sábado, 3 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P837: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

Cabral, o mais guinéu de todos nós, o ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, no período de 1969/71, de cujas estórias eu sou fã incondicional, quebrando com isso o dever de imparcialidade que compete ao editor do nosso blogue:


Texto de Jorge Cabral

Caro Amigo Luís,

Volto ao que gosto - as estórias.

Grande abraço, Jorge.


O Soldado Nanque, meu assessor feiticeiro


Desde que cheguei, e durante o primeiro ano, o Pel Caç Nat 63, foi pluriétnico. Mandingas, Fulas, Balantas, Manjacos, Bigajós, estavam representados. Pluriétnico e plurirreligioso, com um Manjaco, Pastor Evangélico, um Marabú Mandinga Senegalês, vários adoradores de muitos Irãs, e até alguns crentes na Senhora de Fátima, vivendo todos em Paz ecuménica, sob a batuta do Alferes agnóstico com tendências panteístas, que pensava que nada o podia surpreender.

Eis que numa tarde, talvez em Agosto de 1969, tinha ido eu a Bambadinca, dissipar a chatice em terapia alcoólica, quando se me apresentou o soldado Nanque. Papel gordíssimo do Biombo, de bigodes dalianos, a sua postura e traje, não mereceram infelizmente a posterioridade fotográfica, mas perduraram até hoje na minha memória. Envergava a marcial criatura, um dólmen camuflado que lhe chegava aos joelhos, umas calças de caqui amarelo quase bermudas, a condizer com as chinelas vermelhas de enfiar no dedo, e na cabeça um bivaque cinzento, no qual reluziam cintilantes as armas da Cavalaria.

Apresentado com continência e tudo, informou logo, ter havido engano em Bissau, pois não era nem nunca fora operacional. Condutor, Carpinteiro, Enfermeiro, constituíam as suas especialidades, e não tendo o Pelotão necessidade das suas competências, regressaria imediatamente a fim de resolver a questão com Spínola, seu grande amigo.

Concordei. Operacional, nunca. Iria lá perder a personagem… Levei-o então ao Posto de Socorros, a fim de aquilatar os seus conhecimentos. Aí entrado, e completamente à vontade, dirigiu-se ao armário dos medicamentos, donde retirou três caixas, cheirou-as, e sabedor, identificou: “Mesinho pa odjo”, “Mesinho pa panga barriga”, “Mesinho pa dur de cudjon”.

Exame terminado, com óbvia distinção, lá o levei para Fá, sem a mínima ideia das funções que lhe iria atribuir. Porém, logo nessa noite, teve oportunidade de demonstrar a sua utilidade.

Como de costume jogávamos a nossa lerpa, e eu perdia, perdia… até que o Nanque chegou, e colocando-se atrás de mim iniciou um bailado mágico invocando o espírito da sorte, o qual pelos vistos lhe obedeceu, pois passei a ganhar.

Convencido, dispensei-o de operações, patrulhamentos, sentinelas. Foi nomeado meu assessor feiticeiro, e já nessa qualidade me tratou de pernas infectadas, das quais retirou, cuspindo-as, oitenta e três pedras, lá colocadas, segundo ele, pelos meus inimigos de Lisboa.

Correram dias, meses, e o Nanque continuou a prestar bons serviços. Porém, uma manhã acordo e vejo á volta da minha cama todos os Homens Grandes da Tabanca. Estremunhado, penso ter chegado ao Paraíso deles, aguardando a chegada de uma das sete mil virgens. Mas não, tão solene e formal comitiva, vem apresentar queixa.

O Nanque invadiu e saqueou a Tabanca, trazendo oito bajudas, três cabras e dezanove galhinhas, e tudo, como terá afirmado, por minha ordem. Aliás, durante a operação deu a entender que a Tabanca estava cercada, gritando de vez em quando para o exterior:
- Alfero, aguenta, tudo na bai drito.

Devolvido o saque, e sanado o incidente, o Nanque desapareceu, pelo que tive de participar. Apanhado na fronteira norte e inculpado por deserção, defendeu-se afirmando ter ouvido os tantãs soarem, e que os espíritos da floresta requeriam a sua presença…

Alguns dos que passaram por Bambadinca, certamente se lembrarão de ver o Nanque naquela prisão que parecia um galinheiro (1). Por minha ordem era-lhe fornecida uma cerveja diária, mas nunca lhe consegui arranjar macacos que ele gostava de comer assados (2). Não ficou muito tempo preso, pois calculem, passou a ordenança do Comandante do Batalhão…

Quando me vim embora despedi-me do Nanque. Abraçando-me, aconselhou-me a seguir o chamamento dos tantãs… O que sempre tenho feito!".

Jorge Cabral

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Notas de L.G.

(1) Já aqui evoquei o tristemente famoso e degradante galinheiro de Bambadinca: Vd. post 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos... Os paras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. Foi apanhado com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele.

"Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui . Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné.

"Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra. Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho [refeitório dos praças]. Entre a escola e o posto administrativo.

"Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic) capturado pelos paras [na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no subsector de Mansambo]. Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.

"Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola. Deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade" (...).

(2) Volto a publicar uma das primeiras estórias cabralianas, que tem relação com esta, mas que não foi devidamente autonomizada (deveria corresponder à nº 2) (3), constante do post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...


A mulher do Major e o castigo do Cabral


Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.

Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.

Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a matar a sede e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.

Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).

Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...

O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.

Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...

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Nota de L.G.

(1) Polidoro Monteiro: Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971). Já falecido, ao que me consta. Dele disse o Jorge Cabral o seguinte: "Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética" (in Post de 18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.

(2) Há duas estórias com o mesmo número, e que agora já não vale a pena corrigir: vd. posts de

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXV: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

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