As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção, em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.
Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade.
Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas.
Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.
(...) Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e no banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta.
Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício.
Chegado ao quartel, e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne.
Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos, inviabilizaram-se novas façanhas.
A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido), foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.
Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas.
Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha.
Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”.
O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.
Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.
Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.
Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre, estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.
No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.
Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu.
Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento.
O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras, virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.
O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.
O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas, criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.
Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.
(...) Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas.
Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que "Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos", ao que o capitão retorquiu: "Solicito envio urgente de Teixeira Pinto"...
Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase.
Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render, a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”.
Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto.
Colocada a questão ao capitão e ao 1.º sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.
Fiz a transferência do depósito ao vagomestre “periquito”, que as “comeu de cebolada”, mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º sargento deles não era burro e, como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca.
Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão.
Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias lá chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado.
Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p*ta da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate, as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar. (...)
(Seleção / revisão e fixação de texto / título: LG)
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 18 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação