Foto:© Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.
(...) "O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, uma lata de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme.
"Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?
"Gil saiu com o Black, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Um tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.
"Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black! Onde se pode almoçar? Ali? O que se come lá?
"Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta e batata frita para acompanhar, querem?
"Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro.
"Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?
"Quando sairam dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver?
"No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou o Gil e o Leite, alferes também, debruçados na amurada, a olharem para a cidade.
"O que levo daqui? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa.
"Bissau, se for assim não é nada mau!
"Nem penses, pior, muito pior, arriscava o Leite" (...)
In: Guíné, Ir e Voltar > post de 9 de Fevereiro de2006 > A Caminho > 1. O caminho para lá [blogue de Virgínio Briote]
"Com o focinho no lixo, lata virada, o rafeiro vasculhava algo que pudesse mastigar. Agarrado a um bocado de osso, correu deesenfreado até ficar a salvo das pedras que a Aninhas lhe atirou.
"Maldito cão, resmungou.
"Enquanto endireitava a lata viu que havia visitas junto às casas. Militares com fardas amarelas, novinhas, acompanhados pelo Sony.
"Freguesia, resmungou para ela, lá no íntimo bem satisfeita por finalmente poder ver algum dinheiro fresco.
"Apressou-se a entrar, as velhas tábuas do soalho a gemer debaixo dos pés descalços. Água a correr pelo corpo ensaboado, e a voz do Sony a chamar baixinho, Aninhas, Aninhas, tem branco aqui.
"Dentes muito brancos, sorridentes, assomou à porta. Estava certa que tinha uma boa figura. Muito nova, ainda não tinha 18, sabia como fazia os homens virarem-se quando passava, rabo a gingar, peito saliente.
"Os três miraram-na de alto a baixo, até que um deles mais decidido avançou. Estou molhada do banho ainda, recuou um pouco. Depois entrou com ele atrás.
"Vinte pesos adiantou-se, foi assim que a mãe Helena lhe tinha ensinado. Por mais que uma vez, viu-se sem a paga do trabalho, por não ter recebido antes. Nunca mais voltaria a acontecer, jurou.
"Linda, como te chamas? Que interessa o nome, porque vocês querem sempre saber o meu nome?
Mindelo, C. Verde, 1965... Ou da história de muitos que por lá passaram.
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E em Cabo Verde, como foi, passou-se alguma coisa? A grande maioria de nós passou por lá. Para quem regressava era um oásis de paz. Para os outros, do que iam ouvindo na metrópole falar da Guiné, Cabo Verde era uma antecâmera do pesadelo.
vbriote
“O que se fazia na Guiné oficialmente, descaradamente, fazia-se em Cabo Verde de uma maneira hipócrita: havia as leis todas mas também a descriminação. Por exemplo, naquela altura, não se encontrava um único funcionário do Banco que fosse preto. Um único! Fazia-se um concurso público, quando a lista com o nome dos concorrentes chegava ao júri, eles tinham que saber a cor das pessoas. Então, era sempre assim: os brancos ficavam sempre em primeiro lugar e depois os pretos”, disse Aristides Pereira numa entrevista ao Doutor Leopoldo Amado.
Ainda, segundo Aristides Pereira, um dos factos mais marcantes na década de 50, foi a chegada a S. Vicente de Abílio Duarte em 1958. Disfarçado de estudante, Abílio congregou à sua volta, no Mindelo, um grupo (*) que ficou conhecido por do 3º ciclo, o qual, a pretexto de acções culturais e académicas, mobilizou e consciencializou largas franjas da juventude para o fenómeno iniciado por Amílcar Cabral em Bissau.
Abílio Duarte, o protagonista número um da consciencialização nacionalista em Cabo Verde, nas palavras de Aristides Pereira.
Devido às perseguições que entretanto lhe começaram a ser movidas, Abílio Duarte, abandonou Cabo Verde, mas deixou marcas. Jovens que ele mobilizara integraram mais tarde a luta armada, enquanto outros participaram clandestinamente na luta política em Cabo Verde e em Lisboa e Coimbra, junto dos estudantes emigrados.
Em 1960, a acção esmoreceu, em parte porque alguns desses elementos foram chamados para o serviço militar no Exército Português e apenas ficaram no terreno o Amaro da Luz e o grupo dos trabalhadores.
Por volta de 1963, deu-se novo incremento da luta política, em S. Vicente devido principalmente a Luís Fonseca e Adriano Brito e a Onésimo Silveira e a Manuel Rodrigues na Praia.
De 17 a 20 de Julho desse mesmo ano, em Dacar, houve uma reunião do PAIGC em que foram tomadas medidas para desenvolver a luta em Cabo Verde. No cumprimento dessas medidas, o PAIGC desencadeou, desde finais de 1969, acções de mobilização junto de cabo-verdianos residentes na Bélgica e Holanda, entre os quais Corsino Tolentino, Mascarenhas Monteiro, Álvaro Tavares, Nicolau Tolentino e Baltazar Barros.
Na primeira metade da década de 60, o partido encarou a possibilidade de desencadear a luta armada em Cabo Verde, enviando cabo-verdianos para a Argélia, Cuba e URSS.
Combatentes cabo-verdianos em Cuba. Vê-se Pedro Pires, de boné branco, de pé, ao centro, ligeiramente à direita, e à sua direita, Tutu, uma guerrilheira com uma boina preta.
A missão de preparar um desembarque em Cabo Verde esteve marcada para 1967. Na altura, estava em voga a teoria do foco de guerrilha do Guevara. Entretanto, enquanto se aguardava o melhor momento para a acção chegou a notícia que Guevara tinha sido morto na Bolívia.
As movimentações não passaram despercebidas à polícia política. Em 1968, foram desmantelados grupos clandestinos do PAIGC, tendo sido presos os principais dirigentes, entre os quais Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e o Jaime Schofield.
Na perspectiva de preparar a luta armada em Cabo Verde, Cabral enviou para a ilha de Santiago Fernando Tavares Toco, com o objectivo de identificar os eventuais sítios para recolher os guerrilheiros. Foram visitados vários locais onde se poderia fazer o desembarque.
E acharam um que parecia reunir excelentes condições. Ficava numa ribeira na Assumada, em Chão de Tanque, com possibilidades de abrigar os guerrilheiros em caso de intervenção da Força Aérea Portuguesa.
A vigilância era muita. Toco e alguns companheiros foram detidos. Em notícia da PIDE/DGS, de 7/10/68, lê-se: “Foram detidos em 7/10/68 os nacionais Manuel de Jesus Tavares, José Querido, José C. Aguiar Monteiro e Gil Querido Varela, por indícios de crimes contra a segurança interior e exterior do Estado”. (…)
Com a organização infiltrada, Cabral teve que reestruturar o partido em Cabo Verde. Mas o grau de consciencialização atingido no arquipélago em 1970, nomeadamente no interior de Santiago, criou nos militantes cabo-verdianos (**) uma enorme vontade de passarem à luta armada. Só que a estrutura clandestina do PAIGC em Cabo Verde não se encontrava em condições de a suportar.
Como reacção às movimentações do PAIGC em Cabo Verde a polícia política tudo fez para desmantelar as estruturas do partido. E teve sucessos. Para além das prisões de numerosos militantes, outras medidas foram postas em acção, das quais se destaca a desburocratização do processo de emigração para Portugal, tentando assim esvaziar as principais fontes de recrutamento do partido.
A PIDE/DGS acabou por desferir um profundo golpe nas estruturas clandestinas do PAICG, quando infiltrou nas estruturas locais um falso coronel que dizia ter sido enviado pelo partido para dar início à luta armada, infiltração essa que levou 12 militantes a caírem nma cilada, que foi a tomada do navio Pérola do Oceano.
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(*) Silvino da Luz, Manuel dos Santos Manecas, Joaquim Pedro Silva, Lucílio Tavares, Amaro da Luz, Adriano Brito, António Coutinho, António Neves
(**) “Nos finais de 1968, o projecto de desembarque de guerrilheiros cabo-verdianos treinados em Cuba fora completamente cancelado (…). Recebemos a informação do plano de embarque com muito pesar. O problema de fundo era que a Direcção do PAIGC, depois dessa medida, ficara sem uma estratégia claramente equacionada para além das declarações de intenção política (…). A impressão era de que a direcção do PAIGC concentrava pelo menos 95% dos seus esforços na Guiné-Bissau e que Cabo Verde se encontrava a navegar sem rumo.” (Martins, Pedro, pp. 95 e 96).
Fontes e imagens dos livros:
Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países, de Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2002.
Crónica da Libertação, de Luís Cabral, Edições O Jornal, 1984
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Notas do co-editor vb:
(1) Vd. posts anteriores:
18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)
(24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)
27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2136: Bibliografia de uma guerra (19): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte III)