sábado, 29 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2141: Bibliografia de uma guerra (20): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte IV) (V.Briote)

Cabo Verde > Ilha de S. Vicente > Mindelo > Meados de 1960 > > O N/M Uíge, fundeado na Baía do Porto Grande, com o Monte Cara ao fundo

Foto:© Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.

(...) "O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, uma lata de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme.

"Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?

"Gil saiu com o Black, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Um tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.

"Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black! Onde se pode almoçar? Ali? O que se come lá?

"Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta e batata frita para acompanhar, querem?

"Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro.

"Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?

"Quando sairam dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver?

"No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou o Gil e o Leite, alferes também, debruçados na amurada, a olharem para a cidade.

"O que levo daqui? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa.

"Bissau, se for assim não é nada mau!

"Nem penses, pior, muito pior, arriscava o Leite" (...)

In: Guíné, Ir e Voltar > post de 9 de Fevereiro de2006 > A Caminho > 1. O caminho para lá [blogue de Virgínio Briote]


"Com o focinho no lixo, lata virada, o rafeiro vasculhava algo que pudesse mastigar. Agarrado a um bocado de osso, correu deesenfreado até ficar a salvo das pedras que a Aninhas lhe atirou.

"Maldito cão, resmungou.

"Enquanto endireitava a lata viu que havia visitas junto às casas. Militares com fardas amarelas, novinhas, acompanhados pelo Sony.

"Freguesia, resmungou para ela, lá no íntimo bem satisfeita por finalmente poder ver algum dinheiro fresco.

"Apressou-se a entrar, as velhas tábuas do soalho a gemer debaixo dos pés descalços. Água a correr pelo corpo ensaboado, e a voz do Sony a chamar baixinho, Aninhas, Aninhas, tem branco aqui.

"Dentes muito brancos, sorridentes, assomou à porta. Estava certa que tinha uma boa figura. Muito nova, ainda não tinha 18, sabia como fazia os homens virarem-se quando passava, rabo a gingar, peito saliente.

"Os três miraram-na de alto a baixo, até que um deles mais decidido avançou. Estou molhada do banho ainda, recuou um pouco. Depois entrou com ele atrás.

"Vinte pesos adiantou-se, foi assim que a mãe Helena lhe tinha ensinado. Por mais que uma vez, viu-se sem a paga do trabalho, por não ter recebido antes. Nunca mais voltaria a acontecer, jurou.

"Linda, como te chamas? Que interessa o nome, porque vocês querem sempre saber o meu nome?

Mindelo, C. Verde, 1965... Ou da história de muitos que por lá passaram.
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E em Cabo Verde, como foi, passou-se alguma coisa? A grande maioria de nós passou por lá. Para quem regressava era um oásis de paz. Para os outros, do que iam ouvindo na metrópole falar da Guiné, Cabo Verde era uma antecâmera do pesadelo.
Muitos puseram os pés no Mindelo, um ou outro na Praia e muitos também escalaram o Sal. Estadias curtas, mal dava para uma cerveja. E os nossos olhares estavam tão longe dali, que muitos nem se aperceberam que naquelas ilhas estavam a acontecer coisas.
E, segundo Aristides Pereira, a luta armada não chegou ao território por pouco. Vários factores se conjugaram para que os camaradas que tiveram a sorte de lá ir parar tivessem dois anos de comissão feliz.
Para os que estavam do outro lado, aqueles anos não foram assim tão calmos. Foram anos de luta, de privações, de clandestinidade. Afinal, foi o caminho que escolheram, dirão outros, com toda a razão também.

Do livro Guiné-Bissau, Uma luta, um partido, dois países, de Aristides Pereira, seleccionámos algumas das partes mais significativas do que ocorreu em Cabo Verde, durante as décadas de 60 e 70, principalmente (1).

vbriote
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Cabo Verde


“O que se fazia na Guiné oficialmente, descaradamente, fazia-se em Cabo Verde de uma maneira hipócrita: havia as leis todas mas também a descriminação. Por exemplo, naquela altura, não se encontrava um único funcionário do Banco que fosse preto. Um único! Fazia-se um concurso público, quando a lista com o nome dos concorrentes chegava ao júri, eles tinham que saber a cor das pessoas. Então, era sempre assim: os brancos ficavam sempre em primeiro lugar e depois os pretos”, disse Aristides Pereira numa entrevista ao Doutor Leopoldo Amado.

Ainda, segundo Aristides Pereira, um dos factos mais marcantes na década de 50, foi a chegada a S. Vicente de Abílio Duarte em 1958. Disfarçado de estudante, Abílio congregou à sua volta, no Mindelo, um grupo (*) que ficou conhecido por do 3º ciclo, o qual, a pretexto de acções culturais e académicas, mobilizou e consciencializou largas franjas da juventude para o fenómeno iniciado por Amílcar Cabral em Bissau.
E continua Aristides:

“O abandono a que esteve devotado Cabo Verde, associado às fomes cíclicas dos anos 40 e a todo o processo de deportação em condições infra-humanas de cabo-verdianos como serviçais contratados para S. Tomé e, ainda, ao fenómeno de uma quase emigração forçada, criou nas gerações que testemunharam estes flagelos um grande sentimento de revolta que os teria despertado senão ainda para a consciência nacionalista, pelo menos para a necessidade de inverter esta situação e esse estado de coisas.”

Abílio Duarte, o protagonista número um da consciencialização nacionalista em Cabo Verde, nas palavras de Aristides Pereira.



Devido às perseguições que entretanto lhe começaram a ser movidas, Abílio Duarte, abandonou Cabo Verde, mas deixou marcas. Jovens que ele mobilizara integraram mais tarde a luta armada, enquanto outros participaram clandestinamente na luta política em Cabo Verde e em Lisboa e Coimbra, junto dos estudantes emigrados.

Em 1960, a acção esmoreceu, em parte porque alguns desses elementos foram chamados para o serviço militar no Exército Português e apenas ficaram no terreno o Amaro da Luz e o grupo dos trabalhadores.

Por volta de 1963, deu-se novo incremento da luta política, em S. Vicente devido principalmente a Luís Fonseca e Adriano Brito e a Onésimo Silveira e a Manuel Rodrigues na Praia.

De 17 a 20 de Julho desse mesmo ano, em Dacar, houve uma reunião do PAIGC em que foram tomadas medidas para desenvolver a luta em Cabo Verde. No cumprimento dessas medidas, o PAIGC desencadeou, desde finais de 1969, acções de mobilização junto de cabo-verdianos residentes na Bélgica e Holanda, entre os quais Corsino Tolentino, Mascarenhas Monteiro, Álvaro Tavares, Nicolau Tolentino e Baltazar Barros.

Na primeira metade da década de 60, o partido encarou a possibilidade de desencadear a luta armada em Cabo Verde, enviando cabo-verdianos para a Argélia, Cuba e URSS.


Combatentes cabo-verdianos em Cuba. Vê-se Pedro Pires, de boné branco, de pé, ao centro, ligeiramente à direita, e à sua direita, Tutu, uma guerrilheira com uma boina preta.

A missão de preparar um desembarque em Cabo Verde esteve marcada para 1967. Na altura, estava em voga a teoria do foco de guerrilha do Guevara. Entretanto, enquanto se aguardava o melhor momento para a acção chegou a notícia que Guevara tinha sido morto na Bolívia.

As movimentações não passaram despercebidas à polícia política. Em 1968, foram desmantelados grupos clandestinos do PAIGC, tendo sido presos os principais dirigentes, entre os quais Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e o Jaime Schofield.

Na perspectiva de preparar a luta armada em Cabo Verde, Cabral enviou para a ilha de Santiago Fernando Tavares Toco, com o objectivo de identificar os eventuais sítios para recolher os guerrilheiros. Foram visitados vários locais onde se poderia fazer o desembarque.

E acharam um que parecia reunir excelentes condições. Ficava numa ribeira na Assumada, em Chão de Tanque, com possibilidades de abrigar os guerrilheiros em caso de intervenção da Força Aérea Portuguesa.

A vigilância era muita. Toco e alguns companheiros foram detidos. Em notícia da PIDE/DGS, de 7/10/68, lê-se: “Foram detidos em 7/10/68 os nacionais Manuel de Jesus Tavares, José Querido, José C. Aguiar Monteiro e Gil Querido Varela, por indícios de crimes contra a segurança interior e exterior do Estado”. (…)

Com a organização infiltrada, Cabral teve que reestruturar o partido em Cabo Verde. Mas o grau de consciencialização atingido no arquipélago em 1970, nomeadamente no interior de Santiago, criou nos militantes cabo-verdianos (**) uma enorme vontade de passarem à luta armada. Só que a estrutura clandestina do PAIGC em Cabo Verde não se encontrava em condições de a suportar.

Como reacção às movimentações do PAIGC em Cabo Verde a polícia política tudo fez para desmantelar as estruturas do partido. E teve sucessos. Para além das prisões de numerosos militantes, outras medidas foram postas em acção, das quais se destaca a desburocratização do processo de emigração para Portugal, tentando assim esvaziar as principais fontes de recrutamento do partido.

A PIDE/DGS acabou por desferir um profundo golpe nas estruturas clandestinas do PAICG, quando infiltrou nas estruturas locais um falso coronel que dizia ter sido enviado pelo partido para dar início à luta armada, infiltração essa que levou 12 militantes a caírem nma cilada, que foi a tomada do navio Pérola do Oceano.
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(*) Silvino da Luz, Manuel dos Santos Manecas, Joaquim Pedro Silva, Lucílio Tavares, Amaro da Luz, Adriano Brito, António Coutinho, António Neves

(**) “Nos finais de 1968, o projecto de desembarque de guerrilheiros cabo-verdianos treinados em Cuba fora completamente cancelado (…). Recebemos a informação do plano de embarque com muito pesar. O problema de fundo era que a Direcção do PAIGC, depois dessa medida, ficara sem uma estratégia claramente equacionada para além das declarações de intenção política (…). A impressão era de que a direcção do PAIGC concentrava pelo menos 95% dos seus esforços na Guiné-Bissau e que Cabo Verde se encontrava a navegar sem rumo.” (Martins, Pedro, pp. 95 e 96).

Fontes e imagens dos livros:

Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países, de Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2002.

Crónica da Libertação, de Luís Cabral, Edições O Jornal, 1984
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Notas do co-editor vb:

(1) Vd. posts anteriores:

18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

(24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2136: Bibliografia de uma guerra (19): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte III)

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2140: Tabanca Grande (35): Notícias do Tony Tavares (CCAÇ 2701) e do António Batista (CCAÇ 3490) (Ayala Botto)

1. Mensagem do Ayala Botto, membro da nossa tertúlia, que esteve na Guiné (1970/73), tendo sido comandante da CCAÇ 6, em Bedanda, e depois ajudante de campo do General Spínola (1):


Caro amigo
Aqui vão 2 notícias que, creio, interessam a todos:

- O Tavares, o tal militar da CCAÇ 2701 que esteve no Saltinho de 1970 a 72 e que actualmente vive na República Checa, veio a Portugal para, juntamente com a mulher de nacionalidade checa, estar presente na reunião da sua Unidade (2). É bonito!

- Já estão a ser feitas diligências, juntamente com o Carlos Clemente (cor.), para se poder actualizar a caderneta militar do António Silva Batista, o tal morto-vivo natural de Moreira, Concelho da Maia (3).

Um abraço
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Nota dos editores:

(1) Vd. post de 6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

(2) Vd. posts de:

25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2132: Convívios (30): CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72 (Paulo Santiago)

20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1974: Tugas da diáspora (1): Tony Tavares (CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72): De Zlin, República Checa, com amor

(3) Vd. post de 30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2011: Vamos ajudar o António Batista, ex-Soldado da CCAÇ 3490/BART 3872 (Júlio César / Paulo Santiago / Álvaro Basto / Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

Fundão > 27 de Janeiro de 2007 > "Amigo e camarada Torcato: devo ir aí à tua terra adoptiva, amanhã, de manhã... Se tiver tempo, apito-te"...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Mais uma estória do José, um alter ego do Torcato Mendonça, aqui reproduzida na série Estórias de Mansambo(1):

Amigos Mais Velhos

Lembrei-me, agora, de algo que me aconteceu nessas férias [, em Agosto de 1967].

É a recordação, o aviso e a revolta, de um homem, atrevo a chamar-lhe sábio. Não! Isso não, era um homem culto, isso sim! Os sábios vivem nas recordações oníricas e esta é, ainda hoje, bem real.

Sempre gostei de conviver com amigos mais velhos do que eu. Neste caso concreto, o meu amigo teria trinta e muitos anos mais do que eu.

Geralmente conversávamos à volta da mesa do café, eu, ele e um seu colega. Ficamos amigos os três. Era uma pessoa especial pela maneira cativante como falava, pelos mais variados temas que abordava e pelo modo, didáctico para mim, como respondia ás questões por mim colocadas.

Falava de literatura, música, fotografia e dos mais variados temas da vida. Uma vez falou-me longamente de vela… como veria ele hoje a America´s Cup…e as transformações operadas nos veleiros? Falta uma, o ponto de partida do nosso conhecimento, o xadrez!

Passado tempo, não quanto, certamente um ou dois anos, tive que partir e esses encontros foram interrompidos.

Reencontramo-nos numas férias curtas, talvez num fim-de-semana alargado, já eu tinha largos meses de vida militar. Falamos da tropa, do que se estava a passar com a juventude, com o País. Ele não via com bons olhos o Império. Opinião diferente tinha o colega. Não era hábito mas deu-me um conselho: tenha cuidado amigo, tenha cuidado pois tem que continuar a sua vida e ela nada tem a ver com militares.

Encontramo-nos ainda algumas vezes antes da minha mobilização. Falávamos, mais ele do que eu, sobre vários assuntos mas a vida militar estava muito presente, talvez demais, nas nossas conversas.

Antes do Natal de 67 disse-lhe:
- Vou para a Guiné.
- Encare as situações com calma – foi a resposta. - Você está um pouco diferente.

Meses depois, em Agosto de 68, vim passar férias e encontramo-nos num final de tarde. A alegria, o abraço com um apertar de mãos nos ombros. De repente olhou para mim e disse-me:
- Tire lá os óculos.

Eu tirei os usuais, na altura, Ray-Ban. Olhou-me, franziu a testa, deu um passo atrás e, pela primeira vez ouvi sair-lhe um palavrão:
- Filho de puta, o que é que lhe fizeram, onde está o rapaz que eu conheci há tão pouco tempo? Você está totalmente transformado, endurecido, diferente. Disse-lhe para ter cuidado.

Respondi-lhe:
- Aquilo é difícil, nada tem a ver com a vida normal. É uma aberração e nós somos forçados, para sobreviver – tanto mais que somos graduados e temos responsabilidades sobre outros – a entrar naquele jogo… aos poucos, sem dar por isso, somos mais um igual a tantos.

Falámos longamente nesse dia e mais umas duas ou três vezes.

Regressei à Guiné. Um dia voltei em definitivo. De quando em vez conversávamos… jogar xadrez não, faltava-me a concentração… tentava adaptar-me à vida normal ou civil… não era fácil…

Estivemos, talvez um ano ou dois sem nos vermos. Ele reformou-se e vivia junto de uma filha ou filho.

O acaso juntou-nos em Lisboa no meu local de trabalho – antigo local de trabalho dele – almoçámos juntos e falámos demoradamente.
- Os olhos não são os mesmos mas vão lá, disse-me na despedida.

Nunca mais nos encontrámos.

Enfim tempo idos, sem possibilidade de voltarmos a conversar. Ele e o amigo, pela lógica da vida, descansam em paz. Ficam-me as recordações e a saudade.

Continuamos noutro dia. Logo apareço por cá e voltamos a falar…

Torcato Mendonça
(ex-Alf Mil da CART 2339,
Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1969 ou 1970 > Vista aérea do aquartelamento e da tabanca do Xime. Em Setembro de 1969, um Pel Caç Nat 52 desfalcado está envolvido numa operação, na zona de acção do Xime, com diversas forças (CCAÇ 12, CART 2520, Pel Caç Nat 53 e 63).

...) "Findo este briefing, partimos em coluna para o Xime, e pouco passava da 1 da manhã quando os três destacamentos progrediram para as suas três missões. Recordo que atingimos sem grande dificuldade uma clareira no limiar da mata do Poidon e que ao amanhecer ouvimos rasgadas de metralhadoras, dilagramas e bazucadas. Minutos depois, reacendeu-se o fogo, parecia uma emboscada. Meia hora depois, surge junto da nossa força o Major Sampaio dizendo que devemos avançar, tivemos um morto e há feridos, chegou-se ao acampamento, o inimigo teve também baixas. Entramos no acampamento, está tudo num estado de desordem, toda a gente à procura de esclarecimento, no ar pairam bombardeiros e uma avioneta. Desce um helicóptero recolhe os feridos e parte. Toda a gente fala de um acidente com um dilagrama" (BS) (...)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Capa do romance policial, de Georges Simenon, L'ombre chinoise [, a sombra chinesa]. Paris: Librairie Arthème Fayard. 1963.

(...) "É um romance soberbo, com uma arrancada quase cinematográfica, Maigret trava um diálogo com a porteira no prédio onde houve um homicídio. Acendem-se e apagam-se luzes, desfilam os protagonistas, que entram e saem. É uma história sórdida de uma vingança amorosa e de um roubo, com silêncios e sombras chinesas de permeio. Nunca mais lerei um final tão aterrador quando Maigret vai demolindo os membros do casal envolvidos na tragédia. À noite, enquanto a criminosa é enviada para um hospital psiquiátrico, Maigret, a mulher e os cunhados vão jogar às cartas, divertidos" (BS) (...).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


Texto enviado em 27 de Julho último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Operação Pato Rufia, a que teve feridos e mortos
por Beja Santos


(i) Uma flagelação a Missirá que não passou de uma escaramuça


O que diz o relatório do BCAÇ 2852 é que, a 5 de Setembro, um IN estimado em quatro a cinco elementos, flagelou com morteiro o destacamento de Missirá, sem consequências, tendo retirado, minutos depois, na direcção de Morocunda-Biassa.

O que aqui nos interessa escrever em abono da verdade é que tínhamos vindo de Mato de Cão passavas das 16 horas, Missirá tem nesta altura 52 militares no activo dos quais 24 estão incapacitados, inchados, andam aos tropeções, os pés em chaga, cirandam como mortos-vivos. Regressar com vinte homens, fazer a escala de reforços, sair com um contingente para fazer uma emboscada é mais difícil que uma equação algébrica de terceiro grau.

Após conversar com o Casanova e o Pires, assentamos que eu vou fazer a directa, um deles amanhã vai para Mato de Cão enquanto eu regresso a Finete e o outro fica a acompanhar as obras, a responder ao correio e a fazer contas.

Tiro a farda esbranquiçada pelo suor empestado, compenso-me com um uísque puro, preparo o equipamento adequado que envolve rede mosquiteiro e uma capa de plástico, converso com o Pires a mastigar uma sandes enquanto examino as folhas de pagamentos, falo com o chefe de tabanca por causa da proverbial falta de arroz que nos vai obrigar a fazer uma coluna extraordinária, lavo-me e desinfecto as feridas, reequipo-me e espero pelos catorze que me vão acompanhar na emboscada um pouco mais acima dos cajueiros do régulo Malã, depois de verificar a culatra à rectaguarda, avançamos para o cavalo de frisa.

Tivemos todos nós sorte, os que estão dentro do quartel a comer e a repousar, a tomar banho ou a vigiar, os que partem para uma emboscada das 7 às 11. A noite está serena, a lua lança uma beatitude iluminada pela floresta, daqui até ao Gambiel. É nisto que o primeiro estampido vem de Cancumba e despedaça-se a escassos metros do abrigo do Alcino, junto da saída para Sansão.

De roldão, numa marcha atrás ginasticada e cómica, quem ia emboscar atirou-se para as valas e abrigos, não houve acidentes a não ser as roupas que se rasgaram no cavalo de frisa. Como na flagelação anterior, tínhamos a sensação de um tiro-a-tiro com morteiro, pouco entusiasmado, sem a marca do grande terror que deixa toda a gente sem pinga de sangue.

Disparo em flecha para o morteiro 81, não percebo porque é que o Queirós está ausente. As morteiradas pingam sem atino, umas dentro outras fora do arame farpado. Vejo que as saídas são de um só morteiro, muito perto da fonte. Tiro cargas das granadas, disparo uma, espero pelo rebentamento, afino a pontaria, esta já caiu perto, a terceira cai e parece ter calado quem de lá nos provoca. Depois, um silêncio do morteiro atacante, saio do abrigo, grito para que não haja mais fogo.

Converso com Casanova e vou com o Benjamim e o Domingos fazer uma rápida avaliação dos estragos. Nada, só uns estilhaços, não há estragos à vista, não há um único ferido.
-Tenho que trazer o Reis para me armadilhar todo este local que conduz ao Biassa.

É nisto que me surge o Queirós enquanto esfrego creme nas mãos a escaldar. Vem com cara de caso, procura justificar a não comparência no momento determinante: "Meu alferes, estava a tomar banho, tive vergonha de vir assim". Estive quase a perguntar-lhe o que é que ele andou a fazer assim, enquanto choviam as morteiradas...

Dias mais tarde, vou escrever à Cristina:

Acordei aparvalhado a ouvir o rádio do Cherno. No programa das Forças Armadas transmitido em crioulo, balanta e manjaco vem a notícia de que tínhamos sido flagelados. É absurdo que uma curta flagelação sem consequências mereça tanto espalhafato. Já cá esteve o Reis que veio minar e armadilhar outra vez a picada que conduz ao Biassa, trajecto clássico da aproximação de Madina. Andei a vigiar o Reis enquanto ele escavava e metia engenhos com fios antilevantamentos, cargas de granadas-armadilha e secções de minas. Por aqui tenho gente muito doente, o régulo, o príncipe Samba, caçadores e milícias está tudo doente. Continuo cheio de projectos, há muita coisa para fazer: a sonhada mesquita, a instalação da iluminação eléctrica, dois abrigos, o edifício da nova messe, a desmatação entre Canturé e Finete, construir algumas moranças para os civis de Finete que aqui passam a época seca. Prepara-te para receber a visita do Teixeira das transmissões. Ele quer que tu saibas leva uma camisola verde e uma bonita calça à civil.

(ii) Nós somos cristãos (1º Cabo Benjamim Costa)


A noite desta flagelação de trazer por casa deu-me energia para ter uma conversa com o Benjamim. Após a vistoria ao estado do quartel, disse ao Cherno para chamar o Benjamim ao nosso abrigo. Ele veio lesto, convidei-o a sentar e fui directo ao assunto:
-Benjamim, é só para te dizer que já perdoei o que me disseste na noite de 3 de Agosto (2). Ficas a saber que sou filho de uma angolana, que em minha casa se come moamba como tu comes arroz, a ama da minha mãe era tão preta como tu, a minha avó e a minha mãe quando queriam discutir diante de nós falavam quimbundo, tenho a casa cheia da fotografias de brancos com pretos. Fui educado sem o preconceito da cor. Tu, aliás, já sabias. Tu sabes onde estão os racistas, eles não estão neste abrigo. O mais importante é que tu saibas que te admiro muito, pelos teus valores, a tua cultura, o teu porte. Aquele a quem tu chamaste branco assassino respeita-te muito.

Fez-se silêncio, ele parecia querer responder, estendi-lhe as duas mãos, lembrei-lhe que tínhamos que ir descansar já, pelas 5 da manhã faríamos o patrulhamento para reconhecer a presença do inimigo. Mas antes de sair, o Benjamim disse-me:
-Tudo farei para continuar a merecer essa estima que sempre teve por mim. Nós somos cristãos.

(iii) Uma notícia e um encontro inesperado em Bambadinca

Vamos a Bambadinca juntar-nos aos afectivos que vão partir para a segunda edição da Op Pato Rufia. Saímos de Finete a 6, de Bambadinca partiremos para o Xime, três grupos de combate da CCAÇ 12, dois grupos de combate do Xime, eu e doze homens do 52, mais o 53 e o 63, ao todo três destacamentos.

Em Bambadinca, antes de seguir para a sala de operações com os outros oficiais, cumprimento o Comandante Corte Real. Ele está acompanhado de um Major que não conheço e saúda-me: -Ainda bem que veio. Recebi de Bafatá uma ordem de serviço com o louvor que lhe foi dado pelo Comandante de Agrupamento. Felicito-o. Ele refere aqui a sua intensa actividade operacional e a admiração que por si têm os seus subordinados. Olhe que não é vulgar um louvor terminar dizendo que o oficial louvado é um exemplo para todos.

Agradeci a informação sem comentários, e de seguida fui apresentado ao oficial presente:
-É o nosso Major Cunha Ribeiro, o futuro 2º Comandante do nosso batalhão (3). O nosso Major Sampaio fica a partir de hoje como oficial de operações.

Cumprimento o Major que retribui com sorriso rasgado. Fala à moda do Porto, o cabelo é ralo, tem gesticulação nervosa, vê-se que gosta de conversar, largando observações humorísticas. Será este homem que me crismará de Tigre de Missirá, irei contar com ele em horas muito difíceis e, como em todos os mistérios do mundo, não pode saber que iremos ter uma estima recíproca toda a vida.


Esposende > Fão > Convívio do pessoal de Bambadinca (1968/71) > 1994 > O Mário Beja Santos (ex-comandante do Pel Caç Nat 52) com o actual Coronel Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro, que foi segundo comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), a partir de Setembro de 1969, altura em que substitui o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares. Era afectuosamente conhecido, entre as NT, como o major eléctrico... Foi ele que deu o nome de guerra, Tigre de Missirá, ao Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


(iv) A Pato Rufia contada em resumo

Na sala de operações, disseca-se a Pato Rufia. Vamos voltar ao acampamento daqueles que emboscam e espalham o terror em Ponta Varela. Quem irá atacar o acampamento serão os três grupos de combate da CCAÇ 12. Os grupos de combate do Xime [CART 2520 ] ficarão posicionados para travar a fuga do inimigo em direcção do Buruntoni. Os pelotões de caçadores nativos [52, 53 e 63] ficariam emboscados de modo a travar uma retirada para a mata do Poidon.

As informações que se dispõem é de que o acampamento é composto por nove cubatas, são cerca de quarenta homens armados e ficara-se a saber em final de mês passado que há minas anti-pessoal a proteger o acesso. O Major Sampaio garante que estará no ar ao amanhecer e que acompanhará a operação.

Findo este briefing, partimos em coluna para o Xime, e pouco passava da 1 da manhã quando os três destacamentos progrediram para as suas três missões. Recordo que atingimos sem grande dificuldade uma clareira no limiar da mata do Poidon e que ao amanhecer ouvimos rasgadas de metralhadoras, dilagramas e bazucadas. Minutos depois, reacendeu-se o fogo, parecia uma emboscada. Meia hora depois, surge junto da nossa força o Major Sampaio dizendo que devemos avançar, tivemos um morto e há feridos, chegou-se ao acampamento, o inimigo teve também baixas.

Entramos no acampamento, está tudo num estado de desordem, toda a gente à procura de esclarecimento, no ar pairam bombardeiros e uma avioneta. Desce um helicóptero recolhe os feridos e parte. Toda a gente fala de um acidente com um dilagrama. Entretanto entramos nas casas de mato onde se encontram espalhados livros, propaganda, material de guerra como granadas e minas (4).

Mais tarde, escrevo à Cristina:

Ainda estou para saber porque é que permanecemos três horas neste local. Não vou esquecer tão cedo o drama deste morto transportado em padiola pelos amigos debaixo do calor do meio dia, uma procissão imponente de singeleza. Era o deambular silencioso do féretro pela mata hostil. O Cherno levava no seu ombro o cadáver deste futafula desditoso.

A meio da tarde já estávamos em Bambadinca e chegado de Finete recebemos a notícia que a população expulsara Bazilo Soncó que tentara um novo levantamento e uma nova dissidência nas milícias. No mês seguinte, o comando de Bambadinca irá cortar a direito, lançando os dissidentes em Quirafo e Madina Xaquili, vindo os de Amedalai para Finete.

Eu ainda não sei que este mês prosseguirá turbilhonante, a 12 haverá novo reencontro com gente de Madina, será um patrulhamento do 52 com milícias de Finete mais um grupo de combate da CCAÇ 12. A coluna de reabastecimento de Madina teve sorte, pois os milícias de Finete precipitaram-se no fogo dando tempo que toda a gente fugisse deixando no terreno um carregamento que ficamos sem saber se vinha de Mero ou dos Nhabijões, constituído por tabaco, sal e aguardente de cana.

Neste turbilhonante, haverá ainda nova flagelação sobre Missirá e outra sobre Finete. Viverei novos episódios com o meu casamento por procuração, que já dá mostras de uma épica infindável. Em S. Belchior, abaixo de Mato de Cão, haverá um ataque inimigo a barcos que vão em direcção a Bambadinca. As duas viaturas vão empanar ao mesmo tempo, felizmente que temos sempre recurso do Sintex. E depois um desastre com pesadas consequências, o colapso nervoso do Casanova. No meio disto tudo, a caminhada imperturbável, todos os dias, para Mato de Cão.

Capa do romance policial de S.S. Van Dine, A morte da canária. Lisboa: Livro so Brasil. 1949. (Colecção Vampiro, 20). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


(v) as minhas leituras da semana: Simenon, S.S. van Dine, John Steinbeck


O Carlos Sampaio enviou-me L'ombre chinoise, de Georges Simenon. Alguns anos antes lera a tradução do Alexandre O'Neill para a Colecção Vampiro. É um romance soberbo, com uma arrancada quase cinematográfica, Maigret trava um diálogo com a porteira no prédio onde houve um homicídio. Acendem-se e apagam-se luzes, desfilam os protagonistas, que entram e saem. É uma história sórdida de uma vingança amorosa e de um roubo, com silêncios e sombras chinesas de permeio. Nunca mais lerei um final tão aterrador quando Maigret vai demolindo os membros do casal envolvidos na tragédia. À noite, enquanto a criminosa é enviada para um hospital psiquiátrico, Maigret, a mulher e os cunhados vão jogar às cartas, divertidos.

A Morte da Canária, por S. S. van Dine é mais um triunfo memorável do detective pedante Philo Vance, Margaret Odell, uma artista escandalosa, aparece assassinada em sua casa. O interior está virado do avesso, houve roubo, aparentemente o grande móbil do crime. Não passa de aparências, afinal houve um crime passional, as novas tecnologias de reprodução ajudaram o criminoso a gravar conversas inexistentes para fundamentar um bom álibi. Philo Vance descobre tudo e mais uma vez o criminoso mata-se. Não é das obras mais brilhantes de S. S. van Dine mas para quem anda de emboscada para patrulhamento, de patrulhamento para operação, lê-se muito bem entre flagelações, rondas e elaboração de escalas de serviço.



Capa do romance do norte-americano John Steinbeck, A um Deus desconhecido. 2ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América. 1958. Tr. de Manuel do Carmo. Capa de Sebastião Rodrigues. (Colecção Os Livros das Três Abelhas, 1).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Por fim, surpreendo-me com A um Deus desconhecido, um romance da juventude John Steinbeck. É uma história quase bíblica que já se orienta para o elogio da terra como ele irá desenvolver em obras primas como As vinhas da Ira. Joseph Wayne abandona a família à procura de uma terra prometida na Califórnia. Estabelecerá neste combate no novo assentamento uma relação religiosa com os valores naturais. Irá morrer vendo o seu sangue a borbotar e a escorrer sobre o musgo, julgando que se transformou em chuva e em erva a caminho do céu.

Prometo a mim próprio que voltarei a esta leitura mais tarde. Ler é uma feliz coincidência com uma carência do espírito ou, se houver dissonância, pode constituir uma profunda decepção. Necessito, nestes tempos do Cuor, de um outro arrebatamento, âncoras que me matem a fome ou que me deixem em suspenso toda a incompreensão que guardo desta guerra.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. os dois posts anteriores da série Operação Macaréu à Vista - II Parte:

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

(2) Vd. post de 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

(3) Vd. posts de:

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1076: O álbum das glórias (Beja Santos) (4): eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico'

9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1161: O nosso Major Eléctrico, 2º comandante do BCAÇ 2852 (Beja Santos)

(...) O Major Ângelo da Cunha Ribeiro é o 2º Comandante que vem numa vaga de substituições. Era loquaz, irónico, interveniente e um conversador compulsivo. Devo-lhe pessoalmente vários gestos ternos: foi ele que me passou a tratar por Tigre e incentivou a socialização do termo; foi extraordinário nos acontecimentos da mina anti-carro de Canturé, em Outubro [de 1969] ; perguntava sempre sobre as necessidades em comida e material, interferia, imaginava e fazia lobby por Missirá e Finete. Não fica nada mal, parece-me, contar aqui em água forte um punhado de situações.Começo pelo fim, pelo desastre que o vitimou na rampa de Bambadinca. Alguns dos tertulianos presenciaram ou foram forçados a salvá-lo dentro da viatura destroçada, furada pelos barrotes de cibe onde ele jazia com múltiplas facturas num jipe transformado em sucata. (...)

(4) Sobre esta operação, vd. ainda:

8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12 (Luís Graça)

(...) O dilagrama que provocou este trágico acidente era empunhado por um graduado da CCAÇ 12, que não era apontador habitual de diligrama do seu grupo de combate. No relatório omite-se, por conveniência ou cumplicidade, este facto grave. O Iero Jau, de etnia fula, morreu ao meu lado. O Malan Mané, o prisioneiro, de etnia mandinga, foi gravemente ferido, tendo sido evacuado para Bissau. Gostaria de saber o que é feito dele hoje: se conseguiu sobreviveu aos ferimentos, se ainda é vivo, se se lembra, à distância de 36 anos, destes loucos meses de Agosto e Septembro de 1969...

"Fomos no dia seguinte enterrar o Iero Jau na sua aldeia, no regulado do Cossé (se não me engano...). Teve honras militares. Lembro-me do ridículo atroz da cerimónia" (...).



14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)

9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga (Luís Graça).

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Restos do monumento mandado erigir pelos Gringos de Guileje, em 1972, à Nossa Senhora de Fátima e ao Senhor Santo Cristo (vd. foto a seguir). Foto do Xico Allen, tirada na sua viagem de 2005. Ele é o mais andarilho de todos nós, em matéria de Guiné (desde que lá voltou em 1998, tem lá ido com frequência). Está a organizar uma próxima viagem em Fevereiro de 2008. Na foto pode ler-se a oração em verso: "Santo Cristo dos Milagres / Nesta capelinha oramos / Para sempre sorte dares / Aos Gringos Açorianos". Foto: Xico Allen (2005). Direitos reservados. Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Nov 1971/Dez 72) > 1972 > Oráculo, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima e do Santo Cristo dos Milagres... Na imagem, o Amaro Munhoz Samúdio, ex-1º cabo enfermeiro, está a pegar ao colo um bébé de chimpazé (ou dari, como se diz localmente). Os Gringos Açorianos antecederam os Piratas de Guileje (CCAV 8350, Dez 1972/Mai 1973). Segundo amável informação do Samúdio, o monumento foi contruido pelos Gringos e inaugurado pelo então Ministro da Defesa Nacional, general Sá Rebelo e também pelo então governador, general Spínola, em 12 de Junho de 1972. Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > Brasão da CCAÇ 3477 (Gringos de Guileje), 1971/72. Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados. Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2006 > Restos arqueológicos: o brasão da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje), novinho em folha... Foram a última a lá estar, tendo abandonado o aquartelamento, juntamente com a população da tabanca, por ordem do major Coutinho e Lima, comandante do COP 5. Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006). Direitos reservados. 1. Nota do editor L.G.: O texto que a seguir se publica, da autoria do jornalista Eduardo Dâmaso, foi reproduzido originalmente no Blogue-fora-nada > vd. post de 11 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLVI: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73). Há (ou melhor, houve) aqui um erro nosso (e do jornalista Eduardo Dâmaso) confundindo a CCAV 8350- Os Piratas de Guileje (Dez 1972 / Mai 1973) - com os Gringos de Guileje, a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972). Pirata de Guileje é(foi) o nosso camarada José Casimiro Carvalho (1). Gringo de Guileje é (foi) o nosso camarada Amaro Samúdio (2). De facto, a CCAÇ 3477 (Nov 1971/ Dez 73) é a companhia de açorianos que ficou conhecida como Os Gringos de Guileje: estiveram em Guileje entre Novembro de 1971 e Dezembro de 1972); foram a penúltima unidade de quadrícula de Guileje, sendo rendidos pela CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) - Piratas de Guileje, a que pertencia o nosso camarada José Casimiro Carvalho, ex-fur mil de operações especiais (3). Há ainda outro erro (grosseiro) no que respeita ao calibre das peças de artilharia: o jornalista fala em morteiros de 11,4, em obuses de 14 milímetros... Quando queria dizer, muito possivelmente, peças de artilharia de 11,4 (centímetros) e obuses, de 14 centímetros... Já alguém, em comentário ao post, nos chamou a atenção para este erro, grosseiro (Anónimo, 9 de Agosto de 2007): "É lamentável que, num texto com redacção geralmente muito aceitável, o autor não tenha a mínima noção dos calibres das bocas de fogo da Artilharia. Escreve morteiros de 11,4 milímetros quando, certamente deveria escrever peças de 11,4 centímetros e atribui aos obuses um calibre pouco superior ao de uma arma caçadeira...Estas faltas de rigor maculam, em meu entender, a credibilidade do texto". Bem, não exageremos, o Eduardo Dâmaso é um paisano que não tem que saber de artilharia em profundiade. Como jornalista, tem-se interessado em pesquisar e escrever sobre a guerra colonial... Merece, só por isso, a nossa gratidão. De qualquer modo, também houve aqui outras pequenas imprecisões como a de chamar miliciano ao milícia Aliu Bari... Por tudo isto voltamos a publicar a excelente peça do ex-jornalista do Público, actualmente director-adjunto do Correio da Manhã.

  2. Em 11 de Dezembro de 2005, eu escrevia: Guileje continua a estar rodeado de mistério e de polémica. Faltam-nos trabalhos de investigação historiográfica séria, tanto de um lado como de outro. Por enquanto temos só ouvido o testemunho de alguns dos seus (poucos) protagonistas. É urgente que apareçam testemunhos (escritos) de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no cerco de Guileje. A geração que fez a guerrilha está a envelhecer e a desaparecer. Segundo creio saber, o Pepito tem sobretudo contactos com antigas milícias, provavelmente de etnia fula, que estiveram do nosso lado. Não sei se há guineenses a tentar preservar essa memória. O Pepito que não foi combatente, será uma das poucas excepções na Guiné-Bissau, com o Projecto Guiledje, da sua ONG (AD - Acção para o Desenvolvimento). Por outro lado, estamos a aguardar, com curiosidade, a divulgação ou publicação da tese de doutoramento do nosso amigo guineense Leopoldo Amado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Um dos testemunhos sobre os acontecimentos de Guileje, entre 18 e 22 de Maio de 1973, é o de Alexandre Coutinho e Lima, na altura major, à frente do Comando Operacional 5 (COP 5), baseado em Cacine. Foi este oficial quem, à revelia de Spínola, seu comandante-chefe, decidiu, de motu proprio, abandonar Guileje, retirando a CCAV 8350 e mais dois pelotões, para Gadamael-Porto, mais as milícias locais e mais meio milhar de civis. Essa decisão (corajosa, para uns; cobarde, para outros) custou-lhe a carreira militar. Essa história foi há tempos contada pelo jornalista Eduardo Dâmaso, no suplemento dominical do Público, de 21 de Maio de 2004. Vale a pena divulgar esse texto, pelo seu valor documental, já que muitos dos nossos tertulianos e outros visitantes o não conhecem. 

A versão que encontrámos disponível na Net vem no Blogue Moçambique para Todos, e em particular numa secção dedicada ao 25 de Abril - O antes e o agora. Agradecemos a estas duas fontes (O Público e o Blogue Moçambique para Todos) a possibilidade de fazer chegar aos membros da nossa tertúlia e a outros cibernautas a versão dos factos na pessoa do entrevistado, o hoje coronel na reforma Alexandre Coutinho e Lima. Parece que esta questão ainda hoje incomoda as chefias militares do Exército e até os homens que fizeram o 25 de Abril. O abandono de Guileje, sem honra nem glória, foi sempre considerado inaceitável por Spínola e os spinolistas. O velho general, metido no atoleiro da Guiné, quereria muito provavelmente que Coutinho e Lima e os homens defendessem Guileje até ao último cartucho de G-3... À semelhança de Salazar, em relação ao pobre do General Vassalo e Silva, que comandava as NT aquando da invasão indiana de Goa, Damão e Diu, em 18/19 de Dezembro de 1961. ________ 

  2. Republicação da peça jornalística, com as necessárias correcções: 

  Coronel Coutinho e Lima: Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola PÚBLICO, Domingo, 16 de Maio de 2004 Eduardo Dâmaso 

  Auto de corpo de delito 

Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos gringos açorianos e a todos os outros gringos que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). 

Eram quase seis da manhã e os gringos iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo. Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. 

Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses. Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. 

O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada. A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidaje, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri. 

 Essa operação, a que chamaram Amílcar Cabral, foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito (4). A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens. A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. 

Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado. Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável. Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos gringos açorianos inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." (5). Ou as dos Piratas de Guileje, uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74. Os RPG 7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes. 

  Minhas declarações em 28 de Maio de 1973 

 "Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou um morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã." A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar [peças de artilharia] de 11,4 , mudou para os obuses de 14 [centímetros]. A regulação de tiro com os de 11,4 tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estas [peças] acabaram e não foram substituídas por outras de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG 7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir. É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. 

Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de Abril de 1974. 

 Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje. Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra. Ao cerco de Guidaje, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidaje (6). Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos. Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. 

O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA). Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo. 

O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu. Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do [milícia] Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o [milícia] Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra. Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes. 

 No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos [milícias] guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. 

Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer. Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte. Adivinhava-se um mortícinio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa. Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. 

O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo. A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano [milícia] Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel. 

 Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel. Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. 

Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão (7). Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5. Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel. Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973 "A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). 

Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. 

Com a deserção do miliciano [milícia] Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto." O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. 

De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados." Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. 

Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população." Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima. 

  Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973 

 "Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael." Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. 

Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o Depósito de Adidos no aquartelamento de Brá com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais. Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. 

Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos, como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente". 

 Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN [Junta de Salvação Nacional]. "Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos. 

  Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973 

"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável." O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio (8). Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a Pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da Pátria. 

 ___________ 

 Notas de L.G.: 



 Vd. também post de 14 de Dezembro de 2005 > 14 Dezembro 2005 Guiné 63/74 - CCCLXVII: Guileje, terra de fé e de coragem (Luís Graça) 

 (3) Vd. post de 11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P864: Unidades aquarteladas em Guileje até 1973 (Nuno Rubim / Pepito) 

 Vd. ainda a correspondência do J. Casimiro Carvalho: 






 (4) Sobre as areonaves (Fiat) abatidas na Guiné, ver: 21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1867: Força Aérea Portuguesa: Seis Fiat G.91 abatidos pelo PAIGC entre 1968 e 1974 (Arnaldo Sousa) 

 (5) Vd. posts de:



 (6) Vd. posts de: 

 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno) 


 (7) Vd. posts e: 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato) 



 (8) Aguarda-se a comunicação do hoje Coronel Coutinho e Lima no Simpósio Internacional sobre Guileje (1 a 7 de Março de 2008) . Eu próprio estou, ando já há uns tempos, para o contactar telefonicamente. Também já lhe ofereci, publicamente, este espaço para nos poder dar o seu depoimento sobre a decisão de abandonar Guileje e as duras consequências que isso teve para a sua carreira militar e a sua dignidade como homem e cidadão. 

Não o conheço pessoalmente, mas confesso que apoiaria a sua atitude humanitária e pacifista, se lá estivesse, em Guileje, no dia 22 de Maio de 1973.



Guiné 63/74 - P2136: Bibliografia de uma guerra (19): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte III) (V. Briote)

O Congresso de Cassacá

Um ano depois do início da luta armada travou-se a batalha do Como (ou Komo, como também aparece escrito). Foram cerca de 70 dias de luta, com uma e outra parte fortemente envolvidas. O PAIGC a defender o que chamava terra libertada e as forças do exército português empenhadas em desalojar os guerrilheiros dos seus santuários.

Enquanto a batalha prosseguia, realizou-se em Cassacá, de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC.

A caminho de Cassacá, em 1964, desembarque numa praia da Guiné-Conacri

Um dos motivos que levaram Amílcar Cabral e a direcção do PAIGC a convocar uma reunião de quadros do partido tinha por base as repetidas queixas das populações sobre abusos de responsáveis pela guerrilha, que iam do consumo exagerado de álcool e castigos corporais até a abusos sexuais e fuzilamento de populares, crimes estes que estavam a minar a relação com as populações.

Quacuta Mané, Aristides, Abdulay Barry, Manuel Saturnino, Armando Ramos, Amílcar, Rogério Oliveira e Osvaldo Vieira, a caminho do Congresso

Em Cassacá tomaram-se medidas que vieram a projectar-se até ao fim da luta. Foi decidido criar o Exército Regular, a Milícia Popular, escolas e hospitais e formar pessoal de enfermagem.

A direcção do PAIGC saída do Congresso de Cassacá
Nino, Chico Mendes, Rui Djassi, Aristides, Constantino Teixeira, Amílcar, Domingos Ramos, Luís Cabral e Osvaldo Vieira

Ao Exército (FARP*) , a que podiam aceder os melhores guerrilheiros (passou a ser considerada uma promoção), foi cometida a missão de abrir novas frentes, em especial a Norte e a Leste do território.

À guerrilha competia fustigar as tropas portuguesas na retaguarda, tornando-lhes a vida cada vez mais mais difícil e a Milícia ficava responsável pela defesa e segurança das populações das áreas sob controlo do partido.


sessão de encerramento do Congresso

Em Cassacá, o partido deixou de ser apenas uma organização política e militar; assumiu a organização e administração da justiça, da educação, da assistência médica e do comércio.

Muita e muita coisa aconteceu depois de Cassacá. Mas até ao fim da luta, o Iº Congresso do PAIGC ficou como uma marca de viragem e correcção e os seus efeitos perduraram até à década de 70. As armas, o transporte das mesmas de Marrocos até ao interior da Guiné, o difícil trânsito do material através da Guiné-Conacri com as dificuladades que Sekou Touré levantou durante muito tempo, as movimentações internacionais do partido, os debates sem fim na Nações Unidas, a recepção que o então Papa Paulo VI concedeu aos chefes da luta armada contra o colonialismo português, já na década de 70.

Não há aqui espaço, nem provavelmente o leitor tem paciência, nem tão pouco nós temos artes de historiador suficientes para descrever todo o trajecto da luta do PAIGC.

Foi uma década decisiva para o alcance da independência da Guiné e de Cabo Verde. As flagelações a Bissau, as batalhas dos três Gs (Guidage, Guileje, Gadamael), a preparação das eleições para a Assembleia Nacional Popular, a decisão dos países nórdicos (Suécia, Finlândia e Dinamarca), alguns deles parceiros de Portugal na Aliança Atlântica, de conceder apoio humanitário ao PAIGC, estes e muitos outros factores concorreram para que o desenlace da luta se viesse a dar a muito curto prazo.

(*) Forças Armadas Revolucionárias do Povo

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Nota de vb:

Fontes e imagens do livro "Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países", de Aristides Pereira. Editorial Notícias.

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

(2) vd. post de 24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)

Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > 1969 > À direita ao fundo, as tais vivendas...de que se fala nesta estória duplamente cabraliana.

Foto : © Jorge Cabral (2007). Direitos reservados

1. Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, autor da série Estórias Cabralianas (1).

Querido Amigo:

Um pouco melhor e a tentar deixar de fumar, mais uma estória e aquele Abraço.

Jorge


Guerra Escatológica: O Turra Boris Vian
por Jorge Cabral

Fá Mandinga fora sede de Batalhão e de Companhia, possuindo muitas e boas instalações.

Chegados em Julho de 1969, optámos por ocupar apenas dois edifícios. Quanto aos restantes, convenci o Pelotão, que o respectivo acesso estava minado, razão porque só eu lá poderia entrar. É que vislumbrara duas belas e isoladas vivendas, as quais intimamente destinara a uso próprio. Uma serviria para encontros amorosos. Na outra, utilizaria a casa de banho, lendo e meditanto... E assim se passou.

Coloquei uma cama na primeira e da segunda fui utilizando a sanita, o bidé, o lava-loiças, etc, etc e demasiado preguiçoso para carregar com os necessários garrafões de água, tornei-a inabitável.

Bajudas, mulheres grandes e algumas profissionais passaram por aquela cama e houve uma que marcou a sua presença, pois lhe aconteceu o que sucede às mulheres todos os meses, deixando o colchão manchado.

Em meados de Dezembro [de 1969] apresentou-se um Sargento de Engenharia. Periquito, chegara à Guiné há oito dias, e vinha preparar o Quartel, para receber os Comandos Africanos (2).

Deixei-o ir sozinho inspeccionar as vivendas, garantindo-lhe que desde Julho, ninguém lá entrara.

Ainda nem um quarto de hora passara, surge-me a correr o nosso Sargento, com um livro na mão e aos gritos:
- Meu Alferes! Meu Alferes! Os turras estiveram lá! Fezes por todo o lado, um colchão ensanguentado, e este livro! (L’Automne à Pekin, de Boris Vian, que eu andava a ler)(2).
- Algum turra ferido com diarreia! - tentei brincar.
- E o livro, o livro? O meu Alferes sabe que os turras treinam na China. E este foi no Outono e em Pequim.
- Claro - concordei.- Vian é um apelido Mandinga!

Uma semana depois recebi ordem para reforçar a segurança, dobrando os postos de sentinela. Quanto ao nosso Sargento guardou como ronco de guerra o livro capturado.

Que será feito dele? Terá lido o romance do turra Boris Vian?

Jorge Cabral


2. Comentário: Jorge, eis uma bela tripla notícia: (i) estás melhor; (ii) estás a tentar deixar de fumar; e (iii) presenteias-nos com mais uma das tuas estórias cabralianas... Desconcertante, o teu humor. Mas vou-te lembrar que o sorja era capaz de ter razão: esse tal Boris Vian até tinha escrito uma canção a fazer a apologia da deserção, traduzida para português e cantada pelo Zé Mário Branco, o tal da Cantiga é uma Arma!...

_______

Nota de L.G..

(1) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1900: Estórias cabralianas (25): Dois amores de guerra e uma declaração: Não sou pai dos 'piquinos Alferos Cabral' (Jorge Cabral)

Capa do disco com a famosa canção Le Déserteur. Fonte: Amazon.fr (com a devida vénia...).


(2) O Outono em Pequim (1947). Romance do francês Boris Vian (1920-1959). Engenheiro, poeta, romancista, homem de teatro, músico de jazz, cantor, amigo de Sarte e de Beauvoir, boémio, existencialista, provocador...

Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim.
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte,
É porque isso me diverte,
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba...


É também autor da célebre canção Le Déserteur [O Desertor] (1954), traduzida pelo José Mário Branco para português (e adaptada ao contexto da época que era a da contestação da guerra colonial):

Ao senhor presidente
e chefe da nação
escrevo a presente
pra sua informação

recebi um postal
um papel militar
com ordem pra marchar
prà guerra colonial

diga aos seus generais
que eu não faço essa guerra
porque eu não vim à Terra
pra matar meus iguais

e aqui digo ao senhor
queira o senhor ou não
tomei a decisão
de ser um desertor

desde que me conheço
já vi meu pai morrer
vi meus irmãos sofrer
vi meus filhos sem berço

minha mãe sofreu tanto
que me deixou sozinho
morreu devagarinho
nas dobras do seu pranto

já estive na prisão
sem razão me prenderam
sem razão me bateram
como se fosse um cão

amanhã de madrugada
pego numa sacola
e na minha viola
e meto-me à estrada

irei sem descansar
pela terra lusitana
do Minho ao Guadiana
toda a gente avisar

à guerra dizei 'não!'
a gente negra sofre
e como nós é pobre
somos todos irmãos

e se quer continuar
a matar essa gente
vá o senhor presidente
tomar o meu lugar

se me mandar buscar
previna a sua guarda
que eu tenho uma espingarda
e que eu sei atirar

(3) Vd. posts de:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

2 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2134: História de vida (6): A minha convocação para o Curso de Capitães Milicianos (Ferreira Neto)

Ferreira Neto, ex-Cap Mil, CART 2340 (Canjambari, Jumbembem e Nhacra, 1968/69).



1. É sabido que um dos grandes problemas do Regime para manter a Guerra Colonial, foi, a certa altura, arranjar Capitães para comandar o grande número de Companhias enviadas para os Teatros de Operações.

Os Capitães do Quadro Permanente tinham, na sua maioria, efectuado já duas e três Comissões de Serviço, e já apresentavam um desgaste físico e psicológico muito acentuado. Os que não conseguiam evitar mais uma Comissão, tudo faziam para baixar aos Hospitais Militares depois de mobilizados.

Como os Capitães que baixavam e que posteriormente eram abatidos ao efectivo das Companhias, não eram substituídos em tempo útil, eram os Alferes Milicianos que aguentavam a guerra como podiam. Como por vezes também os Alferes baixavam, até os Furriéis Milicianos comandavam Pelotões.

A solução encontrada pelas Chefias Militares foi recorrer aos Oficiais Milicianos na situação de Disponibilidade, que por sorte (ou azar) não tinham sido mobilizados durante o tempo normal de Serviço Militar Obrigatório.

Eram chamados de surpresa para frequentar um Curso acelerado de Capitães Milicianos e lá iam comandar Companhias Operacionais, tendo muitos deles deixado para trás a família já constituída e uma vida profissional estabilizada.

Esta situação foi vivida pelo nosso camarada Ferreira Neto, ex-Cap Mil, Comandante da CART 2340 (1).



2. A minha convocação para o Curso de Capitães Milicianos
Por Ferreira Neto

Terminado o meu serviço militar obrigatório em 15 de Fevereiro de 1959, iniciei a minha vida profissional em Novembro.

Com a vida estabilizada, casei-me em 18 de Agosto de 1960.

Entretando, em 4 de Fevereiro de 1961, os movimentos separatistas nas nossas colónias iniciaram a suas actividades.

Como tinha passado à disponibilidade, havia menos de um ano atrás, fiquei na expectativa de ser mobilizado para a guerra. Expectativa que continuou por muitos meses, com o adicional desconforto na minha vida. No entanto, com o passar dos meses esse estado foi-se desvanecendo, até porque, o número de cursos de oficiais milicianos era maior, e por consequência a quantidade que se interpunha entre mim e uma possível mobilização tornava cada vez mais distante. A consequente probabilidade de ser alistado diminuía a olhos vistos para meu descanso e da restante família. Assim fui progredindo na minha vida profissional e melhoria de proventos do meu trabalho.

Para minha surpresa, em Dezembro de 1966 fui convocado para me apresentar em Mafra, como Tenente, para frequentar o Curso de Capitães Milicianos, que se iniciaria em Janeiro do ano seguinte.

E assim foi, com a consequente diminuição dos meus proventos do trabalho, que passaram a ser muito menos de metade do que auferia até então, separação da família que só me era possível ver aos fins-de-semana, acrescido das despesas de viagem para tal acto.

Nesta altura tinha já um filho com 5 anos de idade. Com a minha mulher, tínhamos planeado ter mais um rebento. A situação descrita iria fazer com que tivessemos que optar por três hipóteses:
(i) - desistir da ideia de ter mais filhos,
(ii) - de os ter depois do meu regresso, ou
(iii)- de iniciar antes da minha partida.

A primeira hipótese não nos agradava, a segunda seria um intervalo bastante grande de idades entre os dois, o que não era aconselhável, pelo que optámos pela terceira, fazendo preces para que eu regressasse vivo.

Tal aconteceu, só que a minha mulher não teve o acompanhamento sempre desejado do marido, eu tinha embarcado para a Guiné no dia 10 de Janeiro de 1968. Nasceu uma menina em Julho desse mesmo ano. Felizmente tive oportunidade de, em Setembro, aquando da minha primeira licença, assistir ao seu baptismo.

Em Fevereiro de 1969, na segunda licença já a cachopinha se encontrava com seis meses e toda bonitinha à custa da minha mulher que teve que se haver quase só com a criação da criaturinha.

Eis o que me aconteceu e também em circunstâncias piores a centenas de outros e consequentes traumas de guerra, ainda hoje precariamente atendidos.

Ferreira Neto
Ex-Cap Mil
CART 2340
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Nota do co-editor CV:

(1) Vd. post de 14 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2046: Tabanca Grande (31): Apresenta-se Joaquim Lúcio Ferreira Neto, ex-Cap Mil (CART 2340, Canjambari, Jumbembem, Nhacra, 1968/69)