “comes & bebes" nos dias de folga, ou ao fim da tarde; ou nas idas a Bafatá...(a "civilização", o "oásis", para a malta do Leste).
- Claustrofobia, mecanismo de escape: muitos ex-combatentes relatam que o álcool servia para "esquecer" (a guerra, a solidão, as saudades de casa...): certamente para aliviar a exaustão física, o stress, o medo, as insónias e até o trauma, o que hoje se reconheceria como sintomas de stress pós-traumático; o ambiente nos aquartelamentos e destacamentos, cercados de arame farpado e com o perímetro exterior armadilhado, e vivendo muitos militares em "bunkers", e por vezes sem população, era claustrofóbicos; um ambiente propenso à depressão, ao conflito, à violência interpessoal, e ao consumo de álcool; já relatámos aqui alguns acidentes mortais com "arma de fogo", associados ao ao álcool.
- Ambiente de caserna: o consumo era normalizado e raramente reprimido, exceto em casos de indisciplina evidente; cada uma das 3 "classes" em presença (nobreza, clero e povo, com eu chamava aos oficiais, sargentos e praças) tinham os seus locais próprios de "libação": messes, bares, caserna, refeitório, escapes citadinos como Luanda, Bafatá, Safim, Nhacra, etc.
(Iv) Problemas derivados
Há relatos de alcoolismo em certas unidades, embora geralmente omitidos nos relatórios oficiais. Pode haver referências nos autos por acidentes de viação ou acidentes com arma de fogo (suicídios, homicídios, automutilação, ameaças, e outras formas de violência). Mas todas estas situações são tratadas com pinças...
Alguns comandantes tentavam limitar o consumo antes de operações, mas o controlo era difícil e desigual. Aqui funcionava mais o autocontrolo e o controlo pelos pares ( a nível de secção e pelotão). Obviamente, ninguém podia ir "alcoolizado" para o mato ou para uma coluna.
O clima tropical, o desgaste físico, o cansaço agravavam os efeitos do álcool. Ao fim de alguns meses, dizia-que o militar "estava apanhado do clima" ou "cacimbado",
A documentação sobre o consumo de álcool nas hostes do PAIGC é mais escassa. Não há números. A guerrilha valorizava a disciplina, e o controlo disciplinar e ideológico seria mais rígido. Ainda assim, há elementos que surgem por fontes orais e memórias.
(i) Consumo existia, mas era vigiado
Em várias regiões da Guiné era comum o fabrico e consumo de vinho de palma, aguardente de cana e outras bebidas tradicionais. Os "chefes" chegavam ter os seus "tiradores" privativos!
Guerrilheiros jovens, longe das aldeias, das famílias e em longas marchas, emboscadas, operações, etc., podiam recorrer, ao álcool em momentos de pausa. (Isso também acontecia no nosso lado, era a ocasião em que se apanhavam os "pifos de caixão às cova").
O PAIGC (ou o seu ideólogo, e comandante-chefe, Amílcar Cabral) desencorajava fortemente o consumo excessivo, associando-o à “fraqueza revolucionária”.
Alguns veteranos referem punições internas ou advertências para quem bebesse antes de ações militares. Mas não sabemos como funcionava o autocontrolo e o controlo por pares. Rui Djassi, Osvaldo Vieira e outros "comandantes" tinham problemas de álcool..
(iii) Funções do álcool (semelhantes às das tropas portuguesas)
Alívio do stress, convivência, e momentos de pausa nos acampamentos. Afinal éramos todos de carne e osso, pesem embora as diferenças culturais.
Em certas áreas, o álcool fazia parte de cerimónias tradicionais que se mantiveram mesmo durante a luta armada ("choro", etc.)
(iv) Subregisto histórico
A imagem oficial do PAIGC como movimento altamente disciplinado (cultivado por Amílcar Cabral, para efeitos de "marketing político") levou a que estes aspetos da vida quotidiana nas "áreas libertadas" ficassem menos documentados ou na obscuridade,
Investigadores da história social da guerra admitem que a dimensão humana e informal da guerrilha está ainda pouco estudada, incluindo "comportamentos desviantes" como consumo de álcool, rituais, amuletos, sexo, violência (contra crianças, bajudas, mulheres e velhos...), indisciplina, conflitos, drogas locais, relações tribais, etc.
Sondagem fechada em 15/3/2016 | 18h04
(i) Nunca > 31 (30,4%)
(ii) Uma vez, por acaso > 25 (24,5%)
(iii) Duas vezes > 10 (9,8%)
(iv) Três vezes > 4 (3,9%)
(v) Mais vezes > 26 (25,5%)
(vi) Não me lembro > 5 (4,9%)
(vii) Não aplicável: não bebia > 1 (1,0%)
Total > 102 > (100,0%)
Esta frase, frequentemente citada por veteranos de ambos os lados, é bastante precisa. Não se faz a guerra, sem álcool nem tabaco... nem com o estômago vazio!
De facto, em praticamente todos os conflitos, o álcool ( e o tabaco) é um ansiolítico não oficial, uma espécie de "lubrificante psicossocial" para a "máquina de guerra", uma forma acessível de lidar com o medo, a violência, o risco, a morte...
Na Guiné, com isolamento, clima adverso e desgaste físico e psicológico constante, tornava-se ainda mais evidente a importância do álcool e do cigarro, as duas "drogas legais".
(*) Vd. poste de 6 de dezembro de 2025 Guiné 61/74 - P27499: A nossa guerra em números (47): mais de 2/3 do consumo, do valor de vendas em junho de 1970 (n=89 contos), na cantina, da CCAV 2483, em Nova Sintra, foi em álcool e tabaco (Aníbal Silva / Luís Graça)

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