segunda-feira, 16 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça na poda...

Évora > RAL 3 > 1967 > Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na primeira fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz (na altura, aspirante), ambos da CART 2338 (O Diniz é o oficial que irá mais tarde coordenar a travessia do Corubal, no Cheche, na retirada de Madina do Boé, em Fevereiro de 1968). "Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço", escreveu há tempos o Torcato (1). O Asp Mil Torcato Mendonça, dfa CART 2339, está na primeira fila, à esquerda do capitão.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados (Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos. A ambos o nosso agradecimento).

Série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Chamei-lhe Estórias de Mansambo (2), por homengem aos heróicos construtores e defensores daquele aquartelamento da Zona Leste, Sector L1 (Bambadinca) (1). A ordem por que aparecem não é nem lógica nem cronológica, é ditada por critérios de conveniência do autor e do editor. A estória do postal foi-me enviado em 12 de Fevereiro de 2007, a par da já publicada, a dança dos capitães (2).

Mais recentemente, pela Páscoa, o Torcato mandou-me mais uma meia dúzia de estórias, subordinadas ao título comum Estórias do Zé... Ora eu já tinha, em boa hora, dado início à série Estórias de Mansambo... Ao telefone, decidimos manter este título... E vamos recuperar outras (pequenas estórias) do Torcato que andam por aí dispersas. Hoje, e numa assentada, publicam-se duas, uma vez que estão interligadas: (i) O José ou o Zé; (ii) O postal [da tropa]...

Estórias de Mansambo (2) - O José ou Zé

por Torcato Mendonça

Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez.

Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez, porque não podíamos fugir ao tema.

Numa tarde fria e baça, recebi a inesperada visita do José para dois dedos de conversa. O tempo cinzentão deixava-me amolecido. Devagar acabava o trabalho. Ele, depois de entrar e dos cumprimentos, sentou-se num cadeirão e começou a folhear uma revista. Continuei a trabalhar, alheado ao que me rodeava. De repente, levanto os olhos e vejo o José a ler os papéis espalhados na habitual desordem, mais aparente que real, sobre a mesa de trabalho.
- Espreitar não vale – disse-lhe, gracejando.
- Pois é - respondeu-me, meio virado para a janela com olhar de nada ver. E acrescentou, com a sua voz grave e calma:
- Eu estive lá; eu também estive na Guiné há muitos anos. Quase nunca falamos sobre isso.
Fitei-o, esperei um pouco, passei o olhar para os papéis e disse:
– São apontamentos, pequenos textos em exercício de memória, sem ordem nem tema. Recordações minhas, desse tempo, transcritas para o papel ao correr da pena ou da tecla. Um dia posso ordenar tudo ou não.

Na sua voz calma, olhando também os papéis retorquiu:
- Fui tentando esquecer mas, como marca de ferro em brasa, aquele tempo ficou-me indelevelmente gravado na memória. Podemos falar um pouco sobre isso... Cedo, ainda criança, por razões várias apercebi-me das desigualdades no nosso País, do cuidado a ter em certas conversas e não só. Isto, para te dizer que, quando me chamaram para prestar o serviço militar e posteriormente fui mobilizado, sabia não ir defender causa justa. Fui, porque tinha e devia ir. Fugir, desertar, nunca tal foi por mim equacionado.



Sentámo-nos mais confortavelmente. Entre os dois a mesa baixa e, sobre ela a bandeja com chávenas, copos, o termo do café, uma garrafa de água e outra de uísque. Nenhum queria iniciar a conversa. Começou ele, titubeante, a não ir directo ao assunto, a rodar o copo com água ora numa mão ora noutra. Tossiu, respirou fundo, pousou o copo e depois de dar uma palmada no joelho falou mais alto que era o seu hábito.
-Vou contar-te, sem sentido cronológico, sem qualquer pretensão de ligação de factos. Vou fazê-lo, à medida que me vier à memória, aquela parte do meu passado tão fortemente vivido e que me transformou tanto - E continmou:
-Começo então e chamo metamorfoses a essas transformações. Porquê metamorfoses? Porque o jovem alegre, brincalhão, bonacheirão, jogador de unha afiada para o ás, amigo do copo e do petisco, do belo sexo – no bordel, hotel e… em tanto lado –, sofre, de forma maquiavélica e bem programada, uma radical modificação. Resiste. Um dia, sem saber como, sente que claudicou. Saltou o muro e tornou-se solitário. Já não é o mesmo de outrora.
Transformou-se. Muito, muito tempo depois, aos poucos, sente que esqueceu…já não diz, quando sente situação de perigo: - Vou vestir o camuflado… isso foi-se. Mas não. Um som, um cheiro, certas palavras ou uma imagem… sem querer, é o suficiente para voltar a ser solitário. Hoje sabe porquê e, mesmo solitário, também está mais solidário com aquilo… E vale a pena, sente que recordar é necessário.

Estórias de Mansambo (3) - O postal

por Torcato Mendonça

Prefiro contar na terceira pessoa, como se fosse referente a outro indivíduo... Posso, eventualmente, fazer o relato na primeira pessoa. Se bem me lembro...

Naquele ano, descera do Alentejo até ao Algarve já com Setembro á vista.

Sabia que mais tarde ou mais cedo, teria que servir a Pátria. Sinceramente não sentia nada por ela. Gostava e gosta de ser português. Mas Pátria? Cheirava a bafio, a botas, a Estado Novo. Pátria, não.

Já tinha ido à inspecção, às sortes, e pedira adiamento. Continuou a estudar. Mas…sorte madrasta…agora, aí estava ele especado, aturdido. Se tivesse levado um murro no estômago, a surpresa não seria maior. Ali estava ele, com o postal na mão e lia e relia a sentença. O texto era de chapa e de prosa curta: Tem que se apresentar, no quartel das Caldas da Rainha, a 12 de Setembro. Não teve direito a adiamentos. Porquê? Logo agora que até tinha trazido os livros, devido a exames no fim de Setembro. E a faculdade, o curso, o… raio que os parta! Sonhos desfeitos ou adiados.

Pôs a toalha ao ombro e foi até á praia. Sentou-se junto da rebentação para melhor sentir o embrulhar das pequenas ondas. Aos poucos sentia-se mais relaxado ou resignado. Logo neste ano que, ao fim de três ou quatro dias, conhecera aquela miúda. Linda! Cabelo loiro, longo e liso, olhos cor de mar. Aos poucos a rápida empatia…as voltas…as conversas…enfim …o estarem sós… no meio do grupo! E agora?

O regresso a casa, no Alentejo, mais depressa do que imaginara. Ficaram promessas no ar, prisões de amor em traição ou infidelidade próprias dos verdes anos. Dias depois a vinda para Lisboa, a despedida na velha Casa de Fados com os amigos. No dia seguinte, manhã cedo, o comboio apanhado no Rossio – Linha do Oeste... Poucas horas depois, aí estava a cidade das Caldas.

Acompanhava-o um amigo, antigo colega no Colégio que trazia uma cunha para um Alferes, antigo camarada de um seu cunhado na Academia. Falaram com ele e rumaram ao Quartel. Que mundo diferente, a cor verde e o cheiro da caserna…

Dias depois ei-lo a sair para fazer os exames.
-Trazes o papel mas não entregas a ninguém, só quando eu disser.

Alferes manda. Passado cerca de um mês, nova ordem:
-Vai á Secretaria e entrega o papel. Já não te mandam para Mafra.

Conseguiu safar-se da porrada que o Comandante de Companhia lhe queria dar.
- Não entregar as habilitações literárias é grave - berrava o 1º Sargento e berrou o Tenente.
- Esqueci-me.
- Assinaste um papel quando foste á inspecção.
- Não me lembro.

Passou. Tudo serenou e continuou nas Caldas. Bela cidade, boas voltas, cidade com atractivos para militares…o museu e o jardim clar0... para descansar o olhar… e… pois isso também... óptima recruta.

Do Pelotão dele, nem meia dúzia foram para atiradores. Ele estava nesse pequeno grupo. Ia para Vendas Novas, curso de oficiais milicianos, especialidade – atirador.

Raios partam… a dança ia começar!
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

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