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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24892: Notas de leitura (1638): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma viagem sobre o trabalho de Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva, uma dissertação de mestrado. Ela retirou um conjunto de histórias da 1ª edição dos contos mandingas, de Manuel Belchior, irá espraiar-se sobre o papel da oratura, a palabra como memória viva de África, tecerá considerações sobre a problemática do conto africano, apresenta alguns dados sobre a História dos mandingas e fala-nos dos temas versados nestes contos do seguinte caráter: religiosos, didáticos, iniciáticos, humorísticos, entre outros. Atenda-se às suas conclusões, o papel dos contos é a transmissão de ensinamentos, os mais novos devem acolher este património de que costumes, crenças e tradições para mais tarde os transmitirem às novas gerações. O objetivo primordial é o saber viver através de uma moral social. Por isso o Griot usa os animais que são tipos morais simbólicos, através deles chegamos ao comportamento humano. Eles são a base da riqueza folclórica dos mandingas, tocador de kora é um transmissor cultural único, os mandingas têm consciência das suas potencialidades no âmbito da cultura e usam-na como mão de mestre. E despede-se do leitor lembrando que esta literatura oral entrou em sério confronto com a educação, com a mobilidade e com a família interétnica. O fosso geracional pode vir a fragilizar esta memória viva de África.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana (3):
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas


Mário Beja Santos

Pomos hoje termo a esta viagem sobre os contos mandingas analisados por Hannelore Felizitas Nadolÿ da Silva. No seu trabalho faz-se uma apreciação do papel da oratura na vertente da literatura oral tradicional, que poder ter a sua envolvente folclórica e musical, o papel da memória viva graças ao narrador, o Griot, foram elencados tanto a função do narrador como a problemática do conto africano, e depois a autora selecionou um conjunto de contos da obra de Manuel Belchior, uns exemplares ou edificantes, outros humorísticos ou envolvendo fábulas de animais, didáticos, iniciáticos, religiosos, etc. Resta-nos agora dar primazia aos contos iniciáticos e proceder à conclusão da autora.

Ela começa com o conto O Caçador e a Serpente, um homem grande está sentado no benten (espaço à sobra de uma grande árvore onde há uma grande esteira, é ali que os homens se sentam para conversar) e fala de uma serpente que atemorizava toda a população, tinha por uso e costume roubar as noivas no dia do casamento; um dia roubou a noiva do mais afamado caçador da região, este pôs-se ao caminho para a matar, anda acompanhado por uma mosca, vão juntar-se animais a esta perseguição, um chacal, uma águia e um elefante; a mosca entrou pela fenda de uma caverna e falou com as raptadas, uma delas esclareceu que a força vital da serpente estava dentro de um ovo, este dentro de uma pomba, este por sua vez na barriga de uma gazela e esta dormia no ventre de um veado, tudo acabava em duas colmeias de abelhas ferozes; havia que partir o ovo mas antes havia que evitar as abelhas e matar sucessivamente todos aqueles animais, com auxílio dos seus acompanhantes, o caçador teve sucesso. Findo o conto, o homem grande perguntou aos netos: “Depois daquilo que vos contei, dizem-me qual foi a ação que vos pareceu mais valiosa, a do caçador, a da mosca, a do chacal, a da águia, a da pedra ou a do elefante?”

A moral da história, como observou o Griot é que na vida todos nós temos um lugar e um desempenho. Segue-se um outro conto intitulado A Pedra com Barbas. Um lobo encontra uma pedra com um belo tufo de cabelos, tal foi a emoção que desmaiou. Escondeu a pedra dentro de uma gruta e ia levando ali alguns animais a pretexto de verem aquela singularidade, mas os animais desapareciam, inexplicavelmente. Um dia, convidou uma lebre que o acompanhou desconfiada, fez perguntas um tanto pertinentes e viu o lobo desmaiar. A lebre compreendeu então a maneira como os animais ficavam à mercê do lobo e veio contar aos outros animais, a pedra com barbas deixou de ser uma arma ao serviço do voraz lobo. Há um terceiro conto intitulado O Moço Viajante. Certo homem com pendores de marabu aconselhou um dos seus filhos a correr o mundo a fim de completar, através de uma variedade de experiências, a educação que lhe dera. Recomendou-lhe que guardasse na memória aqueles factos que acima de tudo lhe merecessem a admiração por ultrapassarem a sua capacidade de entendimento; ele no regresso como mais velho, procuraria ajudá-lo a encontrar para eles a necessária explicação. O moço pôs-se ao caminho, viu um homem a correr, apareceu depois um cavaleiro que não conseguia alcançá-lo. Tínhamos aqui matéria para pedir explicações ao pai; viu numa pradaria dois bois selvagens feridos por flechas, um brutalmente atingido, outro menos, mas era este que gemia mais, e dava-se o caso de ser o menos ferido quem animava o mais ferido, tínhamos aqui mais um caso intrigante que o pai teria de explicar; viu uma cobra sair de um orifício onde depois não pôde entrar, coisa estranha, pensou ele se havia abertura suficiente para a cobra sair também podia nela entrar, mais uma história para contar ao pai; no regresso encontrou uma árvore tombada, altíssima, por mais que tentasse não lhe conseguia encontrar fim, outra situação que merecia explicação do pai. Este fez os seus comentários, valorou os casos de resiliência e lembrou ao filho que nada mais importante há que dispor de uma mentalidade positiva.

A autora socorre-se de um comentário de António Carreira: “Contar à noite é ajudar o dia a suceder à noite”. Para a mentalidade animista, a palabra pelo seu poder mágico, encantatório, tem mais prestígio do que a coisa, e dado que o homem é produto da sociedade em que está inserido, é, portanto, também o homem uma peça do rito. A autora dá ainda exemplos de contos humorístico e históricos e fábulas de animais.

Chegou o momento de tirar conclusões:
“A falsa transparência em que as narrativas se parecem envolver refletem no fundo a sua grande variedade e singularidade. É a razão pela qual o conto deve ser situado no seu exato contexto social e cultural. A razão dos contos é, sobretudo na sociedade mandinga, a de transmitir um ensinamento. Os costumes, as crenças e as tradições transmitem-se através das narrativas, e as jovens gerações assimilam esse contexto mesmo sem se darem conta disso. Os animais são tipos morais simbólicos, tal como nas fábulas. Podemos inferir que o conto exprime de uma forma simbólica, através de determinados temas postos em realce, os problemas que o homem mais intensamente vive e que habitualmente recalca no seu interior. O texto transmitido não será o mesmo que o recebido, pois o executante nele cunhou o seu próprio texto. Nos contos mandingas encontramos traços da sua psicologia, apontamentos dos seus usos e costumes, características da sua índole, do seu temperamento.
Grande parte desta riqueza está, todavia, a ponto de se perder ou de se descaracterizar, tão grande é a força dos modelos universais. Mas os contos podem ser considerados como uma literatura experimental e positiva. Tem pelo menos o valor de documento histórico. Os mandingas devem ter consciência das suas potencialidades no domínio da cultura. Não é, pois, necessário que tenham os olhos apenas virados para o exterior.”


A autora recorda-nos que todo este mundo da literatura tradicional entrou em confronto com a atual sociedade aberta que é a Guiné-Bissau, não só os jovens começaram a frequentar a escola como viajam mais e aumentou impressivamente o número dos casamentos interétnicos. Involuntariamente ou não, gerou-se um fosso entre as gerações precedentes e as atuais.


Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Os Griots e a tradição oral africana
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24884: Nota de leitura (1637): "O universo que habita em nós: estórias com vida”, do nosso camarada José Teixeira, um talentoso contador de histórias e criador de personagens (Luís Graça)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)


Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.

Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.

Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.

Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.

Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.

Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)