Foto do João Coelho (ou Manuel João Coelho), membro da nossa Tabanca Grande, Especialista MMA, 3ª/63, AB1, Terceira - Açores:
Fonte: Blogue dos
Especialistas da BA12, Guiné 1965/74 (Com a devida vénia ...)
1. Mensagem, com data de 7 de Janeiro de 2008 (*):
Felicitações pelo excelente blogue!
Voluntário na Força Aérea, de 1963 a 1966, fui colocado no então AB 1- Aeródromo Base n.º 1 no Aeroporto da Portela, em Lisboa, de 1964 até final do tempo de tropa.
Escapei à mobilização para África, mas tornei-me, com outros camaradas, testemunha de episódios que poucos conheceram. Refiro-me à chegada dos aviões de evacuação, DC-4, Skymaster e DC-6, dos Transportes Aéreos Militares, que traziam para Lisboa, os feridos e acidentados da guerra.
Os vôos normais desembarcavam os passageiros a par dos aviões civis, no estacionamento frente ao Terminal... os de evacuação chegavam à noite, por vezes de madrugada, e eram deslocados para a placa no interior do AB1, longe dos olhos da população.
Como Cabo Especialista MMA (Mecânico de Material Aéreo) fazia parte da equipa que recebia o avião: reboque com tractor, ajuda na abertura da porta e colocação da escada de saída, para além de outras tarefas.
Este momento de abertura era sempre de tensão, a porta abria-se e saía um bafo terrível, mistura de suor, éter, sangue, restos de comida, as macas sobrepostas, os feridos de todos os tipos... rebentamento de minas, amputados, cegos, queimados, cacimbados, feridos à bala, com estilhaços.
E depois a confusão da saída das macas, levanta à frente, baixa, baixa atrás, aguenta, segura!...o despacho e presteza das enfermeiras-páras que, por vezes, acompanhavam o pessoal, o ar pálido/horrorizado das
madames da Cruz Vermelha, com as suas capas cinzentas, e que com os seus belos penteados eram um anacronismo ali, pese a sua boa vontade.
Nestes vôos eram particularmente difíceis os que vinham da Guiné. A viagem era mais curta, tínhamos a sensação de que alguns daqueles desgraçados tinham ferimentos ainda frescos: camuflados rasgados, ligaduras empapadas em sangue, um ar esgazeado mostrando a surpresa, a incredulidade face ao sucedido.
Recordo-me, como se hoje fora, de uma noite em que chegaram dois aviões quase em simultâneo. Não havia capacidade de transporte para o Hospital da Estrela e anexos, de tanta gente, as ambulâncias não chegavam e lá vieram os autocarros da Academia Militar para transportar os feridos que pudessem viajar sentados.
Tenho dois amigos, açorianos como eu - Ponta Delgada, S. Miguel - ambos furriéis milicianos, que estiveram na Guiné, julgo que a partirde 66 até 68 ou 69. Um, o Tibério Branco, andou por Catió e Buba, tanto quanto recordo, o outro, Álvaro Lemos, em Aldeia Formosa.
Os dois contavam, no regresso, como tinha sido a vida deles naquele território e, anos depois, já com o país independente, visitei a Guiné: Bissau, Nhacra, Bafatá, Cacheu e, na carrinha que percorria a estrada, olhando em redor, para aquela vegetação, as bolanhas, os rios e as jangadas, as tabancas - numa delas a inscrição numa parede "Viva o Benfica" - pensei neles, nos meus amigos de adolescência, no seu sacrifício. E nalguns colegas que morreram na guerra em África: o Martins, o Norberto, o Amaral, o João Manuel Cordeiro e outros cujo nome esqueci.
Ao mesmo tempo interrogava-me: se eu tivesse vindo aqui parar, teria conseguido, será que aguentava isto?
Um abraço e continuação do bom trabalho
Manuel João B. Ferreira Coelho
2. Comentário de L.G.:
Fiz questão de voltar a publicar esta mensagem do nosso amigo e camarada João Coelho que foi poupado à guerra do Utramar mas não aos seus horrores, ao espectáculo deprimente dos feridos graves que chegavam, nos aviões dos TAM, quase às escondidas, a caminho do Hospital Militar Principal, na Estrela.
Decidi, por outro lado, recuperar essa mensagem, inserindo-a nesta série
Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras. Pilotos, Especialistas Melec, Especialistas MMA e e tantas outras categorias de especialistas da Força Aérea que eu nem sei descodificar (Marme, Opc, etc.), todos eles cabem nesta expressão, que eu quero que seja bem-hmorada mas também solidária, honrosa e generosa, de
Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras...
Não faço distinção entre camaradas do ar, terra e mar... Estive fisica e emocionalmente mais próximo de uns do que de outros, mas também usei a LDG e também agradeci aos deuses o bendito heli que veio, várias vezes, com as enfermeiras pára-quedistas, fazer evacuações Ypsilon, nas matas do Xime ou do Corubal, em operações em que participei...
O saudoso capitão Zé Neto, o nosso primeiro bloguista ou tertuliano a deixar-nos, por traição do seu coração que deixou de bater, costumava contar-me com graça, que havia, na Guiné, três ramos das Forças Armadas (**), começados por Ch: (i) a tropa de choque (o Exército); (ii) a tropa de chique (a Marinha); (iii) e a tropa de cheque (a Força Aérea)... São/eram velhos estereótipos que hoje apenas nos fazem sorrir, e que não retiram nada à nobre condição dos homens (e de algumas mulheres) que fizeram a guerra da Guiné, nos rios e braços de mar, no ar e na terra, com a G-3, com a caneta, com a pica, com o estojo de primeiros-socorros, com o heli, com a LDG...
O João Coelho, que é um leitor atento e apaixonado do nosso blogue, e membro da nossa Tabanca Grande, é daqueles camaradas das Força Aérea que, nunca tendo estando em serviço na BA 12, Bissalanca, Guiné, esteve perto de nós, dos nossos feridos graves, recambiados para Lisboa, para esse outro inferno que era (imagino!) o Hospital Militar Principal, à Estrela, mais os seus anexos...
É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela...
Onde estás,
camarada Marques, grande herói, que foste projectado comigo por uma brutal mina anticarro, na nossa velhinha GMC, em Nahbijões, em 13 de Janeiro de 1971, e que depois conheceste o pesadelo dos hospitais militares, o de Bissau e o de Lisboa, e onde também fizeste amizade com o meu amigo Patuleia e teu vizinho de cama, futuro dirigente da ADFA, e que continua a ser hoje, para mim, um dos exemplos mais tenazes e surpreendentes da capacidade humana de lutar contra o infortúnio e contra as marcas horrorosas da guerra...
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Notas de L.G.:
(*) Originalmente publicado em 10 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2425: O Nosso Livro de Visitas (1): Manuel João Coelho, Cabo Especialista da FAP (Aeroporto da Portela)
(**) Vd. poste de 4 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P933: Pensamento do dia (2): as três tropas (Zé Neto)
(...) O Zé Neto escreveu-me há dias a protestar, e com razão, por lhe mandar a correspondência para o SPM errado... Aproveitou para se queixar das mazelas do corpo e da alma. Ele tem sido um herói, resistindo estoicamnente à tentação do cigarro... Mas agora vem a factura: o organismo a libertar-se da nicotina, os sintomas da síndroma da abstinência, etc.
(...) "Continuas a usar o meu endereço inicial da Clix, o tal dos poucos megas, embora em tempo oportuno eu te tivesse pedido para mudar para este, ou seja, para js.neto@clix.pt".
Mas o bom humor vem felizmente ao de cima neste homem - o nosso veterano - com quem tive o privilégio, há dias, de falar, pelo telefone, permitindo-me conhecê-lo um pouco melhor.
Diz o Zé:
"Agora que a poeira já assentou quero apenas dizer-te que fiz três comissões em África e sempre convivi com a dura realidade das três tropas, a saber: Tropa de Cheque (a FA e seus subsídios), Tropa de Chique (a Marinha e as suas vaidades) e a Tropa de Choque (os Zés da macaca). Tenho, nas minhas memórias, passagens de rir e chorar que vivi com essa gente. Pela minha parte não valem as cinco ou seis batidas no teclado que estou a gastar com eles.
"Já vai longa a birra.
"Um abração do
Zé Neto"