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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24892: Notas de leitura (1638): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma viagem sobre o trabalho de Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva, uma dissertação de mestrado. Ela retirou um conjunto de histórias da 1ª edição dos contos mandingas, de Manuel Belchior, irá espraiar-se sobre o papel da oratura, a palabra como memória viva de África, tecerá considerações sobre a problemática do conto africano, apresenta alguns dados sobre a História dos mandingas e fala-nos dos temas versados nestes contos do seguinte caráter: religiosos, didáticos, iniciáticos, humorísticos, entre outros. Atenda-se às suas conclusões, o papel dos contos é a transmissão de ensinamentos, os mais novos devem acolher este património de que costumes, crenças e tradições para mais tarde os transmitirem às novas gerações. O objetivo primordial é o saber viver através de uma moral social. Por isso o Griot usa os animais que são tipos morais simbólicos, através deles chegamos ao comportamento humano. Eles são a base da riqueza folclórica dos mandingas, tocador de kora é um transmissor cultural único, os mandingas têm consciência das suas potencialidades no âmbito da cultura e usam-na como mão de mestre. E despede-se do leitor lembrando que esta literatura oral entrou em sério confronto com a educação, com a mobilidade e com a família interétnica. O fosso geracional pode vir a fragilizar esta memória viva de África.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana (3):
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas


Mário Beja Santos

Pomos hoje termo a esta viagem sobre os contos mandingas analisados por Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva. No seu trabalho faz-se uma apreciação do papel da oratura na vertente da literatura oral tradicional, que poder ter a sua envolvente folclórica e musical, o papel da memória viva graças ao narrador, o Griot, foram elencados tanto a função do narrador como a problemática do conto africano, e depois a autora selecionou um conjunto de contos da obra de Manuel Belchior, uns exemplares ou edificantes, outros humorísticos ou envolvendo fábulas de animais, didáticos, iniciáticos, religiosos, etc. Resta-nos agora dar primazia aos contos iniciáticos e proceder à conclusão da autora.

Ela começa com o conto O Caçador e a Serpente, um homem grande está sentado no benten (espaço à sobra de uma grande árvore onde há uma grande esteira, é ali que os homens se sentam para conversar) e fala de uma serpente que atemorizava toda a população, tinha por uso e costume roubar as noivas no dia do casamento; um dia roubou a noiva do mais afamado caçador da região, este pôs-se ao caminho para a matar, anda acompanhado por uma mosca, vão juntar-se animais a esta perseguição, um chacal, uma águia e um elefante; a mosca entrou pela fenda de uma caverna e falou com as raptadas, uma delas esclareceu que a força vital da serpente estava dentro de um ovo, este dentro de uma pomba, este por sua vez na barriga de uma gazela e esta dormia no ventre de um veado, tudo acabava em duas colmeias de abelhas ferozes; havia que partir o ovo mas antes havia que evitar as abelhas e matar sucessivamente todos aqueles animais, com auxílio dos seus acompanhantes, o caçador teve sucesso. Findo o conto, o homem grande perguntou aos netos: “Depois daquilo que vos contei, dizem-me qual foi a ação que vos pareceu mais valiosa, a do caçador, a da mosca, a do chacal, a da águia, a da pedra ou a do elefante?”

A moral da história, como observou o Griot é que na vida todos nós temos um lugar e um desempenho. Segue-se um outro conto intitulado A Pedra com Barbas. Um lobo encontra uma pedra com um belo tufo de cabelos, tal foi a emoção que desmaiou. Escondeu a pedra dentro de uma gruta e ia levando ali alguns animais a pretexto de verem aquela singularidade, mas os animais desapareciam, inexplicavelmente. Um dia, convidou uma lebre que o acompanhou desconfiada, fez perguntas um tanto pertinentes e viu o lobo desmaiar. A lebre compreendeu então a maneira como os animais ficavam à mercê do lobo e veio contar aos outros animais, a pedra com barbas deixou de ser uma arma ao serviço do voraz lobo. Há um terceiro conto intitulado O Moço Viajante. Certo homem com pendores de marabu aconselhou um dos seus filhos a correr o mundo a fim de completar, através de uma variedade de experiências, a educação que lhe dera. Recomendou-lhe que guardasse na memória aqueles factos que acima de tudo lhe merecessem a admiração por ultrapassarem a sua capacidade de entendimento; ele no regresso como mais velho, procuraria ajudá-lo a encontrar para eles a necessária explicação. O moço pôs-se ao caminho, viu um homem a correr, apareceu depois um cavaleiro que não conseguia alcançá-lo. Tínhamos aqui matéria para pedir explicações ao pai; viu numa pradaria dois bois selvagens feridos por flechas, um brutalmente atingido, outro menos, mas era este que gemia mais, e dava-se o caso de ser o menos ferido quem animava o mais ferido, tínhamos aqui mais um caso intrigante que o pai teria de explicar; viu uma cobra sair de um orifício onde depois não pôde entrar, coisa estranha, pensou ele se havia abertura suficiente para a cobra sair também podia nela entrar, mais uma história para contar ao pai; no regresso encontrou uma árvore tombada, altíssima, por mais que tentasse não lhe conseguia encontrar fim, outra situação que merecia explicação do pai. Este fez os seus comentários, valorou os casos de resiliência e lembrou ao filho que nada mais importante há que dispor de uma mentalidade positiva.

A autora socorre-se de um comentário de António Carreira: “Contar à noite é ajudar o dia a suceder à noite”. Para a mentalidade animista, a palabra pelo seu poder mágico, encantatório, tem mais prestígio do que a coisa, e dado que o homem é produto da sociedade em que está inserido, é, portanto, também o homem uma peça do rito. A autora dá ainda exemplos de contos humorístico e históricos e fábulas de animais.

Chegou o momento de tirar conclusões:
“A falsa transparência em que as narrativas se parecem envolver refletem no fundo a sua grande variedade e singularidade. É a razão pela qual o conto deve ser situado no seu exato contexto social e cultural. A razão dos contos é, sobretudo na sociedade mandinga, a de transmitir um ensinamento. Os costumes, as crenças e as tradições transmitem-se através das narrativas, e as jovens gerações assimilam esse contexto mesmo sem se darem conta disso. Os animais são tipos morais simbólicos, tal como nas fábulas. Podemos inferir que o conto exprime de uma forma simbólica, através de determinados temas postos em realce, os problemas que o homem mais intensamente vive e que habitualmente recalca no seu interior. O texto transmitido não será o mesmo que o recebido, pois o executante nele cunhou o seu próprio texto. Nos contos mandingas encontramos traços da sua psicologia, apontamentos dos seus usos e costumes, características da sua índole, do seu temperamento.
Grande parte desta riqueza está, todavia, a ponto de se perder ou de se descaracterizar, tão grande é a força dos modelos universais. Mas os contos podem ser considerados como uma literatura experimental e positiva. Tem pelo menos o valor de documento histórico. Os mandingas devem ter consciência das suas potencialidades no domínio da cultura. Não é, pois, necessário que tenham os olhos apenas virados para o exterior.”


A autora recorda-nos que todo este mundo da literatura tradicional entrou em confronto com a atual sociedade aberta que é a Guiné-Bissau, não só os jovens começaram a frequentar a escola como viajam mais e aumentou impressivamente o número dos casamentos interétnicos. Involuntariamente ou não, gerou-se um fosso entre as gerações precedentes e as atuais.


Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Os Griots e a tradição oral africana
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24884: Nota de leitura (1637): "O universo que habita em nós: estórias com vida”, do nosso camarada José Teixeira, um talentoso contador de histórias e criador de personagens (Luís Graça)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)


Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.

Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.

Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.

Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.

Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.

Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7737: A Guerra Colonial e a extinção da tradições portuguesas: o dia de 'ir às sortes' na minha terra, Sabugal (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 5 de Fevereiro de 2011:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.
Atendendo ao facto de terem passado 50 anos desde o início da Guerra Colonial, recordei-me hoje, duma consequência nefasta, que esse trágico acontecimento que foi a guerra, teve no acelerar a morte duma tradição na minha terra, que com tanta intensidade era vivida pelo povo da minha aldeia, Vale de Espinho - Sabugal.

Deixo ao vosso critério a publicação.

Um abraço
José Corceiro


A GUERRA COLONIAL E A EXTINÇÃO DE TRADIÇÕES PORTUGUESAS

O assalto à Prisão de Luanda ocorreu no dia 4 de Fevereiro de 1961, data que marcou o início da Guerra Colonial, ou do Ultramar, como se queira apelidar, sendo que para mim é a Guerra onde eu andei.

A Guerra Colonial tirou a vida a milhares e milhares de pessoas, deixando outras tantas estropiadas até ao fim dos seus dias. O fenómeno da Guerra foi também um factor influente que contribuiu para desvanecer algumas tradições e costumes, que estavam enraizados na cultura do povo português.

Tanto quanto me lembro desde a minha meninice, que na minha aldeia, Vale de Espinho – Sabugal, o dia da inspecção militar ou sortes era um dia festivo para toda a povoação, mas com proeminente destaque para os mancebos naturais da aldeia, que completassem nesse ano o 20.º aniversário, pois a festa era deles. Nos anos 1950 e princípios de 1960, na minha aldeia, o grupo de rapazes que iam anualmente a dar o nome para a tropa ultrapassavam sempre as duas dezenas, ou bem mais, e era raríssimo que quando chegasse o dia das sortes algum deles faltasse. O dia da inspecção revestia-se dum certo ritual, tradicional típico, que continha valor e particularidades para um estudo etnográfico.

Os preparativos para o esperado dia iniciavam-se com algum tempo de antecedência, pois era determinante que no dia da festa tudo corresse de feição. Sempre foram perceptíveis ao longo dos anos, explícitos laivos de ciúme, meio encapotado é certo, mas que levava alguns dos ex-inspeccionados a vangloriar-se ao dizer que a festa deles tinha sido a melhor. Ora, este espírito de geração competitiva, impulsionava a rapaziada a um apego de brio viril, que os empenhava em melhorar a sua festa em comparação com as dos anos anteriores.

Para muitos dos jovens, o dia da inspecção seria também a primeira vez que iriam estrear um fato novo, composto por calças, casaco e colete (terno), pois até ao presente não tinham tido a possibilidades de comprar o tecido e mandá-lo confeccionar no alfaiate da terra, visto ser escasso o suporte económico da família. Era também provável que a partir dessa data, o jovem pudesse começar a amealhar um pezinho de meia, fruto de algum trabalho que executasse com direito a remuneração, jornal ou a passar contrabando, pois até esta altura tudo o que tinha ganho reverteu a favor do agregado familiar.

Quando o esperado dia chegava, nada podia falhar.
O fato estava à espera de ser vestido…

Os foguetes já tinham sido comprados e entregues ao mestre-de-cerimónias, que os utilizava conforme a mensagem que queria anunciar, lançando-os para estoirar no ar. A primeira mensagem é logo cedinho, às 05h00, a lembrar que é preciso deixar a cama e levantar, para aqueles que nela se deitaram, nessa noite, porque alguns fizeram directa. Pois têm que se apressar, ainda há um percurso longo de 16 quilómetros que é preciso trilhar, sempre a cavalgar, até chegar ao Sabugal, concelho da freguesia, onde tem lugar a inspecção.

Foto 1 - Briosos mancebos inspeccionados em 1968, com saudosismo do passado. Foto tirada no dia da inspecção, no Sabugal, junto ao antigo edifício camarário onde teve lugar a inspecção. É também visível o edifício da antiga prisão.

O cavalo, adereçado com os seus melhores arreios estava pronto e à espera. Ricamente aparelhado. A sela, a cinta, o cabresto, as rédeas e o freio foram diligentemente limpos e engraxados, as fivelas e os estribos foram polidos até ficarem a brilhar, sem esquecer as patas do equídeo que foram aparadas, limadas e convenientemente ferradas, pois há mais de 30 quilómetros para calcorrear, ida e regresso, com o mancebo sempre montado e a espicaçar, e quiçá poderá surgir algum amigo mais íntimo que o queira apadrinhar e arrisque a boleia no lugar da garupa, e o ritmo tem que ser constantemente a trotear.

O acordeonista foi atempadamente contratado, personagem aglutinadora e imprescindível, que nunca pode faltar esperando-se sempre dele alguma novidade musical, para excitar o bailarico e a festa abrilhantar.

Os vitelos ou cabritos, cuja quantidade depende do número de mancebos e seus convidados, foram antecipadamente encomendados ao açougueiro, e já estão prontos e preparados com algum tempero à espera para se dar início ao apetecido assado, realizado sempre em local aprazível, junto à margem do rio Côa e por tradição no sítio do Freixial.

Foto 2 - Largo das Eiras, no centro da aldeia de Vale de Espinho. Nas redondezas não havia outra povoação que tivesse um largo tão grande, embora já tenha sido roubado pelas construções da estrada, escola, lar de idosos, junta de freguesia etc.

Por volta do meio-dia o povo aguardava impacientemente, no Largo das Eiras, a chegada do mensageiro, que se antecipava ao regresso dos mancebos. O arauto açoitando o seu cavalo incutia-lhe celeridade, para se adiantar e mais rápido chegar para a notícia poder dar, metia-se por atalhos e veredas para o caminho encurtar, e lá chegava ele ofegante à freguesia onde revelava, com voz de pregão, os nomes dos mancebos que ficaram livres e os que foram apurados para o serviço militar. Quando se ouvia o nome dum mancebo que ficou apurado era sempre um momento de regozijo, algazarra geral, com aplausos, acompanhados de vivas e parabenização à família, contrastando com o comportamento da multidão, que ao ouvir o nome do mancebo que ficou livre, reagia com tristeza e constrangimento, sobretudo os seus parentes.

Mais uma largada de foguetes, anunciavam que a comitiva dos heróis estava prestes a chegar. A multidão eufórica, que não tinha arredado pé do Largo das Eiras, estava curiosa e queria ver ao vivo a chegada dos briosos mancebos. Uns ostentavam com orgulho e altivez na lapela do casaco a insígnia, fita verde, que os declarava aptos para o serviço militar. Esta distinção podia ser um trampolim para uma vida melhor, com mais possibilidades para um emprego, quiçá Polícia, Guarda-Fiscal ou Republicana, ou Exército, ou alguma Repartição Estatal. A fita vermelha era colocada nos inaptos, e notava-se neles um ar de acanhamento, quase vergonha, por suportar na lapela o estigma que os remetia para a exclusão de prestar serviço militar, era como que o apontarem-lhes que eram débeis, ou tinham uma deficiência física, e isso não era tranquilizante para o seu ego.

Depois de dadas as boas-vindas, procedia-se a mais uma largada de foguetes, a convidar toda a povoação para que houvesse união e acompanhassem festivamente os mancebos, que iriam desfilar montados nos seus cavalos, ao som da concertina, pelas ruas da procissão. Findo esse percurso, duma maneira geral, toda a juventude se dirigia para o local onde os esperava o assado, já devidamente confeccionado.

Foto 3 - Tirada em 1968, no Freixial, junto ao rio Côa, durante o assado, onde estão a meia dezena de mancebos que foram nesse dia à inspecção, juntamente com juventude convidada e onde não podia faltar o meu professor da 4.ª cCasse, Zé André, que está de pé no canto direito da foto, com camisa preta.

Manjar ansiosamente esperado, a desejada carne grelhada era um pitéu divinal. A carne é seleccionada, excelentemente grelhada com apuro na brasa, bastante condimentada com um molho assaz apimentado, comida acompanhada de batata bem apaladada acabada de tirar da terra e assada na borralheira, tudo regado convenientemente com molho, iguaria que provoca no mais prudente dos mortais anseios que o incitam a deixar-se seduzir, e a exagerar no beber a boa pinga, que inebria qualquer convidado fazendo-o esquecer as amarguras do dia-a-dia, até surgir um comensal mais inspirado, que se encoraja e ousa desafiar a qualquer um para uma salutar desgarrada… e a partir daqui tudo incita a que a folia seja inflamada!

E toda a tarde era passada em farra agitada, sempre regada de boa pinga em ambiente de animado bailarico, onde não era permitido a nenhuma moça recusar dançar com qualquer que fosse o mancebo dos inspeccionados, uma recusa dessas, era interpretada como ofensa familiar.

Com o surgir da guerra nos anos 1961/1962, a juventude da minha terra abandona a aldeia, em massa, e vai a salto para o estrangeiro. O número dos mancebos que anualmente iam a dar o nome para a tropa caiu das duas ou três dezenas que eram habituais, para menos de meia dúzia.

Foto 4 - Castelo Branco, Dezembro de 1968.

O início da Guerra Colonial praticamente acabou com a tradição festiva do dia da inspecção. Provocou uma reviravolta de 180 graus no valor do conceito de apto e inapto para o serviço militar. É surpreendente, que no espaço de dois ou três anos o conceito de opinião que se tinha da selecção de apto, que era considerado o boníssimo, se tenha invertido o valor, e o apto passou a ser o maligno, pois a partir do início da guerra o que se valoriza, no querer dos familiares e mancebos, é que fiquem inaptos para o serviço militar, a condição de inapto passou a ser o óptimo! São os dinamismos sociais da adaptação dos interesses!

Continuaram-se a comprar vitelos, cabritos e até porcos inteiros, para satisfazer a gula dos falsos profetas que só anunciavam desgraça e tinham bem estudada a arte da mentira, pois aos crédulos muito prometiam, mas nada faziam. Convenciam os inocentes que lhes livravam os filhos da guerra, e alguns caíram na ratoeira, mas cedo se convenceram que nada lhes tinha sido feito. E lá vinham a terreiro os profetas com argumentações abonatórias, utilizando desculpas esfarrapadas…

PS: - Significado do termo “Sortes” aqui utilizado, que creio estar certo, pela ideia que me ficou segundo aquilo que ouvi noutros tempos:

Antigamente, devido ao grande número de jovens que se apresentavam à inspecção, eram muitos os que ficavam aptos, e para os aptos não havia lugar para todos no serviço militar. Para solucionar o excesso dos já seleccionados, procedia-se a um sorteio aleatório entre os que tinham ficado aptos, para assim se apurar aos que cabia a sorte de cumprir o serviço militar.

Um abraço e boa saúde, para todos.
José Corceiro
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7678: Casos de azar e sorte (1): Camarada ferido pelo impacto de granada que não explodiu (José Corceiro)