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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27506: Notas de leitura (1872): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Esta digressão sobre o tema Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil, entre a Regeneração e a década de 1950, num ensaio de Fernando Costa analisa o papel da História de Portugal e dos Descobrimentos portugueses na ideologia e na conduta das associações e organizações de juventude. Passam-se em revista as organizações de juventude católicas, os escuteiros, as organizações académicas republicanas, a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, a Ação Escolar de Vanguarda e daqui se partiu para a Mocidade Portuguesa, a organização mais duradoura e que aparece na Guiné no tempo do governador Carvalho Viegas, aqui se mostra uma imagem de um desfile em Mansoa, em 1961, era governador da Guiné Peixoto Correia. O período áureo desta Mocidade Portuguesa coincide com os tempos da guerra civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, faz-se a saudação romana, comemora-se a Batalha de Aljubarrota e sempre o 1º de Dezembro, na Praça dos Restauradores, local por excelência que servia de recordatória de como tínhamos sacudido o jugo espanhol, e mostra-se como os heróis dos Descobrimentos eram patronos de todos os eventos desta mocidade. E importa não esquecer o papel marcadamente ideológico que teve Marcello Caetano à frente da Mocidade Portuguesa, exaltando todos os valores da Nação Imperial.

Um abraço do
Mário



Não fomos combater na Guiné pela integridade de Portugal de Minho a Timor?
(Uma abordagem dos valores educativos entre o liberalismo e o Estado Novo) – 3


Mário Beja Santos

O
terceiro e último ensaio desta obra dedicada ao entrosamento ideológico d’Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), tem a ver com o trabalho de Fernando Costa quanto ao papel da História de Portugal e dos Descobrimentos na conduta das associações e organizações de juventude. Não se pode atribuir grande significado a estas organizações, no que toca à religião católica, até ao aparecimento do Centro Académico de Democracia Cristã, caber-lhe-á um papel propulsor na promoção do culto de D. Nuno Álvares Pereira. A Ação Católica Portuguesa dividia-se em setores (agrário, escolar, universitário, independente e operário). A sua atividade encontrou pontos de convergência com a Mocidade Portuguesa, a partir de 1936. Os Centenário de 1940 foram considerados pela imprensa juvenil católica como o ponto alto da História de Portugal, reacendeu-se o culto de Nuno Álvares Pereira e escusado é dizer que o advento do Estado Novo estabelecerá uma relação muito próxima entre o nacionalismo e os valores da moral cristã, isto nas organizações de juventude, mas também na escola.


Os escuteiros não ficarão indiferentes ao culto de o Santo Contestável, a figura de Nuno Álvares e da “Ala dos Namorados” irão aparecer associadas às bandeiras das associações de escuteiros. Aparecerão como patronos dos grupos além do Contestável, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, Afonso d’Albuquerque, Vasco da Gama; e ler Camões é dado como um imperativo. Indo um pouco atrás, o autor trata as organizações de juventude republicanas e direita radical em Portugal, recorde-se o papel dos centros republicanos, os grupos republicanos de Coimbra; e com o 5 de Outubro o novo regime vai contrapor a República à Igreja, a Pátria a Deus e o patriotismo ao cristianismo. “A Pátria assume as características de uma mulher forte, decidida e lutadora, mas ao mesmo tempo consensual, capaz de aglutinar no seu seio a humanidade, a família e o indivíduo.” Nos bancos escolares dá-se grande importância aos grandes feitos da História de Portugal e emergem figuras de referência: Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira, D. João I, o Marquês de Pombal, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, entre outros.

Em julho de 1918, em pleno consulado de Sidónio Pais, é fundada a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira: “acordar as energias dos portugueses, radicando neles, o amor da sua terra e o culto dos seus heróis, pugnar pela formação de caráter, reconstituir a família, base de toda a sociedade organizada, nacionalizar o espírito científico, preconizar a disciplina social, a ordem nas ruas, nos espíritos, na casa…” A Cruzada irá diluir-se com a ascensão do salazarismo e da sua União Nacional. Quando se está a dar o apagamento ideológico da Cruzada, surge a Ação Escolar de Vanguarda, constituído por estudantes nacionalistas das Universidades de Lisboa e Coimbra. Salazar não apreciou o seu radicalismo, este grupo desaparecerá com a constituição da Mocidade Portuguesa, em 1937 assiste-se à unificação do associativismo juvenil nacionalista, há aproximações inequívocas com as juventudes franquista, fascista italiana e até nazi.

A Mocidade Portuguesa rege-se pelos grandes princípios do Portugal Salazarista: a escola, a família, Deus e a Pátria, pretende-se a recuperação das virtudes do Portugal de outrora; busca-se a formação integral do jovem, a escola passa a ser a “sagrada oficina de almas”; haverá fricções graves entre os condutores da Mocidade Portuguesa e a Igreja Católica, o Cardeal Cerejeira não quer que se ocupe o lugar que cabe à igreja na formação do indivíduo, teme o que se estava a passar em Itália e na Alemanha. Os ideais desta juventude da Mocidade Portuguesa prendem-se com os grandes princípios do nacionalismo: D. João I e Nuno Álvares Pereira, a salvaguarda da independência portuguesa face à ameaça castelhana, os heróis do patriotismo passam a ser patronos dos cursos anuais da Escola Central de Graduados da Mocidade Portuguesa.

E voltam a entrar em cenas os heróis dos Descobrimentos, logo o Infante D. Henrique, regressa-se à mítica escola de Sagres, aos conhecimentos geográficos, às descobertas da botânica e da zoologia; é a gesta dos Descobrimentos, não são esquecidos os navegadores Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Diogo Cão e Pedro Álvares Cabral.

Importa recordar que Marcello Caetano foi comissário da Mocidade Portuguesa, e recordou aos graduados as responsabilidades de Portugal como nação imperial, como disse em 1944: “A independência portuguesa permitiu que a Nação prestasse à Humanidade serviços tão grandiosos que a Eternidade os registará. E essa missão não acabou: oito colónias formam o Império de Portugal, onde à sombra da nossa bandeira se prossegue a obra tradicional de desbravamento e civilização. Destino magnífico, o destino português! Somos criadores e educares de povos!”

Coube indiscutivelmente à Mocidade Portuguesa um papel formativo, comprovado em livros, canções nacionalistas e teatro radiofónico, basta atender à lista dos livros recomendados para as bibliotecas, estão presentes autores como João Ameal, Henrique Galvão ou Manuel Múrias. Quando lemos o cancioneiro para a Mocidade vemos como se exaltava o Portugal marinheiro, como Portugal tinha vencido antigos medos, como de Sagres e do Restelo partiam caravelas levando a Cruz de Cristo: “Diu e Malaca, Azamor, Marracuene/ São, para nós, a garantia solene/ Que Portugal, uno e valente,/ Viverá eternamente!”

E temos os compêndios escolares, Maria Cândida Proença deles falou abundantemente.

O autor conclui observando que o projeto da Mocidade Portuguesa estiolou por ter ficado datado no tempo. A Mocidade nasce com a inquietação do que se passa em Espanha e com o advento do comunismo. “O fim da guerra em Espanha, a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e o consequente advento dos Estados Democráticos na Europa Ocidental esvaziaram ideologicamente este projeto que, para ser implementado na prática, necessitava de um longo período de gestação educacional e geracional. Provavelmente, só numa segunda ou terceira gerações é que começaria a poder avaliar os resultados da sua implementação. Isto não invalida o facto da organização nacional Mocidade Portuguesa ter constituído a primeira e única tentativa de integração global da juventude portuguesa numa grande organização patriótica, ao serviço do regime de Salazar.”
Barreiro, festival organizado pela Juventude Operária Católica, no âmbito das comemorações do Dia Internacional da Juventude Operária Católica, 1965, RTP Arquivos
O Presidente Carmona recebe a Cruzada Nun’Álvares, Marcello Caetano é o primeiro à esquerda
O Movimento Escutista chegou a Portugal 1923
Desfile da Mocidade Portuguesa, em Mansoa, 1961, RTP Arquivos
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Notas do editor:

Post anterior de 1 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27483: Notas de leitura (1870): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 5 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27498: Notas de leitura (1871): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27483: Notas de leitura (1870): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Prosseguimos na leitura de Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), a exaltação do passado colonial com os seus heróis-modelo vão integrar a literatura infanto-juvenil, nomeadamente no fim da monarquia constitucional, a I República e as primeiras duas décadas do Estado Novo. Os heróis dos Descobrimentos enfileiram com outros, tais como Viriato, Egas Moniz, Nuno Álvares Pereira. Impor-se-ão vários nomes, tais como Ana de Castro Osório e Virgínia de Castro Almeida, mas será Mariazinha em África o bestseller desta literatura nos anos 1939 e 1940. Estuda-se aqui a imagem do outro, a ação missionária, obviamente que da monarquia ao Estado Novo há nuances no tratamento do outro, pode aparecer como inferior, aberto ou indisponível à civilização, fala-se no bom selvagem; o Estado Novo irá desenvolver o exotismo, os perigos e a fantasia, será o caso da saga da travessia africana de Capelo e Ivens; e há o sistema de valores, o enaltecimento de Nuno Álvares ou do Infante D. Fernando, não será na escola mas fundamentalmente na imprensa que se irá privilegiar o esforço na criação de infraestruturas, desenvolvimento material, serviços de saúde, etc. Deixaremos para o terceiro e último apontamento o modo como os Descobrimentos serão abordados por associações e organizações da juventude, caso da Mocidade Portuguesa.

Um abraço do
Mário



Não fomos combater na Guiné pela integridade de Portugal de Minho a Timor?
(Uma abordagem dos valores educativos entre o liberalismo e o Estado Novo) – 2

Mário Beja Santos

Falando por mim, e seguindo integralmente o que se escreve na obra de ensaio Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), por Maria Cândida Proença e outros, edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, éramos educados nos bancos da escola de que o Infante D. Henrique fora o impulsionador dessa ação patriótica engrandecedora que tornou Portugal imperial – e manda o rigor que se diga que não foi obra exclusiva do Estado Novo, a monarquia constitucional também fez soar esta trombeta.

O que mudou ao longo deste século (entenda-se 1850-1950) é a visão que se pretendeu dar do Infante. “Para os autores oitocentistas o Infante era fundamentalmente um homem de ciência dotado de profundos conhecimentos para a época que teriam sido causa do progresso que pode incrementar nos Descobrimentos marítimos.” Homem sábio, até versado nas matemáticas e conhecedor das artes de navegar. “Os avanços da ciência e a divulgação do positivismo eram favoráveis à apresentação de um herói humanizado longe da visão hagiográfica que mais tarde vinha impor-se.”

Tudo muda no final do século, Fortunato de Almeida introduz uma nova perspetiva, ao atribuir-lhe o plano de encontrar um caminho alternativo para a Índia e até a vocação apostólica de dilatar a fé cristã. Atribui-lhe igualmente um plano em que convergiriam três empresas gigantescas, a conquista territorial em Marrocos, a descoberta do caminho marítimo para a Índia e o descobrimento das ilhas do Atlântico.


Como observa a autora, a mitificação do Infante foi ao ponto de se procurar apresentar as suas ações menos exaltantes como movidas pelo imperativo superior da fé e do espírito de cruzada. Era uma constante dos manuais que o Infante era muito mais movido pela fé do que por motivos comerciais, e exigia-se em termos de Ministério da Educação que se escrevesse à frente do nome do Infante que era mestre da Ordem Militar de Cristo. Foi assim que D. Henrique passou do herói essencialmente laico do positivismo oitocentista para o santo mitificado pelo Estado Novo, passou a ser um exemplo de virtudes a seguir pela mocidade do nosso país.

Igualmente se desmonta a fábula que houve uma Escola de Sagres, que o Infante teria mandado erigir um observatório astronómico em Sagres, Mattoso, célebre autor de compêndios de História, dirá que o Infante estabeleceu uma escola de cosmografia náutica. Toda esta incorreção histórica teve momentos de delírio, como escreveu o Padre Marcelino da Conceição dizendo que a Escola de Sagres era a universidade náutica onde portugueses e estrangeiros aprenderam a navegar cientificamente, os Descobrimentos tinham sido feito com método e com certeza científica. Um dos responsáveis por este disparate foi Oliveira Martins. Não há uma só prova documental de alguma Escola de Sagres.

Outras incorreções aqui apresentadas pela autora prendem-se com o descobrimento e colonização do Brasil, procura-se deixar ciente de que já se conhecia a rota antes de 1500; também há mitificação quanto ao Império do Oriente, veja-se o caso de D. João de Castro, herói mítico da Índia nos compêndios:
“O relato dos cercos de Diu e dos atos de valentia que então se teriam praticado sempre estiveram integrados no conjunto das façanhas que preenchiam a memória oficial transmitida nas nossas escolas. É interessante verificar, porém, que no relato do segundo cerco o episódio das entregas das barbas pelo vice-rei como penhor do empréstimo pedido, apenas surge nos compêndios dos anos 30. Mais uma vez, pela sobrevalorização de um pequeno pormenor, a História era posta ao serviço da transmissão no conjunto de valores que o regime pretendia impor. O Império do Oriente era, nos livros escolares, o símbolo por excelência da grandeza de Portugal, mas, a partir da década de 80 do século XIX, passou a ser também a causa primordial da decadência da raça e do Reino. Neste ponto os manuais acompanham as teses então vigentes sobre a decadência da Pátria. A riqueza, o luxo, o dinheiro fácil, trouxeram consigo a indolência e a corrupção que teriam estado na origem da decadência do Império, acelerada a partir de finais do século XVI.”


Também se procura desmontar a teoria obtusa da nossa ação evangelizadora no Brasil, procurou-se exaltar a imaginação dos homens com a grande aventura dos bandeirantes. E mesmo sobre as campanhas de África e a ocupação do território não se poupou um elogio a Portugal como o melhor povo colonizador, e a prova que o colonizado estava permanentemente agradecido ao colonizador era aquele régulo timorense que se tinha deixado fuzilar para não abjurar Portugal. Em jeito de conclusão, a autora enfatiza a evolução do discurso nos manuais escolares, as tais três etapas em que se ia encaminhando a gesta dos Descobrimentos nos livros escolares falando no maior desenvolvimento científico, durante a monarquia constitucional até chegarmos aos grandes heróis do Estado Novo, como caso de D. Henrique ou de Afonso de Albuquerque que eram sábios, escritores e cientistas.

Feita esta exposição à escola e aos Descobrimentos, Luís Vidigal vai aludir à expansão contada às crianças, dá-nos a génese e desenvolvimento de uma literatura infantojuvenil em Portugal, refere os seus nomes e foca-se em duas autoras: Virgínia de Castro e Almeida e Ana de Castro Osório, como elas irão apresentar este passado grandioso que acabava por ser fonte inspiradora para o presente, os portugueses daqueles tempos, que descobriram e conquistaram o mundo destacavam-se pela valentia e a confiança em Deus. Grandes reis marcaram o sentido da História, no fundo era o moralismo com que pretendia apresentar-se o Estado Novo, como escreveu Virgínia Castro e Almeida: “A maior fortuna de quem obedece está na amizade e na confiança de quem manda. Mandar e obedecer são ofícios iguais aos olhos de Deus. Quem manda mal vale menos que quem obedece bem.”

Temos depois a imagem dos outros, a conceção de que o selvagem, o preguiçoso encontra a sua redenção no trabalho, a ação missionária jogava em vários tabuleiros: a escola, o serviço de saúde, a aprendizagem da religião, mas também aqui houve francos desenvolvimentos. Por exemplo, na I República apostava-se na laicidade, com o Estado Novo marca-se outro conceito de civilização que é a de associar o primitivo à violência e à barbárie, ou seja, houve um humanismo republicano que se pautava por uma grande tolerância e passa-se agora para um ideal de civilização em que as escolas do Império são instadas a apresentar os grandes modelos da sociedade portuguesa. Veremos no próximo apontamento qual o papel da História de Portugal e dos Descobrimentos na ideologia e na conduta das associações e organizações da juventude, neste período de 1850 a 1950.
A mitologia da escola de Sagres
Imagem integrada em Portugal Colonial, nºs 7-8, 1931
Mocidade Portuguesa na Guiné, imagem da RTP Arquivos

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 24 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27460: Notas de leitura (1867): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27478: Notas de leitura (1869): "A Mais Breve História do Ultramar", de David Moreira (Porto, Ideias de Ler, 2025) (Virgílio Teixeira, Vila do Conde)

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27460: Notas de leitura (1866): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2025:

Queridos amigos,
A então Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses convidou três estudiosos a fazer uma apreciação do quadro ideológico entre os inícios da Regeneração e o último ano do Estado Novo em que passámos de ter um império colonial e passámos a ter um Ultramar. O trauma da independência do Brasil acompanhado dos gravíssimos conflitos para a implantação do liberalismo levaram só num período de acalmia que foi o da Regeneração a que tenha sido criado um novo contexto ideológico em torno do passado marítimo dos portugueses; no campo educativo, tomaram-se medidas para a formação da juventude. Para além da educação formal, impõe-se observar a não formal, é o caso da Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira ou da Mocidade Portuguesa, e de uma catadupa de eventos com caráter imperial, caso do tricentenário da morte de Camões, o quinto centenário do nascimento do Infante D. Henrique, o quarto centenário do descobrimento da caminho marítimo para a Índia, a Primeira Exposição Colonial Portuguesa, a Exposição do Mundo Português, etc., etc. Estamos a falar de um livro incrivelmente esquecido.

Um abraço do
Mário



Não fomos combater na Guiné pela integridade de Portugal de Minho a Timor?
(Uma abordagem dos valores educativos entre o liberalismo e o Estado Novo) – 1


Mário Beja Santos

Parece-me útil, ao iniciar a apreciação dos ensaios com o título "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)", edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, trazer à consideração do leitor este parágrafo de mestre Paulo Pinto publicado pela Associação Portuguesa de História, na Circular Informação n.º 93, com o título “2015, Descobrimentos e Memória”:
“A época vulgarmente chamada ‘dos Descobrimentos’ (grosso modo, os séculos XV e XVI) é uma espécie de baú sagrado, de relicário da memória onde o etos nacional compila e guarda sigilosamente um rosário de grandezas de um tempo marcado por feitos de armas, bravura e espírito aventureiro e que permanece incrustada no imaginário coletivo como uma espécie de ‘Idade do Ouro’ de Portugal. A evocação de figuras e datas dessa época excede a dimensão de outros momentos-chave (como a fundação da nacionalidade, os momentos de recuperação de crise ou de ameaça à independência nacional) no sentido em que envolve a relação pioneira que Portugal estabeleceu com outras partes do mundo, outros povos e culturas; não apenas a relação em si própria, mas também no impacto global que teve no contexto da História Universal.”

Os autores desta obra, que vamos analisar, pretendem apreciar o quadro ideológico em que num século se fomentou um discurso pedagógico não só na escola bem como na literatura e associações juvenis, sendo de incluir o contexto familiar e a difusão dada pelos meios de comunicação social aos feitos e heróis dos Descobrimentos. Não obstante, a ideologia imperial tem antecedentes, alguns deles bem marcantes. Mas foi a partir da década de 1850 que se deu a organização do sistema de ensino e emergiram constantemente, obsidiantemente, os ideais da exaltação das virtudes da raça através do enaltecimento dos seus heróis e de regeneração da Pátria através do Império. É esta a viagem em que nos vamos envolver.

O título do ensaio de Maria Cândida Proença é a escola e os Descobrimentos, e cita Eduardo Lourenço recordando-nos que nenhum povo pode viver sem uma imagem ideal de si próprio; a ideia de Pátria indissoluvelmente ligada ao mito da posse do império ultramarino ganhou profundas raízes entre o século XIX e o século XX. A estruturação do sistema educativo foi determinante. A historiadora disserta sobre a evolução do ensino primário, a preponderância do analfabetismo e da iliteracia, como a nossa alfabetização foi tardia e no fundo aparece associada ao período da Regeneração; dá-nos uma apreciação também do que se pretendeu fazer na I República, logo a partir da reforma de 1911, a natureza dos programas escolares, caracterizadamente os de História, Português e Geografia.

Desde o início da segunda metade do século XIX que assistimos a uma gradual melhoria dos manuais, dando realce às conquistas em Marrocos, à figura do Infante D. Henrique, às navegações e descobertas ultramarinas, a Índia e o Brasil, por exemplo. Só na reforma de Jaime Moniz (1894/95) é que a disciplina de História passou a ter um lugar de destaque, lecionada em todos os anos do ensino secundário. Ao tempo, continuava a privilegiar-se uma história factual e eurocêntrica em que os Descobrimentos portugueses mereciam destaque no conjunto da história europeia, as figuras com maior relevo eram o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Fala-se muito no papel civilizador, mas há referências específicas ao comércio e ao papel das especiarias e do ouro. Nessa reforma de Jaime Moniz procurou-se estabelecer uma visão interdisciplinar da História com a Geografia e a Língua e Literatura Portuguesa. Poder-se-á dizer que o nacionalismo republicano não postulava o isolacionismo e chauvinismo que irão ser mais tarde defendidos pela ditadura.

É com a chegada a chegada da Ditadura Nacional, e a partir das reformas de Gustavo Cordeiro Ramos que se vão lançar as bases de uma nova escola em que o ensino assenta numa inculcação de valores e endoutrinamento propagandístico. O leque de heróis alarga-se, o mártir Infante D. Fernando ou D. João de Castro e o célebre episódio do cerco de Diu passam a heróis no primeiro plano. A verdade científica era bastante duvidosa, como no caso da mítica Escola de Sagres. É com Carneiro Pacheco que se dá a primeira e importante reforma do ensino com o regime de Salazar e chega às escolas a missão providencial da nação portuguesa no quadro da história mundial. Com as sucessivas reformas, ganham importância outras abordagens, estudam-se trechos de Fernão Lopes, aparecem as narrativas de viagens, as aventuras do século XVI, a história trágico-marítima; e os Lusíadas é a epopeia que assegura a consagração de que os portugueses se tinham tornado um povo criador de novos povos.

Mas tem interesse voltar a Gustavo Cordeiro Ramos e citar a autora: “a obrigatoriedade de inserir nos livros de leitura adotados oficialmente um conjunto de 113 frases de autores nacionais e estrangeiros que contribuíssem para inculcar nos alunos um corpo de valores subordinados a princípios como a obediência, respeito e amor ao chefe incontestado, amor à pátria e defesa intransigente da unidade da família como célula primária do corporativismo. As 113 frases deveriam ser distribuídas pelos compêndios da 4.ª classe do ensino elementar, das cinco primeiras classes dos liceus, para a 6.ª e 7.ª classes da secção de Letras e para as escolas do ensino técnico e profissional. Tratava-se de frases que enalteciam o patriotismo, a obediência e os valores morais. Entre os autores nacionais encontravam-se Salazar, Sidónio Pais, Alfredo Pimenta, António Sardinha, Camões, Gil Vicente, António Correia de Oliveira e, entre os estrangeiros, Mussolini, Comte, Goethe, Bossuet.”

Em 1936 aparece o livro único, as tendências nacionalistas e apologéticas do regime vão encontrar o seu expoente máximo nos compêndios escolares de António Mattoso. Está montado o cenário para que Pátria e Império sejam a mesma coisa. Vitorino Magalhães Godinho dirá mais tarde:
“Império! Mas não houve um império português. É um dos maiores erros do nosso tempo o esquecermo-nos de que, desde o século XV, atravessamos sucessivas fases de expansão e, por outro lado, de descolonização. Descolonizámos, a meio do século XVI, em Marrocos, no Norte de África. Descolonizámos, nos anos de 1570 e 1680, no Extremo Oriente, em Java e nas outras ilhas da Insulíndia, onde tínhamos estabelecido um império poderoso, com base marítima. Descolonizámos, quando o Brasil conquistou a sua independência e, também aí, tanto se discutiu se a unidade na formação teria ou não uma solução melhor do que a simples independência e rutura. Portanto, um império, mas curiosamente, através da História, são poucos os portugueses que vão para esse império. Algumas centenas ao acabar do século XIX, são 500 a 600 que daqui partem para o Ultramar, ao passo que para o Brasil vão, por ano nessa altura, cerca de 30 mil.”

A equação Pátria e Império envolve o espírito de cruzada e a missionação, há uma declarada omissão de objetivos económicos ou estratégicos, a conquista de Ceuta é apresentada como fazendo parte de um movimento ibérico da reconquista cristã, António Mattoso dirá que os Descobrimentos portugueses eram uma obra de apostolado cristão. “Se, posteriormente, surgiram motivos económicos e políticos, estes traduzem apenas a necessidade de os fazer manter e progredir. O que distingue o império português de quantos o procederam é isto: - Ele não é senão, na sua essência, um instrumento de evangelização do mundo.” Daí o papel fundamental que se vai atribuir ao Infante D. Henrique, ele passa a ser a figura mítica da história da expansão.

Vamos ver seguidamente como a historiografia e a propaganda política irão tratar o Infante de Sagres, a mítica Escola de Sagres. Concluída esta viagem proporcionada por Maria Cândida Proença vamos ver como se processou a expansão contada às crianças.

D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, conjunto azulejar de Jorge Colaço na então Escola Primária de Rodrigues de Faria, em Forjães. O mito do milagre de Ourique, que teria conduzido a uma grandiosa vitória de D. Afonso Henriques sobre cinco exércitos mouros era um dos mais divulgados na historiografia escolar. Através dele, desde muito cedo, se interiorizava nos jovens alunos o caráter da eleição do povo português, protegido por Cristo desde a fundação da nacionalidade

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 21 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27449: Notas de leitura (1865): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27212: Notas de leitura (1837): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Convém recordar o móbil que acompanhou esta compilação de textos, os três volumes de Documentos da Expansão Portuguesa, organizados pelo Vitorino Magalhães Godinho. Falamos aqui no blogue sistematicamente na Senegâmbia, parecia-me, estou em crer, uma descrição das nossas navegações e explorações da costa para se percecionar o que se entende por Grande Senegâmbia. Não é por acaso que aqui se mostra uma carta de 1680, oriunda de França. Não dispúnhamos de meios para fazer comércio em todas as rias e rios, cedo começou a concorrência, e depois da Restauração o país foi confrontado com a dura realidade, ocupava-se, e tenuamente, a Pequena Senegâmbia, franceses e britânicos tinham ocupado vastos territórios que constituem hoje, grosso modo, o Senegal, a Gâmbia, a Guiné Conacri e a Serra Leoa. Foram invocados os principais documentos referentes a esta digressão, há este ou outro ponto que se tratará separadamente, é o caso dos Fulas do Senegal, artigo de Teixeira da Mota.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11

Mário Beja Santos

Entra-se no derradeiro capítulo do livro Documentos sobre a Expansão Portuguesa, Volume III, organizado por Vitorino Magalhães Godinho. O historiador procede aqui ao levantamento documental com referência às navegações na costa ocidental africana, antes e depois da morte do Infante D. Henrique, fica-se agora com uma imagem do que se podia considerar a Grande Senegâmbia, do século XV para o século XVI, entre o continental Cabo Verde, no norte do Senegal, até à Serra Leoa. Falando desta, diz Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo:
“E muitos cuidam que este nome de Serra Leoa lhe foi posto por aqui haver leões, e isto é falso, porque Pedro de Sintra, um Cavaleiro do Infante D. Henrique, que por seu mandado esta terra descobriu, por ver uma terra tão áspera e brava lhe pôs nome Leoa, e não por outra causa; e isto se não deve duvidar, porque é verdade, porque ele mo disse assim.”

Repetidamente Duarte Pacheco Pereira sublinha que em vida de D. Henrique se descobriu só até à Serra Leoa, o que João de Barros confirma, e até Rui de Pina, importa recordar o que João de Barros referiu a propósito do contrato celebrado com Fernão Gomes:
“… o arrendou por tempo de cinco anos a Fernão Gomes, um cidadão honrado de Lisboa, por duzentos mil reais cada ano. Com a condição de que em cada um destes cinco anos fosse obrigado a descobrir pela costa em diante cem léguas, de maneira que no cabo do seu arrendamento desse quinhentas léguas descobertas. O qual descobrimento havia de começar da Serra Leoa, onde acabaram Pedro de Sintra e Soeiro da Costa, que foram antes deste arrendamento os derradeiros descobridores.”
Magalhães Godinho em nota observa que o historiador Jaime Cortesão aventara a hipótese de que até 1460 não só se teria explorado o Golfo da Guiné, como ainda a Costa de África Meridional, argumentação que foi refutada por Duarte Leite.

Ganha realce o que escreveu Cadamosto na Navegação Segunda acerca do Capitão Pedro de Sintra que navegou de região de Buba até ao Cabo da Verga:
“O que tenho referido é o que eu vi, e ouvi no tempo que andei por estas patas: mas após mim foram outros, e principalmente duas caravelas armadas, que El-Rei de Portugal mandou depois da morte do Senhor Infante D. Henrique, cujo capitão era Pedro de Sintra, escudeiro do Infante, percorreu adiante por aquela costa dos negros a descobrir países novos.”
Cadamosto encontrou Pedro de Sintra em Lagos e falara-se muito sobre aquela terra dos Negros, referindo concretamente a ida até aos Bijagós e ao cabo a que puseram o nome de Cabo da Verga, daqui navegaram ao longo da costa cerca de oitenta milhas, descobriram um outro cabo, era o mais alto que nunca tinham visto, puseram-lhe o nome de Cabo de Sagres, também conhecido por Cabo de Sagres da Guiné; referiu Pedro de Sintra que os habitantes da região era idólatras, adoravam imagens de pau com forma humana, tinham alguns sinais feitos com ferro em brasa na cara e cobriam o sexo com cascas de árvore, não dispunham de armas porque não havia ferro e sustentavam-se de arroz, milho e legumes, havia também carne de vaca e cabra.

Por o mar dentro deste cabo estavam duas ilhas, os seus habitantes dispunham de almadias, muito grandes, em cada uma das quais navegam trinta a quarenta homens. “Tem esta gente as orelhas furadas com buracos por todas elas, em que trazem diversos anéis de ouro uns após os outros, todos alinhados; e também têm o nariz furado no meio em a parte inferior, e nele trazem pendurado um anel de ouro do mesmo modo que entre nós trazem os búfalos: e quando querem comer o tiram, usando dele tanto os homens como as mulheres. Dizem também que as mulheres dos reis e senhores, ou dos homens ricos deste país, todas têm nas suas partes genitais do mesmo modo que nas orelhas alguns furos, em que trazem por dignidade, e como prova de grandeza e estado anéis de ouro, os quais tiram e põe em seu arbítrio.”

Prossegue o relato, já se passou o Cabo de Sagres, avistou-se o rio chamado de São Vicente, escreve-se que a costa é montuosa, e por toda ela há bons surgidouros e bom fundo, passa-se o Cabo Ledo, e depois avista-se a Serra Leoa. “Passada toda esta costa da Serra Leoa, daí para diante é tudo terra baixa, e praia com muitos bancos de areia, que entram pelo mar dentro, e andando coisa de trinta milhas mais adiante da ponta daquela montanha, acha-se outro grande rio largo na sua foz, coisa de três milhas, ao qual puseram o nome de Rio Vermelho.”

Pedro de Sintra faz a descrição do que aqui se avista, passa-se depois além do Cabo de Santana, a seguir o Cabo do Monte, e umas boas milhas adiante há um bosque grande com muitas árvores verdíssimas, ao qual deram o nome de Mata de Santa Maria, vieram até às caravelas pequenas almadias, homens nus que traziam nas mãos paus aguçados na ponta, que pareciam uma espécie de dardos, e alguns estavam armados de uns cutelos pequenos, tendo todos duas adargas de couro com três arcos, não se entendia uma só palavra. Entraram em uma das caravelas e destes três retiveram um os portugueses, e deixaram ir os outros; e isto para cumprir com a ordem d’El-Rei, que lhes determinou, que na última terra onde chegassem, não querendo passar mais avante, se porventura os seus intérpretes não fossem entendidos da gente dela, tratassem de lhe trazer, ou por bem ou por mal, alguns dos negros daquele país, para poder fazer neles averiguações, por via dos muitos intérpretes negros que se acham que Portugal; ou mesmo pelo tempo adiante aprenderem eles a falar português.

Regressou-se a Portugal, o homem trazido falou com diversos negros, e por uma escrava de um cidadão de Lisboa houve entendimento. O que o dito negro referiu a El-Rei, por meio daquela mulher, não se entende bem, exceto que entre outras coisas acharem-se na sua terra unicórnios vivos: e assim o dito Senhor tendo retido alguns meses e feito mostrar muitas coisas do seu reino, dando-lhe algumas roupas, com grandes carícias o fez conduzir de novo por uma caravela ao seu país: e deste último lugar não tinha passado navio algum até à minha partida de Espanha, que foi no primeiro dia do mês de fevereiro de 1463. E assim termina a Navegação Segunda de Cadamosto.

Resumindo as notas de Magalhães Godinho, em 1460, ano da morte do Infante D. Henrique, Pedro de Sintra terá chegado ao Cabo Ledo, só depois é que se descobriu a Mata de Santa Maria; Pedro de Sintra explorou numa primeira viagem, talvez em 1460, o litoral da Terra dos Negros, desde o Rio Geba até à ponta ocidental da Serra Leoa (o Cabo Ledo). A viagem seguinte de Pedro de Sintra terá tido a iniciativa do Rei, Pedro de Sintra esteve mais tarde ao serviço do rico burguês lisboeta Fernão Gomes. Mais observa Magalhães Godinho que numa carta portuguesa de cerca de 1471 se faz referência ao Rio Grande (certamente do Geba), ao Rio Buba e ao Rio Tombali até ao Cabo da Verga. Noutra carta de 1486 já se fala dos Nalus, de palmares, Rio de Nuno e Cabo da Verga; e confronta estas cartas com os textos de Duarte Pacheco Pereira e de Valentim Fernandes, concluindo que a exploração da costa por Pedro de Sintra foi muito sumária.


Vitorino Magalhães Godinho, Ministro da Educação e da Cultura, imagem dos arquivos da RTP, com a devida vénia
Mapa da Serra Leoa, 1732
Mapa de 1899 mostrando territórios dos Biafadas para lá do Geba
Carta de África e das ilhas de Cabo Verde por Sanson, cerca de 1680
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Notas do editor

Vd. post de 5 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27197: Notas de leitura (1836): O uso do napalm na guerra da Guiné, na Revista de Relações Internacionais de Junho de 2009 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Continuando na companhia de Usodimare e de Cadamosto, pareceu-me útil transcrever o que eles dizem do Cabo Verde continental, isto na Primeira navegação, na Segunda irão referir a descoberta de ilhas do arquipélago, matéria que não é consensual entre os historiadores da expansão portuguesa. A navegação Segunda prende-se com a descoberta das ilhas de Cabo Verde, seguramente que nalguma delas puseram os pés em terra, como mencionam: "Mandei dez homens bem providos de armas e bestas que deviam subir à dita ilha por uma parte onde ela era multuosa e alta, para ver se achavam alguma coisa ou se avistavam outras ilhas. Quando estiveram na montanha, houveram vista de três outras ilhas grandes, das quais não nos tínhamos apercebido." Viajaram depois até ao rio Casamansa. Peço a atenção do leitor para as notas de Vitorino Magalhães Godinho. O próximo e último artigo prende-se com a navegação de Pedro de Sintra. Lembro ao leitor mais interessado que na internet, pondo "relações comerciais com a Senegâmbia nos séculos XV e XVI", encontrar-se-ão textos, alguns deles produzidos em universidades brasileiras.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10

Mário Beja Santos

Para concluir a Primeira navegação de Usodimare e de Cadamosto, importa fazer referência à questão da descoberta do Cabo Verde, escrevem o seguinte, dando a possibilidade ao leitor de distinguir o Cabo Verde continental das ilhas pretensamente descobertas por eles e que gozam do nome de Cabo Verde:
“Este Cabo Verde chama-se assim, porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, um ano antes que eu fosse a estas partes, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas por todo o ano; e por esta causa lhe foi posto o sobredito nome, assim como o de Cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este Cabo é muito belo e alto de terreno e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro: sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros, casas de palha, todas junto à costa e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal. Pegam com ele alguns bancos, que saem pelo mar, quase meia milha; e tendo-o dobrado achámos três ilhas pequenas não muito longe da terra, desabitadas, e abundantes de árvores viçosas, e grandes: pelo que tendo necessidade de água deitámos âncora em uma delas, que nos pareceu maior, e mais frutífera: para ver se ali achávamos alguma fonte; porém descidos em terra não vimos senão um lugar onde parecia nascer alguma água, que não nos pode servir.

Nesta ilha achámos muitos ninhos e ovos de diversas árvores, para nós desconhecidas: e aqui estivemos todo aquele dia pescando com redes e anzóis grandes; e apanhámos infinitos peixes, e dentro deles dentais e douradas grandíssimas do peso de doze a quinze libras cada uma. No dia seguinte partimos fazendo-nos à vela; e seguindo a nossa derrota, navegando sempre à vista de terra, notámos que além de Cabo Verde se mete um golfo para dentro; e a costa é toda terra baixa, e abundante de belíssimas e grandessíssimas árvores verdes, que não perdem a folha em todo o ano, como acontece às nossas; mas nasce primeiro a folha, antes que a outra caia: vão estas árvores até sobre a praia, a um tiro de besta, de sorte que parece que vem a beber no mar, o que é belíssimo para ver: e segundo o que eu entendo, apesar de ter navegado por muitos lugares do Levante e Poente, nunca vi terra mais bela do que esta me pareceu, e é toda banhada por muitos rios e regatos pequenos e de pouca monta, pelos quais não podiam entrar navios grandes.”


E vamos agora iniciar a navegação Segunda, a que vai levantar grande discussão entre historiadores. Dá-se a explicação do acordo estabelecido entre Cadamosto e Usodimare, para armar uma caravela, partiram de Lagos, fizeram-se às ilhas Canárias, vão por aí fora, viajaram pelos rios da Senegâmbia, depois do rio Gâmbia saíram para o mar, viram ser aquela terra muito baixa com árvores verdes e belíssimas, navegaram dois dias pela costa sempre à vista de terra, descobriram ao terceiro dia a foz do rio de razoável grandeza, mas muito menor que o rio de Gâmbia. Foram intérpretes a terra para saber notícias do país, voltaram dizendo que o rio se chamava de Casamansa, era o rio do Senhor de Casamansa que habitava rio acima coisa de trinta milhas, notou-se que do rio Gâmbia até ao de Casamansa eram coisa de vinte e cinco léguas que fazem cem das milhas portuguesas. Findamos aqui a descrição da navegação Segunda.

Passa-se para o capítulo sexto deste volume III, temos a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à mata de Santa Maria, fica-se assim com a dimensão daquela área que durante séculos se designou Senegâmbia. O texto invocado por Vitorino Magalhães Godinho é proveniente do Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira:
“E muitos cuidam que este nome de Serra Leoa lhe foi posto por haver ali leões, e isto é falso porque Pêro de Sintra, um cavaleiro do Infante D. Henrique que por seu mandado esta terra descobriu, por ver uma terra tão áspera e brava lhe pôs o nome Leoa, e não por outra causa. Esta serra tem uma ponta que há o nome Cabo Ledo; e esta serra Leoa se aparta do círculo da equinocial em ladeza oito graus, e estes mesmos graus se levanta ali o polo ártico sobre o círculo do hemisfério… e até aqui descobriu o virtuoso Infante D. Henrique.

Muitos benefícios tem feito o virtuoso Infante D. Henrique a estes reinos de Portugal, porque descobriu a ilha da Madeira em 1420 e a mandou povoar e mandou à Sicília pelas canas de açúcar, que mandou plantar na Madeira, os mestres sicilianos ensinaram a fazer aos portugueses; a qual ilha agora rende trinta mil cruzados de ouro ao mestrado de Cristo; isso mesmo mandou à ilha de Maiorca por um mestre Jácome, mestre de cartas de marear, na qual ilha primeiramente se fizeram as ditas cartas, e com muitas dádivas e mercês o houve nestes reinos, o qual as ensinou a fazer àqueles de que os que em nosso tempo vivem aprenderem; isso mesmo fez povoar as ilhas dos Açores, a que antigamente Górgonas se chamaram, tudo isso este virtuoso príncipe com outras muitas boas coisas tem feito, que escuso dizer, além de descobrir Guiné até à Serra Leoa, da qual serra pusemos aqui a pintura pelo natural por se melhor entender; e aqui faz fim o primeiro livro.”


Recorde-se que Duarte Pacheco Pereira fala das etiópias da Guiné, para o historiador Magalhães Godinho, o Esmeraldo, redigido de 1505 a 1520 (?), não ressuma já a frescura das impressões diretas e singelas, antes respira o ambiente de uma lenda henriquina já formada. Lembra também que a cana sacarina era já cultivada na Andaluzia e no Algarve nos princípios do século XV e foi introduzida no condado de Coimbra pelo Infante D. Pedro. “Não é, porém, inverosímil que D. Henrique tenha contratado mestres da Sicília, não propriamente para ensinarem o fabrico do açúcar, mas para ensinarem aos portugueses os processos mais aperfeiçoados nesse fabrico.”

Como já se referiu, as notas de Magalhães Godinho são a prova provada que mudara a escola historiográfica portuguesa. O cientista não se escusa a clarificar o seu pensamento:
“Vê-se como é tacanho o critério nacionalista, patrioteiro, de que frequentemente tem enfermado a história da expansão nos séculos XV e XVI, e isto não só da parte de Portugueses (em reação, aliás, contra o roubo das suas lídimas glórias de que por vezes tem sido objeto), mas também da parte de Italianos, etc. A história tem de estar acima das paixões locais, regionais, nacionais ou rácicas, ou de classe, porque deve tender à validez universal. Ora, o que as fontes nos mostram é que, como não podia deixar de ser, não só houve estrangeiros a participar nas navegações portuguesas, como ainda estas só foram possíveis pela utilização de um cabedal de conquistas autenticamente internacional. Assim, os barcos portugueses aproveitaram a vela triangular latina, que aparecera no fim da Alta Idade Média, o leme, invenção do século XIII, a vela redonda, que remonta pelo menos ao quarto milénio antes de Cristo, os processos de construção naval que desde o Calcolítico se foram criando e aperfeiçoando; a náutica astronómica, criação portuguesa, é a convergência de descobertas e invenções como a do astrolábio e a das tábuas solares e a do sistema cosmográfico, que ascendem à civilização helénica, passando pelos muçulmanos e judeus medievais; e a bússola, outro instrumento basilar da navegação do mar alto, não vem da longínqua China ou Tartária, não foi adotada e modificada pelos nautas mediterrâneos e destes não é que passou à Península Ibérica? A cartografia portuguesa nasce das cartas mediterrâneas, dos dois grandes centros das Baleares-Catalunha e da Itália, o que não a impediu – antes foi condição, alicerce – de lançar o seu voo próprio.”

Quanto aos seus comentários ao Esmeraldo, recorda Duarte Pacheco Pereira acentua fortemente os lucros que a Nação retirou das navegações; “mesmo que D. Henrique tivesse falecido com défice provocado pelas viagens da sua iniciativa – o que de modo algum está provado – percebe-se claramente que a sua ação podia visar, visava de facto objetivos económicos; é claro que o proveito almejado podia ser não pessoal ou da sua carta, mas o do Reino em geral ou de certos grupos em especial: porque é que se há de erradamente supor que toda a política económica visa o enriquecimento de quem a traça e executa?”

No próximo e último texto concluir-se-á este capítulo do volume III sobre a exploração do litoral africano, falando de Fernão Gomes, de Pedro de Sintra… e das notas sempre preciosas deste grande historiador.


Vitorino Magalhães Godinho, Ministro da Educação e da Cultura.
Imagem dos arquivos da RTP, com a devida vénia
Vista de Praia, Cabo Verde, no século 18. Imagem publicada na obra A Voyage to Cochin China, in the years 1792, and 1793 ... de Sir John Barrow.
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 29 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)

Último post da série de1 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27173: Notas de leitura (1834): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
A despeito de confirmadas imprecisões e erros, as navegações de Cadamosto e Usodimare constituem um documento do mais alto significado: pelo quadro elogioso do Infante D. Henrique e por uma certa cronologia de acontecimentos que levam à exploração da costa ocidental africana; por revelarem designações em termos geográficos comuns na época, caso da baixa Etiópia e da Terra dos Negros; pela descrição do rio chamado Senegal, "antigamente Níger" e pela preciosa descrição que se faz do reino do Senegal, das crenças, trages e costumes, guerras e armamento destes povos. Veremos nos próximos textos o que nos dizem sobre a descoberta de três ilhas de Cabo Verde, assunto polémico, veremos em toda a extensão a navegação segunda e a exploração do litoral africano desde o rio Geba. Não hesito em dizer que se trata de documento fundamental para a história de três países: Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9

Mário Beja Santos

Este terceiro e último volume de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, por Vitorino Magalhães Godinho, dá um especial realce às navegações de Usodimare e de Cadamosto. Vimos no texto anterior como Cadamosto escreve o encontro com o Infante D. Henrique, segue-se a Navegação Primeira e como chega ao reino do Senegal, escrevendo o seguinte:
“O Primeiro Reino de Negros da baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal; os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e países acima declarados, é terra baixa, até Cabo Verde, que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra a parte de Levante com o país dito Tucurol, da parte do sul com o reino de Gâmbia, do poente com o mar oceano e do norte com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros. Neste reino do Senegal não se sucede por herança; mas há diversos Senhores, os quais às vezes por ciúme que têm uns dos outros se ajuntam três ou quatro e elegem um rei a seu modo. Este rei dura o tempo que apraz aos ditos Senhores; e às vezes o depõem à força, e outras ele se torna tão poderoso que se defende deles; o seu Estado não é permanente e firme como é o do Sultão do Cairo; antes está sempre em suspeitas de ser morto, ou expulso. Este rei não é semelhante aos dos cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem, e pobríssima, e não é nele cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha.

O rei não tem rendimento certo de tributos, mas os Senhores deste país em cada um ano para o terem amigo lhe fazem presente de alguns cavalos, que são muito estimados por haver falta deles; e não só tem este fornecimento, mas também outros de animais, como vacas e cabras. Mantém-se também este rei com roubos, que manda fazer de muitos escravos, tanto no seu país, como nos vizinhos, dos quais se serve por muitos modos; também vende escravos aos Azenegues e marcadores árabes, que os trocam por cavalos, e igualmente aos cristãos. É lícito a este rei ter quantas mulheres quer, e assim também a todos os Senhores, o rei tem sempre de trinta para cima
[descreve com detalhe a vida familiar e a alimentação daquele povo].

A religião destes primeiros Negros em Maometana; mas não estão bem firmes na sua crença, como os mouros brancos, e principalmente o povo miúdo. Os Magnates passam por Maometanos têm junto de si alguns dos ditos Azenegues, ou Árabes, que acaso aí chegam, e lhes dão alguma instrução, dizendo-lhes que seria grande vergonha serem eles Senhores e viverem sem nenhuma lei de Deus.

Quase toda esta gente anda continuamente nua, e todo o seu vestuário consiste em um couro de cabra posto em forma de bragas, com que se cobrem; porém os Magnates, e aqueles que podem, vestem camisas de pano de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros, e as suas mulheres vestiam algodão, e fazem panos da largura de um palmo, e não sabem fazê-los mais largos, por não terem pentes para tecê-los, e assim cosem quatro ou cinco daqueles panos juntos quando querem fazer algum trabalho largo.

Os homens destes países fazem muitos serviços femininos; como são fiar, lavar panos e outras coisas. Sente-se continuamente um grande calor e quanto mais se caminha para além, tanto maior é; e comparativamente em janeiro não faz tanto frio naquele reino que o não faça maior no mês de abril nestas nossas terras. Os homens, e mulheres deste país são limpos de si, porque lavam todo o corpo quatro ou cinco vezes cada dia; mas no comer são porcos, e sem nenhuma decência; nas coisas de que não têm prática são simples e pouco sagazes: mas nas coisas de que a têm são espertos como qualquer de nós. São de muitas palavras, e nunca acabam de falar, e comummente são mentirosos e enganadores em extremo; apesar disso são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer forasteiro que chegue a sua casa por um jantar, ou uma noite; e isto sem estipêndio algum.

Estes Senhores Negros guerreiam muitas vezes uns com os outros, e também algumas vezes com os seus vizinhos; as suas guerras são a pé, porque há pouquíssimos cavalos que lá não podem viver pelo grande calor; não trazem vestidura de armas pelas não terem, e mesmo pelo grande calor não poderiam suportá-las, somente têm escudos redondos e largos, os quais são feitos de couro de um animal chamado anta, que é duríssimo de penetrar; e para ofender têm quantidades das azagaias, que são uma espécie de dardos ligeiros, e atiram-nos com muita velocidade, porque são grandes mestres disso; têm estes dardos um palmo de ferro lavrado, com barbas miúdas, postas muito subtilmente por diversos modos; e onde entram, ao puxar para fora rasgam as carnes, com aquelas barbas, de maneira que são muito más para ofender; também trazem alguns alfanges mouriscos, à maneira de meia espada turca, isto é, voltadas como arco, e são feitas de ferro sem nenhum aço, porque no reino de Gâmbia de Negros, que jaz mais além, tiram o ferro, de que fabricam estas armas; mas não tem aço como já disse, ou verdadeiramente, se o há onde há ferro não o conhecem, ou não têm indústria para fazê-lo. Usam também de outra arma cravada em uma haste, à maneira de um espontão dos nossos, e não têm outras. As suas guerras são muito mortíferas, por estarem desarmados, e os seus golpes nunca são dados em falso, matando-se como se fossem feras; são muito atrevidos e bestiais, e em qualquer pequeno perigo deixar-se-ão antes matar que fugir, ainda podendo.

Não têm navios, nem nunca os viram, salvo depois que tiveram conhecimento dos portugueses. É verdade que aqueles que habitam sobre este rio, e alguns dos que estão junto ao mar têm umas canoas, isto é, almadias de um pau só, as maiores das quais levam três ou quatro homens quando muito; e com estas vão às vezes a pescar, e atravessam o rio, indo de um a outro lugar; e estes tais Negros são os melhores nadadores do mundo pela experiência do que vi fazer.”


A seguir, Cadamosto vai descrever ao pormenor o país de Budomel.

Passando para outra matéria, iremos nos próximos textos fazer referência às ilhas descobertas de Cabo Verde, à Navegação Segunda de Cadamosto e Usodimare, terminando com a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à Mata de Santa Maria.


Vitorino Magalhães Godinho
Alvise Cadamosto apresentado ao Infante D. Henrique
Mapa das Ilhas de Cabo Verde e da Costa da Guiné, 1771
Mapa do Rio Gâmbia e arredores, cerca de 1732

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 8 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Não deixa de ser curioso observar que no exato momento em que o regime do Estado Novo alçaprema a figura do Infante D. Henrique como o supremo condutor da gesta dos Descobrimentos, Vitorino Magalhães Godinho irá publicar três volumes de documentos sobre a Expansão Portuguesa onde evidencia pelo rigor das fontes que o Infante D. Pedro era fortemente crítico das cruzadas no Norte de África e que estimulara as navegações pela costa ocidental africana. Rapidamente se desenvolveram as operações comerciais, e daí a escolha que procedi à viagem de Gonçalo Afonso de Sintra, desastrosa, pois antes do Cabo Branco foram atacados em terra e massacrados. Caberá a Nuno Tristão chegar à Terra dos Negros, terá chegado ao norte da Senegâmbia, na sua primeira viagem não chegou a atingir o Cabo Verde, posteriormente terá encontrado a morte no rio Gâmbia.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6

Mário Beja Santos

Os três volumes de documentos sobre a Expansão Portuguesa, da autoria de Vitorino Magalhães Godinho, publicado na década de 1940, fazem parte do momento de viragem da historiografia portuguesa dos Descobrimentos, constituem uma rotura com a hagiografia, a pura especulação, o aproveitamento idolátrico da figura do Infante D. Henrique, isto no exato momento em que o Estado Novo procurava fazer do Infante uma figura sublime, o maior missionário da civilização ocidental.

Aqui se apresentou nos textos anteriores uma seleção que se considera representativa do Volume I. Fez-se a escolha do Volume II de um texto do Zurara sobre a regência de D. Pedro e a exploração da Costa Africana e os respetivos comentários e a viagem de Gonçalo Afonso de Sintra, a chegada de Nuno Tristão à Terra dos Negros.

Diz Zurara que dos anos seguintes a 1436 não acha coisas notáveis dignas de ser contadas. Voltou-se ao Rio do Ouro por peles e azeite dos lobos marinhos, em 1437 o Infante D. Henrique passou-o em Tânger, no ano seguinte morreu o Rei D. Duarte, seguiram-se muitas discórdias, o futuro Rei D. Afonso V tinha então seis anos, o Infante D. Henrique trabalhou muito para haver sossego e paz, foram anos em que não se enviaram navios. Vale a pena ler atentamente os comentários do historiador. No seu testamento, o Rei D. Duarte deixava indicado que durante a menoridade do filho, a regência deveria ser exercida pela Rainha D. Leonor, muito ligada às Casas de Aragão e Castela, o seu Governo representava uma ameaça de intervenção de política portuguesa; a Rainha viúva era afeta a D. Henrique e desafeta a D. Pedro. Foi nestas circunstâncias que as cidades do país e a burguesia nacional impuseram primeiro a associação de D. Pedro ao Governo e posteriormente a passagem da regência para as suas mãos.

O triunfo da burguesia em 1440 abre um período de intensa exploração marítima que fecha em 1448 com o fim da regência e a vitória da nobreza. “Afigura-se-me que são as condições sociopolíticas da época da regência que explicam o impulso dado às navegações e o abandono da política marroquina. Não é de forma alguma à iniciativa de D. Henrique, mas à política de D. Pedro e à iniciativa dos burgueses que se deve fundamentalmente esta decisiva expansão comercial-marítima. O papel de D. Henrique nos conflitos que precederam e seguiam à regência de D. Pedro é muito equívoco. Sem dúvida ao lado da nobreza e contra as cidades, procurou firmar a sua situação apresentando-se como árbitro dos partidos, conseguiu do irmão importantes concessões para o acrescentamento da sua casa senhorial, e abandonou-o em Alfarrobeira quando o peso de uma intervenção enérgica o teria salvo muito provavelmente.”

O historiador elenca que dispomos para o estudo das navegações entre 1440 a 1448: a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara; Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas, de Diogo Gomes; o trabalho de Jerónimo Münzer, muito semelhante à Relação de Diogo Gomes; o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, de escassíssimas indicações; a Descrição da Costa de Ceuta à Guiné, de Valentim Fernandes, baseado em Zurara e Diogo Gomes; a Ásia, de João de Barros, resumo tardio de Zurara.

Vejamos agora a viagem de Gonçalo Afonso de Sintra. O historiador faz referência a João de Barros e Valentim Fernandes, o Infante mandou armar um navio em 1445, o seu capitão era Gonçalo de Sintra, levava consigo um mouro azenegue para lhe servir de intérprete, esperava ir à ilha de Arguim que está à frente do Cabo Branco. Sucede que antes de chegarem ao Cabo Branco numa angra fugiu o intérprete, Gonçalo de Sintra meteu-se num batel com doze homens, acabou num esteiro, o batel ficou imóvel, foram atacados pelos mouros, houve carnificina, salvaram-se três marinheiros, chegaram sãos e salvos a Portugal, façanha extraordinária.

Valentim Fernandes irá corroborar esta versão. Na sequência deste texto, o historiador alude à chegada de Nuno Tristão à Terra dos Negros. Fora enviado numa caravela, a mando do Infante, dirigiu-se à Terra dos Negros, antes passaram por terra areosa e maninha, sem árvores, e depois avistaram palmeiras, árvores verdes e formosas e campos de terra. Nuno Tristão segue num batel a terra, mas as vagas eram grandes e perigosas, foi forçado a regressar ao navio. Mais adiante chegou àquelas ilhas onde Lançarote antes tivera uma presa, chegado a terra um mouro já idoso disse-lhe onde estava uma povoação a cerca de duas léguas, Nuno Tristão temeu que seriam muitos os moradores daquela povoação, depois de evitar avançaram, apanharam moços e mulheres, não houve combate. Isto vem descrito na crónica de Guiné de Zurara. Magalhães Godinho tece comentários, vale a pena citá-los devido à sua grande importância.

A Terra dos Negros é, na toponímia quatrocentista e quinhentista, uma das grandes regiões em que se divide o continente africano. Do Mediterrâneo ao Golfo da Guiné, Leão o Africano enumera a Barbária, a Numídia, a Líbia e a Terra dos Negros. Esta região abrange essencialmente as grandes bacias do Senegal e do Níger, sobretudo nas zonas de floresta tropical.

O historiador deplora a escassez de informações prestadas por Zurara. Ignora-se se os navegadores seguiram à vista de terra, se reconheceram enseadas, promontórios, rios e baixos ou se velejaram ao largo durante algum tempo. Zurara não precisa que pontos da costa atingiu Nuno Tristão. Armando Cortesão depreendeu a descrição que se tratava do Cabo Verde. Damião Peres afirma que a viagem se alongou para além da foz do Senegal. Sem dúvida que o rio Senegal divide, segundo escreve Cadamosto, a terra seca e árida dos azenegues da terra fértil dos negros, o que também é corroborado pelo Esmeraldo e por João de Barros. A descrição não faz supor que tenham ultrapassado o Senegal, resulta de existirem arvoredos e negros ao norte do rio. Nuno Tristão deverá ter chegado a um lugar que está situado antes do rio Senegal.

Foram estes os textos fundamentais que selecionei do Volume II, vamos seguidamente para documentos constantes no Volume III.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 8 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27112: Notas de leitura (1828): "Histórias de Amor em Tempo de Guerra, Guiné 1963-1974", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2017 (Mário Beja Santos)