Foto: © António Santos (2006)
Mensagem do António Santos, Pel Mort 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)
Amigo Luís Graça.
Todos os dias vou à caserna e nota-se que a participação é cada vez mais agitada, no bom sentido, de dia para dia as visitas vão aumentado, o contador aumenta vertiginosamente, ninguém pára a malta da Guiné. Tens um belo site. Desta vez além do texto junto a primeira foto do recruta.
Um grande abraço.
A. Santos
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Caro camarada, Luis Graça.
Agora que estou na caserna (1), é minha obrigação continuar e prometo, sempre que me for possível, voltar para acrescentar algo.
Bissau 15 de Julho de 1972, 12h20.
O avião dos TAM [Transportes Aéreos Militares] imobiliza-se na placa, o pessoal prepara-se para sair, um a um lá se vão aproximando da porta. Quando foi a minha vez, tive a sensação de que estava à porta de um forno, o ar estava abafado e o céu nublado. De imediato foi um despir blusões, arregaçar mangas de camisa, desapertar gravatas por todos os lados, mais parecia um campeonato de strip-tease sem que ninguém desse o tiro de partida.
Após os procedimentos legais - tais como contar o pessoal por exemplo, não tivesse fugido algum pelo caminho -, saltámos para as Berliets e nisto começa a chover e a trovejar, parecia inverno na minha Lisboa, mas diferente porque estava muito calor, o que me fez muita confusão porque nenhum meteorologista explicou como era (é) o tempo na Guiné . Também foi chuva de pouca dura, como começara acabou, uma novidade a juntar a tantas outras que comecei por coleccionar desde aquele momento.
Pouco depois cheguei a um quartel, que vim a saber mais tarde chamar-se Depósito [Geral] de Adidos e a localidade Brá [a noroeste de Bissau] onde no dia 16 ao almoço vi a coisa que para mim talvez tenha sido a mais chocante em toda a minha vida. Miúdos, no refeitório (do lado de fora, porque nem sequer os deixavam entrar), com recipientes de vários tipos e feitios a mendigarem uns restos de comida, e o que mais me custou ver foi camaradas ditos velhice a misturarem tudo como: restos de sopa, espinhas, batatas e ainda por cima pouco satisfeitos, juntavam restos de fruta, cascas de banana por exemplo, tudo o que era lixo para darem as crianças.
Mais tarde pude verificar que o defeito era desta unidade que juntava pessoal de todas as zonas, o que, em situações como esta, é propicio a juntar sempre pouca coisa boa, mas muita, muitissíma coisa má.
A colecção felizmente também foi de coisas boas que ainda hoje recordo e, uma delas na parte a que toca à linguagem, começou por: machimbombo, porque era necessário para chegar a Bissau, já dentro deste, aprendi a palavra catinga, manga dela, depois foi peso, patacão, bazuka, aquela que gostávamos que estivesse sempre perto de nós, de preferencia fresquinha.... e por aí fora..
Dia 20 de Julho de 1972, como era da praxe, tambem tivemos a recepção de boas vindas, como se fosse necessário... O Com-Chefe deu um pulinho até Brá e lá discursou uns poucos minutos, onde disse “conheço-os a todos”, acho que devia ser uma frase feita, porque ao filho da minha mãe ele nunca tinha visto em lado algum... Seguiu-se a revista em parada da praxe.... Ainda se fala dos praxados nas escolas!
Dia 22 de Julho, às 4 horas, embarque no cais de Bissau na LDG Bombarda, destino Xime... Mais uma de entre as milhentas viagens desta embarcação, mas para mim era a primeira vez e lembrei-me do dia “D”, pela semelhança do navio... Lá fui rio acima ouvindo histórias da velhice que estava de regresso às respectivas unidades após férias, consultas externas, etc.
Uma que recordo bem:: "somos sempre atacados na ponta do Inglês"... O pior foi quando vi os Fusileiros colocarem-se nas laterais da ponte, do navio, com morteiros 60 apontados às margens, aí pensei: "Queres ver que isto é mesmo a sério?!"... Mas não houve nada, foi o primeiro cagaço.
Entretanto lá chegamos ao Xime, eram para aí umas 9 horas, o “ baile do costume” dado pela velhice que fomos render e outros a subir para as Berliets e arrancar para o desconhecido... Primeira paragem: Bambadinca. Deixámos aí o Pel Mort 4575/72, para render um outro.
À entrada da picada de Xitole, estava uma placa colocada ali só para a ocasião, em sentido contrário ao qual seguíamos, que dizia "LISBOA 3.000 Km", acho que estavam mal medidos mas que deixou cá o rapaz de rastos, deixou.
Segui-se Bafata, parámos, ainda hoje não sei porquê, talvez fosse obrigatório. Na época, manga de cidade bonita, finalmente lá seguimos para Nova Lamego, 54 Km de estrada alcatroada que era uma beleza, só que para um periquito, unico militar em cima de uma Berliet, os restantes companheiros eram civis, naturais da terra e para os quais eu sorria com um sorriso muito amarelo, com uma G-3 na mão e carregadores vazios.
Foram 54 Km de ânsia, ataques que esperava ver surgir e que imaginava a qualquer momento vindos do mato e árvores que ladeavam a dita, e lá se passou o segundo cagaço, também sem problemas. Chegamos a Nova Lamego por volta das 13h00.
Junto a primeira foto da recruta.
Muito obrigado ao A. Marque Lopes, pelas fotos do nosso chão.
Um abração, extensivo a todos os tertulianos.
António Santos
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)
(...) "Chamo-me António Santos, ex-Soldado de Transmissões, em Nova Lamego, Sector L3,[Zona Leste,] de 1972 a 1974, incorporado no Pel Mort 4574/72, para render o Pel Mort 2267/70".
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