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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Creio que recordam o que o historiador Vitorino Magalhães Godinho referiu no prefácio desta edição de 1943, o rigor histórico exige que se inventariem as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII: fontes narrativas, diplomáticas, documentos diversos, obras técnicas e fontes cartográficas. Fontes para entender o início da presença portuguesa da Senegâmbia são, portanto, a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara, Ásia, década I, livros I e II, por João de Barros; quanto às fontes narrativas, são de crucial importância as Navegações de Cadamosto, o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira e esta Relação dos descobrimentos, redigida por Martinho da Boémia sobre a narrativa oral de Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) que fora navegador do Infante D. Henrique. É certamente posterior a 1482, observa Magalhães Godinho. Diogo Gomes fez o seu relato quando já atingira os 80 anos, devia ter a memória enfraquecida, não parecendo de confiança nas datas. E ignora-se o que Martinho da Boémia teria incluído da sua lavra ou que tinha esquecido. No entanto, esta fonte é primacial e para certos casos única.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4

Mário Beja Santos

Recordo ao leitor que a recolha documental de Vitorino Magalhães Godinho sobre documentos da expansão portuguesa, e no caso particular da Guiné, revela-se como obra de referência. Veja-se, a título de exemplo, A Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas, de Diogo Gomes, autor largamente versado aqui no blogue, o que se publica é uma versão traduzida do latim e que foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia em 1900, é um extenso documento que aqui se dará a estampa em sucessivos trechos:
“De que modo foi achada a Etiópia Austral a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, a qual se chamava Agizimba, agora, porém, chamada Guiné pelos descobridores portugueses até ao dia de hoje, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho da Boémia.

Em 1416, mandou o Senhor Infante D. Henrique um cavaleiro nobre, de nome Gonçalo Velho, para além das ilhas Canárias, ao longo da beira-mar, desejando saber a causa de tão grande corrente. O qual navegou além e achou mar tranquilo e sereno junto da costa de África ou da Líbia, e chegou a um lugar que se chama agora Terra Alta. Na praia daquela terra havia apenas areia, não se achavam aí árvores nem ervas; a qual terra arenosa passa ao pé dos Montes Claros e vai até ao Monte Sinai, dividindo os homens brancos e pretos uns dos outros. Este mar arenoso, os cartagineses, agora chamados tunísios, em caravanas, levando às vezes até 700 camelos, atravessaram até ao lugar chamado Tambucatu, e a outro país, Cantor, em demanda do oiro arábico que aí se encontra em grande cópia, dos quais homens e animais muitas vezes apenas voltou a décima parte.

O que ouvido pelo Infante D. Henrique o moveu a inquirir daquelas terras pela água do mar, para ter comércio com elas e para sustentar os seus nobres. Este cavaleiro, chegando à presença do Senhor Infante lhe anunciou que achara o mar sereno, e sempre vento fresco do lado do norte, e grande cópia de pescaria em toda aquela costa. O Infante então mandou preparar um navio e dele fez capitão o vedor da sua Casa chamado Afonso Gonçalves Baldaia. E com ele mandou dois mancebos nobres com dois cavalos, os quais, como chegassem além da Terra Alta, foram enviados terra dentro, no lugar agora chamado Angra dos Cavalos.

E cavalgaram levando cada um consigo mantimentos para alguns dias; e o navio continuando a seguir aquela costa os esperava em lugar marcado. Os cavaleiros marcharam por nove dias, acharam 22 homens sarracenos, de cor avermelhada, usando azagaias e gomias, que pelejaram com estes dois. Os cavaleiros, porém, desejavam apanhar um para que deles soubessem o sítio onde estavam. Um destes nobres chama-se Heitor Homem, e o outro, Lopo de Almeida. E um dos sarracenos feriu o dito Lopo de Almeida em um pé, e Heitor Homem, furioso, matou o sarraceno.

Naquele dia, pela primeira vez, correu o sangue dos cristãos na terra da Guiné. Estes dois cavaleiros eram de 20 anos de idade. Por causa do escurecer da noite deixaram de lutar. No outro dia, porém, nenhum sarraceno apareceu.

Os dois cavaleiros, seguindo os vestígios da sua passagem na areia, voltaram para a costa chamada Rio do Ouro, onde acharam muitas redes feitas de cascas de árvores, porque naquele lugar há grande pescaria. Estes nobres, procurando o seu navio, percorreram doze léguas até encontrá-lo; os do navio já queriam voltar a Portugal, julgando que eles tivessem morrido.

Aí deixaram os cavalos, que estavam quase mortos, subiram para o navio, e vieram a Portugal, ao Senhor Infante, que ficou em extremo alegre, porque agora já sabia que a terra era habitada. Ele admirava as redes que trouxeram feitas pelos homens daquele país. Também eles contaram de como na barca entraram no rio agora chamado Rio do Ouro, e no meio deste rio acharam uma ilha de areia onde estava multidão de lobos marinhos. E à ilha tinham chamado Ilha de Lobos; e destes lobos marinhos trouxeram muitos a Portugal ao Senhor Infante, que muito se admirava.

Depois disto o Senhor Infante foi ocupado com outros negócios, durante alguns anos, nos quais não tratou de Guiné, porque o rei de Portugal, D. Duarte, seu irmão, com grande exército e armada passou a Tanja, cidade fortíssima; e na verdade nada fizeram de importância militar.

E depois de não pouco tempo o Senhor Infante mandou um navio pequeno ao Rio do Ouro, para ver se poderiam apanhar um destes habitantes locais que tinham encontrado, e mandou ao piloto ou capitão do navio que permanecesse aí na Ilha dos Lobos. E assim ficaram aí por uns três meses e mataram muitos lobos marinhos que trouxeram consigo.

Vendo que nada aproveitavam, voltaram a Portugal e de tudo deram nova ao Senhor Infante, que ficou contente porque tinham achado rasto de homens. Logo o Senhor Infante fez armar duas caravelas e mandou por capitão-mor um certo cavaleiro já idoso chamado Nuno Tristão, e na outra caravela foi por capitão António Gonçalves, muito moço, que depois teve castelo em Tomar, com outros moços da câmara do Senhor Infante, e mandou que fossem ao Rio do Ouro; de noite foram em batéis até perto da praia, e pela manhãzinha viram uns homens que vinham a um poço para tirar água. Alegres entraram em terra com as suas armas, e tomaram treze homens e mulheres; os outros, porém fugiram. Entre eles tomaram o homem velho e respeitável chamado Adavu, e alguns eram avermelhados e outros pretos. E assim contente o capitão-mor armou cavaleiro menor chamado Antão Gonçalves, que era parente do capitão da ilha da Madeira.

E voltaram a Portugal ao Senhor Infante que se alegrou com eles. E por estes teve começo o conhecimento daquele país, de como era povoado; e diziam que todos os habitantes próximos da costa marítima comiam peixe quase cru. E os que habitam na terra têm tendas ou barracas e se chamam Árabes, e vivem vida bestial, e comem carnes quase cruas e leite, porque naquela terra não há árvore alguma nem erva, e comem as carnes, quando as podem ter, aquecidas ao sol.

Ali têm muitas avestruzes e gazelas, são animais vulgarmente chamados gatos da Algalia.

E o Senhor Infante por estes soube do caminho para ir a Tambucotu, e disseram-lhe muitas falsidades. E disseram que os árabes indo de Adem para Tambucotu levam às vezes 400 a 500 cavalos, e acham no caminho um grande monte e disseram que aquela serra era povoada de gente admirável, como que os homens têm cabeça de cão e grande cauda, e são muito cabeludos, e as mulheres são lindas e de grande vergonha, etc. e muitas outras coisas que pareciam falsidade. E disseram que frequentemente 300 camelos voltavam de Tambucotu carregados de ouro.

E esta foi a primeira notícia que houve do ouro e de onde se encontraria a sua origem. Depois o Senhor Infante mandou caravelas, em uma delas foi um seu familiar chamado Gonçalo de Sintra e na outra um certo Dinis Dias, e que fossem além do lugar chamado Pedra da Galé mais longe, a ver se podiam apanhar ou achar mais habitantes. E navegando além acharam um lugar agora chamado Cabo Branco, e acharam gente naquele lugar que agora chamam Arguim. Arguim é uma ilha próxima de terra e muito povoada de árabes, que estavam avisados daquelas caravelas, de modo que muitos fugiram; muitos deles, porém, foram cativos e mortos.

E por isto o Senhor Infante depois mandou construir ali um castelo, e pôs aí gente sua cristã e um sacerdote da vila de Lagos, e este foi o primeiro que celebrou o ofício divino na Guiné. E a este castelo vinham os árabes da terra trazendo ouro puro em pó, e recebiam em troca trigo e mantas brancas e berneses e outras mercadorias que para ali mandou o Infante. E assim sempre até agora se fez o comércio, trazendo os negros o ouro da terra de Tambucotu. Este castelo foi construído no ano de 1445. E assim os sobreditos voltaram para o Infante.”


(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 25 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 28 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27062: Notas de leitura (1824): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Ciente que a investigação historiográfica carecia de bases científicas, Vitorino Magalhães Godinho irá definir que a heurística e a hermenêutica precisam de fontes, para pôr termo à história feita de alusões miraculosas ou de referência a documentos que ninguém põe em cima da mesa. Estas propostas de rigor já tinham sido avançadas por Alexandre Herculano, já estava denunciado a revelação de Cristo a D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, a existência das cortes de Lamego, a multiplicidade de disparates da historiografia de Alcobaça. 

E para mostrar o que é trabalhar com fontes, levou Magalhães Godinho a enunciar documentação e a fazer comentários dizendo que era verdadeiro e falso. Décadas depois deste levantamento documental, o historiador deixa bem claro quais foram as molas reais do empreendimento de todas as estas navegações, e por ordem de grandeza, e não é de estranhar que os corifeus ideológicos do Estado Novo o detestassem, procurando mesmo silenciá-lo, ou ignorando-o. A verdade histórica veio ao de cima.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3

Mário Beja Santos

Não é demais enfatizar que foi Vitorino Magalhães Godinho quem introduziu novos rumos científicos para a investigação histórica. Nesta obra intitulada Documentos sobre a Expansão Portuguesa, o historiados dirá claramente quais são as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII, estas constam de fontes narrativas (crónicas e relações), fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias), documentos diversos (vão desde instruções e correspondência oficiais a documentos particulares), obras técnicas (roteiros, regimentos náuticos e tratados cosmográficos e náuticos) e fontes cartográficas. Fará um desenvolvido comentário quanto à especificidade destas fontes e, em jeito de conclusão dirá algo que continua a ser importante reter:

“Os descobrimentos e a colonização são um vasto movimento social e cultural que suscita problemas históricos bem mais complexos do que a simples data de uma viagem, prioridade de uma descoberta, virtudes de um dirigente. Tem de ser focado da perspetiva universal, como obra de cooperação e concorrência, na multiplicidade das suas diretrizes, na diversidade das necessidades económicas e tendências ideológicas. A náutica dos séculos XV e XVI construiu-se sobre a navegação mediterrânea, a agulha, as cartas de marear, sobre os instrumentos e teorias que vinham dos gregos, sobre as tábuas elaboradas por judeus, sobre as aquisições de técnica naval, como por exemplo o leme, sobre a perícia no mar de genoveses e catalães. Esta amálgama foi utilizada segundo as necessidades sociais e as sugestões ideológicas de Portugal e da Europa, em ação e reação com a realidade dos outros continentes. É a fase do desabrochar do capitalismo comercial em conexão com as transformações do senhorio fundiário, e ambos integrados na estruturação de um Estado que nascera da economia urbana, mas ultrapassara a cidade como núcleo político.”

Os documentos recolhidos pelo historiador prendem-se com navegações do século XIV, a conquista Ceuta, a Relação de Diogo Gomes, a análise da atividade do Infante D. Henrique, o povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo, a questão político-diplomática posta pelas Canárias, o povoamento dos Açores, a navegação entre o Cabo Não até à Pedra da Galé. Tome-se agora em consideração as referências que Duarte Pacheco faz no capítulo XXII do Esmeraldo à obra do Infante D. Henrique:

“A razão não sofre que nós calemos aquelas coisas as quais, por serem verdade, o coração deseja dizer, como o virtuoso Infante D. Henrique sendo com El-Rei seu pai na tomada da grande cidade de Ceuta que por bravo combate contra os Mouros pela Porta de Almina foi a entrada, o Infante exercitou ali tão esforçadamente a fortaleza do seu coração; no qual lugar mereceu o excelente grau do estado militar que lhe então foi dado, que por tais feitos aos esforçados barões por obrigação é devido; e passados alguns anos depois de Ceuta ser tomada e El-Rei seu pai finado, ele fez no Cabo de São Vicente que por outro nome antigamente Sacro Promontório se chamava, a sua vila de Terça Naval situada sobre angra de Sagres, que hoje em dia ali está fundada; onde se apartou com sua casa das fadigas e maldades deste mundo e viveu sempre tão virtuosa e castamente; e com outras virtuosas obras, sendo então governador do mestrado de Cristo desses Reinos, sua vida ali passou em tal extremo de bondade.

Outras muitas coisas podemos dizer deste príncipe; somente é para escrever a causa que moveu a descobrir estas Etiópias de Guiné, de que principalmente tratamos; e como quer que os virtuosos barões amigos de Deus e de limpo coração, inimigos da cobiça, nunca são desamparados da graça do Espírito Santo, jazendo o Infante uma noite em sua cama lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; cuja cor e feição e modo de viver alguém poderia querer, senão os houvesse visto; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo batismo, sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto oiro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os Reis e povos destes Reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.

Bem-aventurado é o Infante D. Henrique e bem-aventurados são os Reis de Portugal que suas vezes sucederam. A qual navegação começou o Infante por serviço de Deus pelo Cabo Não para diante; e tanto que a estes Reinos foram trazidos os primeiros negros e por eles sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a todos os Reis cristãos que o ajudassem a este descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor; pelo qual o Infante mandou ao Santo Padre, o Papa Eugénio IV, Fernão Lopes de Azevedo fidalgo da sua casa e do Conselho de El-Rei D. Afonso V, comendador mor da ordem de Cristo; e assim como por Deus foi revelado e mostrado ao virtuoso Infante este maravilhoso mistério escondido a todas as outras gerações da Cristandade, assim quis que por mão do seu vigário, e assim por outros Padres Santos com suas bênçãos e letras a conquista e comércio destas regiões até ao fim de toda a India lhe fossem dadas e outorgadas; e com este fundamento deu princípio à obra, deixando este virtuoso Príncipe para sempre a dizima de todos os frutos e novidades que em cada um ano rendessem as ilhas da Madeira e dos Açores e de Santiago, e vintena de tudo o que se em Guiné resgatasse e a estes Reinos trouxesse ao dito mestrado de Cristo em satisfação e pagamento de algumas rendas que do dito mestrado houvessem, sendo ele governador, que no descobrimento destas terras e ilhas despendeu.”


Vitorino Magalhães Godinho ao comentar este texto distingue as razões apresentadas por Duarte Pacheco das de Zurara quanto às motivações do Infante para se lançar neste empreendimento das navegações. Recorda que não corresponde à verdade histórica a referência do apelo feito pelo Infante aos outros Príncipes Cristãos e promessa de partilha de vantagens. É verdade que a Ordem de Cristo recebeu a vintena dos extratos da Guiné; e deve-se reter que segundo Duarte Pacheco o termo inicial dos descobrimentos foi o Cabo Não.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 11 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27043: Notas de leitura (1822): 2ª edição do livro do nosso José Saúde, "Aldeia Nova de São Bento" (Lisboa, Edições Colibri, 2021, 299 pp.)

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27030: Notas de leitura (1820): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) - 3 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Ciente que a investigação historiográfica carecia de bases científicas, Vitorino Magalhães Godinho irá definir que a heurística e a hermenêutica precisam de fontes, para pôr termo à história feita de alusões miraculosas ou de referência a documentos que ninguém põe em cima da mesa. Estas propostas de rigor já tinham sido avançadas por Alexandre Herculano, já estava denunciado a revelação de Cristo a D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, a existência das cortes de Lamego, a multiplicidade de disparates da historiografia de Alcobaça. E para mostrar o que é trabalhar com fontes, levou Magalhães Godinho a enunciar documentação e a fazer comentários dizendo que era verdadeiro e falso. Décadas depois deste levantamento documental, o historiador deixa bem claro quais foram as molas reais do empreendimento de todas as estas navegações, e por ordem de grandeza, e não é de estranhar que os corifeus ideológicos do Estado Novo o detestassem, procurando mesmo silenciá-lo, ou ignorando-o. A verdade histórica veio ao de cima.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3

Mário Beja Santos

Não é demais enfatizar que foi Vitorino Magalhães Godinho quem introduziu novos rumos científicos para a investigação histórica. Nesta obra intitulada "Documentos sobre a Expansão Portuguesa", o historiados dirá claramente quais são as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII, estas constam de fontes narrativas (crónicas e relações), fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias), documentos diversos (vão desde instruções e correspondência oficiais a documentos particulares), obras técnicas (roteiros, regimentos náuticos e tratados cosmográficos e náuticos) e fontes cartográficas. Fará um desenvolvido comentário quanto à especificidade destas fontes e, em jeito de conclusão dirá algo que continua a ser importante reter:
“Os descobrimentos e a colonização são um vasto movimento social e cultural que suscita problemas históricos bem mais complexos do que a simples data de uma viagem, prioridade de uma descoberta, virtudes de um dirigente. Tem de ser focado da perspetiva universal, como obra de cooperação e concorrência, na multiplicidade das suas diretrizes, na diversidade das necessidades económicas e tendências ideológicas. A náutica dos séculos XV e XVI construiu-se sobre a navegação mediterrânea, a agulha, as cartas de marear, sobre os instrumentos e teorias que vinham dos gregos, sobre as tábuas elaboradas por judeus, sobre as aquisições de técnica naval, como por exemplo o leme, sobre a perícia no mar de genoveses e catalães. Esta amalgama foi utilizada segundo as necessidades sociais e as sugestões ideológicas de Portugal e da Europa, em ação e reação com a realidade dos outros continentes. É a fase do desabrochar do capitalismo comercial em conexão com as transformações do senhorio fundiário, e ambos integrados na estruturação de um Estado que nascera da economia urbana, mas ultrapassara a cidade como núcleo político.”

Os documentos recolhidos pelo historiador prendem-se com navegações do século XIV, a conquista Ceuta, a Relação de Diogo Gomes, a análise da atividade do Infante D. Henrique, o povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo, a questão político-diplomática posta pelas Canárias, o povoamento dos Açores, a navegação entre o Cabo Não até à Pedra da Galé. Tome-se agora em consideração as referências que Duarte Pacheco faz no capítulo XXII do Esmeraldo à obra do Infante D. Henrique:
“A razão não sofre que nós calemos aquelas coisas as quais, por serem verdade, o coração deseja dizer, como o virtuoso Infante D. Henrique sendo com El-Rei seu pai na tomada da grande cidade de Ceuta que por bravo combate contra os Mouros pela Porta de Almina foi a entrada, o Infante exercitou ali tão esforçadamente a fortaleza do seu coração; no qual lugar mereceu o excelente grau do estado militar que lhe então foi dado, que por tais feitos aos esforçados barões por obrigação é devido; e passados alguns anos depois de Ceuta ser tomada e El-Rei seu pai finado, ele fez no Cabo de São Vicente que por outro nome antigamente Sacro Promontório se chamava, a sua vila de Terça Naval situada sobre angra de Sagres, que hoje em dia ali está fundada; onde se apartou com sua casa das fadigas e maldades deste mundo e viveu sempre tão virtuosa e castamente; e com outras virtuosas obras, sendo então governador do mestrado de Cristo desses Reinos, sua vida ali passou em tal extremo de bondade.

Outras muitas coisas podemos dizer deste príncipe; somente é para escrever a causa que moveu a descobrir estas Etiópias de Guiné, de que principalmente tratamos; e como quer que os virtuosos barões amigos de Deus e de limpo coração, inimigos da cobiça, nunca são desamparados da graça do Espírito Santo, jazendo o Infante uma noite em sua cama lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; cuja cor e feição e modo de viver alguém poderia querer, senão os houvesse visto; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo batismo, sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto oiro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os Reis e povos destes Reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.

Bem-aventurado é o Infante D. Henrique e bem-aventurados são os Reis de Portugal que suas vezes sucederam. A qual navegação começou o Infante por serviço de Deus pelo Cabo Não para diante; e tanto que a estes Reinos foram trazidos os primeiros negros e por eles sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a todos os Reis cristãos que o ajudassem a este descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor; pelo qual o Infante mandou ao Santo Padre, o Papa Eugénio IV, Fernão Lopes de Azevedo fidalgo da sua casa e do Conselho de El-Rei D. Afonso V, Comendador Mor da Ordem de Cristo; e assim como por Deus foi revelado e mostrado ao virtuoso Infante este maravilhoso mistério escondido a todas as outras gerações da Cristandade, assim quis que por mão do seu vigário, e assim por outros Padres Santos com suas bênçãos e letras a conquista e comércio destas regiões até ao fim de toda a India lhe fossem dadas e outorgadas; e com este fundamento deu princípio à obra, deixando este virtuoso Príncipe para sempre a dizima de todos os frutos e novidades que em cada um ano rendessem as ilhas da Madeira e dos Açores e de Santiago, e vintena de tudo o que se em Guiné resgatasse e a estes Reinos trouxesse ao dito mestrado de Cristo em satisfação e pagamento de algumas rendas que do dito mestrado houvessem, sendo ele governador, que no descobrimento destas terras e ilhas despendeu.”


Vitorino Magalhães Godinho ao comentar este texto distingue as razões apresentadas por Duarte Pacheco das de Zurara quanto às motivações do Infante para se lançar neste empreendimento das navegações. Recorda que não corresponde à verdade histórica a referência do apelo feito pelo Infante aos outros Príncipes Cristãos e promessa de partilha de vantagens. É verdade que a Ordem de Cristo recebeu a vintena dos extratos da Guiné; e deve-se reter que segundo Duarte Pacheco o termo inicial dos descobrimentos foi o Cabo Não.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 11 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 14 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27016: Notas de leitura (1819): "Guiné Destino Imposto", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26984: Notas de leitura (1816): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
Não há qualquer dificuldade em perceber, lendo este notável ensaio, daquele que é considerado a figura ímpar da historiografia portuguesa do século XX, a sua demissão de duas instituições universitárias, durante o Estado Novo. O seu nome impôs-se desde a década de 1940 como o mais completo investigador da economia dos Descobrimentos, tanto em Portugal como no mundo de então. Não podia haver maior incómodo para o regime do Estado Novo do que revelar a questão fulcral da expansão quatrocentista portuguesa, impunha-se, no discurso oficial que andávamos a dilatar a fé, a civilizar selvagens, a estabelecer pontes entre civilizações. Acontece que Vitorino Magalhães Godinho, no caso vertente desta obra data de 1962, procura fazer uma leitura integral de qual a origem da expansão na historiografia portuguesa, mostrando como esta estava completamente ao serviço dos ideais régios; enumera os complexos económicos da Europa e as raízes hispano-portuguesas medievais da expansão, as maneiras de sentir e de pensar e o comportamento económico e no final do seu portentoso estudo explica esmiuçadamente como se impôs a nossa presença na Senegâmbia. Eram conceitos intoleráveis para uma doutrina que impunha o Infante D. Henrique como figura providencial, um cruzado, isto quando a documentação aponta para outros objetivos. Vamos continuar com alguns outros textos de Vitorino Magalhães Godinho, tendo sempre a Senegâmbia por perto.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1

Mário Beja Santos

Entre 1409 e 1475 a expansão portuguesa não só deu um salto formidável como forjou um sistema socioeconómico inovador. Surgiu um tipo social novo, o cavaleiro-mercador, uma nova constelação social, o senhorio capitalista, restruturaram-se em profundidade os laços político-económicos, emergiu um Estado mercantilista-nobiliárquico. A historiografia portuguesa do século XX tem os seus máximos expoentes a figura de Vitorino Magalhães Godinho. Devemos-lhe a frescura das suas teses em que procurou compatibilizar os diferentes objetivos prosseguidos por essa expansão: uma política de conquistas territoriais pela cruzada contra o Islão no Magrebe, uma dimensão que se revelará trágica pela exaustão de recursos e meios, arrastando o fim da dinastia de Avis; a metódica devassa do oceano desconhecido para desenvolver ambicionados circuitos mercantis e povoar arquipélagos.

Como tudo isto foi impulsionado pode ser lido na obra A Expansão Quatrocentista Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, Publicações Dom Quixote, última edição em 2018. O historiador abalança-se a articular: crise financeira da nobreza e necessidades de mercados, novas janelas de oportunidade para a burguesia mercantil; o ouro do mundo negro como alvo dominante, mas também os escravos, as matérias tintoriais, o trigo e o açúcar. Enfim, um século com uma configuração geográfica bem desenhada, o noroeste africano, entre Marrocos e o Sudão Atlântico, Madeira, Açores, Canárias, o caminho da Senegâmbia, uma marcha contínua de expedições até se chegar ao Índico e depois ao Brasil.

É nesta abrangência da análise que o historiador faz desde a revolução intelectual do século XIII, a enumeração dos fatores do surto da expansão quatrocentista, as maneiras de sentir e pensar e as expetativas económicas de encontrar novos espaços, o plano henriquino, as condições culturais da navegação oceânica, o que eram ao tempo os impérios negros do ouro e, por fim, os resgates de Arguim e Guiné que se pretende dar ao leitor uma ideia de como esta expansão ultramarina se posicionou na Senegâmbia. Retiraremos desta obra doi capítulos fundamentais sobre o comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba e os resgates ao Sul do Geba e na Serra Leoa – era este o universo da Senegâmbia.

Extravasando estes marcos cronológicos, far-se-á adiante referência ao regime do comércio com a terra dos negros e a influência do comércio português na vida indígena.


O comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba (páginas 335 a 338)

De 1448 a 1460 descobriu-se a costa desde o Cabo Roxo (extremo setentrional da atual Guiné-Bissau) até à Serra Leoa e conseguiu-se entrar em relações pacíficas com os negros desde o princípio da Guiné (Palmas de Sanagá, ao Norte do Senegal) até aquele extremo meridional atingido à morte de D. Henrique. O primeiro trato foi o da região do Senegal e de Cabo Verde, anteriormente a 1455. Dos Jalofos (desde o Senegal ao Gâmbia) obtinham os portugueses escravos negros em abastança e algum ouro. No tempo de D. Henrique, ou seja, antes de 1460, compravam-se 25 a 30 escravos por um cavalo velho, consoante informa Münzer; posteriormente, o preço dos escravos subiu, pois por um cavalo os negros do Senegal já só davam 10 a 12 escravos; nos primeiros anos do século XVI o preço ainda era superior: mal se conseguiam 5 escravos por um cavalo.

O número de escravos anualmente importados para Portugal devia ser elevado: lê-se na Relação de Diogo Gomes que desde a descoberta do rio até à data em que foi redigida se têm trazido pretos sem número e cada vez mais; Valentim Fernandes também diz que se resgatam muitos escravos negros no rio Senegal; o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, é ainda mais preciso, pois declara que quando havia bom resgate neste rio se retiravam por ano 400 escravos e outras vezes menos a metade, mas mostra igualmente que o comércio estava decadente em 1505. Ouro, todos concordam em que se resgatava pouco; pagava-se com lenços, panos vermelhos e alaquecas (pedras semipreciosas); os portugueses também vendiam alquicés (capas mouriscas), bedéns (capa feita de esparto), panos azuis e compravam marfim, coiros de vacas e outros animais. Os barcos portugueses subiam o rio sessenta léguas até o reino interior dos Tucorores, onde compravam escravos – 6 e 7 por um cavalo.

Do Cabo Verde ao rio Gâmbia inclusive vivia “má gente” – Sereres e negros de Niumi -, os primeiros contactos foram mortíferos para os portugueses. Mas entre 1450 e 1456 estabeleceram-se transações com os Mandingas do Gâmbia. No porto de Andam, em terra de Sereres (seis léguas ao Sul de Cabo Verde) houve resgate de escravos, desde quando não o sabemos, talvez também desde esse período. O resgate chegou a ser florescente, dando os pretos dez escravos por um cavalo de pouca valia; mas no começo de Quinhentos já não existia. De igual modo existiu o resgate de escravos no Porto de Ale (duas léguas ao Sul do atual Red Cape) que conseguia 10 escravos por um cavalo; em 1505 ainda continuava este comércio, mas o preço dos escravos aumentara – agora só se recebiam 6 no máximo. A esta data os portugueses compravam aqui muita carne e milho, feijões, lenha e água para abastecer os navios, mas tudo caro.

Em 1460, já os portugueses traficavam nos rios dos Barbacins (Salum). Até esta data davam os pretos 7 escravos em troca de um cavalo; houve então uma alta de preços derivada de concorrência entre mercadores cristãos, gabando-se Diogo Gomes de ter conseguido fazê-los baixar para 14 ou 15 escravos. O certo é que no primeiro lustro do século XVI um cavalo só pagava novamente 6 ou 7 cabeças humanas, podendo, porém, ser de ruim qualidade.

De toda a terra dos Jalofos, os portugueses também importavam papagaios verdes, cujo negócio rendia bons lucros.

Com os Mandingas do rio Gâmbia, Diogo Gomes e Cadamosto firmaram paz e amizade em 1456, mas não é impossível que já um pouco antes se tivessem feito transações. Aquele navegador obteve 180 arráteis de ouro em troca de panos e manilhas, e subindo até o rio Cantor, estabeleceu aqui o comércio; Batimansa (mansa significa rei), mais perto da foz, recebeu escravos. O veneziano resgatou com o Batimansa escravos e algum ouro. Desde então o resgate manteve-se, estando florescente no período de 1490-1505. Também perto do litoral, os portugueses trocavam cavalos por escravos; em Cantor, onde se realizavam grandes feiras, vendiam panos vermelhos, azuis e verdes de pouca valia, lenços, seda, manilhas de latão, barretes, sombreiros, alaquecas, etc.; com estas mercadorias adquiriam muito ouro bom – cinco a seis mil dobras por ano no dealbar de Quinhentos. Diz Valentim Fernandes que o rio é frequentado por muitos navios, sinal de intenso comércio. De uma vez, antes de 1502, uma caravela trouxe de Cantor ouro no valor de 2 contos 62 830 reais. O comércio de Cantor e de todo o rio Gâmbia teve-o mestre Filipe de arrendamento desde o dia de S. João de 1510 a igual dia de 1513, pagando ao Estado pelo contrato 1 363 500 reais por ano. Em 1514 arrendou-o de novo o mesmo mestre Filipe, de parçaria com Diogo Lopes, exatamente pela mesma quantia.

Ignoramos quando abriu o trato com os Mandigas e Felupes do rio Casamansa. Na última década do século XV e primeiro lustro do XVI era zona de muito resgate. Os portugueses levavam para lá cavalos, lenços e panos vermelhos, com que adquiriam escravos e algodão indígena, bem como gatos-de-algália; de igual modo levavam para lá ferro, por ser de elevado preço neste mercado. Na Corte do Casamansa residiam mercadores portugueses.

Desconhecemos igualmente qual a data em que os portugueses principiaram a traficar com os Mandingas e os Banhuns do rio de S. Domingos (Cacheu); deve ter sido à volta de 1456. Segundo Münzer, encontraram aqui malagueta, algodão e marfim. Na transição do século XV para o XVI havia muito resgate, residindo aqui mercadores cristãos, junto do Farimbraço (régulo de Braço). É região de frequentes e concorridas feiras. No interior do regulado de Farimbraço, resgatavam-se cavalos contra escravos. Aqui e no litoral os portugueses adquiriam algália e algodão (são principalmente os colonos do arquipélago de Cabo Verde a vir comprá-lo). Também há muito mel e cera.

A algália era ainda mais abundante no estreito de Catarina, onde aliás se obtinham as mesmas mercadorias que no rio Cacheu.

Em 1456, Diogo Gomes conseguiu entabular comércio com os Gogolis e Biafares do rio Geba, trazendo consigo malagueta, algodão e marfim. Mas só relativamente ao período de 1490-1505 dispomos de informações pormenorizadas. Os portugueses trocavam um cavalo, ainda que não fosse bom, por seis ou sete escravos. Do coração do império de Mali chegava ao Geba ouro, de que os cristãos conseguiam pequena porção, contra panos vermelhos, lenços e alaquecas; para Portugal ainda vinha ouro, e para lá seguiam estanho, contas e manilhas. No rio Biguba o resgate era idêntico.

Francisco Martins arrematou o comércio dos rios de Guiné, com exclusão do Gâmbia (arrendado a outro) e do Senegal (objeto de contrato à parte), até à Serra Leoa, durante o período de três anos que vai de S. João de 1509 a igual dia de 1512, pela quantia de 2 753 240 reais (com 1%) quer dizer, 917 746 reais por ano.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 30 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25910: Historiografia da presença portuguesa em África (439): Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Há na atualidade versões de um português modernizado que podem suscitar a atenção de quem se interessa pela obra daquele que foi o historiador hagiógrafo do Infante D. Henrique e que, com o concurso do testemunho oral, deu um quadro sequencial às navegações do Infante até a um período próximo da sua morte (1460). Um conjunto de historiadores, ao longo do século XX, dão uma leitura prudente de Zurara, ele comete omissões de peso, muito provavelmente aproveitou-se do trabalho de Afonso de Cerveira, habilmente nunca refere essa fonte. Atenda-se às críticas feitas à obra de Zurara por Duarte Leite, Fontoura da Costa, Barradas de Carvalho e Vitorino Magalhães Godinho, entre outros. Mas como diz Rodrigues Lapa há por vezes no trabalho historiográfico de Zurara textos de enorme talento.

Um abraço do
Mário


Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné

Mário Beja Santos

De há muito que o trabalho historiográfico de Zurara, com a preponderante Crónica dos Feitos da Guiné tem sido alvo de críticas fundamentadas de historiadores de várias gerações, como aqui se tem feito referência. Pego agora na seleção feita pelo eminente estudiosos Rodrigues Lapa para a coleção Textos Literários, um acontecimento cultural de grande peso onde Rodrigues Lapa teve um desempenho determinante. Falando nos dados biográficos de Zurara, sabe-se que só bastante tarde aprendeu as letras, segundo informação que nos é fornecido pelo latinista Mateus de Pisano, mestre de D. Afonso V, que dá a saber que este historiador do Infante D. Henrique aprendeu as letras em idade madura. E Rodrigues Lapa comenta este testemunho:
“Vem confirmar um seu defeito: o seu autodidatismo serôdio criou em Zurara uma vaidade ingénua, que gostava de se expandir em citações de fácil erudição. Não se sabe a ocupação de Zurara até aos 35 ou 40 anos. O mais provável é que enquanto jovem escudeiro fosse empregado no tombo das escrituras, guardadas na Torre do Castelo, e aí auxiliasse, como escrivão, o decrépito e glorioso Fernão Lopes. D. Afonso V encarregou Zurara de continuar a crónica de D. João I e que Fernão Lopes deixara no período de 1411. A Crónica da Tomada de Ceuta deve ter agradado aos círculos da Corte. Zurara, o plebeu engradecido, lisonjeava agora os poderosos, choveram benesses e honrarias, foi promovido a cavaleiro da Casa Real e bibliotecário do Paço e cronista, entrou na Ordem de Cristo como comendador de Alcains, certamente por interceção do Infante D. Henrique. Faltava ainda relatar as navegações ao longo da costa africana e o descobrimento de novas terras. O livro foi rapidamente composto, encarregado de o fazer em 1452, no ano seguinte estava pronta a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.”
Questiona-se como foi possível em tão curto espaço de tempo elaborar tal documento. Zurara dava muita importância ao testemunho dos navegadores do tempo. Ainda hoje parece incompreensível como a Crónica da Guiné jazeu durante séculos ignorada, até que em 1841 foi publicada sob um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Paris.

Rodrigues Lapa compara a obra de Zurara com a de Fernão Gomes, que não utilizou o testemunho oral, e que fundamentou o seu trabalho nos documentos escritos. “Temos, pois, em Fernão Lopes e em Zurara duas conceções da história: o primeiro, escrevendo a rogo do racionalista D. Duarte, funda-se no documento escrito; o segundo, escrevendo em instâncias do humanista D. Afonso V, baseia-se sobretudo no testemunho oral. Zurara teve consciência dos perigos do seu método, acresce que escolheu o seu herói, o Infante D. Henrique, a tudo sacrificou a verdade histórica, e comprovadamente foi acusado de ter praticado fraude na Torre do Tombo.” Com todos os seus defeitos e qualidades, Zurara é um apreciável escritor que apresenta na história os novos rumos da nacionalidade. Assegurada a independência do país, faz-se a política de expansão e conquista: a tomada das Praças do Norte de África e a exploração marítima da costa ocidental. Zurara é o historiador dessa época. Fernão Lopes ter-nos-ia dado talvez um quadro diferente; mas Fernão Lopes é um génio excecional, e Zurara foi apenas um cronista aplicado e por vezes talentoso. Acontece, contudo, que uma ou outra vez atinge a verdadeira arte como num quadro dos preparativos da tomada de Ceuta e nas cenas antes do assalto. Aqui chega a emparceirar com Fernão Lopes. Rodrigues Lapa, relativamente à Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, escolheu o retrato que Zurara dava do Infante D. Henrique, o que se sabia sobre o Mar Tenebroso, a chegada dos cativos de África a Lagos, talvez a mais comovente das suas descrições.

Quem pretenda aprofundar o valor historiográfico de Zurara e conhecer um pouco melhor a Crónica da Guiné, recomenda-se a edição da Livraria Civilização Editora, tem uma prosa mais modernizada e a introdução que José de Bragança fez para a mesma em 1937, aqui se explica como o documento de Zurara foi fundamental para desmontar as mentiras grosseiras que a França apresentava sobre os seus direitos na Costa da Guiné, tinha-se inventado que corsários normandos ali tinham chegado em 1364. O documento da Biblioteca Nacional de Paris também foi importante para o conhecimento do retrato do Infante, alguns peritos atribuíram logo pelos chamados Painéis de S. Vicente a figura do Infante, coberta pelo mesmo chapeirão negro que consta da biblioteca parisiense. Zurara procede à cronologia dos acontecimentos das navegações, relevando a passagem do Cabo Bojador, em 1434, por Gil Eanes. A crónica refere também o Mar Tenebroso, lenda de grande peso na Idade Média. José de Bragança não deixa de observar o sistemático silencio na Crónica da Guiné não só a respeito dos lucros com o tráfico de ouro em pó, das relações comerciais com os povos africanos do interior, mas também quanto às feitorias que o Infante mandou levantar em diferentes pontos da costa, e mesmo o que ele diz sobre o resgate de escravos tem pouca importância na crónica. Isto tudo vem a propósito de como se dele ver com prudência o documento de Zurara. Sabe-se que foi documentação que o Infante D. Henrique só depois da morte do Infante Santo (1443) começou a edificar no extremo ocidente do Algarve uma vila, onde os barcos dos mercadores pudessem encontrar poiso, a sua localização é alvo de opiniões contraditórias, tem mais peso a que atribuiu a Vila do Infante edificada na pequena península de Sagres.

Em termos de divulgação, dá-se relevo ao capítulo VII referente às cinco razões pelas quais o Infante foi movido mandar buscar as terras da Guiné; temos depois os capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, o primeiro dedicado ao quadro de sofrimento dos escravos em Lagos, os cativos chorando, todos em alvoroço, o Infante em cima de um poderoso cavalo; como o Infante mandou Gonçalo de Sintra à Guiné e ali morreu, seguiu-se, pelo adiante as viagens dos navegadores até ao Rio do Ouro, isto na edição da Crónica da introdução de José de Bragança, a edição de Rodrigues Lapa foca-se no retrato do infante, no que se pensava sobre o Mar Tenebroso e como o Infante, diz Zurara homem de mui grande autoridade, ouvindo Gil Eanes que trazia algum sinal da terra por onde Arara, encheu de contentamento o terceiro filho de D. João I que logo a seguir mandou armar um pequeno navio de carga onde seguiu Afonso Gonçalves Baldaia. Rodrigues Lapa também destaca a importância do texto sobre os cativos de África em Lagos, e fica-se por aqui, atenda-se que esta coleção de textos literários tinha uma importância primordial para os alunos de Letras no terceiro ciclo dos liceus e mesmo para certos cursos das Faculdades de Letras.
Uma das mais interessantes edições da Crónica da Guiné, com ortografia modernizada e uma interessante introdução de José de Bragança, Livraria Civilização Editora, 1973
Estátua de Zurara num monumento dedicado a Camões, no Chiado
Escultura de Zurara no Padrão dos Descobrimentos
O infante D. Henrique. Página de rosto da Crónica da Guiné, escrita por Gomes Eanes de Zurara, em 1453, ainda em vida do Infante

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Nota do editor

Último post da série de 28 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)

sábado, 24 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25876: Os nossos seres, saberes e lazeres (642): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (167): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 6 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Pus-me ao caminho, regresso de Figueiró dos Vinhos em direção a Tomar, primeiro pelo IC8, aproveito as boleias que dá à autoestrada, vou até Alvaiázere, e depois Tomar, são tudo territórios da interioridade, a romagem a que me propus culmina da visita à Charola do Convento de Cristo que teve limpeza no exterior e brilha ao Sol. É dessa viagem que perguntas sem resposta, sobraçando um livro de Paulo Pereira sobre o Convento de Cristo que ali estive sentado a extasiar-me com a Charola e o Portal Sul, pois cativa-me estar diante de uma das mais intrincadas peças da arquitetura peninsular, aqui há estilos que vão do românico ao gótico, do gótico ao manuelino e deste ao primeiro renascimento e ao maneirismo do tempo dos reis Filipes, tenho dúvidas que exista outro monumento com tal caligrafia de estilos em sequência diacrónica. A romagem está feita, impõe-se o desejo de voltar, enquanto houver forças, há sempre o ir e o voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (167):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 6


Mário Beja Santos

Quando ia para Casal dos Matos, na viragem do século, bordejava a cidade de Tomar, seguia pelo IC3 até apanhar o IC8, e daqui, entre Figueiró dos Vinhos e a vila de Pedrógão Grande, infletia no Outeiro do Nodeirinho, Figueira, e chegava àquela casinha toda reabilitada de que guardo imensa saudade. Já nessa altura dava para perceber onde estava a fronteira da interioridade, pelo IC3 viam-se as casas abandonadas, os campos expetantes, a evidência dos sinais do abandono; a confirmação chegava quando se andava por aquelas pequenas estradas com portões datados dos anos 1950 e anos 1960, do modo geral as casas em ruína. Há para ali uma autoestrada agora com SCUTs, são raros os carros que por ali circulam, mas é uma viagem que nos elucida sobre os tais abandonos que parecem irreversível e os sinais de quem recuperou o casario, mas a interioridade é indisfarçável.

É a pensar no que mudou neste quarto de século que vou a caminho da última etapa desta romagem de saudade, já que tive casa bem perto de Tomar, que troquei com a de Casal de Matos, gosto imenso do aprazimento de Tomar, da escala contida dos edifícios e do seu impressionante património, aqui faço escala para ver um dos mais belos edifícios do património português, a Charola, que está de cara lavada.

Entro no Castelo e continuo com dúvidas por resolver, aquele Castelo possui a melhor tecnologia do seu tempo, imaginaram aquele alambor que impede a escalada das muralhas, a fortificação é sólida em todos os seus lados, lá dentro está a Charola templária, tudo em estilo românico, bem perto da Charola os pequenos claustros góticos do tempo do Infante D. Henrique, como só vejo os claustros questiono onde vivia o Navegador, não consigo obter resposta, sei que houve um paço, das janelas do claustros só vejo pedras no chão, todas aquelas muralhas rasgadas de janelas levam ao pressentimento de que houve para ali habitação, consta que o Infante aqui viveu e num ponto mais ermo a rainha viúva de D. João III, D. Catarina de Áustria, mas aonde?

Rendo-me ao facto de ter diante dos olhos o mais rico depoimento arquitetónico português, o românico, o gótico, o manuelino, o primeiro renascimento, o maneirismo, tudo em sequência, em paredes meias. Por aqui andou D. Afonso Henriques que se dava bem com o Grão-Mestre templário, Gualdim Pais, era a Reconquista Cristã, os guerreiros monges defendiam toda esta linha do Tejo, como atesta o Castelo de Almourol. Diz a historiografia que foi D. Gualdim, que andou uns bons anos em Cuzada lá para Jerusalém, que escolheu este ponto, a Charola iniciou-se por volta de 1160 e concluiu-se em 1250. É um dos monumentos mais importantes de planta centrada de tradição templária.

É o que hoje me trouxe a este ponto alto de Tomar, a Charola, com a sua estrutura cilíndrica e aquele assombroso interior liturgicamente configurado por uma planta circular, octogonal pelo interior (o tambor central possui oito faces) e no exterior possui panos reforçados por sólidos contrafortes, as imagens tiradas permitem ver que foram eliminados dois desses contrafortes para construir aquele fabuloso Portal Sul, construção manuelina.

Há muita especulação sobre o mítico e o místico da Charola. Que se terá pretendido reproduzir a imagem, o desenho do Santo Sepulcro de Jerusalém, edifício de planta circular; que possuiu uma retórica figurativa que guarda os seus códigos secretos; e há quem especule de igual modo quanto aos códigos manuelinos e já não falo das mil e uma interpretações dos elementos constitutivos da mais bela janela que há em Portugal, a Janela do Capítulo.

Sinto-me feliz por aqui acabar esta romagem, empolga-me a Charola, admiro-a sem mística nem mito, é um empreendimento religioso que fez o seu tempo, D. Manuel tornou o seu interior num empolgante espetáculo cromático, não se pode entrar e admirar o interior da Charola sem ficar esmagado com tal e tanto esplendor. Passo em revista algumas dessas imagens da minha permanente admiração, sempre a perguntar-me onde viveu o Infante D. Henrique e a tal rainha viúva, aquelas pedras no chão não em dão resposta… Vamos então aos pormenores ligados ao fecho da romagem de saudade a sítios que tanto me tocam ao coração.
Arruma-se o carro e fica-se especado diante de muralhas tão imponentes, dá para perceber imediatamente que já não há habitação, fica por saber como desapareceram e porquê tais construções, o que resta é mesmo a imponência da pedra e o vazio do seu interior à mostra.
A porta de entrada no Castelo de Tomar, lá no alto o silêncio do paço régio desmoronado
Propositadamente vim atrás para que se possa ver um detalhe do alambor e a torre da velha igreja que também desapareceu
Sim, a Charola beneficia da alvura de toda a sua pedra, quem a contempla também se questiona sobre aquele cubo lá ao fundo à direita, goste-se ou não, não traz qualquer benefício estético à Charola, aliás há aqui outros pormenores para os quais não se tem resposta, elevou-se a escadaria, é graciosa, contudo há aquele muro quase colado à torre sineira que subtrai um olhar desafogado sobre tão bela construção, e faz pena.
Dá perfeitamente para ver que houve dois momentos da construção, como escreve o historiador Paulo Pereira: “O aparelho dos muros é alvenaria miúda até ao primeiro andar, sendo daí para cima em silharia aparelhada, o que assinala dois momentos de construção: o primeiro do último quarto do século XII até cerca de 1190, altura em que as obras terão sido interrompidas quando se verificaram graves escaramuças entre portugueses e Almóadas; o segundo corresponderá à finalização do templo, por volta de 1250.”
Vê-se nitidamente como o rei D. Manuel quis associar o seu projeto religioso à antiga Charola. Olhando todo este Portal Sul vê-se à vista desarmada que o monarca tinha o seu projeto imperial. O historiador Paulo Pereira fala na identificação mítica do rei D. Manuel com os reis magos com o Emmanuel das escrituras, com David e Salomão, admite uma conotação salomónica da Charola e da igreja do Convento de Cristo. O que nós vemos neste Portal Sul é o deslumbramento religioso, a Virgem com o Menino, uma série de figuras instaladas em mísulas, figuras do Novo e do Velho Testamento, pensamos nos Jerónimos, mas aqui o que é de mais tocante é esta igreja estar diretamente ligada a uma construção que evoca Jerusalém, e temos em frente uma casa do Capítulo que nunca foi acabada e foi neste espaço que Filipe II, em 1581, foi aclamado como rei de Portugal.
Despeço-me do leitor com esta imagem que recorda os dois claustros góticos do tempo do Infante D. Henrique, o do Cemitério e o das Lavagens, houve depois uns restauros no século XX, mas a pergunta continua sem resposta, onde era o paço do Infante D. Henrique, o Navegador não tinha acomodações? E com esta pergunta sem resposta findo uma romagem de saudade que me lavou a alma.

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Nota do editor

Último post da série de 17 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25850: Os nossos seres, saberes e lazeres (641): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (166): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 5 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25799: (In)citações (268): Horizontes da Memória (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 30 de Julho de 2024 com mais um texto, desta feita alusivo aos Horizontes da Memória.

Horizontes da Memória

Programa audiovisual de história do dr. José Hermano Saraiva, o plágio do título serve a minha liberdade de “heresias” e os meus devaneios das tardes deste verão, no disfrute dos 0,35€ diários da minha pensão de combatente...

Neste mês de julho de 2024 faz 60 anos que o Benguela, cargueiro de transporte de gado - com o currículo de navio negreiro, tinha transportado milhares de angolanos e moçambicanos para os trabalhos forçados nas roças de cacau e nas obras públicas de S. Tomé e Príncipe -, desatracou do Cais da Rocha do Conde de Óbidos cheio como um ovo, 900 militares ou carne para canhão na Guerra da Guiné (o meu batalhão mais uns pelotões independentes), partilhavam na harmonia possível os seus três porões com viaturas auto, armamento, obuses de artilharia e bombas de avião. Singrou nos caminhos marítimos de Bartolomeu Dias, Vaco da Gama, Nuno Tristão, etc., portugueses de antigamente, fomos desestivados na ponte-cais de Bissau, carregamos ao ombro o “saco-chouriço” com todos os nossos bens e o Forte da Amura foi o nosso destino.
N/M Benguela - Com a devida vénia a Dicionário de Navios Portugueses

Cumprido um ano de “intervenção às ordens de Comando-chefe”, a fazer a guerra por Bula, Morés, Talicó, S. João, Fulacunda, Cafine, Cacine, Cufar, Buba, Jncassol, Porto Gole e por outros lugares menores onde o inimigo andasse, fomos parar a quadrícula de Buruntuma, tabanca fronteiriça no extremo Leste, onde sobrevivemos quase outro ano – se até aí atuamos como “tropa especial” e móvel sem o ser, de camião, de lanchas LDM e de avião Dakota, à média duma operação por semana, naquela fronteira com a GConacry chegamos a dar batalha três vezes ao dia, o inimigo abundava do outro lado, e sempre com o mesmo à-vontade, a lançar granadas de mão, a metralhar com a G3, a Breda, a bazuca, os morteiros e o canhão s/r 10,7 NATO, - é que o Domingos Ramos, comandante da Frente Leste do inimigo tinha sido nosso camarada, ele tinha tirocinado em Pequim e nós na Fonte da Telha era a nossa diferença…

A guerra é a mãe de tudo, profetizou Heráclito de Éfeso. Faz 60 anos que fomos para a Guiné, não acabamos com a sua guerra, mas a sua guerra acabou com muitos de nós, o MFA não foi gerado com esse propósito, mas nasceu come ele e realizou-o há 50 anos – acabou com a guerra da Guiné para a malta do Portugal europeu, mas legou uma ainda mais mortífera aos guineenses. Amílcar Cabral queixava-se de sermos seus ocupantes ilegais há 500 anos, os seus naturais queixam-se dos 500 anos que andamos a iludi-los…

Para nós, a guerra do Ultramar começou em 1961, para os nossos antepassados começou com a gesta do infante D. Henrique, os 500 anos da sua longevidade alimentaram-se do sangue dos homens e do coração das mulheres, a mesma classe castrense da sustentabilidade desses 500 anos foi que sustentou os 50 anos de longevidade do regime político contra o qual virou as armas – que esconjurou o regime, superou o mantra da guerra civil, que criou a via pacífica e que entregou o destino do país ao Povo são realidades e verdades históricas.

O dia 25A aconteceu “inteiro e limpo”, funcionou como catarse do stresse da guerra da Guiné, também surfei as ondas da euforias, a emergência das derivas e o desvario do PREC encurtou-me essa felicidade, li bastante sobre a guerra civil espanhola, ainda visionei prédios com o andar destruído por granadas lançadas pelo vizinho de cima, deixar em paz a caçadeira Benelli das caçadas às perdizes nas ladeiras do Douro e nas planícies do Alentejo e ter de regressar à G3 nessa contingência foi um grande pesadelo, o 25N dos corajosos foi a terapia das disfunções aos ideais do 25A e esconjurou a perda da felicidade adquirida.

As celebrações das efemérides da mudança de regime pelas armas quando exorbitantes são divisionistas, sem prejuízo de merecedoras, mas numa justa medida. O regime anterior celebrava o 28 de maio, não raro com pompa e circunstância, mas sem decreto de feriado nacional, o regime democrático tem o dever de celebrar condignamente as datas do 5 de outubro, do 25 de abril e do 25 de novembro, mas sem decretos de feriados nacionais. Para quando a celebração das datas institucionais nacionais? Estamos à espera sentados. O Norte fundou a nossa nacionalidade no Castelo de Faria, em 25 de abril de 1127, independência do reino e de Portugal foi conquistada no Castelo de Guimarães em 24 de junho de 1128, os portugueses usaram a mobilidade para a sua dilatação até Coimbra, naturalmente, Lisboa é uma das conquistas do Norte – e há demasiado tempo os conquistadores se deixaram oprimir pelos conquistados…

O 5 de outubro foi um golpe de Estado, celebra a queda do regime, a monarquia fundou e construiu Portugal ao longo de quase 800 anos, em 1910 já era constitucional e evolutiva, na esteira das monarquias inglesas e nórdicas, nações das mais avançadas do mundo. As valas da desgraça foram cavadas pela primeira República, o Estado Novo nem será o seu pior legado, o 25 de Abril foi um golpe de Estado à imagem e semelhança do de 5 de outubro, aquele foi patriótico, de reação ao ultimato inglês ao Mapa Cor-de-Rosa e este iniciou-se corporativo, de reação à equiparação dos capitães milicianos aos direitos e sinecuras da estática classe dos capitães do QP.

Neste mês de julho de 2024 há outras efemérides: a do encontro do MFA da Guiné no mato do Oio com o PAIGC de Conacry, no contexto da sua manobra da capitulação militar; e a Lei 7/74 da Descolonização, que Freitas do Amaral explicitou e o general Spínola promulgou… A Quarta Comissão da ONU havia atestado a sua semana de vilegiatura pelos 2/3 da Guiné libertados e que o PAIGC os governava como Estado aos seus pares de Nova Iorque, o MFA não encontrou ninguém dele em Bissau, aquele partido armado era tão prestável para os encontros a tiro e aquele partido-armado demorou duas semanas a disponibilizar um delegado e em Morés, - sítio indelével na minha memória, foi uma operação de dar e levar muita porrada, escorraçamos uma grande manada de vacas, os jatos F84 (ou 86?) matavam-nas à rajada e nós varejávamos as laranjeiras com os canos das G3, o inimigo foi expropriadas das laranjeiras, mas aquelas rustáceas do Morés ainda esperam que cumpramos as ordens aéreas e terrestres do seu abate à catana ou com fogueiras aos pés.

As respetivas manifestações recomendam parcimónia, deixemos Salazar, Caetano, Tomás e os outros estar bem mortos, a paráfrase da cantautora Ana Lua Caiano tanto serve a razão como o erro. A antropologia política e social à parte (é bicicleta do Luís Graça), chamo os consequentistas à colação: o 25A foi um acontecimento de libertação, o MFA foi o ator principal da segunda maior derrota dos 800 anos da História de Portugal (a primeira foi em Alcácer Quibir), o 25 de Novembro da maioria foi o 25 de abri-2 para todos, todos, todos!

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Nota do editor

Último post da série de 24 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25678: (In)citações (267): Compensações às colónias (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25311: Historiografia da presença portuguesa em África (416): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Estava eu em doce remanso a alinhavar a sequência cronológica dos primeiros textos fundamentais sobre a presença portuguesa na Guiné quando dei, atónito, pela lacuna de Esmeraldo de Situ Orbis, relato de cosmografia de primeiríssima água não só como documento para o que então se sabia como descrição dos habitantes da região. Houve que reler o Esmeraldo, ter em conta o que sobre ele investigou Joaquim Barradas de Carvalho e selecionar os textos mais relevantes sobre as Etiópias da Guiné. Bem curiosa é a biografia de Duarte Pacheco Pereira, tem um palmarés bem singular como cabo de guerra em terra e no mar, geógrafo, cosmógrafo e roteirista, lendo o Esmeraldo fica claramente visto o que se conhecia, de acordo com relatos de navegações anteriores sobre o continente, o autor chega mesmo a dizer que o rio Senegal era o braço que o rio Nilo lançava pela Etiópia inferior (região correspondente ao que iremos mais tarde chamar por Senegâmbia). Isto para dizer que a narrativa deste herói da Índia é uma peça indispensável em qualquer antologia da história alusiva à presença portuguesa na Guiné, pois não esqueçamos que ele foi encarregado pelo rei D. Manuel I, em finais de 1505, de escrever este relato, ao que parece que se manteve secreto, tratado como segredo de Estado, não convinha que outras potências conhecessem a geografia e a cosmografia das navegações portuguesas.

Um abraço do
Mário



O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1)

Mário Beja Santos

Agora, que estou a preparar os primeiros relatos fundamentais da presença portuguesa nesta região da África Ocidental que é tratada como Etiópia Menor, Rios de Guiné, Senegâmbia, entre outras designações, fiquei de boca à banda quando descobri que ao longo destes anos de colaboração privei o leitor das referências que Duarte Pacheco Pereira teceu à Terra dos Negros.

Este cabo de guerra em terra e no mar, como refere o historiador Damião Peres, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista, é o autor do célebre roteiro circum-africano cujo título é Esmeraldo de Situ Orbis, atenho-me à terceira edição editada pela Academia Portuguesa de História em 1954, com a introdução e notas do já referido Damião Peres. Duarte Pacheco, a quem Camões cognominou como Aquiles Lusitano, distinguiu-se pelos feitos militares na Guiné, assistiu à tomada de Arzila e à consequente ocupação de Tanger, estes sucessos de 1471; participou na fundação da feitoria-fortaleza de S. Jorge da Mina, em 1482, e na exploração dos litorais e do interior das terras que hoje apelidamos como guineenses; dada a craveira dos seus conhecimentos na geografia e cosmografia, D. João II incluiu-o no grupo de técnicos que acompanharam os emissários da negociação do Tratado de Tordesilhas; embora com muitas interrogações e o profundo ceticismo de muitos investigadores, admite-se que tenha percorrido a costa brasileira a mando de D. Manuel I, em 1498, está tudo no campo das hipóteses ou conjeturas, há mesmo quem admita que tenha chegado à Florida.

Também não se sabe se tomou parte na segunda armada da Índia, a de Pedro Álvares Cabral, e no Esmeraldo não se fala da viagem de Cabral. Acompanhou Afonso d’Albuquerque, distinguiu-se pela sua bravura e cobriu-se de glória na defesa de Cochim contra o samorim de Calecute; recebeu, no regresso da Índia, em 1505, o convite de D. Manuel I para escrever o livro a que se chamou Esmeraldo de Situ Orbis; em finais de 1508, foi encarregado de comandar uma frota para procurar e combater o corsário francês Mondragon, o encontro das duas frotas deu-se no cabo Finisterra, em janeiro de 1509, Duarte Pacheco saiu novamente vitorioso; em 1519, obteve o cargo de capitão do estabelecimento de S. Jorge da Mina, que desempenhou até 1522; veio trazido a ferros por ação disciplinar, sairá ilibado; morrerá, segundo a lenda, em extrema pobreza, mas há historiadores que contraditam esta informação.

Vamos agora às referências que Duarte Pacheco tece às Etiópias da Guiné. No prólogo, deixa uma lembrança do Infante D. Henrique, que “mandou descobrir a ilha da Madeira e a mandou povoar; e assim descobriu mais por Guiné, que antigamente se chamava Etiópia, começando dos promontórios de Não e Bojador até à Serra Leoa”.

É no capítulo 5.º do primeiro livro que alude às quatro bocas que o Nilo faz e refere textualmente o grande braço que corre por meio da Etiópia Inferior, o rio Sanaga (Senegal). Recorda-se ao leitor que a exploração das partes em que ele divide a África resulta dos conhecimentos limitados que se possuíam da geografia do continente.

No capítulo 22.º, intitulado Como Deus revelou ao virtuoso Infante D. Anrique que descobrisse as Etiópias a Guiné por seu serviço e daqui por diante comece o seu descobrimento. Sem margem para dúvida que Duarte Pacheco descreveu a glorificação do terceiro filho de D. João I. E, seguidamente, descreve a causa que moveu o Infante a descobrir estas Etiópias de Guiné. “Jazendo o Infante uma noite em sua casa, lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo Batismo; sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto ouro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os reis e povos destes reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.” E pormenoriza a viagem de Gil Eanes e a passagem do Cabo Bojador.

Estamos agora no capítulo 24.º, intitulado Das rotas e conhecenças de Cabo Branco em diante para o Cabo Verde. Vejamos o que ele diz: “Do Cabo Branco em diante começas os baixos de Arguim, os quais duram trinta léguas de longo e vinte de largo. E quem houver de vir para cada um dos Rios de Guiné, estando junto com o Cabo Branco, faça o caminho do Sul e da quarta do Sueste, e irá ter na angra das Almadias que está sete léguas aquém do Cabo Verde; e ali, indo para Sudoeste, haverá o dito cabo. E este caminho deve fazer-se fora dos baixos de Arguim, que são muito perigosos.” E faz a alusão de que o Cabo Branco confina com esta ilha de Arguim, pelo caminho estão muitos baixos de pedra e areia, “e quem por aqui for, deve ir sobreaviso que não dê em seco”.

Estamos agora no capítulo 26.º, intitulado Do caminho que se deve fazer de Arguim para Cabo Verde até ao rio Senegal e dali até ao Cabo Verde por dentro, pela enseada. Então lê-se no capítulo 27.º De onde vem o rio Senegal e das coisas que nele há e das duas Etiópias. Escreve assim: “Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio das Etiópias e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, na qual é certo e sabido que nunca nele em algum tempo morressem de pestilência. E esta primeira Etiópia corre e se estende, por costa, do dito rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, 34 graus e meio de ladeza (latitude). E do dito rio até este cabo são 1340 léguas. A qual, por outro nome, Guiné chamamos.” Agora a narrativa aproxima-se da região que foi conhecida até ao século XIX por Senegâmbia: “No rio de Sanaga (Senegal) são os primeiros negros que aqui é o princípio do reino de Jalofo. E da parte do Norte, pelo rio de Sanaga, parte (confina) com os Azenegues, e da parte do meio-dia ou do Sul se demarca com Mandinga.”

E tece considerações sobre este reino de Jalofo: “Porá em campo o rei de Jalofo dez mil de cavalo e cem mil de pé. E toda esta gente anda nua, senão os fidalgos e homens honrados e se vestem de camisas de pano de algodão, azuis, e ceroulas do mesmo pano de algodão; são circuncisos e macometas (muçulmanos).” E não esconde que há muita coisa ainda por saber: “É incógnito onde nasce o Sanaga, parece que é o braço que o Nilo lança pela Etiópia inferior.”

A imagem mais conhecida do autor, a quem Luís de Camões chamou o Aquiles Lusitano
Duarte Pacheco Pereira na filatelia
Carta de Stefano Bonsignori, de 1580, mostrando parte de África Ocidental, incluindo os atuais países do Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Serra Leoa, Libéria, Costa de Marfim e Burquina Fasso
A casa dos escravos na ilha de Goreia, hoje Património da Humanidade

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)