sábado, 27 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24346: Recortes de imprensa (127): "Memorial Day e os portugueses nas guerras dos EUA", artigo do jornalista Eurico Mendes no jornal Portuguese Times (José da Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada e amigo José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviada ao nosso blogue em 25 de Maio de 2023, trazendo até nós um artigo do jornalista Eurico Mendes [1], publicado no jornal Portuguese Times, sobre o Memorial Day que se comemora do próximo dia 29 de Maio nos Estados Unidos da América:

Carlos,
Junto um artigo impresso no Portuguese Times desta semana que, do ponto histórico, é muito interessante. Tem a ver com a participação de portugueses e luso-descendentes nas várias guerras que os EUA se viram envolvidos.

Abraço fraterno
José



Memorial Day e os portugueses nas guerras dos EUA










Na próxima segunda-feira, 29 de maio, é Memorial Day nos EUA, feriado em que o país honra os seus militares mortos em combate. Hoje em dia quase todas as cidades organizam desfiles de Memorial Day, muitos com a presença de militares e organizações de veteranos e as maiores dessas paradas são em Chicago, New York e Washington DC. Muitos americanos observam o feriado do Memorial Day visitando cemitérios, pois a data converteu-se numa espécie do Dia dos Fiéis Defuntos, e em nota menos sombria, muita gente organiza piqueniques ou vai à praia, uma vez que o dia é também extra-oficialmente o início do verão.

Não está claro onde a tradição do Memorial Day teve início, mas uma das primeiras comemorações teve lugar em Charleston, Carolina do Sul, promovida por ex-escravos negros dias depois de 9 de abril de 1865, data da rendição dos confederados que pôs termo à Guerra Civil (1861-1865), que teve início quando onze estados do Sul tentaram separar-se dos Estados Unidos da América e formar a sua própria união com o nome de Estados Confederados da América.

Em 5 de maio de 1868, o general John A. Logan, líder de uma associação de veteranos unionistas da Guerra Civil, convidou os membros a colocarem flores nos túmulos dos camaradas falecidos, chamou-lhe Decoration Day (Dia da Decoração) e escolheu a data de 30 de maio alegando não ser aniversário de nenhuma batalha em particular.

No primeiro Decoration Day, a 30 de maio de 1868, o futuro presidente general James Garfield foi o orador principal e 5.000 veteranos colocaram flores nos túmulos dos 20.000 soldados da União enterrados no Cemitério Nacional de Arlington (Virgínia).

Os estados do Norte passaram a celebrar o Decoration Day e em 1890 a última segunda-feira de maio já era feriado em todos os estados da União homenageando os seus mortos na Guerra Civil, mas os estados do Sul não se conformavam em honrar os mortos da guerra civil no mesmo dia que o pessoal do Norte e homenageavam os seus mortos em datas diferentes.

As coisas mudaram depois da Primeira Guerra Mundial, quando a data passou a homenagear todos os soldados americanos mortos nas guerras em que o país participou e só então o Sul resolveu aderir ao Decoration Day, que se foi tornando gradualmente conhecido como Memorial Day.

Em 1966, por decisão do presidente Lyndon B. Johnson, a localidade de Waterloo, estado de New York, tornou-se o berço oficial do Memorial Day porque desde 5 de maio de 1866 que os seus residentes decoravam os túmulos dos soldados com flores e bandeiras. E em 1971 o Congresso decidiu que o Memorial Day seria feriado nacional homenageando os militares americanos falecidos em combate, entre os quais um bom número de origem portuguesa, o que não admira uma vez que a imigração portuguesa é das mais antigas – começou em setembro de 1654 com a chegada a New York, que então se chamava New Amsterdam, de 23 famílias judaicas fugidas da Inquisição portuguesa no Brasil.

Desde a Guerra da Independência às atuais guerras contra o Estado Islâmico, Guerra Civil da Líbia e Guerra Civil da Síria, muitos portugueses ou seus descendentes pegaram em armas pelos EUA e alguns figuram na lista dos mais de 1,5 milhão de mortos que os EUA sofreram até hoje na guerra.

No cemitério da Murtosa, distrito de Aveiro, por exemplo, estão sepultados três filhos da terra mortos em guerras dos EUA: Manuel Evaristo, Segunda Guerra Mundial; Manuel Branco, Guerra da Coreia e Jack Rebelo, Vietname. Logo na primeira guerra dos EUA, a Guerra da Independência também conhecida como Revolução Americana (1775-1783), morreram portugueses e, já agora, lembre-se que um dos heróis dessa luta foi o lendário Peter Francisco, presumivelmente nascido na ilha Terceira, mas que não morreu na guerra. Faleceu em 1831, de apendecite, quando era beleguim da Câmara dos Delegados da Virgínia. A comunidade portuguesa adoptou Peter Francisco e dedicou-lhe monumentos em pelo menos três estados, e há também um Dia de Pedro Francisco em sua homenagem, um Prémio Peter Francisco e uma Sociedade dos Descendentes de Peter Francisco.

Menos famoso que Peter Francisco, também tivemos o John Peters (João Pedro), nascido perto de Lisboa e que imigrou para Boston depois do terremoto de 1755. Fez parte do grupo de patriotas envolvido no Boston Tea Party e, em 16 de dezembro de 1773, ajudou a lançar ao mar um carregamento de chá em protesto contra as taxas alfandegárias. Durante a luta nacionalista combateu em diferentes frentes até 1783, tendo sido ferido em várias ocasiões. Fixou-se depois em Philadelphia criando numerosa família e faleceu a 23 de abril de 1832 com a bonita idade de 100 anos, cinco meses e 23 dias, de acordo com o obituário publicado a 1 de maio de 1832 no jornal Alexandria Gazette.

Da tripulação do primeiro navio da Continental Navy precursora da US Navy, o Bonhome Richard que o rei Louis XIV de França ofereceu aos nacionalistas, faziam parte 38 portugueses recrutados por John Paul Jones no porto francês de L’Orient e onze morreram no histórico combate com o navio inglês Serapis.

Uma das primeiras baixas da Guerra da Independência foi Francis Salvador ou Francisco Salvador, nascido em 1747 em Londres, numa rica família judaica portuguesa oriunda de Tomar e que escapara à Inquisição fugindo para a Holanda e depois para Inglaterra. Veio em 1773 para a Carolina do Sul, onde herdara 405 km2 de terras do avô e foi eleito deputado pelo 96º distrito ao Congresso Provincial (independentista).

Em Charlestown foi descerrada há anos uma placa a lembrar que Francis Salvador foi o primeiro judeu a exercer um cargo político no território que viria a tornar-se EUA e o primeiro luso-descendente, acrescente-se.

Durante a guerra da Independência, os ingleses armaram os índios para fazerem frente aos colonos e Salvador cavalgou a Carolina do Sul a alertar os colonos dos ataques dos índios, ficando por isso conhecido como o Paul Revere do Sul. Morreu aos 29 anos, no dia 31 de julho de 1776, 27 dias depois da proclamação da independência e em combate com os índios Cherokees. A história guarda também o nome de Joseph Diaz (José Dias), baleeiro que se fixou em 1770 na localidade de Tisbury, ilha de Martha’s Vineyard, vindo provavelmente dos Açores. Casou em 1780 com uma rapariga da terra e aderiu à causa revolucionária. Capturado pelos ingleses em 1780, foi mandado para Inglaterra, mas foi libertado e regressou à ilha em dezembro desse ano; voltou a cair prisioneiro em 1781 e desta vez morreu a bordo do navio inglês Jersey.

Na Guerra Civil (1861-1865), quando onze estados esclavagistas do sul tentaram separar-se dos Estados Unidos da América e formar a sua própria união com o nome de Estados Confederados da América, a União sofreu 140.414 mortes e os Confederados 72.524 e houve também baixas portuguesas.

Ao tempo, viviam nos EUA mais de 4.000 portugueses e um número maior de descendentes e muitos combateram dos dois lados. Na Louisiana viviam algumas centenas de açorianos contratados para trabalhar nas plantações de açúcar e muitos foram obrigados a servir na Marinha Confederada.

Em New York, vários grupos étnicos formaram o seu próprio regimento, o 39º Regimento de Infantaria constituído por companhias de imigrantes italianos, húngaros, suiços, polacos, alemães, franceses e havia até uma companhia composta por soldados espanhóis e portugueses.

Os irlandeses formaram a Excelsior Brigade e, seguindo o exemplo dos irlandeses, os polacos criaram a Legião Polaca, os italianos a Legião Garibaldi (inspirada no legendário lutador pela liberdade Giuseppe Garibaldi) e a Skinner Brigade, criada pelo general Cortland Skinner com voluntários de New Jersey e da qual um dos estrategas era o capitão tenente John de Meneses, nascido em Portugal. Tivemos até uma legião criada pelo lusodescendente Francis Barreto Spínola, nascido em 1821 em Long Island, filho do madeirense João Spínola. Era advogado em New York, banqueiro e político. Quando a Guerra Civil começou Spínola alistou-se, foi promovido a general e, em 1862, criou a Empire Brigade. Mais tarde veio a comandar a Excelsior Brigade, mas foi ferido em combate e acabou a carreira militar, vindo a falecer em 1891, quando era congressista em Washington.

A Medalha de Honra foi criada durante a Guerra Civil Americana e é a mais alta condecoração militar oferecida pelos EUA a um membro das suas forças armadas. O agraciado deve ter-se distinguido em combate com risco da própria vida e por isso é uma condecoração frequentemente entregue postumamente.

Um dos primeiros condecorados com a Medalha de Honra foi o cabo Joseph H. de Castro do 19º Regimento de Massachusetts, que alguns historiadores apresentam como sendo o primeiro hispânico agraciado com esta condecoração, mas que possivelmente era lusodescendente uma vez que era de Boston e já viviam ao tempo mais de 500 portugueses naquela cidade.

Joseph H. de Castro, nascido em 1844 em Boston, era porta-estandarte do seu regimento e distinguiu-se na Batalha de Gettysburg, na Pennsylvania, na segunda tentativa do exército confederado para invadir o norte e que se tornou o mais sangrento confronto da Guerra Civil com mais de sete mil mortos de ambos os lados.

Na Guerra Civil tivemos outro judeu de ascendência lusa como destacado confederado, Judah Philip Benjamin, nascido a 11 de agosto de 1811 nas Antilhas Britânicas (agora as Ilhas Virgens dos EUA) quando os pais vinham a caminho da América. Era filho de Philip Benjamin e Rebecca Mendes Benjamin, judeus sefarditas britânicos e ela pelo menos de ascendência portuguesa. Judah era um brilhante advogado e era considerado “o cérebro da Confederação” tendo exercido três cargos governativos sucessivos: procurador-geral (1861), secretário de Guerra (1861-1862) e secretário de Estado (1862-1865) famoso pelos discursos defendendo o esclavagissmo.

Não é hoje um herói porque os confederados perderam a guerra, mas se tivessem ganho Judah Benjamin poderia ter sido o segundo presidente dos Estados Confederados da América.

O segundo lusodescendente a receber a Medalha de Honra terá sido o soldado Frances Silva, nascido a 8 de maio de 1876 em Hayward, Califórnia. Era tripulante do USS Newark e teve comportamento heróico entre 28 de junho e 18 de agosto de 1900, durante a Guerra dos Boxers, em Pequim, quando um grupo de chineses criou uma sociedade secreta para lutar contra a intervenção imperialista no país.

Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os EUA mobilizaram quatro milhões de soldados, dos quais morreram mais de 116.000. Mais de 16.000 portugueses e lusodescendentes alistaram-se e foram mandados para os campos de batalha em França. Um desses militares foi Walter Goulart, nascido em 1895 em New Bedford, filho de faialenses.

Goulart alistou-se no Exército em 1917, embarcou para França no ano seguinte. Morreu em combate na ofensiva de Meuse-Argonne no dia 7 de outubro de 1918, com 23 anos. No sul de New Bedford, na Walter Goulart Square, existe desde 1923 um pequeno monumento em memória do malogrado soldado. Durante a Primeira Guerra Mundial, várias associações mutualistas da comunidade portuguesa deram o seu apoio aos Estados Unidos, a Liga das Sociedades Fraternais Portuguesas contribuiu com $10.000 para a compra de canhões e a Associação Portuguesa de Protetorado e Beneficiário doou $10.000, metade dos seus activos, para a compra de Liberty Bonds e orgulhava-se do facto de 15 dos seus membros terem combatido na guerra. Na Segunda Guerra Mundial (1939-1946), morreram 292.000 americanos e entre eles muitos luso-americanos. Um deles foi Charles Braga, a 7 de dezembro de 1941, no bombardeamento do navio Pennsylvania durante o ataque japonês a Pearl Harbor. Foi o primeiro residente de Fall River morto na guerra e, em 1966, a ponte sobre o rio Taunton, com 256 metros de extensão e ligando Somerset e Fall River, foi chamada de Ponte Memorial Charles M. Braga Jr. em sua homenagem.

Depois de Pearl Harbor, a Marinha dos EUA precisou de ajuda para enfrentar os japoneses e recrutou 47 navios da frota pesqueira de San Diego, muitos dos quais propriedade e operados por portugueses. Quando a Marinha pediu voluntários para tripular os barcos, 600 homens, a maioria portugueses, ofereceram-se para essa arriscada missão.

Os navios foram pintados de cinzento, identificados com as letras YP. Os barcos “Yippie”, ou “costeleta de porco”, como lhes chamavam os portugueses, foram usados para transportar suprimentos e combustível para a zona de operações no Pacífico. De 1942 a 1945, 16 barcos foram afundados em ataques inimigos ou tempestades e em alguns casos desapareceram todos os tripulantes.

Dois lusodescendentes que mereceram a Medalha de Honra durante a Segunda Guerra Mundial, foram o soldado Harold Gonsalves, da Califórnia, morto em combate a 15 de abril de 1945, em Okinawa e o paraquedista George Peters, de Cranston, Rhode Island.

Em 24 de março de 1945, em Wesel, na Alemanha, Peters atacou um ninho de metralhadora alemão armado apenas com a sua carabina e uma granada de mão. Foi morto, mas salvou os seus camaradas. A Guerra da Coreia começou em 25 de junho de 1950, quando a Coreia do Norte comunista atacou a Coreia do Sul pró-ocidental e causou aproximadamente cinco milhões de vítimas civis e militares. Um total de 5.720.000 soldados americanos serviram na Guerra da Coreia, dos quais 50.000 foram mortos. Um desses heróis foi o soldado Leroy A. Mendonça, natural de Honolulu e de ascendência portuguesa e filipina. Morreu aos 19 anos, a 4 de julho de 1951, protegendo a retirada de um pelotão e, até chegar a sua hora, abateu 37 inimigos. O feito valeu-lhe a Medalha de Honra.

Na Guerra do Vietname morreram mais de 58.000 americanos e um deles foi o soldado Ralph Ellis Dias, nascido em 1950, em Shelocta, Pennsylvania e condecorado postumamente com a Medalha de Honra e várias Purple Heart. Alistou-se nos Marines em 1967, seguiu para o Vietname em 1969 e morreu em combate a 12 de novembro desse ano, na província de Quang Nam.

A cidade de Fall River rendeu homenagem aos militares americanos mortos no Vietname, com um memorial quase tão grande como o memorial existente em Washington. Dos 58.489 militares americanos mortos no Vietname, 1.331 eram de Massachusetts, sendo 48 portugueses e só de Fall River eram 11.

Nas modernas guerras dos EUA no Médio Oriente tivemos a Operation Freedom 2001, com uma baixa portuguesa, Miguel Rosa; e Operation Freedom 2003, com quatro: Arlindo Almeida, David Botelho, Andrew Cunha e Diane N. Lopes. Os EUA estão presentemente empenhados em conflitos no Iraque (onde sofreram 4.474 mortes) e no Afeganistão (2.853 mortes).

No Afeganistão morreram os seguintes luso-descendentes: Christopher Luis Mendonça, Jorge Oliveira, Carlos A. Aparício, Rafael P. Arruda, Anthony J. Rosa, Ethan Gonçalo, Francisco Jackson, Joaquim Vaz Rebelo, Scott Andrews, Robert Barrett e Chad Gonsalves.

No Iraque, morreram Michael Arruda, Michael Andrade, Joseph M. Câmara, Charles Caldwell, Peter Gerald Enos, Todd Nunes, Brian Oliveira, Scott C. Rose, Humberto Timóteo e David Marques Vicente.

O cabo marine David Marques Vicente, 25 anos, integrava o 2º Batalhão da 1º Divisão de Marines. Foi morto em 2003 e está sepultado em Methuen, MA, onde nasceu e residem os pais, naturais de Lisboa. Dias antes do funeral, um familiar do malogrado jovem deslocou-se a New Bedford e pediu ao então cônsul de Portugal, Fernando Teles Fazendeiro, uma bandeira portuguesa para Vicente levar no caixão. Embora tenha dado a vida pelos EUA, David Vicente foi sepultado com a bandeira portuguesa no caixão.

Não sei se em Portugal as pessoas se preocupam em enterrar entes queridos com a bandeira portuguesa. Aliás, não parece que Portugal tenha feriado semelhante ao Memorial Day. Vendo bem, Portugal pouco se preocupa com os seus veteranos vivos, quanto mais mortos.


(Com a devida vénia ao jornal Portuguese Times)

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Nota de José da Câmara:
[1] - Eurico Mendes foi Furriel Miliciano e fez a sua comissão de serviço em Angola. Ficou por lá numa Rádio Emissora. Algum tempo depois emigrou para os EUA e vive na zona de New Bedford. Aqui continuou no jornalismo escrito e falado (rádio e televisão de expressão portuguesa).

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

Guiné 61/74 - P24345: Os nossos seres, saberes e lazeres (574): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (104): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Não posso esconder que Mindelo me encheu as medidas, encontrei por toda a parte sinais de profundo respeito pelo passado como se tal passado fosse uma constante da identidade cabo-verdiana, um espaço singular entre a Europa e o continente africano. É num curto espaço de décadas que Mindelo tem o seu ápice, de tal modo vertiginoso que as autoridades de Lisboa abriram os cordões à bolsa para que a povoação impressionasse quem andava naquelas viagens transoceânicas, sente-se que aos poucos o casco histórico vai sendo recuperado, tem havido imensa cooperação estrangeira e a União Europeia não regateia colaborar, os dinheiros são efetivamente aplicados em termos de ranking Cabo Verde tem pouquíssima corrupção, Dá gosto ver estas praças em permanente reabilitação e transformação, Mindelo, sente-se à vista desarmada, quer competir com a Praia ser um farol cultural. Vim apetrechado de leituras, foi um prazer rever Germano Almeida e o seu O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, tudo se passa no Mindelo, e ao serão lia também João Lopes Filho, surpreendeu-me que ainda se pratica o fabrico do mel e do grogue recorrendo ao trapiche, mal sabia eu que dias depois, já em Santo Antão, irei ouvir o trapiche a funcionar e ver passar os carros com a cana do açúcar, que espetáculo.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (104):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa (3)


Mário Beja Santos

Era tal o interesse em conhecer mais e melhor este povo euroafricano que meti na sacola dos livros para a viagem obras de António Carreira, João Lopes Filho e considerei que era obrigatório rever o Mindelo através da lupa de Germano Almeida e uma das suas obras-primas, "O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo", foi muitíssimo bom revê-lo, veja-se logo o arranque deste empolgante romance: “A leitura do testamento cerrado do Sr. Napumoceno da Silva Araújo consumiu-me a tarde inteira. Ao chegar 150.ª página o notário confessava-se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo de água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias.” É uma arquitetura espantosa a deste romance, a matéria do testamento parece registada a diferentes vozes, é uma sala de espelhos que permite a surpresa do insólito, todos aqueles que vão interferir no testamento acompanham com a vista desorbitada o mais desconhecido que o Sr. Napumoceno escondera de tudo e todos. E Germano Almeida não se acanha à crítica contundente, chegara a independência de Cabo Verde, “ele Napumoceno estava assistindo à debandada de convictos e influentes membros da União Nacional para as forças do PAIGC e ficava especialmente confuso ao ver os homens que gritavam ontem que Portugal é um todo do Minho a Timor gritarem hoje com mais força ainda que a independência é um direito dos povos, não ao referendo, não à federação, não a outros partidos, só PAIGC é força, luz e guia do nosso povo.” Ah, ainda voltaremos a este primoroso Germano Almeida, calcorreia-se Mindelo, como se disse a pé, em transporte público urbano e percorre-se S. Vicente no coletivo.
O que surpreende o visitante e que as marcas mais evidentes vêm do século XIX, quando este porto era um privilégio em viagens interoceânicas. Parece certo e seguro que não andaram aqui pela primeira vez nem Cadamosto, nem António de Noli nem Diogo Gomes, foram direitos a Santiago, Fogo e S. Nicolau, Noli até foi contemplado com a capitania da Ribeira Grande, S. Vicente parece que desabrochou no século XIX, longa foi a hibernação. Mas andando a observar pelas ruas dá para perceber como estamos num mundo completamente ímpar de mobilidade social, de uma plástica mestiçagem que saiu da sociedade escravocrata, de um povo que teve bispo no século XVI, colégios, contactos entre instruídos e letrados, a ponto de todos os estudiosos concordarem que na história de Cabo Verde as classes não são categorias fechadas, assiste-lhes a mobilidade vertical. A expressão “gente branco”, tão corriqueira aqui, não significa etnia branca, mas gente que ocupa bons lugares na escala social, como Baltasar Lopes tão pertinentemente observou. Vamos percorrer as ruas, pois então.


Tinha uma ideia de que já vira homens a jogar assim, alguém me disse que o nome do jogo é ourico, fui logo consultar o dr. Google, afinal o jogo chama-se ouri, como se pode ler: “o Ouri pertence a uma família de jogos de tabuleiro designados por Mancala. Hoje, joga-se o Mancala em quase todas as regiões africanas. O nome varia de país para país e até de tribo para tribo, com algumas variantes, embora as regras, no essencial, sejam as mesmas. Há regiões africanas onde se jogam variantes em tabuleiros com vários buracos e sementes em número proporcional aos buracos. Para Cabo Verde, foi levado pelos povos da Costa da Guiné, que foram povoar o arquipélago no século XV. Os nomes de Oril, Uril, Ori, Oro, Ouri ou Urim, entre outros, coincidem com a especificidade de cada ilha, de Cabo Verde.” Deve ser um jogo apaixonante, encontrei muita gente na rua neste entretenimento, e sempre com observadores à volta.
Importa explicar o que me entusiasma nestas casas de sobrado, virão do tempo da Mindelo próspera, uma imensidade de embarcações a chegar e a partir, o imperativo de haver um comércio desafogado. Como já percorri o Bissau Velho a desmoronar-se, mal pavimentado e certamente com saneamento relaxado, olho para estas casas bem intervencionadas e sinto-me feliz por ver que a identidade deste país não despedaçou a vastidão da memória.
São os Paços do Concelho, como se disse anteriormente, com a hora da prosperidade fez-se palácio para o governador, honroso edifício para a municipalidade, alfândega, capitania dos portos, habitação para a nova administração, dá gosto ver estas passas e estes edifícios projetados para o mar, até se respeitou no restauro a coroa régia. Há países assim, a mostrar orgulhosamente que a sua entidade cultural, a sua fisionomia própria, vem de muitos séculos atrás.
Nova surpresa, já vi e irei ver mais praias de areia enegrecida e calhaus rolados, aqui e em Santo Antão. E chega-se a este extremo de tão preciosa baía no Mindelo e temos esta vastidão de areia com águas de azul-turquesa, ali perto anda um guindaste a fazer mais hotéis, podem-me dizer que praias assim há em muitos sítios, seja, mas na minha curta viagem não voltarei a ver espaço tão aprazível, maldita a hora em que decidi não trazer fato de banho.
Uma vista do Mindelo tendo no centro o espaço de mercado, tirei a fotografia enquanto me passeava novamente na réplica da Torre de Belém, o que mais me chamou à atenção foi a imensidade de casario que se vai erguendo até àquelas colinas vulcânicas.
Da réplica da Torre de Belém já se falou, mas fascinou-me este ângulo e o contraste que provoca olhar ao fundo para a solidez das montanhas vulcânicas tendo no meio um espaço que se reorganiza, pois S. Vicente é cada vez mais um destino turístico de eleição.
Permita-me o leitor o contraste das imagens da manhã e do entardecer, o Monte Cara sempre ao fundo, pelas cercanias deste porto andei horas a fio a tentar entender a atração que provocou até Dacar e as Canárias terem ganho no jogo da concorrência. É belo porque gera ilusões aos olhos, há momentos em que parece que estamos a ver outras ilhas quando é sempre a mesma, curvando e recurvando-se, abrindo-se em enseadas. Não será por acaso que uma das atrações turísticas é andar por aqui às voltas de barco até se ter a visão de que é sempre a mesma baía.
Há na Praça Estrela um conjunto de grupos azulejares, uma oferta que veio do Porto, mostra-nos cenas do quotidiano mindelense, nada danificado nem conspurcado, tenho muito orgulho no que estou a ver, o nosso país é a maior potência mundial em azulejo, é bom que se partilhe por quem abraça a lusofonia.
Sim, há outras coisas para dizer sobre S. Vicente, onde há momentos em que parece que me sinto num Portugal longínquo, mesmo quando ali perto oiço conversas naquele ritmo vertiginoso do crioulo. Para ser franco, tirei este registo numa praia que visitei em agosto de 1970, chama-se Salamansa, era ao tempo uma vilória de pescadores, cresceu muito, alguém me explicou que sobretudo os cabo-verdianos emigrantes nos Países Baixos investem neste sítio que é bem aprazível. Eu estava a despedir-me do dia e a agradecer a quem me pôs neste mundo a excelência que esta luz me oferece.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24329: Os nossos seres, saberes e lazeres (573): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (103): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24344: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVIII: Na 1ª fase da instruçáo da 2ª CCmds Africanos, fomos atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC...


Guiné > s/l > s/d > O furriel graduado 'comando' Cicri Vieira a cumprimentar o Major Raul Folques, comandante do Batalhão de Comandos da Guiné (no período de 28jul73 a 30abr74) (O major Raul Folques sucedeu ao major Almeida Bruno). (Foto publicada no livro, na pág. 197).



Guiné  > Zona Leste >  Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) >  Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento. Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanbos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVII:

Atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC 
(pp. 195-200)

Em Tite, oito dias depois (*), embarcámos com o pessoal seleccionado para a 2ª CCmds, com destino a Fá Mandinga, para dar início ao curso que iria durar seis meses.

Foi muito duro, terminou com uma prova individual duríssima. Começámos a 2ª parte do curso com a formação das equipas e depois seguiu-se a técnica de combate. Alterámos os horários, o dia passou para a noite e a noite passou para o dia. Começávamos a instrução às 19h00, que era a hora do pequeno-almoço, almoçávamos à 01h00 e jantávamos às 06h00 e a seguir deitávamo-nos no dia seguinte. Era uma semana maluca, diziam alguns.

Num desses dias saímos das viaturas na estrada de Bambadinca para o Xitole. Cinco grupos largados à distância, mais ou menos de três quilómetros uns dos outros, todos com o mesmo objectivo. Tinham-nos sido dados os azimutes para a nossa orientação e, mesmo assim, tivemos muitas dificuldades. A mata tinha um tipo de espinhas que eu nunca tinha visto. Agarravam-se ao camuflado e só saíam à faca. Saímos de lá com os camuflados todos cortados. Até fomos atacados por um civil da tabanca, em auto-defesa, de Candamã [1].

Homens que estavam a trabalhar na monda dos campos de arroz, a que nós na Guiné chamamos lugares de pampam[2], avistaram-nos e como, entre nós, não havia nem um branco, pensaram que éramos do PAIGC e fugiram para a tabanca, a avisar os milícias que a tabanca ia ser atacada. Depois começámos a ser flagelados com tiroteio e não podíamos responder.

Nós sabíamos quem eles eram, mas eles não sabiam que nós também estávamos do lado deles. Como a mata não nos deixava entrar, continuámos a contornar a campada[3] de arroz até que conseguimos deitar a mão a um homem que conhecia um dos nossos cabos monitores, o Califa Embaló, que estava à espera de ser graduado em furriel no final do curso. Convencemo-lo a dirigir-se à tabanca e avisar os milícias que nós éramos de Fá Mandinga e que nos estávamos a dirigir para a ponte do rio Pulom. Cerca de 15 minutos depois, fomos no caminho dele, até à tabanca, que estava vedada com arame farpado.

Quando chegámos, vimos que à volta da tabanca havia uma vala com abrigos que até podiam servir para armas pesadas e toda a população estava lá metida. Quando entrámos não cumprimentámos nem falámos com ninguém, continuámos a andar até sairmos pelo outro lado da tabanca, que ficava a leste da povoação. Seguimos então na direcção do nosso objectivo, a ponte do Pulon e as tabancas de Fulamori, Dulogenjele, Guerleje e Polo, que era o objectivo final. Na ordem de missão não devíamos nem podíamos tocar em nenhuma das tabancas.

Durante o trajecto, o furriel Cicri Marques Vieira informou pelo rádio que tinha chegado a Dulogengele e que ele e o Vasconcelos tinham reunido toda a população e que não havia problemas. Eu e o furriel Sada Candé só chegámos ao pôr-do-sol e encontrámo-nos todos em Bamtabá. Quando estávamos sentados, a descansar, vi umas casas cobertas com capim, à moda Futa-Fula e disse para o Sada Candé:

– Aquelas palhotas ali parecem de patrícios meus. Vou lá ver se me arranjam um local para as minhas orações.

Sada Candé quis ir também e quando lá chegámos ouvi um velhote perguntar a alguém se todos tinham ido e ouvi também esse alguém responder que sim.

–  Olha, Sada, estamos tramados. Fugiram todos para Galomaro. E agora? Temos que saber quantos fugiram e para onde foram.

Em passo rápido para a palhota, cumprimentei o velhote, ele respondeu com consideração, e eu perguntei-lhe:

–  As populações fugiram?

–  Mandámos mulheres e crianças passarem a noite em Galomaro.

–  Porquê?

– Porque não temos confiança no homem que se reuniu convosco. Tem barba muito grande!

O velhote estava a referir-se ao Furriel Cicri Vieira. Pedimos a um rapaz, que estava à nossa beira com uma bicicleta, que fosse atrás dos fugitivos e lhes dissesse para regressarem, que não havia perigo nenhum.

De madrugada, retomámos a marcha com destino ao nosso objectivo, que atingimos às 06h45, quase ao mesmo tempo que o capitão Miquelina Simões e o tenente Oliveira. E às 07h30 iniciámos as provas de equipas que terminaram já passavam das 20h30.

Mais dura foi a semana a seguir. Iniciámos a instrução colectiva, por grupos, que durou poucos dias e depois começámos[4] o treino operacional.

Saímos de Fá Mandinga, depois do pequeno-almoço em direcção ao Xime e atravessámos o rio Geba. Toda a companhia estava na outra margem por voltas das 13h00. Dali seguimos para o Enxalé.

Os comandantes dos grupos, todos furriéis, entraram na sala de operações, juntamente com o capitão, comandante da companhia[5] dos europeus do pelotão destacado no Enxalé, para consultarem os mapas da zona.

Saímos de Enxalé à tarde e caminhámos durante toda a noite, até de manhã. A marcha decorreu sem problemas, sem qualquer contacto com o IN. Quando atingimos o objectivo informámos, por rádio, que já lá estávamos. Então, recebemos ordem para retirar.

Foi uma retirada penosa. Estávamos com fome, com sede e com sono, a chuva miudinha não parava de cair. Só atingimos o Enxalé por volta das 16h00. Atingimos o porto às 18h00, estava a maré baixa. Não podíamos estar ali muito tempo, a maré cheia estava prevista para as 22, 23h00. Como continuava a chover, e estávamos cheios de frio, decidimos meter-nos na água e atravessar o rio, ao encontro das viaturas que nos aguardavam na outra margem.

Tirámos a roupa toda e enfiámo-nos no lodo, a rastejar. No meio do rio, vi-me atolado, quase sem me pode mexer. As lágrimas caíam-me pela cara abaixo, misturadas com a água da chuva, que nunca parou de cair. Finalmente, com muito custo, cheguei à outra margem, já passava das 18h00.

Na berma da estrada tinha uma enorme corrente de água da chuva a correr para o Geba. A tremer, com as lágrimas ainda a caírem-me pela cara, meti-me na corrente da água. Depois de tirar o lodo do corpo, vesti a farda encharcada. Uma mulher da minha etnia, que morava ao pé, convidou-me a ir aquecer-me à varanda da casa dela, enquanto o resto do pessoal não acabasse de atravessar o rio.

–  Meu furriel, vá lá, porque tem uma corrente de ar forte, fica seco num instante  –  disse-me um condutor.

Fui com a mulher. Tinha uma fogueira acesa, deu-me uma cadeira e estive ali a aquecer-me até que ouvi chamarem pelo meu nome para entrarmos para as viaturas. Vinte e tal quilómetros até Fá Mandinga, em viaturas sem capota, com a corrente de ar durante toda a viagem.

Quando cheguei, mandei um condutor chamar o enfermeiro, o Domingos Lourenço Fernandes, conhecido por Dundo Fernandes. Vesti umas calças e uma camisola, secas, e enfiei-me na cama com duas mantas em cima de mim. Quando Dundo chegou, aplicou-me duas injecções e deu-me três comprimidos para engolir.

Durante minutos, tapado com as mantas, senti calor, transpirei até que já não aguentava mais a roupa em cima.

Ainda antes da meia-noite, entrou no quarto um furriel europeu, que me acordou e disse que o capitão Miquelina Simões queria falar comigo.

–  Estou doente, pá!

–  É melhor ires falar com ele, parece que o teu grupo vai sair esta noite ainda!

Vesti-me e lá fui ter com o comandante, ao bar.

–  Desculpa, Amadu, esqueci-me de te dizer que vais sair esta noite. Devias estar em Bambadinca à meia-noite, mas vais na mesma, prepara o teu grupo o mais depressa possível.

Dei dez minutos ao grupo para se preparar. Com o grupo formado, conferi se estavam todos, o capitão passou revista, estava tudo em ordem e mandei-os subir para as viaturas. Ainda não era meia-noite, quando arrancámos para Bambadinca e, quando lá chegámos, passavam 20 da meia-noite.

Depois de consultar o mapa e inteirado da missão, pusemo-nos a caminho. Foi toda a noite a andar, até de manhã, sempre a chover, tudo bolanhas cheias. Chegámos ao rio, e tivemos que o atravessar para o outro lado. Demorou cerca de uma hora a travessia, depois entrámos numa área cultivada de milho. Fomos andando até às 11h00, atingimos um local, onde, conforme o estabelecido, entrei em contacto rádio e ficámos a aguardar nova ordem.

Entretanto fomos comendo qualquer coisa, que tínhamos levado connosco, e aí pelas 15h00, apareceu uma avioneta a sobrevoar a zona. Estava à nossa procura. Com o rádio ligado, pediram a nossa localização, estendemos telas e deram-nos ordem para nos mantermos naquele local.

Eram para aí 20h00 recebemos a indicação para atravessarmos o rio e para progredirmos até junto do objectivo, onde deveríamos permanecer, até nova indicação. A grande dificuldade foi atravessar o rio. Estava uma noite completamente escura, a ponte era de paus, a corrente era muito forte e no outro lado estava a mata densa. Agarrados uns aos outros pela cintura, demorou horas a travessia do grupo. Na outra margem fizemos um alto. Por volta das 04h00, retomámos a marcha com todo o cuidado, sempre com a companhia da chuva, até que por volta das 05h30 executámos o “golpe de mão”.

Após o golpe de mão simulado, rumámos para a estrada Bambadinca-Xitole e em Demba Juli apanhámos uma coluna que nos levou para Fá. 

Foram quatro dias sem qualquer ração quente e com paludismo.
_____________

Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: no subsector atribuído à CArt 2714 de Mansambo. [No livro, o topónimo está mal grafado: é Candamã, e não Gandamã. (LG)]

[2] Lavra de arroz no mato. O mato é cortado, primeiro, a seguir é queimado e, quando chove, lança-se o arroz e pega-se no covadouro, para se infiltrar melhor no solo.

[3] Campo lavrado.

[4] Nota do editor: em 10 Setembro de 1971.

[5] Nota do editor: CArt 2715 / BArt 2917

[Seleção / Revisão e fixação de texto /  Subtítulo / LG]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Havia algo de tão íntimo nesta narrativa que Jaime Froufe Andrade me enviou em outubro de 2020 que me impediu, após sucessivas leituras que dela fiz, de publicitar a importância deste documento literário. Não há para aqui lamúria nenhuma, põem-se os dados na mesa, exibem-se os factos, fala-se de velhos que parece que têm que contar às escondidas que se fizeram homens para uma guerra para onde foram enviados ou que se juntam uma vez por ano para trocar impressões se foi ou não foi assim mesmo que aquilo se passou, isto depois de já se terem contado as baixas trazidas por mais um ano, daquele encontro para este. Não hesito em chamar-lhe monumento literário e dizer que Jaime Froufe Andrade, alferes-miliciano ranger, em Moçambique (1968-1970) lega à literatura da guerra colonial um texto de arromba, para mim está no pódio do que há de melhor, o Moçambique que ele vai soletrando sílaba a sílaba pode facilmente transmutar-se em picadas guineenses ou angolanas, é assim que se define a universalidade da escrita.

Um abraço do
Mário


Um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu

Mário Beja Santos

Os Manuscritos de R., por Jaime Froufe Andrade, com segunda edição em novembro de 2019, é um tremendo grito de desespero. No uso de uma arquitetura literária que tem escola, há um editor livreiro a quem foram parar às mãos os manuscritos, uma prosa inquieta, um carrossel de clamores, e tratada como obra póstuma cabe ao escritor burilar as tais folhas convulsas, encontrou a satisfação em dar inteligibilidade a frases descontínuas, e entramos de escantilhão num lugar de guerra, há misturas de falas, farrapos de recordações, alguém vem de mochila às costas, bornal encostado à anca, a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita. Tem um objetivo a milhares de quilómetros. Engane-se quem pense que ele vai sozinho, “Acompanha-me um infindável rol de lembranças, acontecimentos bons, maus, poéticos ou prosaicos, dramáticos, fúteis ou de mero entretenimento.”

Tudo em rodopio, em alvoroço, umas vezes estamos no presente outras vezes no futuro, ou num algures pretérito. Parece que vamos a caminho de Tete. E vamos habituarmo-nos a expressões inusuais na literatura da guerra, por exemplo, viventes-a-prazo-indefinido ou vivente-a-muito-curto-prazo. Há gente que aparece aqui com diferentes idades, tanto podem ter 25 como 90 anos, as marchas são frenéticas, quem parece delirante lembra-se que é um ranger, está a esgatanhar-se para que a memória lhe traga à escrita aquilo que se viveu e a dor como se viveu, deste modo:
“A estação quente estava no pino. Caminhávamos há várias horas pela savana. O sol, caustico, mostrava-se pior do que aguarrás. Fazia rechinar as pedras. Extenuados, trôpegos, seguíamos em fila indiana, a vários metros uns dos outros. Os corpos, sujeitos a uma temperatura de 50 graus, lembravam – se os houvesse – fósforos ambulantes, prontos a arder. O inferno mudara-se. Montara arraial nestes ermos desolados, onde parecia não haver vida.”

Quem delira e quem rememora prossegue esta viagem, é de presumir que se trate de uma fuga, haverá talvez um ponto de encontro, pois fique-se sabendo que tudo aquilo que aqui se escreve em desassossego e com raiva, estes velhos desaustinados, desmemoriados, guardavam, como dever final, imagens retiradas da net, tais como evacuação de feridos, viaturas militares esfrangalhadas, pessoal de G3 na mão a atravessar linhas de água a embrenharem-se na selva. Ponto curioso, tal como Jaime Froufe Andrade, este delirante autor dos manuscritos ainda lembra o nome de pessoas, bichos, rios e lugares que conheceu em Moçambique: Xeringa, Jaissone, Tsimbe; Cahora-Bassa; checa, maningue, saguá, tembé, chibante… é Moçambique e a guerra que lhes coube viver.

Este homem que tem objetivo, de nome Rodrigues, parece que chegou ao destino, dá entrada no hospital psiquiátrico. Agora sim, a guerra parece que está mais próxima, o Rodrigues anda dececionado com os filhos, estes inquietos, o pai não anda bem da cuca, tem muitas desconfianças, teme ser envenenado. Vai trocando informações e descobre que tem à volta antigos combatentes, há para ali alguém que grita:
“Portugal, lembras-te de nós? Não te faças de desentendido. Lembras-te? Somos aqueles que a teu mando reconquistámos a Pedra Verde, passámos dias de terror em Gadamael, pagámos muitas vezes com a vida em Mueda. Lembras-te? Fica-te mal esse teu esquecimento.”

E há os males menores, os maiores foram os que regressaram sem olhos, pernas e braços, ou ficaram estiraçados no capim, “porque tu nem com a viagem de regresso dos nossos corpos te importaste. Isso não se faz, Portugal.” Quanto aos males menores: “Batemos o queixo com o paludismo, urinámos sangue com bilharziose, fomos picados por mosquitos, mordidos por cobras; sofremos insónias com o som da quizumba, coçámo-nos, desesperados, até sangrar, com a penugem de vidro da vagem do feijão-macaco. Por ti, ingrato, até roídos fomos pela matacanha.”

Assume proporção gigantesca a litania por o país que esqueceu aqueles que mandou para a guerra, marcando-os no corpo, na alma, na consciência. Bem se grita, Portugal às vezes tem consciência do que eles passaram, dá-lhes isenção de taxas moderadoras, gratuidade nos transportes públicos, visitas aos museus nacionais, um discreto pecúlio uma vez por ano. E Jaime Froufe Andrade fala-nos no recém-morto-definitivo, alguém que tinha vivido assombrado pela guerra e fizera do mau-vinho o seu tratamento diário, a costumada vida familiar infernal, a mulher, os filhos e os netos aprenderam que existe uma síndrome pós-traumático.

Lá no hospital ou coisa parecida parece que há propósitos de partir para uma operação especial. Então, estoira na memória aquela recordação de que os Chiticula estava a ser atacado, um cabo de transmissões gritava desesperadamente de que aquela secção que montava guarda a máquinas de Arma de Engenharia, estava a embrulhar, à frente de um grupo de voluntários o nosso ranger pôs-se ao caminho. “Portugal, lembras-te de nós? Não te faças desentendido. Lembras-te?” Tudo isto se contava lá à malta do hospital ou da pensão onde se encontravam aqueles velhos que tinham andado pela guerra. Mas que fique bem claro que era mesmo um hospital e todos aqueles voluntários, em estado de grande tensão, lá vão progredindo a corta-mato, entram em Chiticula, não há camaradagem maior do que percorrer todos aqueles perigos e abraçar gente amiga. Tudo isto se vai contando entre viventes-a-prazo-indefinido.

A operação não descola, a falta de memória é evidente, alguém consola o alferes, quando ali chegarem e cheirarem o capim, a festa vai continuar. Sabemos agora que está tomada a decisão, vão partir em boa companhia. “Um último aceno e os primeiros passos rumo ao objetivo, situado a milhares de quilómetros. Indiferentes a uma lua pequena e desconsolada que entristece a noite, vamos já a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita.”

Estou finalmente a ressarcir-me do silêncio em que guardei esta joia que me foi enviada pelo Jaime Froufe Andrade, com data de 19 de outubro de 2020, é uma narrativa prodigiosa, uma escrita incandescente que não pode deixar indiferente quem andou de armas na mão por aquela ou por outras picadas, cada um de nós teve o seu Tete. O que posso dizer a quem me lê e ao Jaime Froufe Andrade, que conheci no Jornal de Notícias, onde escrevi 28 anos a fio, é que o ponho no pódio dos grandes livros que se escreveram da guerra de Moçambique, logo a seguir a Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz, e Olhos do Caçador, de António Brito, é narrativa de arromba, mais tocante monumento ao antigo combatente esquecido não há.

O Alferes Jaime Froufe Andrade e um guerrilheiro da FRELIMO.
Imagens extraídas do site Dos Veteranos da Guerra do Ultramar
Jaime Froufe Andrade, em 2015, durante uma entrevista
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24342: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte X: mais fotos do destacamento e tabanca de Cutia


Foto nº 1A


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 2A


Foto nº 3


Foto nº 3A


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8

Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento e tabanca de Cutia >  Imagens diversas

Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). Desta vez tendo por tema o destacamento e a tabanca de Cutia, que ficava a meio caminho entre Mansoa e Mansabá. (*)

Estas são as terceiras de um lote sobre Cutia. Temos mais de  35 referências a Cutia. O Jorge Picado tem aqui, no poste P2881, uma excelente descrição do destacamento e tabanca de Cutia do seu tempo (1970/72) (**).

Na altura, havia em Cutia um Pelotão da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2855 (Mansoa, 1969/71) e ainda o Pel Caç Nat 61 (ou Pel Caç Nat 57) e ainda um Esquadrão de um Pelotão de Morteiros.

A oganização e a seleção das fotos são feitas pelo seu amigo e nosso camarada, o médico Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa), tendo passado depois pela Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971).

O José Torres Neves é missionário da Consolata, ainda no ativo. Vai fazer, em 2023, os 87 anos. Vive num país africano de língua oficial portuguesa. Esteve no CTIG, como capelão de 7/5/1969 a 3/3/1971. Estamos-lhe muito gratos pela sua generosa partilha.

As fotos (de um álbum com cerca de 200 imagens) estão a ser enviadas, não por ordem cronológica, mas por localidade, aquartelamentos ou destacamentos do sector de Mansoa. 
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Guiné 61/74 - P24341: Parabéns a você (2173): Jorge Narciso, ex-1.º Cabo Especialista MMA da Força Aérea Portuguesa (BA 12/Bissau, 1969/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24324: Parabéns a você (2172): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Gadamael, 1967/68

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24340: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Jovens da tabanca Rostos de inocência. Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos. Crianças (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

 Jovens da tabanca Rostos de inocência

Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos

Crianças

Camaradas,

Viajo pelas ondulantes ondas do tempo, afirmando seguramente que recordar é viver, tal como assevera o povo e com razão, que nós, antigos combatentes na Guiné, conhecemos, em parte, a vivência das crianças numa tabanca localizada no interior de um mato denso, onde o seu viver quotidiano na comunidade local, uma comunidade, aliás, essencialmente limitada pela falta da chamada liberdade de acção, uma condicionante que por força de uma razão maior terá de ser analisada em toda a sua verdadeira extensão, era simplesmente uma incógnita.

Nesta conjuntura, não entremos pelo mundo imaginativo literalmente irreal ou pressupostamente histérico que o nosso raciocínio ético nos propõe, mas baseado na isenção da realidade então observada. Analisemos sim, e imparcialmente, o viver dessas crianças que habitavam encurraladas entre as duas forças inimigas que, no terreno, não davam tréguas.

Nesses tempos, sempre hostis, as crianças despertavam em mim, tal como sempre o fizeram, sentimentos de uma profunda sensibilidade. Com elas, as crianças, compreendi que viver em liberdade era um confortante revigorante para que as suas almas no calor da luta armada reclamassem apenas paz.      

Mas a guerra é feita pelos homens, homens com os seus hobbies particulares à flor da pele, logo os possíveis sonhos das crianças ficavam, e ainda ficam, para trás. Para vocês crianças de outrora que conheci, hoje homens e mulheres da região de um Gabu que dantes calcorreei, fica o meu profundo sentimento de saudade.

Bem-haja a vossa infantil coragem por um sofrimento que era tão-só proveniente dos senhores da guerra. Das vossas carinhas inocentes guardarei eternamente imagens de jovens residentes em tabancas onde as necessidades imperavam.

Neste contexto, permitam-me deixar o meu grito de Ipiranga em conflitos armados que deixaram e vão desmesuradamente deixando abalos: Não às guerras! Não aos “senhores” das guerras! Não às opulências dos homens! Não às suas riquezas de “senhores” possessores de armamentos que só matam! Não à morte de inocentes crianças! Sim à paz! Disse.

Que sejam vocês crianças, principalmente as que conheci nessas tabancas da Guiné, os mensageiros de uma paz que nós, homens com carater, tão bem o desejamos. 

Mais um pequeno texto do meu livro "UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ/BISSAU 1973/1974, Edições Colibri. 

Jovens da tabanca

Rostos de inocência

Os seus olhares espelhavam uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte tantas vezes nublado. As crianças são pequenos seres humanos que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!

A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados numa tabanca escondida algures no mais denso mato ou na sua orla, mexeram com a minha susceptibilidade.

Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente arrepiantes. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia frágeis condições às populações para sua sobrevivência.

Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era a luz elétrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem tão-pouco brinquedos. Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… nada!

À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!

Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum deparámo-nos com grupos de jovens no mato que tinham sido submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exata que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos seus antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, confessavam aqueles que conheceram o sofrimento.

Mas as coisas, vistas num campo correcto, não eram bem assim. Ou seja, se no caso dos rapazes, a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente Portugal e a Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são realizadas em separado (rapazes e raparigas).

Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (em geral islamizadas).  É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde - a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanado tradicional.                 

O método, rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.

A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que, entretanto, tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.  

As crianças conviviam com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.

Um espelho de sobrevivência! 


Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 9 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)