Foto: © Amílcar Vantura (2009). Direitos reservados
1. Mensagem enviada, 28 de Agosto de 2009, pelo Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323,
Bajocunda, 1973/74 (*):
Amigos e Camaradas Editores, há muito que quero contar um facto real que se passou comigo e o grupo do PAIGC da minha zona de guerra que era Bajocunda, mas como é um facto que pode ser sensível a alguns Camaradas de blogue.
Deixo ao critério dos nossos Editores a publicação ou não deste meu texto assim como tratarem o texto para ficar melhor (**).
Como todas as histórias, começa assim. Era uma vez um mancebo, de nome Amílcar Ventura, que foi cumprir serviço militar. Como na escola só queria era passear os livros, acabou o curso de Formação de Serralheiro e uma semana depois apresentou-se no RI 7 em Leiria para a recruta onde esteve só quinze dias. Enviaram-no a seguir para Escola Prática de Cavalaria em Santarém para acabar a recruta.-
Acabada a recruta e por ter o curso do Ferro, saiu-lhe na rifa a especialidade de Mecânico Auto. Foi enviado para tirar a especialidade, para a Escola Prática de Serviço de Material em Sacavém.
Aí chegados, a boca que havia era que não valia a pena ficarmos bem classificados que toda a gente estava mobilizada para o Ultramar. Foram três meses de Especialidade e três meses de estágio.
Ainda não tinha acabado o estágio, e logo saíram as mobilizações. A minha era para Moçambique. Como um Sargento me disse que a nossa especialidade era melhor na Guiné, lá fui a caminho do então Ministério do Exército mexer os meus cordelinhos para fazer a troca. Tinha um amigo lá, que era Furriel, esse do tempo do atletismo escolar, mas tive uma surpresa, ele não queria fazer a troca, dizia que eu ia para o Inferno da guerra e ainda por cima o meu irmão estava no anexo do hospital da Estrela, tinha sido evacuado da Guiné havia pouco tempo com alguma gravidade…
Bem, lá consegui cantar-lhe a canção do bandido de modo a ele fazer-me a troca.
Vou abreviar…. Quando chegámos a Bajocunda e quando me foi entregue a oficina, havia um mecânico Africano que era um assalariado e a quem a Companhia teria que pagar o ordenado pois já vinha de outras companhias… Mas quando chegou o final do mês, os dois Sargentos da Companhia disseram que não havia dinheiro para ele Então eu paguei do meu bolso os respectivos quinhentos escudos que era o que ele ganhava.
Aqui fiquei logo com um grande Amigo, enquanto eu lá estive, ele era a minha sombra, até que um dia me pediu gasóleo. Queria um bidão que, como sabem, era duzentos litros. Disse-lhe que só lhe dava se me dissesse para que fim se destinava…
Depois de muito falarmos, fiquei a saber que o gasóleo era… para o PAIGC. Então eu disse-lhe:
- Vamos os dois levar o gasóleo.
Não tive receio nenhum porque sabia que era respeitado pelo PAIGC e lá fui. Estive perto de falar com eles mas, como era a primeira vez, houve um certo receio das duas partes… Pensei então cá para mim:
- Se houver repetição, da próxima vez só vou dar o gasóleo se eles falarem comigo…- E assim aconteceu, tive o meu primeiro contacto em tempo de guerra com o meu inimigo ( já parecia a guerra do Raul Solnado)…
Só que o meu objectivo era ver o Cubano que lá andava mas saíram-me frustadas todas as tentativas que fiz para o contacto com ele… Mesmo depois do vinte cinco de Abril, o Cubano que lá andava, desapareceu, sempre pensei que ele ia estar no primeiro encontro que tivemos com o PAIGC mas nem rasto dele…
Esta foi mais uma história real na terra do Amílcar Cabral. Um abraço amigo a todos os camaradas do blogue.
[Revisão / fixação de texto: L.G.]
2. Mensagem do nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribeiro, de 31 de Agosto de 2009:
Boa tarde Amigos Vinhal, Luís e Briote,
O nosso Camarada Amílcar Ventura enviou-me o seguinte material [ Vd. texto anterior]. Controverso q.b.
Se acharem por bem, eu publico o mesmo, mas como é óbvio terá que se anteceder a publicação com uma nota de introdução, visto que já se prevê a habitual contestação.
Qualquer coisa do género:
Nota de introdução:
Quem é que ainda não ouviu dizer que o soldado condutor 'xis' deixava uma caixa de cervejas na picada, ou qualquer outro alimento e que, os mesmos, passadas umas horas desapareciam como por milagre?
Porque o fazia? Por mórbida curiosidade, ou por estranhos, silenciosos, descomprometidos e raros pactos de 'não agressão', a modos que:
- Deixai-me em paz que eu faço o mesmo em relação a vós e ainda vos deixo uma ‘prendinha’.
São realidades pouco ventiladas pelos seus protagonistas, por motivos evidentes e não eram, como não podiam ser, do conhecimento geral e muito menos daqueles que não admitiam este tipo de ‘traição’, como a malta da PIDE/DGS, alguns Camaradas mais radicais na sua conceito Patriótico e os Comandantes mais severos e conservadores.
Assim, quando estes ‘intercâmbios’ entre alguns elementos das nossas tropas e do PAIGC aconteciam, o segredo da coisa ficava restrito a um pequeníssimo círculo de amigos de extrema e insuspeita confiança.
Já me constou, mais que uma vez, que foi uma realidade da nossa guerra, que foi praticada em alguns pontos da Guiné.
Esta prosa vem a propósito de um texto controverso que publicamos hoje, da autoria do nosso Camarada Amílcar Ventura, que assume uma acção dessas e vem demonstrar bem a outra face escondida da nossa (portuguesa) guerra.
Mensagem enviada, de férias pelo L.G., a 1 de Setembro de 2009, ao Eduardo com conhecimento ao Amílcar Ventura:
Eduardo:
O Amílcar Ventura para que a história tenha credibilidade , tem de acrescentar mais pormenores: (i) em que data é se passou estes episódios ? (ii) em que sítio é que ele deixou os bidões com gasóleo ? (iii) durante quanto tempo; (iv) quem foi (ou era habitualmente) o condutor ? (iv) há testemuenhas ? (v) não lhe passou pela cabeça que corria riscos (de um lado e do outro) ? (vi) qual foi a sua verdadeira motivação: simples curiosidade em ver a "cara do inimigo" ? gosto pelo risco ? simpatia pelo PAIGC ?...
Sem mais estes detalhes, a malta que ler o poste vai ficar na dúvida e pode inclusive pensar que o Amílcar "está a brincar connosco"... Se a história aconteceu, como ele conta, pode e deve ser divulgada no blogue... Mas tem de ser credível... É uma história ou um estória ? Falta-lhe qualquer coisa: o Amílcar deve desenvolver mais o que escreveu, o preâmbulo é maior que o relato do episódio...
Antes de publicares, quero ver... Um abraço matinal...
4. Três mensagens do Amílcar Ventura, do mesmo dia (1 de Setembro de 2009):
(A) Luís Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, não é uma história ou estória, é um Facto Verdadeiro:
(i) A data foi desde que peguei na oficina, em finais de Novembro de 1973 até me vir embora [ Setembro de 1974];
(ii) O sítio onde deixava o bidão com o gasóleo era cinco quilómetros a leste de Bajocunda [, ou seja, no sentido de Copá e da fronteira];
(iii) O o condutor era eu (só podia ser eu);
(iv) As testemunhas eram os miúdos de... Bajocunda;
(v) Os riscos não eram nenhuns (há uma parte que não posso contar...);
(vi) A verdadeira motivação era acabar com a guerra o mais rápido possível…
Vou ser honesto, a minha Pátria era e é Portugal, a Guiné é dos seus habitantes, sempre tive grande admiração pelos grupos de libertação das colónias o quem o Salazar chamava de províncias ultramarinas… Por isso, não pensem os meus Camaradas de Guiné que eu estava a brincar com uma coisa tão séria e de responsabilidade.Um abraço amigo
(B) Amigo e Camarada Luís Graça:
Estou trabalhando e vou-me lembrando de certas coisas… Quero dizer-te que, se vês que este meu texto é muito polémico, eu não me importo de não o publicarem, mas ao mesmo tempo gostaria de o ver publicado, porque sinto que com a minha ida à Guiné dei um pequeno contributo para que a guerra acabasse mais cedo e que com isto se poupasse muitas vidas de Camaradas nossos.
Um abraço amigo
(C) (...)
Quero dizer-te sob PALAVRA DE HONRA que tudo o que fiz na Guiné nunca pus em perigo de vida os meus Camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipadamente a informação que ia haver ataque.
Mais teria a te dizer mas acho que chega para compreenderes as minhas palavras. Quero-te dizer que tenho um irmão que é deficiente das Forças Armadas e, se não lhe acontecesse o acidente, eu juntava-me com ele na Guiné: era o Furriel de Artilharia que estava em Gampará com três obuses 10,5.
A história dele é engraçada: ficou em primeiro lugar no curso de Transmisões, viram o cadastro político da família e já, Furriel, enviaram-no para Vendas Novas e, no mês seguinte, para a Guiné. É, como tu vês, o que o Salazar fez com a minha família [, familiares presos pela PIDE/DGS, etc.]. Amigo Luis Graça, fico-me por aqui.
5. Comentário de L.G. (o mesmo, com as necessárias adaptações, que foi escrito para o P3544, do Santos Oliveira):
Obrigado, camarada, por quereres (e poderes...) partilhar este segredo da Guiné connosco, teus amigos e camaradas. Já com o Mário Dias [, P 3543, ] (**) se passou o mesmo: há pudor e relutância em contar episódios como estes, de alguma maneira insólitos e, muitas vezes, inverosímeis aos olhos dos outros, constrangedores, etc... O Mário fê-lo por razões de coração e amizade... Tu terás tido uma motivação política...
Seria uma pena que tu e o Mário Dias [, e os restantes camaradas que já aqui 'revelaram segredos', ] levassem, para a cova, pequenos/grande segredos como estes... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam fundo, que nos fazem sorrir [, à maneira do saudoso e genial Raul Solnado], que mexem connosco, que nos interrogam ou até nos incomodam... Mas segredos são isso mesmo: são segredos, aquilo que em caso algum deve ser revelado... a não ser na hora da morte!
Espero que, a partir desta série, mais camaradas nossos decidam abrír a sua
caixinha de Pandora... antes de baterem a bota (passe o humor negro!).
PS - Amílcar, seguindo as regras do jogo do nosso blogue, não faço (nem posso fazer) qualquer juízo de valor sobre o teu comportamento... Mas os nossos leitores quererão saber mais pormenores e perceber o contexto... É claro que à luz do RDM em vigor, poderias ter ido parar a tribunal militar... Dá-me entretanto mais alguma informação factual: (i) afinal, quantos bidões de gasóleo de 200 litros 'dispensaste' ao PAIGC até ao 25 de Abril de 1974 ? (ii) sabias qual era o uso (civil ou militar) que o PAIGC fazia desse combustível 'dispensado' por mim ?, (iii) como se chamava o comandante do PAIGC que já conhecias antes do 25 de Abril ? (iv) como justificavas, na tua subunidade, a quebra de stocks de gasóleo ?, etc. etc.
6. Esclarecimento adicional do A.V, respondendo às nossas últimas perguntas:
Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, do nome do Comandante só me lembro o apelido, Sanhá, mas segundo me diziam o cubano é que comandava o gasóleo que levava, e que era para viaturas civis e militares. Eu justificava o gasóleo nos mapas de combustível nas Berliet que tinha, e que eram duas. A quilometragem era feita por estimativa.
O desvendar do meu segredo... Quero-te dizer que só o meu irmão é que sabia e como já tinha lido alguns postes com coisas parecidas, resolvi dizer só que o meu é um pouco pior que os outros, mas como já disse estou preparado para o que vier. Esclarecerei todos os meus Camaradas sem entrar em polémica, pois fiquei vacinado com o que aconteceu com o Camarada Constantino. Também te quero dizer que o texto com as fotos estão bem. Faltou-me dizer que foram seis as vezes que levei combustível ao PAIGC.
______________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 9 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74(...) Amilcar José das Neves Ventura:
(i) 57 anos, nascido a 9 de Dezembro de 1951, em Silves, onde vive e trabalha;
(ii) Tem o 9.º ano de escolaridade (Curso de Formação de Serralheiro);
(iii) Foi chefe de armazém da Cooperativa de Retalhistas de Mercearias Alicoop, em Silves (1974/84);
(iv) Foi depois fotógrafo profissional por conta própria, durante 24 anos, tendo trabalhado, nesse período, para vários jornais, nacionais (Record, Correio da Manhã) e regionais;
(v) Tem dois filhos, de 34 e 30 anos;
(vi) Gosta de caçar e pescar;
(vii) É coleccionador de tudo o que tenha o emblema do Sporting;
(viii) Actualmente é fiel de armazém na Câmara Municipal de Silves.
Sobre a sua comissão militar na Guiné, conta:
(...) "Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974 e a partir daí foi tudo um mar de rosas.
"Tivemos o primeiro encontro com as tropas do PAIGC da zona dois dias depois. Sinto um grande orgulho por ter liderado esse encontro, onde os guerrilheiros nos contaram com faziam os ataques e as emboscadas. Hoje ainda guardo um gorro que troquei por uma lente com o
comandante do PAIGC da nossa zona, que já conhecia há muito tempo.(bold meu)
"No dia 22 Agosto 1974 entregámos Bajocunda ao PAIGC. Foi dos dias mais alegres de todos os que estive na Guiné, ver finalmente aquele país libertado. Depois seguimos para Bissau e no dia 9 Setembro regressei à minha Pátria" (...).
(**) Vd. postes anteriores desta série:
30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN6 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato11 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite4 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)