Mostrar mensagens com a etiqueta Infante D. Henrique. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Infante D. Henrique. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25311: Historiografia da presença portuguesa em África (416): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Estava eu em doce remanso a alinhavar a sequência cronológica dos primeiros textos fundamentais sobre a presença portuguesa na Guiné quando dei, atónito, pela lacuna de Esmeraldo de Situ Orbis, relato de cosmografia de primeiríssima água não só como documento para o que então se sabia como descrição dos habitantes da região. Houve que reler o Esmeraldo, ter em conta o que sobre ele investigou Joaquim Barradas de Carvalho e selecionar os textos mais relevantes sobre as Etiópias da Guiné. Bem curiosa é a biografia de Duarte Pacheco Pereira, tem um palmarés bem singular como cabo de guerra em terra e no mar, geógrafo, cosmógrafo e roteirista, lendo o Esmeraldo fica claramente visto o que se conhecia, de acordo com relatos de navegações anteriores sobre o continente, o autor chega mesmo a dizer que o rio Senegal era o braço que o rio Nilo lançava pela Etiópia inferior (região correspondente ao que iremos mais tarde chamar por Senegâmbia). Isto para dizer que a narrativa deste herói da Índia é uma peça indispensável em qualquer antologia da história alusiva à presença portuguesa na Guiné, pois não esqueçamos que ele foi encarregado pelo rei D. Manuel I, em finais de 1505, de escrever este relato, ao que parece que se manteve secreto, tratado como segredo de Estado, não convinha que outras potências conhecessem a geografia e a cosmografia das navegações portuguesas.

Um abraço do
Mário



O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1)

Mário Beja Santos

Agora, que estou a preparar os primeiros relatos fundamentais da presença portuguesa nesta região da África Ocidental que é tratada como Etiópia Menor, Rios de Guiné, Senegâmbia, entre outras designações, fiquei de boca à banda quando descobri que ao longo destes anos de colaboração privei o leitor das referências que Duarte Pacheco Pereira teceu à Terra dos Negros.

Este cabo de guerra em terra e no mar, como refere o historiador Damião Peres, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista, é o autor do célebre roteiro circum-africano cujo título é Esmeraldo de Situ Orbis, atenho-me à terceira edição editada pela Academia Portuguesa de História em 1954, com a introdução e notas do já referido Damião Peres. Duarte Pacheco, a quem Camões cognominou como Aquiles Lusitano, distinguiu-se pelos feitos militares na Guiné, assistiu à tomada de Arzila e à consequente ocupação de Tanger, estes sucessos de 1471; participou na fundação da feitoria-fortaleza de S. Jorge da Mina, em 1482, e na exploração dos litorais e do interior das terras que hoje apelidamos como guineenses; dada a craveira dos seus conhecimentos na geografia e cosmografia, D. João II incluiu-o no grupo de técnicos que acompanharam os emissários da negociação do Tratado de Tordesilhas; embora com muitas interrogações e o profundo ceticismo de muitos investigadores, admite-se que tenha percorrido a costa brasileira a mando de D. Manuel I, em 1498, está tudo no campo das hipóteses ou conjeturas, há mesmo quem admita que tenha chegado à Florida.

Também não se sabe se tomou parte na segunda armada da Índia, a de Pedro Álvares Cabral, e no Esmeraldo não se fala da viagem de Cabral. Acompanhou Afonso d’Albuquerque, distinguiu-se pela sua bravura e cobriu-se de glória na defesa de Cochim contra o samorim de Calecute; recebeu, no regresso da Índia, em 1505, o convite de D. Manuel I para escrever o livro a que se chamou Esmeraldo de Situ Orbis; em finais de 1508, foi encarregado de comandar uma frota para procurar e combater o corsário francês Mondragon, o encontro das duas frotas deu-se no cabo Finisterra, em janeiro de 1509, Duarte Pacheco saiu novamente vitorioso; em 1519, obteve o cargo de capitão do estabelecimento de S. Jorge da Mina, que desempenhou até 1522; veio trazido a ferros por ação disciplinar, sairá ilibado; morrerá, segundo a lenda, em extrema pobreza, mas há historiadores que contraditam esta informação.

Vamos agora às referências que Duarte Pacheco tece às Etiópias da Guiné. No prólogo, deixa uma lembrança do Infante D. Henrique, que “mandou descobrir a ilha da Madeira e a mandou povoar; e assim descobriu mais por Guiné, que antigamente se chamava Etiópia, começando dos promontórios de Não e Bojador até à Serra Leoa”.

É no capítulo 5.º do primeiro livro que alude às quatro bocas que o Nilo faz e refere textualmente o grande braço que corre por meio da Etiópia Inferior, o rio Sanaga (Senegal). Recorda-se ao leitor que a exploração das partes em que ele divide a África resulta dos conhecimentos limitados que se possuíam da geografia do continente.

No capítulo 22.º, intitulado Como Deus revelou ao virtuoso Infante D. Anrique que descobrisse as Etiópias a Guiné por seu serviço e daqui por diante comece o seu descobrimento. Sem margem para dúvida que Duarte Pacheco descreveu a glorificação do terceiro filho de D. João I. E, seguidamente, descreve a causa que moveu o Infante a descobrir estas Etiópias de Guiné. “Jazendo o Infante uma noite em sua casa, lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo Batismo; sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto ouro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os reis e povos destes reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.” E pormenoriza a viagem de Gil Eanes e a passagem do Cabo Bojador.

Estamos agora no capítulo 24.º, intitulado Das rotas e conhecenças de Cabo Branco em diante para o Cabo Verde. Vejamos o que ele diz: “Do Cabo Branco em diante começas os baixos de Arguim, os quais duram trinta léguas de longo e vinte de largo. E quem houver de vir para cada um dos Rios de Guiné, estando junto com o Cabo Branco, faça o caminho do Sul e da quarta do Sueste, e irá ter na angra das Almadias que está sete léguas aquém do Cabo Verde; e ali, indo para Sudoeste, haverá o dito cabo. E este caminho deve fazer-se fora dos baixos de Arguim, que são muito perigosos.” E faz a alusão de que o Cabo Branco confina com esta ilha de Arguim, pelo caminho estão muitos baixos de pedra e areia, “e quem por aqui for, deve ir sobreaviso que não dê em seco”.

Estamos agora no capítulo 26.º, intitulado Do caminho que se deve fazer de Arguim para Cabo Verde até ao rio Senegal e dali até ao Cabo Verde por dentro, pela enseada. Então lê-se no capítulo 27.º De onde vem o rio Senegal e das coisas que nele há e das duas Etiópias. Escreve assim: “Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio das Etiópias e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, na qual é certo e sabido que nunca nele em algum tempo morressem de pestilência. E esta primeira Etiópia corre e se estende, por costa, do dito rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, 34 graus e meio de ladeza (latitude). E do dito rio até este cabo são 1340 léguas. A qual, por outro nome, Guiné chamamos.” Agora a narrativa aproxima-se da região que foi conhecida até ao século XIX por Senegâmbia: “No rio de Sanaga (Senegal) são os primeiros negros que aqui é o princípio do reino de Jalofo. E da parte do Norte, pelo rio de Sanaga, parte (confina) com os Azenegues, e da parte do meio-dia ou do Sul se demarca com Mandinga.”

E tece considerações sobre este reino de Jalofo: “Porá em campo o rei de Jalofo dez mil de cavalo e cem mil de pé. E toda esta gente anda nua, senão os fidalgos e homens honrados e se vestem de camisas de pano de algodão, azuis, e ceroulas do mesmo pano de algodão; são circuncisos e macometas (muçulmanos).” E não esconde que há muita coisa ainda por saber: “É incógnito onde nasce o Sanaga, parece que é o braço que o Nilo lança pela Etiópia inferior.”

A imagem mais conhecida do autor, a quem Luís de Camões chamou o Aquiles Lusitano
Duarte Pacheco Pereira na filatelia
Carta de Stefano Bonsignori, de 1580, mostrando parte de África Ocidental, incluindo os atuais países do Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Serra Leoa, Libéria, Costa de Marfim e Burquina Fasso
A casa dos escravos na ilha de Goreia, hoje Património da Humanidade

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
É facto que tem que se ler a Crónica dos Feitos da Guiné com sérias reservas, é opinião consensual de todos os investigadores da chamada expansão portuguesa. Fica-se ciente que este cronista-mor do reino não dispunha de elementos fundamentais dos relatos das navegações efetuadas no período henriquino, aí o historiador Duarte Leite fez críticas acerbas a erros e omissões, aqueles e estas incontestáveis. Joaquim Barradas de Carvalho lança o seu olhar numa outra dimensão, compara o que escreveu Zurara com o chamado "Manuscrito de Valentim Fernandes", este altamente depurado de considerações que seguramente o seu autor achava desnecessárias ou de duvidosa importância. Isto para dizer que o olhar de uma geração para uma outra anterior, um padrão cultural distinto (Zurara de cultura livresca, Valentim eminentemente pragmático) saldam-se em textos igualmente distintos, e o que Barradas de Carvalho procurava intencionalmente provar é hoje um dado incontestável, escreve-se de acordo com uma mentalidade, está-se marcado pelo tempo. A mim sobra-me a dúvida, vou apresentar Zurara como peça de abertura do meu trabalho ainda com mais reservas das que tinha antes de ler Joaquim Barradas de Carvalho...

Um abraço do
Mário



Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara

Mário Beja Santos

Ando entregue a uma empreitada de alguma dimensão, a antologia de obras imprescindíveis para conhecer a presença portuguesa numa colónia que se chamava Guiné, desde meados do século XV até ao fim da primeira metade do século XX, quando este território, mais do que fronteiras, ganhou organização e passou a ter um projeto consequente para o seu desenvolvimento (no sentido mais amplo), era seu Governador o Comandante Manuel Sarmento Rodrigues, o nome Guiné passara a ser mais do que um ponto das cartas e mapas.

Obviamente que é necessário procurar saber o rigor com que Zurara escreveu a sua crónica panegírico sobre os trabalhos do Infante. Comecei por ler alguns estudos de Vitorino Magalhães Godinho e dou com o ensaio de Joaquim Barradas de Carvalho na Revista de História n.º 15, julho-setembro, 1953, Ano IV, São Paulo, Brasil, publicação científica em que colaboraram alguns jovens historiadores portugueses marcadamente oposicionistas. O trabalho de Barradas de Carvalho é uma comparação entre o que escreveu Zurara e Valentim Fernandes, este um natural da Morávia, que se distinguiu como impressor em Lisboa, onde faleceu. A análise do historiador prende-se com a mentalidade, o tempo e os grupos sociais, é por isso que ele vai fazer o confronto entre os escritos de Zurara e Valentim Fernandes no que toca à "Crónica da Guiné" (o leitor mais interessado tem à sua disposição o texto integral no site: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35728/38444).

Em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris, Ferdinand Denis encontrou um manuscrito da "Crónica dos Feitos da Guiné", única obra contemporânea do Infante D. Henrique em que se relatam os seus descobrimentos africanos. A sua impressão ficará a ser devida ao Visconde de Santarém. Em 1847, é descoberto em Munique um códice que viria a ser editado pela Academia Portuguesa de História com o título "O Manuscrito Valentim Fernandes", onde há um texto intitulado “Crónica da Guiné”. Anos depois, em 1879, Ernesto do Canto revela a existência de cópias do manuscrito em Madrid e Munique, que se revelaram ser simplesmente cópias.

A "Crónica da Guiné" é posterior a 1460 (ano do falecimento do Infante), põem-se hipóteses altamente discutíveis quanto à organização do texto de Zurara, admite-se mesmo haver a junção do texto de Zurara com uma hipotética crónica de Afonso Cerveira, já que o texto não é homogéneo, mas o seu autor não faz menção de outros intervenientes. Zurara foi o cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo que sucedeu a Fernão Lopes, não se pode dizer que foi pessoa habilitada como investigador. A partir do século XX, os historiadores detetaram erros e deficiências no trabalho de Zurara. Uma das figuras gradas dos estudos da expansão portuguesa, Duarte Leite, identificou que esta crónica é pobre de dados sobre os produtos vindos da Guiné até ao reino, nada comenta do poder dos mouros ao longo do noroeste africano; não ficamos com a mínima ideia da configuração dos litorais, também a nomenclatura dos lugares sucessivamente achados é escassa, mas Duarte Leite não se ficou por aqui. Outro problema posto pelos historiados é conjeturar se a Crónica sofreu ou não censura quanto à política de sigilo, a opinião mais corrente é de que não houve censura, tais e tantas são as referências a estrangeiros que tiveram papel de relevo nestas viagens, como Cadamosto e Usodimare, acresce que se levaram para Veneza cartas de marear, eram relatados para Génova episódios das viagens, escreveram-se descrições como as Navegações de Cadamosto ou o "De prima inuentione Guinee", de Martim Behaim, a partir do relato oral de Diogo Gomes.

Jaime Cortesão, por seu lado, encontra duas espécies de deturpações na Crónica: umas feitas deliberadamente, outras provenientes da política de sigilo. Mas a generalidade dos historiadores considera imaginárias as conjeturas de Cortesão. Feita esta exposição de contextualização, Barradas de Carvalho alude aos quatro géneros de literatura de viagens (crónicas, descrições de viagens e de terras, diários de bordo e roteiros), e vai fixar-se exclusivamente no género crónica para comparar Zurara com o que posteriormente escreveu Valentim Fernandes.

O Manuscrito Valentim Fernandes, disse-se acima, foi descoberto em Munique em 1847. Dentro do acervo de escritos deste manuscrito há uma chamada “Crónica da Guiné”, dizendo o próprio Valentim Fernandes que foi dele autor Zurara. Os investigadores estão divididos quanto à autenticidade de tal manuscrito, há quem admita que é um resumo do códice de Paris ou cópia de Valentim Fernandes de um outro manuscrito. Dias Dinis é de opinião tratar-se de resumo e mutilação feita por Valentim Fernandes da obra de Zurara, Barradas de Carvalho também defende essa postura.

Mas o Estado de diferença dos dois textos de Zurara e Valentim permite observar duas mentalidades distintas: Valentim omite as razões pelas quais o Infante se sentiu movido a buscar as terras da Guiné, Zurara, para além de dar razões que hoje são estudadas como indiscutíveis, fala da astrologia judiciária como a mais importante das razões pelas quais o Infante se sentiu impulsionado às navegações da costa ocidental africana; Valentim não lhe faz uma só referência. Barradas de Carvalho toma posição. O resumo e arranjo da crónica feita por Valentim Fernandes assume um profundo significado. A mentalidade depende dos grupos sociais e depende do tempo. Valentim arranja a seu modo um texto de Zurara, homem que viveu noutro ambiente social e com uma outra experiência social. Há diferenças geracionais inequívocas. Sabemos que Valentim faz ressaltar, releva, no arranjo do texto de Zurara, ou mínima no mesmo texto, aspetos que definem duas intensões, duas valorizações das coisas e dos acontecimentos, dois graus de refinamento da utensilagem mental, haverá mesmo duas utensilagens. E, por isso, pergunta, quem foi Zurara e quem foi Valentim? Zurara foi um cronista palaciano em toda a aceção da palavra, cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo, cavaleiro da casa d’El Rei. Valentim, morávio, foi notário dos comerciantes alemães de Lisboa, a partir de 1503. Sabe-se ter sido editor e autor e um dos mais importantes, se não mesmo o mais importante dos impressores portugueses da época. São homens com experiência de vida, situações sociais e profissionais diversas. Valentim omitiu ou depurou textos da Crónica de Zurara, certamente pela simples razão de lhes conferir falta de substância; omitiu igualmente os textos transcritos por Zurara da Vertuosa Benfeytoria do Infante D. Pedro; Valentim substitui a quase totalidade dos algarismos peninsulares ou luso-romanos por algarismo árabes.

Em suma: Zurara era um cronista palaciano de mentalidade livresca e cavalheiresca; Valentim era um homem ligado à vida comercial do tempo, notado de mentalidade prática e com outra visão do mundo e das coisas.

Postas estas considerações sobre o que separava a mentalidade de Zurara de Valentim Fernandes, a mim fica-me uma questão fundamental por resolver e que tem a ver com a essência do escrito de Zurara, mais do que os seus erros este primeiro escrito sobre as navegações impulsionadas pelo Infante deixam-nos omissões de tomo, a despeito de se ficar com a ideia de que o Infante é visto inequivocamente como um senhor do seu tempo, entusiastas de cruzadas, ávido por saber os contornos do mundo desconhecido e ainda dotado de uma mentalidade medieval naquilo que hoje se configuram os direitos humanos.


Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Marca do impressor Valentim Fernandes
Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980)
____________

Nota do editor

Último post da série de 13 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24425: Notas de leitura (1591): "Negreiros Portugueses na Rota das Índias de Castela (1541 - 1556)", por Maria da Graça A. Mateus Ventura; Edições Colibri, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
A dissertação de Mestrado de Maria da Graça Alvares Mateus Ventura contribui para contextualizar o comércio negreiro feito por mercadores portugueses tanto ao serviço dos reis da Casa de Avis como dos Áustrias, fazia-se na circulação entre Sevilha, Rios da Guiné, Santiago e as Índias Ocidentais, aquele vasto e indefinido território da Senegâmbia deu muitos ancestrais a quem vive nas Antilhas, na América Central e na América do Sul. A autora veio mesmo aos arquivos e dá-nos um quadro surpreendente sobre a participação de portugueses no tráfico negreiro na hispano-américa no período compreendido entre 1492 e 1557 e mais, ficamos a conhecer o universo de todos estes agentes que permitiu aos portugueses lançarem-se nas rotas indianas movidos por um comércio lucrativo. Uma investigação que não pode ser descurada para quem estuda o tráfico negreiro e mesmo a história da Guiné e de Cabo Verde no século XVI.

Um abraço do
Mário



Sevilha, Costa da Guiné, Cabo Verde, Índias Ocidentais, Negreiros Portugueses no século XVI

Mário Beja Santos

A dissertação de Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor António Borges Coelho:
“Os navios negreiros de que se fala neste texto não vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata. Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné. Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”.

A autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou interesses privados”.

Os denominados Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus, Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde" descreve em 1594 as regiões onde se encontram estes povos.

Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores da província de Honduras.

A autora dá-nos o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor. Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa, a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556 a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua alma".

E cuidadoso no estabelecimento de redes sociais:
“Interioriza os valores do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres, agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”
.

A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.


Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution
Imagem de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve ligado ao tráfico negreiro
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24398: Historiografia da presença portuguesa em África (372): Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953 - Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné: Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Sem qualquer rebuço, escrevo insistentemente que a minha dívida com a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa não tem preço. Ali me ajudam a encontrar textos de enorme valia para o estudo da História da Guiné. Ando eu à procura de uma arrumação sobre os textos fundamentais do século XV para o livro que estou a preparar Guiné, Bilhete de Identidade e concluo, depois de ler este admirável ensaio de Vitorino Magalhães Godinho que só é novo aquilo que se esqueceu ou se desconhece (em tantos casos, entenda-se, a genialidade da inovação também comanda a vida). Aquele que terá sido o maior historiador português do século XX, deixa bem claro que a obra de Zurara teve contributos de outrem, que Cadamosto era naturalmente um homem experiente e revelou-se um notável relator de viagens de grande importância para o futuro do conhecimento da costa ocidental africana; e que o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira marca a passagem de um cultura baseada no "ouvir dizer" para uma visão e um sentido da precisão e exatidão, é o pontapé de saída para um conhecimento científico na alvorada do Renascimento.

Um abraço do
Mário



Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné:
Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné


Mário Beja Santos

Foi uma manhã abençoada, daquelas em que mudamos a rotação do olhar, basta embrenharmo-nos na leitura do ensaio para entender como há cerca de 70 anos, aquele que já era a grande promessa da historiografia portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, então a trabalhar no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, já tinha esboçado o estudo das fontes matriciais que permitem o conhecimento que detínhamos da geografia e gentes da Guiné. Trata-se de um trabalho publicado numa publicação brasileira, Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953. Revista de grande prestígio editada em São Paulo, nela irão colaborar outras importantes figuras da cultura portuguesa, como Joel Serrão ou Barradas de Carvalho.

O artigo intitula-se Fontes Quatrocentistas para a Geografia e Economia do Saara e Guiné. Vejamos sumariamente a argumentação do eminente historiador. Os cronistas marcam no Cabo Não o termo inicial dos Descobrimentos portugueses. Para o sul do Cabo Não pode dizer-se que não se realizaram conquistas e ocupações permanentes, no século XV e primeira metade do século XVI. Os intrusos lanceiam mouros, azenegues e negros, assaltam aldeias, roubam o que podem – como em Marrocos; mas descem do navio à praia, internam-se e regressam ao mar. Não são cavaleiros e escudeiros, instalados em praças fortes; são homens de bordo que ocasionalmente calcorreiam os caminhos de terra.

Há relatos, testemunhos dos próprios navegadores e mercadores onde perpassa um espírito muito diferentes do que anima as crónicas. Têm a frescura da visão direta que o cronista não pode dar. Atenda-se às fontes, as dos cronistas, as dos viajantes, mercadores, nautas.

A primeira das fontes é a Crónica dos Feitos da Guiné. O investigador Costa Pimpão, em resultado da análise que efetuou à obra, considera que se trata da cerzidura de duas obras diferentes: uma, a Crónica dos Feitos da Guiné propriamente dita, e a outra uma Crónica ou Livro dos Feitos do Infante D. Henrique, trabalho que terá sido efetuado, segundo Duarte Leite, pelo próprio Zurara. E o historiador põe na mesa a argumentação de diferentes especulações com o nome de Afonso de Cerveira como o primeiro autor da Crónica da Guiné. Tudo leva a querer que a questão é insolúvel. A perda da crónica de Cerveira, presumivelmente fonte quase exclusiva da obra de Zurara, fere irremediavelmente incerteza o valor da Crónica dos Feitos da Guiné que até nós chegou.

E o historiador enuncia as conclusões de Duarte Leite quanto ao valor da Crónica de Zurara: destina-se a narrar os feitos dos portugueses em África, quer dizer, a ser uma crónica de ações guerreiras, não é uma crónica dos Descobrimentos; as distâncias que aponta estão todas erradas por forte excesso; raras vezes apresenta as distâncias; omite frequentemente as datas de partida das viagens e nunca refere as datas de regresso; é muito pobre de informações no que respeita à maneira como se organizavam as expedições, etc., etc. Temos de reconhecer que as perplexidades se amontoam ao pretendermos utilizar a Crónica da Guiné para estabelecer o estudo económico e social das populações com quem os portugueses entraram em contacto.

Quando transitamos para a segunda em data das fontes que se reportam ao descobrimento da Guiné, o panorama muda integralmente. As Navegações de Alvise de Cadamosto são obras de um navegador e mercador que as escreveu em 1456 (ano da sua segunda viagem) e 1483 (ano presumível da sua morte). É muito natural que as Navegações se baseiem em apontamentos de bordo. Cadamosto não é o conservador de um arquivo, não é um homem de biblioteca, é o homem que viajou largamente, conhece a Itália, o Egito, Creta, o Norte de África, a Flandres, Portugal, a Guiné. É certo que em 1455 embarcou numa caravela, fez escala pelas ilhas de Porto Santo e Madeira e arquipélago das Canárias, navegou para o Sul, passando o Cabo Branco e ilha de Arguim, visitou a foz do rio Senegal e o país de Budomel, dobrou o Cabo Verde, chegou à Gâmbia. No ano seguinte, na companhia de Antoniotto Uso di Mare teriam descoberto Cabo Verde, teriam chegado ao rio Geba e aos Bijagós. Podemos ficar com uma quase certeza de que Cadamosto escreveu sobre o que viu, dispunha de uma atitude mental de curiosidade pela flora e fauna, pelos costumes, crenças e formas de organização dos povos que não encontramos nessa data para além dele em Portugal.

A conclusão análoga chegaríamos se comparássemos as Navegações de Cadamosto com as de Pedro de Sintra. As de Pedro de Sintra são muito mais concisas e mais pobres em dados sobre a natureza e os indígenas, é uma quase seca enumeração dos lugares percorridos por aquele navegador até 1462. Seja como for, a Navegação de Pedro Sintra é obra escrita ou ditada por um escrivão da época henriquina e, como tal, um excelente padrão dos diários de bordo, ao começar a segunda metade do século XV. A Navegação de Pedro Sintra descreve-nos a costa africana desde o Geba até à mata de Santa Maria.

Numa coletânea de obras sobre a expansão portuguesa, compilada por Valentim Fernandes entre 1506 e 1507, vêm insertos três textos latinos; trata-se de uma relação do descobrimento da Guiné redigida em latim sobre o relato (oral ou escrito?) que lhe fez Diogo Gomes. O que na Relação é de facto do antigo navegador e o que de imputar-se ao alemão não é fácil descriminar. Na enumeração e narrativa das navegações até 1448, há evidentes discrepâncias entre o relato de Diogo Gomes e o de Martinho da Boémia.

Apensado ao Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, anda uma Relação por ele redigida. Não se tem prestado atenção a esta obra, considerando-se geralmente que não passa da reprodução da de Diogo Gomes – Martinho da Boémia, foi escrita a D. João II, sugerindo-lhe um plano para atingir a Índia pelo Ocidente. A Relação de Munzer divide-se claramente em duas partes: a primeira, narra os Descobrimentos realizados em vida do Infante D. Henrique; a segunda, informa-nos acerca do clima e mar, flora e fauna, produções e comércio, guerras e religião da Guiné, bem como acerca das ilhas de São Tomé, Madeira e Açores.

O mais rico repositório de informações etnográficas sobre a África Ocidental setentrional é a coletânea de Valentim Fernandes, o Alemão. Valentim Fernandes não é navegador ou comerciantes, mas também não é cronista oficial, mas está em relações com todos estes meios. O chamado Manuscrito Valentim Fernandes constitui uma justaposição, quando não amálgama, de fontes heterogéneas que o alemão compilou, resumiu e redigiu sem qualquer perfeição ou sequer preocupação arquitetónica.

Temos ainda os relatos de João Fernandes e Álvaro Velho, cobrem todo o Saara Ocidental e a parte central e mesmo a Guiné ou Terra dos Negros, no sentido clássico do termo. As suas descrições não encerram qualquer elemento de maravilhoso ou sequer fantasia. Muito minuciosas, confirmaram, ou são confirmadas pelas fontes muçulmanas. São mais ricas mesmo, sobretudo para a Guiné Ocidental do que a obra Da África, Terceira Parte do Mundo, de João Leão, dito o africano. Uns 20 anos mais tarde, Duarte Pacheco Pereira principiará outro roteiro, o Esmeraldo de situ orbis (isto é, do sítio verde ou marítimo do orbe). O Esmeraldo é simultaneamente um compêndio de cosmografia e náutica astronómica que apresenta soluções novas e práticas, um roteiro muito completo no feixe de indicações de rumos, distâncias, enfim, é um compêndio de geografia comercial com elementos de geografia histórica. Mas o seu interesse e importância não reside somente na conexão das matérias que sistematicamente expõe, reside acima de tudo no espírito que o informa. Não é ainda o espírito científico, mas perpassa por toda a obra de Duarte Pacheco a ânsia da precisão, de mostrar pela experiência, há mesmo escrúpulo rigoroso na recolha dos dados. Escrito de 1505 a 1508, o Esmeraldo representa uma revolução cultural, de que não é aliás o único motor nem indício: a passagem de uma cultura sem sentido do possível e do impossível, baseada no “mais ou menos assim” e no “ouvir dizer” para o que poderíamos chamar o humanismo técnico: o sentido da precisão e exatidão, a preocupação pela medida, a busca de provas verificáveis.

Um notável artigo, até prova em contrário arruma as fontes quatrocentistas e estabelece o quadro informativo do que vínhamos a saber daquela costa ocidental africana, peça fundamental do projeto henriquino que abriu portas para o desencravamento do mundo.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)
Estátua de Zurara no pedestal do Monumento a Luís Vaz de Camões, de Victor Bastos
Mapa do rio Gâmbia e área limítrofes, c. 1732
Retrato de um africano, por Albrecht Dürer, 1508
Navegações de Cadamosto, nas suas duas viagens
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
A descrição desta segunda viagem trouxe uma inevitável polémica entre os historiadores dos Descobrimentos, não há consenso sobre as paragens cabo-verdianas que ele regista. Atenda-se que ele umas vezes fala do Cabo Verde continental, na primeira viagem faz até uma bela apreciação paisagística, esta segunda viagem leva-o até ao rio de Gâmbia, é certo e seguro que o Infante D. Henrique lhe pediu para explorar a costa abaixo, e assim o vemos no batizado Cabo Roxo, depois o Casamansa e depois o rio Grande ou Geba, onde ele deu conta do macaréu, coisa que nunca vira. É um mercador, percebe-se sem dificuldade que anda ali a desempenhar o papel de cronista, o registo que faz nas suas viagens prima pela curiosidade do seu olhar, tem conhecimentos de Náutica, fascina-se com a vegetação, com os animais e as aves, teme a aproximação das caravelas da terra, de vez em quando é patente a hostilidade quando chega. Quando acabamos esta saborosa leitura e sabemos que virão um Lemos Coelho, um André Donelha, um Duarte Pacheco Pereira, um André Álvares d'Almada, rendemo-nos a este espírito curioso, alguém que já tinha mundo e que mercadejava no Mediterrâneo e que regressa à sua terra onde exercerá cargos políticos. É uma peça-chave da nossa tão fecunda literatura de viagens, talvez a reportagem mais viva que guarda a historiografia deste projeto henriquino em que Cadamosto embarcou, pois não disfarça que também queria enriquecer.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

A segunda viagem de Luís de Cadamosto aconteceu em 1456, ele e Antonieto Usodomar armaram duas caravelas e rumam para o rio de Gâmbia, partem com o agrado do Infante D. Henrique. “Saímos do lugar chamado Lagos, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o Sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para Sudoeste, andámos muito”. Assim chegaram ao Cabo Branco, foram colhidos por um forte temporal, mudaram de azimute, e depois avistaram terra, nada sabiam daquelas paragens. Começaram por uma ilha desabitada: “Havia imensa quantidade de pombos. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do Norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do Sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras”. E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”. E daqui partiram para um lugar chamado Duas Palmas, entre Cabo Verde e rio de Senegal e assim chegaram ao rio de Gâmbia, não encontraram oposição de ninguém, encontraram uma ilha e puseram o nome de Sant’André, prosseguiram viagem pelo rio Gâmbia, apareceu alguém que percebia do intérprete que tinham levado que lhes disse que aquele país era Gâmbia, e que o seu principal senhor era Forosangoli, que vivia a nove ou dez jornadas, este senhor dependia do imperador do Mali, mas que havia muitos senhores menores, disse mesmo que os levaria a um deles chamado Batimansa, oferta que agradou aos navegadores.

Chegados ao destino, enviaram um presente ao senhor Batimansa, uma camisa. “Mandámos-lhe a dizer que tínhamos vindo de mandado do nosso Senhor, o Rei de Portugal, cristão, para travar com ele boa amizade e para saber se precisava das coisas dos nossos países, que todos os anos o nosso Rei lhas enviaria, e com muitas outras palavras”. Permaneceram onze dias naquele local, receberam muitas visitas, havia gente que queria vender coisas. “As coisinhas que nos traziam eram algodões, fiados de algodão e panos de algodão feitos à sua maneira. Traziam também muitos macacos e babuínos grandes e pequenos. Também traziam gatos de algália e peles deles para vender”.

Dá-nos um quadro bem curioso das almadias e do modo de remar. E tece também considerações sobre os usos e costumes, e não deixa de falar do clima: “Esta terra é muito quente, e quanto mais se anda para o Sul tanto mais parece pedir a razão que as regiões sejam quentes; e sobretudo neste rio havia muito mais calma do que no mar, por estar povoado de muitas árvores e muito grandes. Da grandeza destas digo que estando nós a fazer aguada numa fonte junto à margem do rio, havia uma árvore grandíssima e muito grossa; porém, a altura não era proporcional à grossura, porque julgámos que tivesse de altura uns 20 passos, e a grossura, mandando-a medir, achámos umas 17 braças de circunferência, no pé”.

Também muito saborosa é a descrição que faz dos elefantes, deram-lhe a comer carne de um deles, achou-a dura e desenxabida. “Trouxe um dos seus pés e parte da tromba para o navio, e também muitos dos cabelos do corpo, que eram pretos e compridos um palmo e meio e mais; e tudo, juntamente com parte daquela carne que foi salgada apresentei depois em Portugal ao dito Senhor D. Henrique, que as recebeu como grande presente, por serem as primeiras coisas que tinha recebido daquele país, descoberto por indústria sua”. Volta a fazer comentários sobre as coisas que viu no rio de Gâmbia, e põem-se ao caminho para Casamansa, onde também havia um senhor chamado Casamansa. Daqui partiram para o Cabo Roxo, chegaram depois à boca de um rio de razoável grandeza, deram-lhe o nome de rio de Sant’Ana, continuaram e encontraram outro rio a que puseram o nome de São Domingos, e assim chegaram à boca de um grandíssimo rio, que julgaram ser um golfo. “Estivemos sobre a embocadura deste grande rio, ou Rio Grande, dois dias, e a Estrela do Norte aparecia aqui muito baixa. Neste lugar encontramos uma grande contrariedade, que não há em outro lugar, pelo que pude ouvir, e foi que, havendo aqui maré de água enchente e vazante, como em Veneza e em todo o poente, e enquanto em toda a parte cresce seis horas e baixa outras seis, aqui cresce quatro horas e baixa oito, e é tão forte o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, que é quase incrível, porque três âncoras na proa mal nos podiam segurar, e com esforço, e momentos houve em que a corrente nos fez fazer à vela à força, e não sem perigo, porque tinha mais força do que as velas com o vento”. Cadamosto, sem o saber, estava a experimentar o macaréu, será provavelmente esta a primeira descrição feita por um europeu deste fenómeno da natureza.

E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.

Texto de inexcedível beleza e de uma incontornável riqueza para esta literatura de viagens encetada no século XV.


Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de2 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Continuamos na companhia de Luís de Cadamosto, chegou-se até ao rio de Gâmbia e regressa-se a Portugal. Esperem agora pela segunda viagem, desta vez vai até à região do Batimansa, rei Mandinga, continuará a viagem para Sul até alcançar o rio Casamansa, depois Cabo Roxo, rio de S. Domingos ou Cacheu, chegará ao rio Grande, o outro nome dado ao rio Geba. A etnologia mas sobretudo a literatura de viagens ficarão com uma dívida enorme com este jovem mercador veneziano sempre atento aos usos e costumes, ao funcionamento dos mercados, às culturas, à postura do comer, à prática religiosa, vimos aspetos muito saborosos da sua digressão pelo país de Budomel, como Cadamosto discute sem acrimónia aspetos religiosos com um muçulmano, a sua curiosidade sempre desperta pelos animais e pelas aves, revelou-se o narrador que seguramente irá influenciar os continuadores das viagens que se seguirão à sua, tome-se a narrativa destas duas navegações como um dos mais espantosos guias de viagens de todos os tempos.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

O jovem veneziano Luís de Cadamosto, por acaso do destino, veio parar a um porto algarvio, o Infante D. Henrique soube da sua existência, conversaram e pouco depois partiu uma caravela a caminho do Cabo Branco, Cadamosto era mercador e soou-lhe bem a expetativa de fazer bons negócios na África Negra que já aqui se descreveu como viu os arquipélagos da Madeira e das Canárias, passou por Arguim e neste exato momento, depois de nos contar como vivem os azenegues, os pardos, chegou ao país de Budomel, segundo os especialistas estão aqui algumas das descrições fulgurantes de alguém que não era cronista mas que tinha um olhar apurado para ver os locais e as pessoas. Começa assim:
“Passei o dito rio de Senegal com a minha caravela, e navegando cheguei ao país de Budomel, lugar distante do dito rio cerca de 800 milhas pela costa, a qual é toda terra baixa e sem montes. Este nome Budomel é título de senhor, e não nome próprio do lugar. Neste lugar me detive com a minha caravela para tirar língua deste senhor, embora tivesse recebido informação de certos portugueses que tinham tido trato com ele, de que era pessoa e senhor de bem, e em quem se podia ter confiança, e realmente pagava o que tomava”.

Cadamosto não vai desprovido, leva cavalos, pano de lã, trabalhos de seda mouriscos e algo mais. Budomel veio ao seu encontro, convidou-o para sua casa, o veneziano deu-lhe sete cavalos com os seus arneses. “Antes de partirmos, presenteou-me logo com uma rapariga de doze para treze anos, muito linda, por ser muito negra, e disse que ma dava para serviço da minha câmara; aceitei-a e enviei-a para o meu navio”. Budomel pôs ao serviço de Cadamosto um seu neto, chamado Bisboror, acolheu-o quase todo o mês de novembro. E aproveita a oportunidade para descrever usos e costumes. “O rei deste reino só tem aldeias de casas de palha, e Budomel era senhor de uma parte deste reino, que é coisa pequena. Não são senhores porque sejam ricos de tesouros ou de dinheiro, porque nada disso têm; mas podem-se chamar verdadeiramente senhores de cerimónias e de séquitos de gentes, pois sempre estão acompanhados e reverenciados por muitos, e são muito mais temidos pelos seus súbditos que os nossos senhores daqui”.

Descreve a casa de Budomel, as mulheres, as gentes que o servem, as cerimónias de que usa o rei ao dar audiências, oram em conjunto na mesquita, discutem a fé sem qualquer ponta de fanatismo, veja-se o que se passou depois de algumas orações na mesquita: “Quando tinha acabado, perguntava-me o que me parecia; e por ter muito prazer em ouvir falar das coisas da nossa fé, dizia amiúde que lhe narrasse algumas, de forma que eu lhe dizia que a dele era falsa, e que os que lhes mostravam tais coisas ignoravam a verdade; e estando presentes aqueles seus árabes, reprovava a lei de mafoma, e mostrava ser a nossa fé verdadeira e santa, enquanto eu fazia desgostar aqueles seus mestres da lei. Do que este senhor se ria, e dizia que julgava fosse boa a nossa fé e não podia ser diversamente, porque Deus que nos tinha dado tantas coisas boas e ricas, tanto engenho e sabedoria, não teria deixado de nos dar também boa lei”.

Descreve o modo de comer, fala das produções do reino, de como se lavra, fala-nos dos animais que ali existem e deslumbra-se com os elefantes: “É animal que não ataca o homem se este o não ataca; e o modo de o elefante atacar o homem é dar-lhe com a trompa comprida uma pancada tão forte de baixo para cima que atira com ele às vezes quase como um tiro de seta”. Deslumbra-se igualmente com as aves e dá-nos um quadro como funciona o mercado dos negros e das coisas que aí negoceiam:
“Aqui vinham homens e mulheres do país, de quatro ou cinco milhas ao redor, porque os de mais longe iam a outros mercados; e nestes mercados compreendi muito bem que esta gente é pobríssima pelas coisas que levavam ao mercado a vender, que eram algodões, mas não em grande quantidade, fiados também de algodão, panos de algodão, legumes, azeite, milho, gamelas de madeira, esteiras de palma e um pouco de todas as outras coisas que usam para viver (…) Estes negros, quer os homens quer as mulheres, vinham ver-me por maravilha; parecia grande coisa ver cristãos e não menos se admiravam da minha brancura que do meu traje, que era ao uso da península hispânica um jubão de damasco preto e uma capa por cima; olhavam para o pano de lã que eles não têm e para o jubão, e muito se admiravam; alguns me tocavam as mãos e os braços e com saliva me esfregavam para ver se a minha brancura era tinta ou carne e vendo que efetivamente era carne ficavam maravilhados”.

São olhares alargados que passam pelos cavalos, os costumes das mulheres, os instrumentos musicais. Depois encontra Antonieto Usodomar, um genovês que vinha com duas caravelas, já saiu do país do senhor Budomel, resolveu ir mais adiante, passou Cabo Verde (em território africano), encontrou no alto mar o genovês, justifica porque é que Cabo Verde é assim chamado e entra em nova descrição, a dos Barbacinos e dos Serreres, estamos na África Negra, mas estes dois povos não estão sujeitos ao rei do Senegal. “São homens muito negros e bem encorpados, a terra é bastante rica de bosques e abundante de lagos e de águas, e por isso se consideram muito seguros, não sendo possível entrar nela senão por passos estreitos; por isso não temem nenhum senhor circunvizinho, e aconteceu muitas vezes, em tempos passados, que alguns reis de Senegal quiseram fazer-lhes guerra para os subjugar e sempre foram derrotados pelas duas nações, quer pelas frechas ervadas (flechas envenenadas), quer pelo país ser muito áspero".

Assiste à crueldade de ver trucidar alguém que manda a terra, resolve não mexer e prossegue viagem, a próxima etapa é o país de Gâmbia. Há encontro com gente que vem em canoas, mas não comunicam. Entra finalmente no rio Gâmbia, chega gente, desta feita há cumprimentos, e o comentário de Cadamosto é precioso:
“Suspenderam eles a remada e levantaram os remos para o ar, ficando a olhar para nós, como para coisa maravilhosa; e examinando-os também, julgámos que poderiam estar, quando muito, 130 a 150 negros, que nos pareceram homens belíssimos de corpo, muito pretos, todos vestidos de camisas brancas de algodão, com chapelinhos brancos na cabeça, quase à moda dos tudescos, salvo que de cada lado tinham uma espécie de asa branca, com uma pena no meio do dito chapelinho, quase como querendo dar a entender que eram homens de guerra. À proa de cada uma das almadias estava um negro, em pé, com uma adarga redonda no braço, que nos parecia ser de couro; e, assim, nem eles atirando nem nós fazendo movimento algum contra eles, foram-se aproximando, e chegados a eles, sem outra saudação, largaram os remos e começaram todos a atirar com os arcos. Os nossos navios, à vista do assalto, descarregaram da primeira vez quatro bombardas. Ao ouvi-las, pasmados e atónitos pelo grande estrondo, os negros largaram os arcos, e olhando uns para um lado, outros para o outro, estavam admirados de verem as pedras das bombardas ferirem a água junto deles; e ficaram muito tempo a olhar para elas, mas, não vendo outra coisa, perderam o medo ao estrondo e, depois de termos atirado muitos tiros, pegaram nos seus arcos e começaram novamente a atirar com grande ardor, aproximando-se dos navios um tiro de pedra. Os marinheiros começaram a alvejá-los com as suas bestas e o primeiro que descarregou foi um filho bastardo daquele gentil homem genovês, que feriu um negro no peito, que logo caiu morto na almadia. Ao ver isto, tomaram os seus aquela frecha e consideraram-na muito, quase maravilhados daquela arma; mas nem por isso deixaram de a atirar aos navios vigorosamente, e as das caravelas a eles, de forma que em pouco tempo foram mortos muitos negros, e dos cristãos, graças a Deus, nenhum foi ferido”.

Os atacantes recuam e depois procuraram chegar à fala com eles por meio de intérpretes, dizem quem são e de onde vêm, desejavam ter amizade e boa paz com eles. Responderam os da terra que tinham notícia como nós tratavam os negros do Senegal, tinham por certo que os cristãos comiam carne humana e que compravam os negros só para os comer, e que por isso não queriam de forma alguma a amizade de quem vinha e que nos queriam matar a todos, e depois de toda esta conversa fugiram para terra e assim acabou a guerra. Cadamosto e o genovês saem dali, vão na direção de Cabo Verde para voltar para Portugal. Ainda faz uma descrição primorosa da astronomia e aqui acaba a primeira navegação. Vamos agora falar da viagem seguinte, aquela em que chegaram a algumas ilhas de Cabo Verde, isto já em 1456.

(continua)

Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
São duas belas traduções, acrescendo que a edição francesa, da categorizada Chandeigne, que tanto prestigia a cultura portuguesa vem acompanhada de comentários e notas de grande mérito, tornam ainda mais esclarecedoras as narrativas deste jovem veneziano que foi seduzido pela proposta do infante D. Henrique de ir até ao Senegal e à Gâmbia, acabará por fazer duas expedições, e sendo ainda assunto de grande polémica acabou por descobrir algumas das ilhas de Cabo Verde. Importa insistir que ele não era cronista, daí o colorido do seu estilo e a completa liberdade de expressão, que iremos depois ver nos seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto. Poucas obras do século XV podem ombrear com Cadamosto, ele viajará até ao Casamansa e ao Rio Grande, irá mesmo descrever o fenómeno do macaréu. É um autor inesquecível, tenho grande satisfação em trazê-lo aqui numa revisitação.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que o nome de Luís de Cadamosto é aqui referenciado, mas o facto de se ter encontrado uma tradução de 1944, do Instituto para a Alta Cultura e edição francesa de 1994, Edições UNESCO e Edições Chandeigne, obviamente com a riqueza de um tradutor italiano, por um lado e edição francesa cheia de pormenores, por outro, tudo concorre para voltarmos à fala com este jovem patrício veneziano que em 1455, no decurso de uma escala involuntária no Sul de Portugal, se deixou convencer pelo Infante D. Henrique para uma viagem a África. O que mais nos toca nestas narrativas é que o olhar de Cadamosto não é de um cronista oficial, ele era um mercador sem preconceitos, um jovem homem cheio de curiosidades a quem repugnava a efabulação, revela-se dotado de uma surpreendente abertura de espírito. A prova disso são os seus testemunhos: a descrição de paisagens e peripécias da navegação alterna com as da vida quotidiana dos berberes azenegues e os negros da Guiné, o que vai conferir à narrativa um grande interesse etnológico. Os seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto Bisboror ficaram célebres do seu bom humor e da sua vivacidade. E importa não esquecer que as viagens de Cadamosto estão na primeira linha dos testemunhos ocidentais da África Negra.

Abre a descrição da primeira viagem com uma certa eloquência: “Fui eu, Luís de Cadamosto, o primeiro que saí da mui nobre cidade de Veneza para navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar para as partes do meio-dia, nas terras dos negros da baixa da Etiópia”. Assume que vai falar de um outro mundo. Apresenta-nos o Infante D. Henrique e as explorações náuticas a que se dedicava, elogia as caravelas, não esconde que queria trabalhar para adquirir meios e situa o encontro com o Infante: “Embarquei nas nossas galés de Flandres, saímos de Veneza em 1454, navegámos por nossas jornadas até que nos encontrámos na Península Hispânica. E encontrando-me, pelo tempo contrário, no Cabo de S. Vicente, deu-se o caso de não muito longe dele estar o referido senhor Infante D. Henrique numa povoação vizinha chamada Raposeira”.

O Infante convoca-o, quem o procura leva amostras de açúcares da ilha da Madeira e de sangue de drago. Ocorre o encontro, o infante faz-lhe a proposta de partir à procura de novos mundos, apraza-se um contrato, arma-se uma caravela nova, era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, em 22 de março de 1455 rumam para a Madeira, passam por Porto Santo pois a ilha da Madeira onde ele descreve as coisas que aqui se produzem. Partem da Madeira para as ilhas Canárias, outra descrição preciosa e depois navegam para o Sul, como ele escreve na direção da Etiópia, chegam a Arguim, fala no deserto do Sara e diz: “É muito grande, a travessia demora 50 a 60 dias a cavalo. Este deserto vem beber no mar Oceano, na costa, que é toda arenosa, branca e seca; é terra baixa, toda igual e não mostra ser mais alta num lugar que no outro, até ao Cabo Branco”. Aproveita para falar dos peixes e de povoações por onde passam as caravanas que vêm de Tombuctu, quanto a quem ali vive eram maometanos que vagueiam pelos desertos e são homens que vão às terras dos negros. “São em grande número e têm grande abundância de camelos, nos quais levam o cobre e a prata da Berberia e outras coisas para Tombuctu e para as terras dos negros, e daí trazem oiro e malagueta que trazem para cá. São homens pardos, e vestem umas túnicas brancas sobre o corpo. Os homens trazem um lenço à mourisca na cabeça e andam sempre descalços”.

Cadamosto refere as operações da feitoria de Arguim, fala nos Azenegues que trata como homens mulatos e que habitam em alguns lugares da costa que fica para além do Cabo Branco. Ele refere o império Melli, seguramente o império Mali, dizendo que há muito calor, que não há no dito país animais quadrúpedes e que os Árabes e Azenegues adoecem e morrem devido ao grande calor. O sal era a mercadoria mais apreciada e descreve com enorme vivacidade os termos de um comércio mudo, os mercadores não se viam uns aos outros. “Visto o sal, põem uma quantidade de oiro na frente de cada monte e voltam para trás, deixando o oiro e o sal, e retiram-se. Voltam os negros do sal, e se a quantidade de oiro lhes não agrada, deixam o dito oiro com o sal, e voltam para trás, após o que vêm os outros negros do oiro, e levam o monte que encontram sem oiro; e aos outros montes de sal tornam a pôr mais oiro, se lhes parece, ou deixam o sal. E deste modo fazem o seu comércio sem se verem uns aos outros, nem falar-se, por um longo e antigo costume”.

Cadamosto quer saber mais sobre as gentes do império do Mali, outra descrição curiosa. Voltando aos Azenegues (pardos ou mauritanos), dá pormenores: “Nesta terra dos pardos não se bate moeda alguma, todo o comércio deles é trocar coisa por coisa, e duas por uma, e desta maneira vivem”. E assim chegamos à descrição do rio de Senegal, pensa-se que era o Níger, já tinham passado o Cabo Branco e assim chegaram à terra dos negros: “Cinco anos antes que eu fizesse esta viagem, este rio foi descoberto por três caravelas do dito Infante que entraram dentro dele, e fizeram paz com estes negros, de maneira que começaram a fazer comércio”. E prova da muita ignorância que ainda havia quanto à cartografia, veja-se o que ele escreve sobre o rio de Senegal: “Este rio, segundo dizem os sábios, é um ramo do rio Gion que vem do Paraíso Terreal, ramo que foi pelos antigos chamado Níger, e vai banhando toda a Etiópia e a aproximando-se ao mar Oceano, onde desagua e faz muitos outros braços e rios, além deste de Senegal. Outro ramo do dito Gion é o Nilo, que passa pelo Egito e desemboca no nosso mar Mediterrâneo. Esta é a opinião daqueles que têm dado a volta ao mundo”.

Chegou à terra dos Jalofos, conta como se elegem os reis do Senegal e como se vive:
“Este rei é semelhante ao dos Cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem e pobríssima, e não há cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha, pois não as sabem fazer de paredes, por não terem cal nem pedras para as construir. O rei não tem rendimento certo de tributos, mas todos os anos os senhores da terra, para que se dê bem com eles, lhe fazem presentes de alguns cavalos, que são muito apreciados por haver falta deles, e fornecimentos de cavalos, e outros animais, como vacas e cabras, legumes, milho e coisas semelhantes. Mantém-se este rei também de roubos, que manda fazer a muitos escravos, quer no país, quer no dos vizinhos. Desses escravos se vale por muitos modos, sobretudo em cultivar certas possessões que lhe são reservadas e também vende muitos deles aos azenegues e mercadores árabes que aí chegam com cavalos e mais coisas; e vende outros também aos cristãos, depois que eles começaram a negociar mercadorias naqueles países”.

Diz que a religião destes negros é a maumetana, mas não estão muito firmes na fé. E dá-nos um texto vivacíssimo quanto a trajes e costumes dos negros: “Esta gente quase toda anda sempre nua, exceto um coiro de cabra posto em forma de braga, com que cobrem as suas vergonhas. Mas os senhores e os que podem um pouco vestem camisas de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros. As mulheres fiam e fazem panos de um palmo de largura, e não sabem fazê-los mais largos porque não sabem fazer os pentes para os tecer, de forma que cozem juntos quatro ou cinco daqueles panos de algodão, quando querem fazer algum trabalho largo”. Observa a natureza das guerras e do armamento usado, guerra entre vizinhos, não trazem couraças, só têm escudos redondos e largos, usam azagaias que são dardos ligeiros, dardos que têm um palmo de ferro lavrado com barbas miúdas e usam também alfanges mouriscos que fazem com o ferro da Gâmbia. “As guerras deles são muitíssimo mortíferas, por estarem desarmados; os seus golpes não falham, e matam-se tanto como feras, e são muito atrevidos e bestiais, pois que em qualquer perigo antes se deixam matar do que fugir, ainda que possam fazê-lo”.

E passa o rio Senegal e chega ao país do Budomel.

(continua)
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)