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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13535: Blogoterapia (260): A minha toca (Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421)

1. Mensagem do dia 13 de Agosto de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Tenham coragem
Leiam até ao fim
É um pedido


A MINHA TOCA

Sou serrenho
Nasci na serra
Numa toca
Não na grandeza de uma caverna
Habitada por homens superiores
Tinha como vizinhos
As raposas astutas
Passava o Sr. Melro
Sempre impecavelmente vestido
No seu fato preto de alta pena
Lá mais ao longe voava a cotovia
Também cantava o rouxinol
Bebia água pura com sabor a champanhe
No riacho ao lado passeavam-se peixinhos
Cantavam as rãs e os sapos
Os corvos também apareciam, com o seu mistério
Comia frutos silvestres com as aves e as abelhas
Colhia das árvores as frutas com que me banqueteava
Em noites de trovoada, eram lindos os desenhos feitos com os relâmpagos
Em noites calmas, ouvia-se o gemido do mocho e da coruja
Nas noites em que o vento dava concertos
As árvores dançavam loucamente
Qual artistas de cabarés de elite
Ou mesmo como nos palcos dos bailados
Mas a fama do império chegou à minha toca e eu tive que partir
A desilusão não conta
Voltei mais louco
Perdi-me
Iludi-me não voltei à minha toca
Fiquei numa gaiola normal e modesta
Havia gaiolas de luxo
Havia até gaiolas douradas
Todas tinham porta com fechadura
Também havia jaulas com celas
Tinham presos por que tinham falado
As gaiolas hoje são em excesso
Há carência de jaulas
Há tanta gente que fala, fala e não esta preso
Gostava que não fosse assim
Vou voltar a procurar a minha toca sem porta
A minha gaiola com porta e fechadura
Onde criei o meu mundo e dos meus
Foi assaltada
Foi devassada
Não ficou nada de valor
Nada com valor moral
A porta e a fechadura da gaiola alta palavra em tecnologia
Vou voltar à minha toca
Aos meus antigos vizinhos
Riam-se da caricatura da mensagem!
Mas pensem pelo menos uma vez
No quanto estão inseguros
E o valor que as vossas coisas têm e que se não apercebem
Não quero lançar o medo
Não! Isso nunca!
Mas quem sabe pode haver uma coisita a fazer e fazerem e assim, não terem razões para dizerem, casa roubada tranca na porta!

Um grande abraço a todos
Ernesto Duarte
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13521: Blogoterapia (259): Mensagem de agradecimento de Rui Alexandrino Ferreira à tertúlia, a propósito do lançemento do seu último livro "Quebo - Nos confins da Guiné" e da passagem do seu 71.º aniversário

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13485: Blogoterapia (258): Palavras (Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421)

1. Mensagem do dia 5 de Agosto de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Olá Carlos, Olá Luís
Tudo de bom para vocês.
O meu modesto contributo, para quem está de Oficial Amanuense dia, poder dizer recebi mais um email!
Pois a pobreza aqui não é fruto da crise!

Palavra!
Palavras, há quem diga que são fios de ouro do pensamento!
Eu direi pepitas, pepitas grandes, gigantes!
Jóias raras, de uma grandeza que hipnotizam!
Lindas mesmo!
Ditas aqui com um sentido, ouvidas ali com outro!
Férias!
É uma dessas palavras!
Linda, mesmo muito linda!
Mas tão diferente!
Não só de lugar para lugar!
Mas de fulano para fulano!
E com a féria a ditar leis!
Como ela é importante e fundamenta!
Eu sou daqueles jovens que em teoria vou de férias!
Sim porque da nossa juventude, a grande maioria já está sempre de férias!
Tento ter o espírito da época!
Não perder tempo!
Ouvir o mundo à minha volta!
Mas continuar a pô-lo em causa!
Já tenho a noite na alma mas sem beijos de socorro, resta-me dançar com as árvores sem forma!
Estou assim como que perdido neste jardim de flores pretas e secas, e palavras, palavras que se não entendem!
Desculpem eu esquecia-me que sou daltónico, que sofro de miopia e de surdez!
Não me perdi nas matas misteriosas!
Nas bolanhas e rios sem fundo!
Nos caminhos cheios de lama!
Nos caminhos cheios de um pó que sufocava, e que em cada curva era retraçado o meu destino!
Contra minha vontade comecei em guerra, e vou acabar em guerra!
As armas são outras!
Muito mais difíceis de manusear!
Já não encontro os velhos da minha terra!
Sensação estranha sobe-me a coluna vertebral, o velho sou eu e os da minha idade!
Encontramo-nos, sentimos alegria!
As conversas são tão diferentes!
Os netos são o tudo!
Depois vem a nossa parte cultural!
Sim porque estamos muito mais cultos!
Sabemos algo de culinária!
Conhecemos alguns vinhos!
Mas o nosso forte é medicina e industria farmacêutica!
Conhecemos tanto médico!
Conhecemos hospitais!
Conhecemos e sabemos de exames médicos!
Sabemos o nome de tanto medicamento!
Já vamos sabendo nomes de lares!
Não é pessimismo é realidade!
As férias dos jovens da nossa idade, sejam elas com muita ou pouca féria, passadas no Polo Sul, ou no Polo Norte, as palavras diferem pouco!
Mais confusos!
Palavras mais confusas!
Fruto do tempo!
O tempo é outro, isso não há a mínima dúvida!

Um muito grande abraço para ti Carlos
Um muito grande abraço para ti Luís
E muito boas férias

Ernesto Duarte
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13456: Blogoterapia (257): Julgo que pelo menos a maioria de nós tínhamos medo, eu tinha, e às vezes muito, mas procurava não mostrar (Manuel Carvalho)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13027: Memórias de Mansabá (31): Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas: (i) que tínhamos sempre medo; (ii) que de dentro do mato era muito difícil disparar um LGFog ou até um morteiro; e (iii) depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67)


Guiné > Região do Oio > K3 > Um abrigo em construção...

Foto: © Ernesto Duarte (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de Ernesto Duarte [ex-fur mil. CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67],

Data: 19 de Abril de 2014 às 21:29

Assunto: um abrigo em construção

Boa noite, Luís

Já passaram 49 anos e eu continuo a arrepiar-me, e em vez de ter sonhos tenho pesadelos, ainda hoje não sei muito bem o que é dormir, dormir considerado normal! Só que as forças vão faltando e vão aparecendo alguns problemas!

Chegados à Guiné, mais propriamente a Mansoa, a nossa primeira saída, se é que se pode chamar, ao que supostamente fomos fazer, uma saída!

Na estrada Mansoa-Bissorã, uma auto metralhadora tinha sido atingida com uma granada anticarro, restou o esqueleto!

Corridos poucos dias, ida para Mansabá, com armas e bagagens, muita bagagem, penso que todos nós só tínhamos um pensamento, é na próxima curva que vem aí a nossa granada!

Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas:

(i) Que tínhamos sempre medo, e que a fuga teria que ser sempre para a frente, nunca voltar as costas;

(ii) Que de dentro do mato era muito difícil disparar uma bazuca, um roquete, assim como os célebres morteiros 120;

(iii) Depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas.

Era de uma tensão de rebentar os nervos a um santo, o espaço de tempo que mediava entre o ouvir a granada sair e o cair! Não valia a pena nos mexermos, porque nunca ninguém tinha uma ideia onde ela ia cair!

Os morteiros 120 começaram a ser utilizados, quando fazíamos os golpes de mão, depois do primeiro tiro o nosso poder de fogo era superior, e quando eles se calavam ouvia-se o disparar do morteiro, que supostamente estaria regulado para a zona que eles ocupavam, ou zona por onde tínhamos feito a aproximação!

Rapidamente atirávamos as granadas incendiárias e íamos como se fossemos atrás deles, flectindo depois em ângulo recto e lá tínhamos sempre uma bolanha para passar!

Eles faziam três, quatro morteiradas, mais tarde soubemos que era-lhes muito difícil o disparar de dentro da floresta e o terreno não tinha consistência para o prato, aparelho de pontaria, etc.

Onde apanhámos com maior eficácia, mas também para aí uma meia dúzia de tiros, foi em Morés!

Os deuses decidiram a nosso favor porque os tiros caíram na bolanha e perderam eficácia! Era uma granada pesada foi muito para o fundo, mas esses estavam bem apontados, ou casualidade.

Os abrigos de Mansoa, se os tinha não me lembro, os de Cutia eram do modelo da fotografia, os de Mansabá mais tipo trincheira clássica, os de Manhau, de Banjara e K3 eram iguais mais pormenor menos pormenor. Farim também não me lembro como eram!

Todos nós, mesmo as chefias dizendo maravilhas de aquilo, tínhamos consciência, que se caísse uma granada na frente, próximo da vigia, que as hipóteses eram nulas e se uma dos 120 caísse em cima que aquilo não aguentava!

O primeiro tiro que deram no primeiro ataque ao K3, de noite, acertaram com uma granada anticarro numa viatura, que com a ajuda da gasolina do depósitos só ficou uns restos do chassi!

Aconteceu que nesses ataques, ainda com os abrigos em construção, a foto é do meu abrigo acabado, puseram dentro do arame dúzias de granadas. Atiravam granadas muito velhas que não rebentaram, mas era contando com os rebentamentos por simpatia. Mas tal como em Cutia, Manhau e Banjara, não acertaram uma, excepto a da viatura.

No K3 não se ouvia a saída dos canos porque havia umas LDM no rio Farim que faziam fogo para as laterais, era mesmo guerra adulta.

Eu daquele abrigo via em frente a chama das Costureiras e servia-me de uma Manelica 8mm, ponta redonda, dos meus caçadores nativos! Fazia tiro instintivo e aquilo causava grandes estragos, passava um morro baga-baga com uma facilidade espantosa. Eu disparava e os caçadores carregavam!

No meu tempo, por falta de apontadores que deveriam ter, por ser difícil disparar do mato, por serem armas de tiro curvo, o aproximarem-se só lhes trazia desvantagens e por aquilo a que chamamos sorte, não acertaram nenhuma, depois, depois não sei!

O nosso grande inimigo foram as minas! Levantámos muitas mas também rebentaram muitas!

No meu tempo ainda não se falava muito em canhões sem recuo!

Mando-te uma foto do referido abrigo numa fase ainda da construção!

Quantas cavadelas, quantas pazadas de terra!

Um abraço,
Ernesto
_________

Nota do editor:

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13001: 10º aniversário do nosso blogue (10): O baú das memórias já está muito rapado... mas ainda consegui uma foto, que diz muito: um abrigo no K3 (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421, Mansabá, 1965/67)



Foto nº 1


Foto nº 2 


Foto nº 3


Foto nº 4

Fotos (sem legendas): © Ernesto Duarte (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Duas mensagens, com data de 15 do corrente, do Ernesto Duarte [ex-fr mil.  CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67], respondendo ao nosso pedido para "rapar o baú" das recordações:


(i)  Assunto - O baú rapado


Primeiro o meu desejo que essa saúde continue
a ser reposta com a rapidez desejada ! Segundo desejo, uma boa Páscoa para ti e para os teus familiares !

Terceiro, os meus parabéns ao imortal blogue ! Sim, o blogue já é e continuará a ser imortal ! Viva o grande blogue, que deu voz a todos os silenciados !

Sim, o baú está mais do que rapado, tanto o caixote como a cabeça que caminha a passos largos para lá também e como a confusão é grande não juro que ainda não tenha mandado estas fotos !

Mas, aproveitando o assunto, vou tentar dizer quanto a mim uma das razões que muito contribuíram para que eles estejam muito rapados, muito por baixo !

Quando se pensa mais em pormenor na nossa história de vida de há quarenta e tantos anos, baila nas nossas mentes um milhão de coisas, e hoje que somos uns especialistas em trabalhar com computadores, com botões e sem gatilhos, nós temos que lembrar a dificuldade, ou falta de máquinas fotográficas, com rolo nessa altura, não como aquelas fitas que aquelas metralhadoras usavam, com as de hoje seria facílimo.

E depois o cenário, parava de disparar a G3 , para disparar a máquina, parar a guerra no cenário ideal, não era muito viável !

Agora outra grande verdade: nós normalmente saíamos ao anoitecer sem hora de regresso ! Levávamos umaa sandes. um cantil de água, muitos dois !

O bornal não era prático, principalmente quando se tinha que correr, ou passar cursos de água, com água até ao pescoço, a farda passava a ter poucos bolsos, porque havia coisas que tinham que ir: no cinto o cantil e seis carregadores, para a maioria, depois mais umas granadas; mais umas facas, às vezes mais uma pistola; eu costumava levar o casaco para a carga ser maior e ir mais bem dividida.
Não havia digamos assim, muito espaço para uma máquina [fotográfica] !

Aí pelo inicio de 1965 quando dei uma recruta em Beja, mais de metade daquela gente maravilhosa não sabia ler, grande parte da companhia também não, até me surpreende, como mesmo assim dos mais veteranos ainda chegaram cá tantas fotografias !

Na minha casa falou-se sempre de isso, mas eu já disse, e volto a dizer, convencer alguém que nunca viu nada daquilo, o convencer que não estamos a divagar, nós por vezes já perguntamos a nós próprios se não foi tudo um sonho mau !

Uma Boa Páscoa
Um grande abraço para vocês todos do blogue.
Um grande abraço a todos os ex-camaradas.



(ii) Assunto: Uma que estava no fundo do caixote


Luís: Esta [, foto nº 1,] tem mesmo muito valor !

É artesanal e significa tudo o que se possa dizer sobre condições más.... Era assim o abrigo para cada secção, abrigo e sala de estar !foi atacada tanta vez !


K3 – Farim

Um abraço


Ernesto Duarte
Furriel miliciano
CC 1421 BC 1857
Mansabá – Oio – Morés
1965 / 1967

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13000: 10º aniversário do nosso blogue (9): Sondagem: resultados finais (n=129); mais de um terço dos respondentes nunca falou da guerra, ou só muito raramente, aos seus filhos... Comentário da jornalista e escritora Catarina Gomes: "não esperem por perguntas, digam filho, anda cá que eu quero contar-te uma coisa"

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12692: Direito à indignação (12): Por favor, respeitem a verdade dos factos... E, sobretudo, respeitem, os mortos e os vivos… de um lado e do outro da guerra! (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do dia 5 de Fevereiro de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Meu bom Amigo Carlos Vinhal
Cá vou eu até Mansabá!
Se achares que tem algum interesse em publicar é todo teu.


Duas linhas sobre o nosso direito à indignação

O país, excepto o ataque terrorista no Norte de Angola, nada mais sabe da guerra do ultramar, a não ser alguma coisita que o regime achava que lhe era útil, era preciso se acreditar que aquilo era um mar de rosas.
Relatos parvos, fáceis de desmontar, eram úteis, eram como que a prova de que aquilo que o Estado dizia era verdade.
Nós somos os culpados, porque não falamos.
Ou falamos muito pouco do que lá vivemos.
Muitos de nós começamos a cortar relações com o exército ainda cá.
O entusiasmo histórico pelo Ultramar, a desilusão que foi aquele Bissau.
Aquilo era muito pior, pior que tínhamos imaginado.
Por muito cedo termos compreendido e começado a gostar daquela terra.
Por muito cedo começarmos a ver o erro em que tínhamos sido metidos.
Por muito cedo condenarmos e sentirmos remorsos pelo que tínhamos feito ou visto fazer, ou saber que se tinha feito.
Por muito cedo vivermos naquele turbilhão de ódios e de amores.
Para não preocuparmos os familiares, não contamos, quase nada.
As pessoas não sabiam.
Sabiam o que o regime queria.
Se falássemos, afastavam-se, porque não acreditavam porque tinham medo.
Isto junto à dificuldade em contar como é disparar uma arma contra alguém, como é o assobiar de uma bala, junto ao ouvido, ouvir rebentamentos e ver os estragos.
Nós falámos muito pouco, contámos muito pouco.
O regime tinha interesse nisso, como possivelmente apoiava relatos, que fossem facílimos de se ver que não tinham pés nem cabeça, em que ninguém acreditasse.
Nós somos os culpados de tudo.
Porque fomos atores lá no teatro.
Porque não fomos capazes de ter contado o que se lá passou, o que lá vivemos, o mais próximo possível de como aquilo tinha sido, mas na devida data.
Só entende a guerra quem a viveu.
E os mortos só pesavam às famílias e a meia dúzia de amigos.
Não me surpreende muito aqueles disparates.
Rodaram muitos por este país.
E tal como os tipos da minha terra que foram condecorados pelo Hitler, este país sempre teve e tem uma costeleta de uma cor algo esquisita, e sabem guardar muito bem o que os pode prejudicar.
E vejam o que têm feito com o 25 de Abril.

Um Grande Abraço
Ernesto Duarte
1965 / 1967
BCAÇ 1857/CCAÇ 1421
Mansabá
Oio
Morés
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12679: Direito à indignação (11): Por favor, respeitem a verdade dos factos... E, sobretudo, respeitem, os mortos e os vivos… de um lado e do outro da guerra! (Belarmino Sardinha / Cândido Morais)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12287: Memórias de Mansabá (30): Um nunca acabar de recordações (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Novembro de 2013:

Olá amigo Carlos
Olá caro camarada Mansabense
Pois é tu estiveste duas semanas ausente, eu estou, ou ando a maior parte do tempo ausente!
O tempo é o grande mestre! Claro que ter deixado a minha serra e ter vindo trabalhar para Lisboa as escolhas eram muito poucas, e com aquele pequenino pormenor de o pais ignorar o que se passava no Ultramar, logo não se poder falar muito.

Entre a minha época e a tua já houve uma diferença, cada vez era mais difícil esconder as coisas. Mas quando me reformei não tive a noção das minhas limitações, e ao ter ficado com a casa que era dos meus pais soube muito bem e não me doíam os ossos, não me custava nada lá ir e ia com gosto e alegria, hoje aborrece-me muito, ou pelo menos já não tem a graça que tinha, mas não quero abandonar as coisas, e lá vou indo e isto tudo para dizer que só no principio da semana recebi o teu email que desde já agradeço, assim como agradeço, a fortificação de Cutia e o mapa da nossa área critica!
Mas antes faço um reparo a mim próprio eu esqueci-me um pouco que tu também lá estiveste em condições de “hospitalidade“ diferentes na rua, mas na prática iguais. Tenho lido muito e quando há tempos vi que andaste por Manhau, não senti como que uma necessidade de te fazer perguntas sobre aquilo, mas disse cá para os meus botões, mais um que lá andou a arriscar a pele.

Não sei se no teu tempo ainda havia uma serração a funcionar em Mansabá! Era logo à entrada à esquerda quando se ia de Cutia. O dono fez o favor de me convidar e a mais dois ou três para irmos lá almoçar, jantar! Não eram ofertas por pura simpatia, era a necessidade que ele tinha de se dar bem connosco, tendo as relações piorado muito, quando nós não trouxemos de Banjara um trator enorme de lagartas que lá tinha ficado quando ele fugiu de lá.
Esse senhor com meia dúzia de caçadores africanos, mais os lenhadores e mais uns loucos como eu que íamos à caça, cortava madeira na zona de Mansomine, não passava aquela zona sem floresta antes de Cucuto e também não se aproximava muito de Demba Só.

Imediações de Mansabá que a CART 2732 palmilhava frequentemente, não evitando mesmo assim o mau feitio da vizinhança. Vd. Carta de Farim 1:50.000
Legenda: CV

Para o lado de Morés, nada, e depois com um certo à-vontade em frente e para a direita em relação à pista de aviação. Eu falo disto com muita emoção, mas o engraçado, ultimamente quando vou ao Algarve já não levo computador, se levo não abro, até porque a banda larga é uma porcaria, eu leio e penso, tento recordar! Eu lembro-me de sair de casa, já camuflado, com uma mala numa mão e um saco ao ombro, mas não lembro emoções nenhumas nem de pessoas terem falado comigo. Só lembro uma enfermeira da terra que veio no mesmo comboio que eu, Lagos – Barreiro se preocupar muito comigo!

Depois de termos desembarcado na Madeira e nos últimos dias de viagem, eu comecei a sentir uma certa expectativa em relação a Bissau. Depois de tanto ter ouvido da história dos portugueses e seus feitos, eu ia finalmente pisar uma cidade, capital de província, deveria ter que ver. Não digo que foi uma desilusão, digo onde estás Bissau, não sei que se passa com meus olhos que te não enxergam, estou a passar por ti e não te enxergo.

Uns campos, uns montes de bagabaga e eis que estou noutra grande cidade, Mansoa!

Tiro-lhe o Man e fico com o soa!
Mas não soa
Não soa os ecos da cidade.
Soa o estrondo das armas
Não soam risos de crianças
Soam choros de criança
Não soam risos de gente feliz
Soam gritos de gente com raiva
Soa o silencio de uma cidade em guerra
Parto para Mansabá que tem algumas casas com traços de arquitetura mas com janelas e terraços tapados a tijolos de terra batida.
Mansabá com a sua rua principal chegava a ter alguma beleza, quando as acácias floriam e se enchia com o garrido das bajudas, talvez se passeando!
A Mansabá, tirando-lhe igualmente o Man fico com sabá
Sabá rainha do saber
Foste uma rainha para muitos de nós
Não pelo saber
Não pelos teus encantos
Mas pelo teu poder total
Porque nos prendeste
Porque nos acorrentaste
Porque nos escravizaste
Porque nos obrigaste a fazer coisas que não queríamos
Porque transformaste nossos cérebros
Porque transformaste nossas personalidades
Porque transformaste nossas vidas
Porque transformaste a vida dos nossos familiares
Porque dispuseste de nós como te apeteceu Incluindo deformar nossos corpos
Incluindo tirar nossas vidas
Nunca ouvindo nossos pedidos de clemência
Mas eu não te odeio
Se calhar até tenho saudades tuas

Carlos, o texto são mais umas linhas para juntares a tantas que tens recebido.
As fotos são para voltares a ver aquilo que nunca esqueces.

Um obrigada por tudo
Um abraço aqui de Mansabá
BCAÇ 1857 / CCAÇ 1421
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano

 Ernesto Duarte em Mansabá(?)

O Fur Mil Ernesto Duarte junto ao memorial da sua Companhia (CCAÇ 1421), "Os Caveiras" 


 Duas vistas aéreas de Mansabá no tempo de Ernesto Duarte

Ernesto Duarte na "avenida" de acesso à Porta de Armas do aquartelamento de Mansabá, tão bem descrita com a sua alma poética, acima, no texto

Ernesto Duarte numa das paradas do aquartelamento de Mansabá

Fotos: © Ernesto Duarte. Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: CV)


2. Comentário do editor:

Caríssimo Ernesto Duarte
As tuas palavras, quando falas de Mansabá, são apaixonadas, deixando transparecer o quanto ficaste marcado por aquela "terra onde se arde vivo", assim designada no livro "Guiné 1965 Contra Ataque", de Amândio César. Compreendo-te porque ali permaneci 22 meses e 11 dias.
A minha actividade operacional e ocupação das "horas livres", ajudando na Secretaria, não dava para grandes convívios na tabanca. Conheci meia dúzia de civis, os nossos dedicados guias e milícias e nossos camaradas do Pel Caç Nat 57. Lembro-me bem dos domingos em que nos vestíamos umas horas à civil, para arejar a roupa, e íamos passear a tabanca. Sentia-se um ar diferente nestes dias. Quase só os pelotões de piquete e serviço estavam ocupados. Com a noite voltava o sentir da guerra e os sentidos entravam todos em modo de emergência.

As horas mal dormidas em alerta permanente; os sucessivos ataques ao aquartelamento e tabanca; as sempre perigosas colunas para Mansoa e Farim; a protecção, com emboscadas quase diárias, durante meses aos trabalhos de pavimentação do troço da estrada Bironque-K3; as emboscadas nocturnas no fim da pista e no Alto de Bissorã; os patrulhamentos diurnos e nocturnos, assim como as operações, são parte da nossa memória que se apagará só no último dia das nossas vidas.

Quanto à Serração de que julgo falares, no meu tempo estava já desactivada e era um local de passagem muito perigoso.
Havia contudo um branco, não sei se é do teu tempo, o senhor José Leal que, com uns quantos colaboradores locais, abatia árvores algures nas imediações de Mansabá. Não precisava de protecção e tanto quanto me lembro nunca foi atacado. Provavelmente explorava a área que referes. Sinceramente não me lembro se ele tinha alguma serração ou se trazia os toros já limpos do local. Lembro-me que a camioneta era muito velha, que só tinha a cabina em cima do chassi onde transportava os toros.
Fica aqui a sua foto para ver se te lembras dele. Morava do lado de fora, quase encostado ao arame que cercava o quartel, por trás da casa do gerador e da mecânica, quem ia para a tabanca do lado esquerdo, quando se saía a porta de armas.

Mansabá, Abril de 1971 - Senhor José Leal segurando a sua filhota, o Cap Mil Jorge Picado, ajuda, e o Alf Mil Manuel Casal, assiste.
Foto e legenda: © Caros Vinhal. Todos os direitos reservados.

Não de Mansabá, mas de Leça da Palmeira, recebe camarada mansabense Ernesto, um fraterno abraço e os melhores votos de boa saúde.
CV
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 28 de Setembro de 2013, a propósito de uma pergunta que lhe foi feita sobre a tabanca de Manhau:

Uma boa noite com cordialidade, Carlos.
Uma boa noite por Mansabá.

Vou falar um pouco sobre Manhau.
Não, em 1965 a Tabanca de Manhau já não existia e segundo o que ouvi devia ter ardido por fins de 1962, melhor entre 1961 e 1963. Dizia-se também que foi naquela região onde a revolta se deu. Mas isto são conversas de Tabanca e não havia unanimidade.

Diziam que tinham assaltado uma camioneta de passageiros, tendo-a queimado, ainda lá estava no meu tempo, tendo morrido uma professora.

Algumas das tabancas desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau.
Ver Carta de Farim

Logo quando se passava a Bolanha, indo de Mansabá, havia uma subidinha antes da zona mais plana, onde esteve o aquartelamento, onde ainda se podia ver o esqueleto da camioneta.
Dizia-se que um oficial Português de nome Pita Alves, que eu conheci em 64 em Tavira, tinha sido lá ferido. Pouco tempo depois a tabanca tinha sido incendiada. O incêndio terá sido medonho, dizia-se.

Por um lado, Ussado, Cubande, por outro, Mantida, Gussará, Uália, Bambaia, Bagadage, Gendo, Biribão, Canjambari e outros nomes que eu já não lembro, estavam cheios de população.
O comando decidiu construir Cutia, Manhau, Banjara e mais tarde o K3.

Destacamento de Cutia 
Foto: © César Dias

Quando cheguei, Cutia estava acabadinho de fazer. Eram todos iguais, a estrada ao meio do quadrado, um buraco a cada canto, mais quatro buracos entre os cantos e mais uns dois ou três para comando e transmissões.
Dizia-se que nos ataques violentos a Cutia tinham deixado no terreno, dois cubanos e uma bazuka 8.8.

Em Manhau ainda a 1421 participou nos acabamentos.
Nos ataques violentos que fizeram, deixaram no terreno um morteiro 8.2 rachado como se uma granada tivesse rebentado no cano.

Destacamento de Banjara
Foto: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados.

Em Banjara a 1421 foi prestar segurança aos trabalhos e limpar a estrada desde Mantida.
Apanhou-se muita gente, à qual se deu conservas e se disse para irem espalhar a boa nova. Nem um voltou.

Eu na metrópole nunca tinha ouvido falar no BCAÇ 1858, nem na companhia 1422.
Instalados em Mansabá, com uma Companhia dos Águias Negras, eles em quadrícula, nós em intervenção, saíamos todos os dias e algumas delas grandes, tanta tabanca queimada, tanto campo de milho destruído, tanto prisioneiro. Era hábito aparecerem outras tropas para irem connosco, ou nós com eles, desde Paraquedistas, Comandos e Caçadores, sempre com pelotões africanos.

Uália, mais ou menos a norte de Manhau, já tinha sido visitada umas quantas vezes, e naquela noite era mais uma. A minha Companhia, não sei como foi com as outras, desde logo se organizou em três grupos de combate, tendo ficado um alferes, um santo, livre. Mas houve necessidade de se proceder a uma substituição e coitado dele, aquilo calhou de maneira que ele foi a todas.
Ele não tinha muito jeito, se isto tem alguma lógica dizer, e os soldados também não sentiam o apoio de que se calhar necessitavam. Com os sargentos, gordos e barrigudos, o problema ainda foi pior. Eu e uns quantos éramos velhos, tínhamos quase 24 anos, a maioria dos milicianos, ainda não tinha os 23 anos.
Naquela noite de chuva com uns fulanos que eu não conhecia, lá fomos até Manhau, para dali, altas horas da noite, sairmos para o Ualia, e lá estava o Verissimo.

Como as condições eram nulas eu fui para a cabine da GMC que era o carro da água.
Passado pouco tempo veio apanhar abrigo o capitão, grande homem. Então lá estás mais uma vez por conta do barco, tens que olhar por fulano e o ajudar. Entretanto a conversa continuou e nós começamos a pensar que o combinado, que era sair em direção a Mansabá e de pois voltar à direita e subir a bolhanha, não era muito viável. A bolhanha era um rio, decidimos, apanhar o lado de uma picada que em tempos tinha sido perpendicular à estrada, atravessando o quartel. Reunimos em cima da hora no comando para dar esta informação, tudo certo.

O capitão perguntou a mim e ao malogrado Feijão:
- Vocês já sabem como é na frente?

Eu disse:
- Vou eu à frente.
- O Feijão já te está a armar em chefe, quem vai sou eu. Anda lá vamos os dois e fulano vai sempre comigo.

E fomos saindo os dois, pondo a coluna em marcha, recomendando para não se afastarem porque como estava muito escuro podia-se perder o contacto.
Penso que a coluna ainda não tinha saído toda do arame, um moço de Coimbra gritou:
- Arame.

Voei para a cova do lixo, ficando todo cortado pelas latas. Levantei-me fui ter com o Feijão, era o que gritava mais. Peguei nele ao colo, pontapeei todos os que se não levantavam. Ele morreu nos meus braços. Fui buscar mais e mais e o meu homem com o pânico instalado.
Começaram a aparecer luzes não sei de onde.

O Veríssimo apareceu no blogue quando eu te mandei isto e ele leu. Ele diz que quem estava para ir à frente era ele. De facto era, mas era no plano inicial. Claro que eu nunca esqueci e o Capitão também não esqueceu.

Quando eu fazia serviço em Mansabá, alta noite, ele ia ter comigo e bebíamos um trago de brandy. Dizia ele:
- A culpa não é tua é só minha.

Eu sei que não mandava, mas estive de acordo e quando nos despedimos em Abrantes, a nossa culpa esteve presente.
Muito mais tarde quando nos reencontramos, a conversa veio todinho ao de cima.
Claro que senti alguma alegria, alegria infantil, quando encerramos Manhau, quando destruímos aquilo tudo à granada de mão. Mas antes ainda, e também na ausência do comandante de Pelotão, apanhei uma emboscada, antes de chegar à Bolanha, que a artilharia teve que bater os lados da estrada.

Furaram o carro da água todo e os bancos das viaturas.
E ainda há outra, que também tem a sua história.

Numa viatura,  4 a 8 fulanos iam às laranjas a Mantida. Foram uma vez, foram duas, foram muitas, mas naquele dia não foram porque uma mensagem avisava da passagem de uma coluna de metralhadoras pesadas, que ia passar a caminho de Bafatá.
O terreno era duro e direito, eles entraram pelo capim. Que estragos meu Deus. Isto já não consegue mexer mais comigo, mas se faz parte daquelas coisas que continuam a me encher de raiva e a tirar o sono.

Um abraço, Carlos e tudo de bom para ti
Mansabá, 28 de Setembro de 2013
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12081: Memórias de Mansabá (28): Minas na estrada de Mansabá (Francisco Baptista / Carlos Vinhal)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11789: Blogoterapia (230): A alegria de subir mais um degrau, seguindo em frente, mesmo já tendo muito mais para quando olho para trás de que quando olho para a frente (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 23 de Junho de 2013, a propósito do seu aniversário ocorrido no passado dia 9 de Junho:

Um grande abraço e muito obrigado a todos os homens grandes da Tabanca grande, por se terem lembrado de mim*.
Não respondi logo porque eu tenho caído muito, e já vou vivendo noutra dimensão e como tal vou começando a fazer tudo a esse nível, inclusive passar a pagar os impostos também assim com atraso.
Não! Sou desleixado, desorganizado e não ligo à data e este ano calhou com a mudança para a minha gruta, caverna.
Mais uma vez um obrigado muito grande.
Ainda tenho coragem para escrever duas linhas de loucura.

Ernesto Pacheco Duarte
Mansabá
Morés – Oio


Tenho andado afastado

A alegria de subir mais um degrau, seguindo em frente, mesmo já tendo muito mais para quando olho para trás de que quando olho para a frente.
Para mim é como que a época de fazer uma espécie de balanço, o fim de um ano, o principio de outro, o Verão é o meu verdadeiro inicio de ano.
Gosto muito do Verão.
Gosto muito do campo.
Gosto muito do calor.
Gosto muito da época das colheitas.
Gosto muito de pôr para o lado os casacos.
Gosto muito de esquecer, embora por um período o frio.
Gosto muito da praia.
Gosto muita da paisagem de Verão, ainda com verduras de primavera, mas já muitos louros de Verão.

E é maravilhoso dizer fiz mais um ano, subi mais um degrau, em frente, cheguei a um patamar mais alto, olhando lá de cima para trás a vista é imponente, as imagens passam a uma velocidade vertiginosa, mas mesmo assim é muito bom.
É certo que também tem que se dizer, e não se o consegue fazer sem pelo menos alguma saudade, já falta menos um.
Muitos partimos para esta vida sem objectivos muito definidos.
O nosso grande objectivo é viver.
O nosso grande objectivo é viver de cabeça erguida, com dignidade.

Gostamos muito da nossa liberdade, da liberdade dos espíritos, não nos conseguimos comprometer com as particularidades das religiões, logo nada disso será um objectivo, com as particularidades das politicas, o mesmo, a não ser continuar a ser livre, espíritos mais ou menos independentes.
Enquanto se sobe as encostas suaves e floridas, algumas mais inclinadas, até com grau de dificuldade, há um número de coisas que ficaram, que vão aparecendo depois no nosso horizonte, mas vamos subindo, e além das encostas começarem a ser mais inclinadas, as forças começam a faltar.
Já subimos, nunca é muito, mas já estamos na zona onde as encostas já são escarpas, os horizontes em frente já são muito mais pequenos e é forte aquela tendência que temos em olhar para trás e fazer comparações.
Vemos o caminho que ficou para trás e queremos e dizer a nós próprios, que temos que ir em frente nas mesmas circunstâncias, sonhar não paga ainda qualquer imposto.
E é a única maneira de não sermos como que absorvidos pela própria vida é teimarmos em continuar o caminho de sempre, a subida de sempre, mesmo que ele já não atravesse encostas verdejantes e suba é mais escarpas agrestes e até dizermos que isso é normal.
Mas e as forças e a vontade que deixa de ser espontânea e passa a forçada e a comparação e a saudade, que começa a estar presente em nós e quando não está é lembrada?
Gritamos para nós próprios que nada é diferente que nada muda, de degrau para degrau que subimos, mas até a própria sociedade nos lembra permanentemente dizendo-nos que já não temos idade para isto ou aquilo, e ele são as consultas para isto ou aquilo, ele são as indicações dos lares clandestinos aos 7 estrelas, ele são enfermarias cheias de menos jovens que começamos a ver, ele é visitas constantes à farmácia, sem darmos por isso já estamos vivendo outro mundo, já estamos tendo contacto com uma outra sociedade.
Mas como bom ex-militar digo: andaram, passaram muito próximo, e até um dia.

Abraços
Ernesto Pacheco Duarte
____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 9 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11684: Parabéns a você (587): Ernesto Duarte, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1421 (Guiné, 1965/67)

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11728: Blogoterapia (229): Muito obrigado a todos os camaradas que se lembraram de mim, no meu dia de anos (Juvenal Amado)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11759: Blogpoesia (348): Pedir desculpa é pouco (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 29 de Maio de 2013: 

Camarada Carlos Vinhal
Tudo de Bom para ti e para os teus.
Assim como tudo de bom para todo pessoal do blogue.


PEDIR DESCULPA É POUCO

Eu sei
Não sou nada não sou ninguém
Mas também sei a força das palavras
Palavras que hoje perdem muito da sua força, porque essa força dilui-se muito na quantidade
Palavras que ganham força quando ditas no momento oportuno
Palavras que igualmente ganham força quando ditas no momento errado
Eu no meu canto esqueci-me do dia 8 de Junho, data que para mim nos últimos anos tem sido vivida de uma maneira diferente
Os meus ossos doem muito
Tenho os meus netos, parcialmente para olhar
Deixei de dar as voltas que costumava dar, principalmente pelo meu amado Marrocos
Desde sempre pensei que essa data seria, como será, como calhar
Esqueci-me totalmente do grito à vida, que vai ser o convívio da Tabanca
Pedir desculpa é pouco
Reconheço que meti a pata na poça, e que aquelas palavras loucas ou não, saíram no momento menos próprio, uma infelicidade
Mas também sei que vozes de burro não chegam ao céu
Sei que o convívio será muito grande
Sei que ficará como mais um episódio grande, dos muitos que estes fulanos efetuaram com uma farda a servir de pele e que têm continuado a efetuar já sem farda mas com o mesmo espírito de amizade.

Um grande abraço para ti
Um grande abraço para todo o pessoal da Tabanca
Um grande abraço para todo o pessoal do blogue
Ernesto Duarte
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11755: Blogpoesia (347): A outra guerra; Meus cabelos brancos; Serenatas do sul de África; Lembrando serões (J. L. Mendes Gomes)

sábado, 15 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11710: Blogpoesia (345): Estou vivo (Ernesto Duarte)



1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 27 de Maio de 2013:

Cumprimentando todos os meus amigos do blogue
Cumprimentando todos os meus ex-camaradas
Eu atrevo-me a escrever duas linhas
Para dizer que estou vivo
E sempre revoltado, contra a fórmula deste mundo
Eu não sou nada
Eu não sou ninguém
Estou cansado
Muito cansado
Estou intranquilo, algo me incomoda
Morro de saudades do que vivi
Morro de saudades do que não vivi
Quero olhar só a beleza das rosas,
Mas só vejo figuras desuni formes, medonhas
Ou talvez sejam políticos
Metem medo, suas fisionomias quadradas
Fazem lembrar portas de crematórios
Que em resultado das novas tecnologias e redução de custos
Só passarão a aceitar utentes que se desloquem pelos seus meios
São sempre escuros como as longas noites de temporal
Até os relâmpagos são escuros,
As estrelas são escuras
Não iluminam a noite, queimam a noite
No meio dessas figuras desuni formes medonhos
A minha serra chama por mim
Eu parto
O passo é incerto, por caminho duro e pedregoso
Sofro da bebedeira da idade
E da falta de força por muito ter andado
Deixo para trás casas conhecidas, com gente estranha
Tudo mudou, eu mudei
No meu olhar não consigo ver a beleza das rosas
Só vejo os seus bicos enormes
Aliados ás figuras medonhas,
Ás figuras de morte
Continuo a andar
O passo é cada vez mais incerto, mais lento, já é trôpego
É já com muita dificuldade que continuo a subir a minha serra
Já não tem pássaros
Só tem insectos
Insectos enormes, alimentam-se de restos humanos
A velha fonte já não existe
A pedra que servia outrora de banco, está lá e ri-se
A árvore enorme em sua frente de quem tinha ciúmes
As pessoas sentavam-se mais pela sombra, do que pelo conforto do assento
Está moribunda
Tem muitos braços já mortos
Os poucos que ainda tem estão quase sem folhas
O cenário já não é alegre, é triste
É triste como eu e tudo ali é um cenário fúnebre
Não passa ninguém
Está deserto
Há muitos anos atrás sentava-me ali e pensava
Sentava-me ali e pensava que ia partir
Que mais amanhã mais depois ia partir para o Ultramar
Se não voltasse quantas saudades iria ter de aquele sitio
Como eram dolorosos esses pensares
Tocaram-me balas na pele
Vi muita violência, desnecessária
Toda a violência é desnecessária
Vi muito sofrimento
Vi muito sangue
Vi muita lágrima derramada
Chegou a abençoada hora do regresso
E eu acreditei no mundo melhor
Vibrei com os grandes inventos para o bem da humanidade
Vibrei com todas as máquinas que iam aparecendo
Para tirar o trabalho ao homem
Estava já muito esquecido o sofrimento dos outros tempos
E aquela terra amada e odiada lá ia
Mas hoje aqui sentado na minha pedra
Onde foi meu cenário de sonho e esperanças
Eu trémulo, mas hei-de vender o último suspiro
Eu digo outra vez com os olhos rasos de lágrimas e cheios de saudade
Deixando um cumprimento fraterno a todos os camaradas
A todos os camaradas e amigos
Quarenta e muitos anos depois ai estamos
Digo a alegria de voltar não tem descrição
É indescritível, só quem a viveu, a pode entender
Mas aquela parte em que deveríamos ter contribuído para um mundo melhor
Onde ficou
Toda a tecnologia que vimos nascer
E que acarinhamos
Penso que não correspondeu às expectativas
De povos carentes e com dificuldades
Penso que a nós, a muitos de nós particularmente já mais perto do fim
Levamos um pontapé dado com outra bota talvez,
Mas da mesma grandeza daquele
Que levamos já há muitos anos atrás
Oxalá que seja eu que estou num mau observatório
E estou a ver tudo errado.

Ernesto Duarte
Mansabá 
Mores – Oio

Foto: Natura Algarve, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11691: Blogpoesia (345): War is over, baby [ A guerra acabou, querida] (Luís Graça)

terça-feira, 16 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11406: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (65): Carlos Afeitos encontra, em 2011, restos da CCAÇ 1422 (1965/67), no K3 / Saliquinhedim


K3 > Entrada


K3 > Começo do antigo heliporto


K3 > Antigo heliporto


K3 > Foto nº 70 > S/legenda


K3 > Foto nº 71 > S/legenda


K3 > Foto nº 72 > S/legenda


K3 > "Penso que seria a entrada da sala de transmissões"



K3 > Foto nº 69 > "Uma placa que agora é a entrada da casa de um popular [e onde ainda é visível o nº  da CCAÇ 1422, a companhia do Veríssimo Ferreira!...É caso para dizer que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!]


K3 > "Um dos edifícios transformados em escola"

Fotos do álbum de Carlos Afeitos, presumivelmente datadas de 2011.

Fotos (e legendas) ©: Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados


1. Em 17 de fevereiro último, o nosso camarada Veríssimo Ferreira fez este pedido ao  Carlos Afeitos, professor de matemática, cooperante na Guiné-Bissau, durante 4 anos (2008-2012), a residir neste momento em Londres, e nosso novo grã-tabanqueiro, com o nº 606 (, desde 19/2/2013):

17/2/2013

Caro Senhor Professor Carlos Afeitos:

Falou que tem fotos do meu velhinho K3, que ajudei a fazer e onde estive em 1966. Se quiser fazer o favor, que muito agradeço, envie lá essas fotos, logo que tenha pr' sí uns minutos vagos. Seja bem-vindo e obrigado.
Veríssimo Ferreira
ex-fur mil,
CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858
Farim, Mansabá, K3 (1965/67),

Email: verissimoferreira@sapo.pt

 
Guiné > Região do Oio > K3 > Um abrigo... A identificação da companhia (CCAÇ 1422),  desenhada com garafas de cerveja vazias... O K3 começou a ser construído pela CCAÇ 1421. A CCAÇ 1422 saiu de Mansabá para tomar posse e completar a construção do aquartelamento.

Foto: © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados



2. Resposta, no mesmo dia, do Carlos Afeitos 
[, foto à direita,]:


Estive a rever as fotos que tenho do K3, não são muitas e se calhar não foram tiradas do melhor ângulo, mas envio as que tenho.

Não consigo identificar as restantes fotos, uma delas é relativamente a uma placa que agora é a entrada da casa de um popular.

Quando visitei esta povoação,  estivemos a falar com o guineense que tinha sido um ex-militar português. Mostrou-nos a cédula militar, que ainda guarda, e um papel da Embaixada Portuguesa em que se confirma que foi militar português na guerra. Eles explicou-nos que após o final da guerra teve que fugir, pois a sua vida estava em perigo. Voltou mais tarde e agora vive em K3.

Uma das fotografias é uma escola, melhor o interior de uma sala de aula. Não tenho a certeza se a mesma é do tempo do quartel militar ou se foram aproveitadas as instalações do quartel para fazer a sala de aula. Mas penso que é do tempo em que se construíram as escolas dentro dos aquartelamentos no seguimento da política da altura. É com muita pena minha que não tenho a fotografia, mas penso que também existe uma estátua de um militar a ensinar. Não tenho a certeza se é em K3 ou em Mansabá.

Também tenho algumas fotos de Mansabá e de um quartel militar perto de Farim, a 1 km para oeste,  que não sei como se chama.

Com os melhores cumprimentos

Carlos Afeitos

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11318: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (64): Amigos brasileiros (Vasco Pires)

sábado, 13 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11385: 9º aniversário do nosso blogue: Parabéns (1): Querido blogue, quão importante foste para mim!... (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421, Mansabá, 1965/67)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Pacheco Duarte, alusiva ao próximo 9º aniversário do nosso blogue em 23/4/2013:


Data: 12 de Abril de 2013, às 00:12

Assunto: Parabéns hoje e amanhã e sempre,  Blogue!

Com um grande abraço
e um bem haja a todos vocês.Ernesto Duarte 




Blogue,
Estou-te a escrever duas linhas, 
porque sei que és um tipo porreiro 
e eu devo-te muitos favores. 
Sei que fazes anos brevemente, 
mas eu não sou de solenidades, 
sou simples, 
apenas te queria mostrar 
o quanto foste importante para mim 
e dizer-te um obrigado grande, 
claro, além de trocar três ou quatro palavras contigo. 
Chamaram-te Blogue !
Tiveste muita sorte, 
podiam ter-te chamado outra coisa qualquer 
e podes querer que os teus progenitores 
sabem tantos nomes 
e alguns que nem queiras saber para não corares !
E depois, porreiro, Blogue, uma palavra masculina !
Primeiro ponto a teu favor !
Hoje não, felizmente já não é assim !

Mas os teus progenitores, 

entre muitos azares, também tiveram esse, 
só havia caras barbudas, 
hoje há outras caras, 
mais bonitas, 
com outros atrativos.

Caras com outros atrativos,  

lá pelo tempo  dos teus progenitores, 
também as havia, 
o meu grande grito de homenagem e respeito, 
por todas elas, 
que foram também tão grandes 
e tanto sofreram, 
mas viviam outra situação, 
era má, era péssima, 
mas passou-se noutro campo.
Sim, tiveste progenitores !
Homens muito grandes, enormes ! 
Embora quem os conheça 
e conheça o que eles viveram, 
algo para os lados da loucura, 
fica-se confuso e chegamos a ter dúvidas.

Tu sempre tiveste o apoio, 
o auxílio de outros das mesmas escolas, 
mas com uma formação, 
que todos juntos fizeram de ti o gigante que és hoje.
E és mesmo grande, 
tão grande que não tens noção do teu tamanho !
E como és grande, ao conviveres com os mais "usados", 
todos grisalhos e já algo curvos, é a lei da vida, 
muitos deles se calhar sorriram pela primeira vez, 
em muitos anos,
ao olharem a primeira vez para ti!.
Sorriram ao verem-te grande, forte,  independente !
Sorriram porque fizeste mais um ano !
Sorriram com um pouquito de nostalgia no canto de um olho !
Mas não lhes leves a mal !
Há coisas que tu talvez não entendas muito bem, 
e que se passa na vida dos humanos !
Sintam grande alegria por teres feito mais um ano !

Ficam muito felizes por ti 
e pelo exemplo que és, 
porque captaste todo o bem dos teus progenitores 
e dos que te ajudaram a crescer.
Mas também sentem uma ponta de saudade, 
porque muitos já partiram.
Ficam saboreando um peito cheio de orgulho, 
porque devido ao que os teus progenitores te incutiram, 
tu viverás sempre com todos, 
os igualmente de cabelos grisalhos, 
por gerações e gerações,
e continuarás quando ninguém quis, 
a fazeres outros ouvir o nosso grito, 
Guerra nunca mais!,
e cantarás os nossos hinos à paz 
e chorarás as nossas lágrimas.


Ernesto Pacheco Duarte
ex-furriel miliciano 

BCAÇ  1857,  
CCAÇ 1421,

Mansabá, Oio, Morés
1965/1967 

sexta-feira, 15 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11257: Blogoterapia (224): Cozinhas de campanha (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Março de 2013:


Cozinhas de campanha

Eu até gostei do Exército

Da minha serra à cidade de Lagos eram para aí 30 quilómetros, aonde eu ia muitas vezes porque tinha lá a viver muitos familiares, que naquela rua estreita era a porta em frente ao Caçadores 4, ou seria Infantaria 4. Muito miúdo ainda, hoje espreitava um pouco, amanhã outro e dentro de pouco tempo eu andava lá por tudo quanto era sítio.

Tudo aquilo era um encanto para mim, só nunca lá vi foi munições, agora armamento vi todo desde as armas ligeiras até às pesadas, postas em cima de carros puxados a cavalos ou machos e mulas, acho que não havia nenhuma viatura mecânica.

Nos concelhos à volta de Lagos todo o gado cavalar e muar estava na tropa, com caderneta e tudo e os donos tinham que as ir mostrar de quando em quando e sempre que vendiam alguma ou compravam tinham que tratar dos respetivos registos, papelada de militar.

O Quartel tinha a sua quantidade de bestas. Naquele tempo, ali, a vida de soldado era varrer, varrer, limpar os bichos dar-lhe palha e água. Passavam lá muito tempo, porque eu conhecia uma série de malta, eu ia e voltava e eles continuavam lá de vassoura na mão.

Dizer que deixei de gostar do Exército é muito forte e inofensivo, diga-se assim, comecei a retribuir-lhe a mesma simpatia que ele, Exército, tinha pelos seus soldados.

Eu fui o primeiro fulano a chegar à CCaç 1421 em Abrantes, tendo recebido um molho de chaves e não sei quantos cabos quarteleiros, tendo estado para aí uma semana só, até que o RI2 emprestou um alferes e um 2º sargento. Aquilo passou e eu ganho, como prémio, ir para Santa Margarida à frente receber material e militares de outras unidades que iam para lá formar a companhia.

Aí eu levei o primeiro grande pontapé no estômago, em relação ao Exército! Entre o que recebi, recebi uma cozinha de campanha que rebocámos para o sitio onde ficaria a funcionar. Aí na segunda semana já tinha muita gente comigo. A cozinha era de chapa, com juntas soldadas em vários sítios. Assentámo-la e o ultimo acto foi abrir a tampa.

A cozinha não estava branca, estava amarela, o que é, o que não é, chega-se à conclusão que era maça consistente. Fui ter com o sargento Barrigudo, foi simpático e colaborante mas todas as que vimos estavam na mesma, cheias de massa. Lá me disse como aquilo era chapa, entre uma utilização e outra, tinham que fazer aquilo, porque segundo ele, assim era melhor que ferrugenta, deu-me potassa e uns esfregões.

Lavamos a cozinha, escaldamos, mas o cheiro a ranço nunca passou, cheirou sempre e a comida era intragável. Ali a uns metros havia as messes, eu tinha nascido e crescido em comunidade, não entendia tamanha diferença, mas volto a encontrar o cheiro a ranço.

Cozinha de campanha > Comando da Zona Militar da Madeira (ex-GAG-2) > S. Martinho > Funchal

Foto: © Carlos Vinhal

O tempo passou e nós lá aparecemos dentro do Niassa, com uma ida à Madeira onde foi tudo passar uma noite louca.

Trago comigo para o naviuo o meu 1º Sargento, um homem grande e bom, mas que teimava em trazer umas garrafas de vinho da Madeira. Lá vamos por aqueles corredores fora, até que nos apercebemos de algo de anormal, conhecemos logo outro grande homem, o 1º Sargento da 1419, grande amigo, uma amizade que durou muito tempo cá fora. Estava cercado por tipos vestidos de branco.

Eu não sei se todos os que viajaram de Niassa, foram alguma vez ao fundo dos seus porões onde os nossos homens dormiam em beliches que chegavam quase cá acima, como o tempo era pouco para limpar, aquilo cheirava a ranço e a vomitado, para muitos era insuportável, nunca foram lá ao fundo.

Nessa viagem iam mulheres de marinheiros, cabos EP, mulheres de outros soldados e penso que de policias e também muita criançada.
Como não tinham amarelos iam no porão, e o nosso primeiro Teixeira lutava para lhes dar uma casa, um quarto cá mais acima, como de repente apareceram muitos soldados, os homens de branco cederam e arranjaram um quarto cá em cima, e passaram a comer da nossa comida, meio roubado, meio clandestino.

Portanto quando cheguei a Mansabá, a minha simpatia pelo Exército era igual à que ele tinha por mim, pelos seus soldados, era nula.

 Ernesto Duarte em Mansabá

Se achares que tem algum interesse, é teu.

Um muito obrigado
Um grande abraço
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano
BCaç 1857 / CCaç 1421
Mansabá – Mores – OIO
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11102: Blogoterapia (223): Agradeço as manifestações de pesar que me foram dirigidas a propósito do falecimento da minha mãe (Carlos Vinhal)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem datada de 19 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) enviou-nos um poema de sua autoria a que deu o expressivo título:


Não sou nada, não sou ninguém

Aqui no alto das minhas recordações 
Aqui do alto da minha serra 
Aqui do alto de onde as recordações têm outro sabor 
Eu sempre soube o amanhã 
Eu sempre soube que todos os amanhãs são passos para o fim 
Eu sempre soube que nada é eterno 
Eu sempre soube que mesmo os amanhãs passos gigantescos para o futuro, são igualmente passos para o fim 
Eu já andei muitos passos 
Eu já me sinto cansado de tanto descer 
Eu já estou num patamar em que tenho mais passado do que futuro 
Eu sei que passo mais tempo a recordar do que a sonhar 
Eu sei que já posso dizer com um sorriso, que não sou ninguém, não sou nada porque eu sei que lutarei até ao fim, até para lá do fim 
Eu sei que posso dizer que a minha terra está muito longe 
Eu sei que posso dizer que a terra onde vivo não é a minha 
Eu sei que não conheço as pedras das calçadas 
Eu sei que não conheço as gentes que se cruzam comigo 
Eu sei que vivi sempre em terras que não eram as minhas 
Mas eu vou voltar à minha serra, nem que seja só por um dia, pelos caminhos de ontem de muitos ontens
As serras algarvias são diferentes das outras 
São mais pequenas 
Chove pouco, cai neve uma vez por século 
Mas têm uma luz única 
A paisagem é deslumbrante 
O Sol incide naquela extensão enorme de Oceano 
Naquela estrada marítima, naquele caminho marítimo 
Refletindo-se nas dezenas de barcos que a cruzam constantemente 
No muito ontem 
Já tocado pela história, fico horas ali tentando imaginar os grandes Portugueses do passado 
Os seus grandiosos feitos 
Como seriam surpreendentes aqueles novos pedaços de Portugal 
Coisas deslumbrantes e arrebatadoras com certeza 
Muito maiores do que a história 
Não a história maior do que eles 
E desejava mesmo um dia poder lá ir 
Extasiar na sua grandeza física, mas muito mais na sua grandeza humana 
O tempo foi passando e eu fui esquecendo mais, mas sempre tocado 
Sempre imaginando os feitos naquelas terras, as suas grandezas 
E um dia quase sem perceber apareci dentro de um barco, o Niassa 
Daquele barco naquele Atlântico eu olhei a minha serra com saudade 
Chego à Guiné e a desilusão é muito grande 
Eu chego mesmo a pensar que estou em 1400 
Interior comigo, encontro os de 1963 a quem vamos render 
Eles falam connosco, tentam nos dizer o máximo 
Cada palavra que nos dizem, é uma afirmação de que aquilo, esteve, continua a estar igual 
Quase dois longos anos se passam 
E um dia aparecem outros para nos render 
E nós temos para dizer o mesmo, nada 
Naqueles primeiros anos deram-se muitos tiros 
Limparam-se muitas estradas 
Fez-se muitos golpes de mãos, trabalhou-se duro e com sacrifício 
Resultados! 
Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior 
Mais triste me sinto hoje no meu emaranhado de recordações 
Quanto mais penso, mais confirmo a inutilidade 
E como posso dizer sou nada 
Não sou ninguém

Ernesto Duarte
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11104: Blogpoesia (321): Não à filha-de-putice-da-vida, camarada! (Luís Graça)