"Uma coisa é estudar a guerra, outra é viver a vida de um guerreiro".
Foto (e legenda): © Vasco Gil (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Recorte da edição do Público, 2 de agosto de 2020: Texto de Patrícia Carvalho e fotografia de Daniel Rocha. O artigo só está disponível para assinantes. (Excerto reproduzido com a devida vénia...)
1. Mensagem de Vasco Gil, doutorado em antropologia pelo ISCTE [ CALADO, Vasco Gil Ferreira - Drogas em combate: Usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa [Em linha]. Lisboa: ISCTE-IUL, 2018. Tese de doutoramento. [Consult. 3 de agosto de 2020 ] Disponível em www: http://hdl.handle.net/10071/18841, técnico superior do SICAD - Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependência, dependente do Ministério da Saúde; autor da entrevista ao "Público", de 2 de agosto de 2020:
Date: quarta, 6/08/2020 à(s) 13:54
Subject: Tese e entrevista sobre o uso de substâncias psicoativas na guerra colonial
Luís: Escrevi umas linhas. Se achar que faz sentido publicar, e que não será motivo de maior agitação no blogue, está à vontade para publicar:
Deixo uma foto que poderá juntar. Vasco Gil
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Sou o autor da tese de doutoramento sobre o uso de substâncias psicoativas na guerra colonial e quero deixar alguns esclarecimentos sobre a entrevista dada ao "Público" [, edição de 2 de agosto de 2020] (*)
Em primeiro lugar, quero pedir desculpa pelo título e por algumas das fotos que ilustram a entrevista. A escolha não foi minha e admito que, quem não leu a entrevista, tenha ficado condicionado por algumas das fotos, que eventualmente passam uma imagem mais sensacionalista.
No entanto, quem leu com atenção constatou que o conteúdo não é esse. Nunca é dito que o consumo de drogas era generalizado ou mesmo a embriaguez. Pelo contrário, deixei bem claro que a descoberta da cannabis se deu numa fase mais tardia da guerra (no final do anos 60 e início da década de 70).
Este é um trabalho de Antropologia, pelo que não me preocupei em quantificar o uso desta substância. Deixei claro que apenas uma minoria teve contacto com a cannabis e a maior parte de quem consumiu fê-lo de uma forma experimental (uma ou outra vez, movido pela curiosidade). Mas houve alguns militares que passaram por Angola e Moçambique (na Guiné não existia cannabis) que descobriram a liamba e a suruma e usavam-na para alguns fins. Foi nesses que me foquei, mas sempre com o cuidado que ressalvar que a maioria nunca se apercebeu de nada.
Nunca uso o termo «drogados», que era um conceito desconhecido na altura. Mesmo «droga» não tinha o sentido que tem hoje. A maior parte dos militares que experimentaram fumar liamba e suruma durante a guerra não sabia bem de que se tratava, era apenas algo que viam outros fazer, nomeadamente os seus camaradas (brancos e pretos) de origem africana.
Devem ter sempre em mente que não há na tese ou na entrevista qualquer juízo de valor. Não entendo o uso de substâncias psicoativas como algo bom ou mau. O que me interessou foi perceber como é que num contexto de guerra era possível, mesmo que fosse pontual e não generalizado, o consumo de substâncias como álcool e cannabis.
E a minha conclusão foi que o uso de álcool e cannabis era um recurso terapêutico, isto é, algo que era consumido para ajudar a lidar com uma realidade muito, muito dura. De uma violência que eu não consigo sequer imaginar.
Na verdade, grande parte da tese é a explicar o quão dura foi a experiência de guerra para os militares que participaram na Guerra Colonial. E é essa violência que explica uma série de práticas. É essa a tese central.
Como tantos da minha geração, eu não conhecia nada sobre a Guerra Colonial. E descobri que foi muito mais dura e violenta do que eu supunha. Não sabia nada sobre o sofrimento, os traumas e a violência.
Tenho pena que não reconheçam que tentei fazer justiça a essa vossa experiência. Quando falo do uso de cannabis e dos episódios de embriaguez estou a criticar uma experiência de guerra tão dura ao ponto de alguns militares recorrerem a substâncias psicoativas para garantir um equilíbrio emocional (como recorriam a outros estratagemas, como o convívio, as cartas, a música, a fotografia, etc.). Não estou a criticar quem aumentou o consumo de álcool ou experimentou fumar cannabis.
Tudo o que disse atrás, aprendi com camaradas vossos, alguns que pertencem a esta comunidade. Não inventei nada, como é óbvio. Alguns trechos vêm de entrevistas, outros são citações de livros de memórias de guerra ou diários escritos na guerra (neste caso, qualquer um pode confirmar a veracidade do que é citado).
Eu aprendi como alguns de vós que os ex-combatentes se sentem muitas vezes injustiçados e pouco reconhecidos por tudo aquilo que foram obrigados a passar em África, mas não vejam em mim um inimigo. Pelo contrário, sou alguém que tentou trazer a lume mais um episódio da guerra que travaram.
Mesmo sabendo que o tema das drogas é um assunto delicado e tabu, ainda para mais para a vossa geração, acreditem que tentei fazer-vos justiça e dar a conhecer tudo aquilo que passaram.
Recebi algumas críticas e muitos insultos mas também muitas palavras de agradecimento de ex-combatentes, que se reviram no que está lá escrito.
Eu acredito que se lerem sem preconceitos e não virem nas minhas palavras um ataque à honra e uma qualquer motivação política, também se vão rever. (**)
Agradeço a todos aqueles que aceitaram colaborar com a minha investigação.
Vasco Gil
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(*) Vd. postes de:
4 de agosto de 2020 > Guiné 51/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)
8 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21234: (Ex)citações (365): álcool & droga na guerra colonial: oportunismos mediáticos... agendados ou não (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)
8 de Agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21233: (Ex)citações (364): canábis e álcool na guerra colonial (António Ramalho)
(**) Último poste da série > 28 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20282: Controvérsias (141): o triângulo Jabicunda / Sonaco / Contuboel... Nunca foi atacado, porque tinha à volta uma série de zonas-tampão, Bafatá e a Geba, a sul e a oeste; Fajonquito, Sare Bacar, Pirada e Paunca, a norte e a leste... (Cherno Baldé)