Imagem cedida por Vítor Barata, especialista da FAP (pág. 212)
Ussumane Seca, Abdulai Djalo Cula, Aliu Djaquite, Aliu Sana Sanhé
e Sissau Candé, em Tite, 1971 (pág. 215)
O Alferes Tomás Camará e o Furriel Anastácio Ferreira (pãg. 216)
Momentos antes do embarque para Angola, em Outubro de 1963. Em primeiro plano o Furriel Mil. Mário Dias. Atrás, da esquerda para a direita, o Furriel Artur Pires, o Soldado Abdulai Djaló e o Alferes Justino Godinho. (pãg. 217)
Um grupo de Comandos na Base Aérea de Bissalanca, de partida para Bafatá. Abdulai Djaló, de joelhos, ao lado do soldado com o lança-roquetes. Foto de finais de 1965 (pág. 218)
Capitão Almeida Bruno, ajudante-de-campo do Brigadeiro António de Spínola, fotografado no decorrer da Op Ostra Amarga, na mata da Cobiana, em 18 Outubro 1969 (pág. 223)
Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.
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O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) |
Síntese das partes anteriores:
(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;
(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;
(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;
(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;
(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;
(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);
(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;
(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)
(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;
(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);
(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;
(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,
(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.
(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.
(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;
(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);
(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos (8 morts e 15 feridos graves).
1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).
O nosso camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra, facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.
Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXII:
Op Safira Solitária, na véspera do Natal de 1971: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos a sofrerem 8 mortos e 15 feridos graves (pp. 212-224)
Dezembro de 1971. A 1ª e a 2ª companhias foram em viaturas para a zona de Morés[1], enquanto um único grupo, o meu, ficou de reserva, em Bissalanca[2], na base aérea, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda.
No primeiro dia não aconteceu nada para registar, mas no dia seguinte, dia 21, houve vários contactos com a guerrilha. Depois de ter terminado o bombardeamento da aviação, o grupo do furriel Mamasaliu Bari, que tinha tido vários feridos durante a manhã, dirigiu-se para um local onde tinha visto cair várias bombas e deparou com vários corpos esfacelados.
No momento em que chegou ao local deu-se uma troca de tiros entre o PAIGC e o grupo, sem consequências. A seguir o Mamasaliu disse alto ao fogo, um soldado, que tinha o dispositivo de dilagrama montado, procurou a cavilha da respectiva granada, viu-a e, no momento em que a recolhia do chão, inclinou o cano da G-3 para o solo. A granada defensiva caiu, explodiu e atingiu-o, a ele e o guia que o acompanhava, e feriu ainda vários companheiros.
Em dificuldades para sair do local, Mamasaliu pediu reforço e foi, então, que foi dada ordem para o meu grupo avançar.
Quando acabei de ser lançado na zona, chamei pelo rádio o Demba, que me respondeu. O capim cobria-nos mas fizemos a junção dos dois grupos, cada um recorrendo a um tiro para o ar. Reunimos os dois grupos e, com o grupo dele à frente, começámos a progressão, com o objectivo de tirarmos o Bari do local.
Sempre a corta-mato, demos com um carreiro, com muitos sinais de passagem. Podia ser, pensámos, o caminho trilhado pelo Mamasaliu. Logo a seguir o Demba virou à esquerda e, quando cheguei a esse local com o meu grupo, seguimos atrás, virando também à esquerda. Fiquei com algumas dúvidas e consultei a carta topográfica. Pedi para se fazer um alto e fui ter com o alferes Demba.
– Demba, não é por aqui!
– É por aqui!
Bom, retomámos a marcha e, um pouco mais à frente, voltei a fazer um alto ao meu grupo.
– O que se está a passar? – perguntou o Demba.
– Eu não vou andar mais nenhum passo para a frente, sem pedirmos ao Bari para assinalar a posição dele com um tiro para o ar.
O Demba ligou o rádio e, então, pediu ao Bari que desse um tiro para melhor o localizarmos. E a resposta não demorou, o ruído do tiro ouviu-se bem, atrás de nós.
– Estás a ver, Demba? Agora, temos que voltar para trás!
O Demba pediu desculpa e, sem demora, demos meia-volta e retomámos a marcha, agora um pouco mais rápida, até encontramos o grupo do Bari. Metemos o grupo no meio dos nossos dois, Demba à frente e o meu grupo atrás e continuámos a progressão em direcção aos cajueiros de Morés.
Eram cerca de 17h00, quando encontrámos o grupo chefiado pelo comandante da operação, o tenente Zacarias Saiegh.
Duas companhias juntas para passar a noite em Morés, num local[3] bem referenciado e muito conhecido em toda a zona. Fiquei junto ao tenente, que me disse que estava naquele sítio desde o meio-dia, à espera que os grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos daqui.
– Sabe quantos homens temos aqui? Duzentos e tal! Se nos atacarem hoje, nós vamos apanhar-lhes o material todo.
Não me faltava a confiança na força de tanta gente, mas não nos podíamos esquecer que, quanto maior é o número, maior pode ser também a derrota. Com boa pontaria ou sem boa pontaria, para acertar numa pessoa no meio da multidão basta apontar.
O que eu tinha era dúvidas, achava que havia tropa a mais naquele local, tanta que podia vir a atrapalhar.
Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo do alferes Saraiva e dos outros, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos. Também só dávamos tiros quando era pela certa.
Quanto maior é o número de pessoas envolvidas, mais difícil uma operação ter sucesso. E ensinaram-me em Brá que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo.
Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos Comandos.
Fui juntar-me ao Demba, ao Vasconcelos e ao Sada e, com o seu guarda-costas Demba Demo, ficámos ali perto uns dos outros, cada um junto do respectivo grupo.
Por volta das 19h30, estávamos naquele local desde as 18 e pouco, ouvimos choros, que me pareceram de criança. E não paravam. Cada vez que menino chorava, o tenente mandava passar palavra, para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar aos acampamentos, para arranjar comida para meninos
Um soldado chamado Djaquité, do grupo do Alferes Tomás Camará, trazia uma HK 21 com uma fita de balas muito comprida, que enrolava no corpo. Com o bipé montado apontou-a para fora dos cajueiros e a certa altura viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao Tomás Camará:
– Meu alferes, disse para não fazer fogo, vem um grupo armado na nossa direcção, e agora?
O Tomás respondeu que se vinha gente que abrisse fogo, o que o soldado fez, abriu uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, foi tarde de mais, uma roquetada acertou-lhe em cheio[4]. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Resolvi voltar para trás.
Eu, muito antes de sermos atacados, quando ainda estava com o Saiegh, perguntei ao Abdulai Djaló o que é que ele achava de irmos dormir todos naquele local, onde o tenente tinha dito. O Abdulai respondeu-me que seria melhor não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada.
O Abdulai[5] era um soldado muito corajoso, bom combatente, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra, desde o início.
Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Ele era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros.
Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um, em todos os grupos por onde tinha passado. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês. Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas.
Até que um dia, o comandante da 1ª Companhia ficou com ele. Quando o Saiegh saía, o Abdulai saía com ele, era o guarda-costas do tenente. Quando o comandante não saía, se o Abdulai não quisesse também não saía. Por isso ele nunca foi graduado.
Quando cheguei ao local, o Abdulai estava sentado ao lado do Tenente Saiegh e, depois de ouvir a ordem de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas.
Quando começou a chuva de morteiros levantámo-nos para abandonar o local. Mas já era um pouco tarde, devíamos ter abandonado aquele local mais cedo. Quando voltei atrás para recuperar as cartucheiras, o pessoal do PAIGC lançou dois “very-lights” seguidos. De trás de um cajueiro, com a iluminação, consegui ver onde as cartucheiras estavam. Quando a luz do “very-light” se apagou, corri para o local e agarrei-as. Na altura em que estava a regressar ao local onde estava antes, caíram duas morteiradas seguidas, entre o local onde eu me encontrava e o sítio onde estavam os meus companheiros. Continuei a andar até à saída dos cajueiros, quando vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás. Nesta altura, ainda não sabia que era o cadáver do Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé.
Soube depois, que também Sada Candé tinha perguntado ao Demba do que pensava ir acontecer nessa noite. Mas ele não respondeu, nem uma, nem duas vezes. Só à terceira vez que o Sada perguntou se ele não tinha ouvido, então Demba disse que não tinha ouvido, mas que pedia a Deus, que nessa noite não houvesse confronto.
Estendido no chão ali à minha frente, estava um cadáver. Vi dois soldados a rastejar e perguntei-lhes de que companhia eram. Da 2ª, responderam.
– Vocês estão feridos? Não estão? Então deixem-me passar!
Puseram-se a pé e começaram a correr à minha frente. E quando já estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido.
A voz parecia-me do Abdulai Djaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Abdulai a dizer que estava ferido. Encontrei-o sentado. Disse-me que tinha as pernas partidas.
Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, apalpei-lhe as pernas para ver da gravidade do ferimento e reparei que o Abdulai tinha as pernas feridas, dos pés às ancas, tudo esfacelado e partido. Pensei que não iria viver mais que alguns minutos.
– Não me deixem aqui – disse-me ele.
– Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço para te levar para um local mais seguro.
Corri para o Saiegh e disse-lhe que o Abdulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que foram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1º cabo Mussa Djamanca, da 1ª CCmds.
Que é que aconteceu aos outros? Voltámos ao Saiegh, eu e o cabo, à procura dos outros. Esta história repetiu-se e da última vez ouvimos alguém chamar o comandante, pelo nome que era chamado em casa, pelo irmão e parentes da sua mãe.
Quando chegámos junto do tenente, disse-lhe que tinham fugido todos, só estava eu e o Mussa. E acrescentei que tinha ouvido alguém chamar pelo Zick, o nome por que era tratado o Saiegh em família.
– Onde ouviste? – perguntou o Saiegh.
– Nos cajueiros!
Então, ele perguntou se alguém tinha visto o irmão dele, depois do ataque. Ninguém tinha visto. Passou para a frente e disse:
– Porra, vamos embora, ninguém fica!
Segui-o até ao local onde estava o Abdulai Djaló e um corpo, o do Demba Dembo. Mostrei-lhe o local e, como não se via nada, ele perguntou-me de quem era esse corpo.
– Não sei, não se vê nada com esta escuridão é difícil reconhecer de quem é o corpo.
Quando estávamos nesta conversa, ouvimos chamar Zick. Então, ele, rápido, disse:
– Amadu, levem daqui o Djaló e o corpo, enquanto nós vamos buscar o ferido aos cajueiros.
Para levarmos o Abdulai eram precisos quatro homens. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o Saiegh. Quando o depositámos no chão, o Abdulai perguntou-me quando vinha o heli buscar os feridos.
– Agora não pode ser, Abdulai, só de manhã.
– Não aguento, vou morrer aqui!
– Por que não aguentas, Abdulai?
– Estou a perder muito sangue!
Na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Abdulai Djaló, o Samba Bangura e o Vicente Malefo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala, para dar umas picadas neles todos, para parar a hemorragia e para lhes tirar as dores.
Abdulai foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer:
– Allahu Akbar,Allahu Akbar,Allahu Akbar!!! (**)
Quando acabou de falar no nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Abdulai tinha acabado de morrer.
Então, abandonei o local e fui ao encontro do Zacarias Saiegh. Nem me deixou sentar.
– Trata-me aí do Malefo, está a fazer muito barulho.
Fui para junto dele, voltei a chamar o Samba Tala e pedi-lhe para lhe dar uma picada. Momentos depois, calou-se, não gemeu mais, já não devia ter dores. Isto tudo passou-se entre as 19h30 e as 21h00. A partir desta hora houve um silêncio total.
Entre as 02 e as 03h00[6], o PAIGC tentou acabar connosco. Tiros de canhão sem recuo e de armas automáticas amarraram-nos ao chão, ninguém conseguia levantar a cabeça. Quando o tiroteio acalmou, vi um militar da nossa companhia a correr. Insultei-o e mandei-o voltar para trás. Regressou para o pé de mim, a dizer:
– Meu sargento, já foram todos, o comandante não está ali. Venha ver se está lá alguém nosso!
Levantei-me, fui atrás dele até ao local onde estava o comandante. Ninguém, ninguém estava ali, só os corpos. Continuámos a sair dali, a pouca distância um do outro e encontrámos um pequeno grupo de quatro companheiros. Éramos um grupo de sargentos: eu, os 2ºs Sargentos Vasconcelos e o Damo Baldé e os Furriéis Mamadu Djaquité, Facene Sama e Abu Seide. Corremos uma curta distância, talvez 100 metros. Parámos, não podíamos ir mais longe, os feridos estavam para trás.
– Vamos para o lado das bananeiras – disse-me o Vasconcelos.
– Para as bananeiras, não – disse eu. – Se eles passarem por aqui, para onde podiam fazer fogo? Para as bananeiras, que é um local bom para pessoal se esconder, ou não?
– Então, para onde vamos?
– Ficar aqui, neste local descampado, sem árvores. Não tem nada, nada que leve a desconfiar que está aqui gente!
Concordaram. Aqui ficámos até às 05h00, mais minuto menos minuto. Estava a romper a aurora, tirei um cigarro, raspei um fósforo e disse para o lado que ia fumar um cigarro, que já era de manhã. Pediram todos logo licença para fumar também. Desloquei-me para o local onde tínhamos deixado os feridos.
Eu tinha ouvido tiros dirigidos para o local onde estavam os feridos e, mais tarde fogo sobre a zona dos mangueiros. Foi nesta altura que acabaram com Malefo, deram-lhe um tiro no peito. E, no regresso, fizeram a mesma coisa, abriram fogo na zona das bananeiras, que até começou um pequeno incêndio, que não durou muito, felizmente.
Fomos avançando, para ver se descobríamos algum companheiro nosso. Ouvimos alguém responder à nossa chamada, era o Samba Bangura.
Dirigi-me ao frriel Mamadu Djaquité, muito conhecido entre nós por Pélé e pedi-lhe para o irem buscar, enquanto eu ia procurar o Malefo. Encontrei-o morto, com um tiro no peito.
Naquela ocasião estava a chegar-se a nós, um grupo de cerca de vinte companheiros, com o respectivo comandante, que andava também à nossa procura e se vinham reunir a nós.
Eram quase 06h00, quando ouvimos o ruído de uma avioneta a sobrevoar a zona. Chamaram-nos por rádio, pedindo que assinalássemos a nossa posição. E depois, ouvimos da avioneta chamarem o helicanhão, indicando-lhe onde nós estávamos.
Apareceu no ar outro heli, que vim a saber que trazia o major Almeida Bruno, eram para aí 06h30, os dois helis no ar, em cima de nós. E foi, a partir desta altura, que o major Bruno tomou conta das operações. Em primeiro lugar as evacuações dos feridos, depois os mortos e a seguir recuperar o pessoal das companhias.
O major virou-se para mim e disse:
– Amadu, ficas com o teu grupo a montar a segurança, enquanto trato da retirada das companhias para Mansabá, para seguirem depois, em coluna, para Bissau.
Montei a segurança e, quando estavam a entrar os últimos, avisou-nos:
– Como estão a ver, a partir de agora somos só um grupo, estamos sem segurança. Portanto, temos que ser muito rápidos, quando chegarem os helis, corremos todos, ocupamos os lugares, sem hesitações.
Quando os helis levantaram com o penúltimo grupo, preparámo-nos e ficámos à espera. Depois, quando pousaram, arrancámos ordenadamente. Quando o heli em que eu ia estava a levantar, fiquei a olhar cá para baixo, para os cajueiros, até desaparecerem de vista. Da minha vista desapareceu, da minha memória não, ficou lá gravada aquela noite, até hoje.
O erro cometido pelo tenente Saiegh e pelos quadros todos foi fatal para todos nós. Para os que morreram foi completamente fatal, morreram ingloriamente. Para os que sobreviveram, como eu, foi fatal porque foi um momento que não recordo como glorioso. Saí dali com o sentimento de que tinha sofrido uma derrota. Mas é a guerra e a guerra é mesmo assim.
As nossas normas de Comandos foram completamente violadas. Um pequeno alto, um alto provisório, um bivaque clandestino. Tudo o que gastarmos, nem que sejam horas e horas na preparação, tem que ser respeitado. Se não respeitarmos, se cometermos um erro, pode perder-se uma vida.
Nós cometemos vários erros naquela noite. Tivemos cinco mortos[7] nos cajueiros, um ferido muito grave, catorze graves e vários[8] ligeiros, que nem contámos. Os mortos, sim, contámos: Aliu Djaquité, Quintino Gomes, Demba Dembo, Abdulai Djaló e Vicente Malefo. O ferido grave foi o Sam Bangorá. Dos feridos ligeiros não importa falar, nem me lembro quem foram.
Eu saí dali sem uma arranhadura.
Conforme escrevi atrás, o meu grupo ficou com o major Almeida Bruno no terreno. Íamos ser os últimos a retirar. Era perigoso, o local estava bem no centro de Morés, perto do quartel-general do PAIGC, segundo se dizia e, à volta, havia dezenas de pequenos acampamentos.
Era uma boa altura para eles concentrarem todo o fogo em cima de tão pouca gente. Força para isso, eles tinham. Morteiros, armas pesadas, canhões sem recuo, armas automáticas, naquela área não lhes faltava material. Por isso, eu estava consciente que a retirada nos poderia custar algumas vidas mais. Mas, para além de nós, que estávamos numa clareira e com pouca natureza para nos abrigarmos, tínhamos em cima de nós, pronto a disparar o helicanhão. E ainda os bombardeiros, mortos por entrarem na guerra.
Mas eles deviam estar satisfeitos com os estragos que nos causaram, para além do que devem ter sofrido também. Certo é que, numa guerra destas, nem há vitórias nem derrotas completas. O Oio foi uma das primeiras zonas, onde o PAIGC reclamou área libertada, quase ainda no início da guerra.
Quando os helis levantaram para Bissau, íamos calados a olhar para os cajueiros até desaparecerem da nossa vista, mas as imagens da noite estavam gravadas definitivamente nas nossas memórias.
Para mim, o dia 24 de Dezembro de 1971, é uma data inesquecível. Uma data amarga, para mim e para muitas famílias. A tristeza invadiu as nossas famílias, os nossos amigos e a gente de Bissau, que nos conhecia.
Chegámos ainda antes do meio-dia, com os familiares à nossa espera. Dos que ainda vinham em coluna de Mansabá, não tínhamos ainda resposta para lhes dar. Mesmo que os acalmássemos e disséssemos que estavam bem, não acreditavam. Assim era melhor ficarmos calados e esperarmos a chegada deles.
Não pude deixar de pensar e recordar, no voo de regresso do meu grupo a Bissau, nos companheiros que terminaram as carreiras e as suas vidas naquele local, chamado Morés.
O inimigo mereceu esta vitória sobre os Comandos? Se encararmos a negligência com que foi escolhido o local para passarmos a noite naquele local dos cajueiros, onde o Saiegh nos aguardava desde o meio dia, se pensarmos bem na desobediência às nossas regras de combate, então foi bem merecida a nossa derrota.
Os nossos instrutores nunca nos disseram para nos sentirmos mais confiantes se fossemos muitos. A nossa preparação era para nos tornar homens mais duros, mais fortes, mais eficazes. Mas que nunca nos devíamos considerar nem melhores nem piores, apenas diferentes. Numa palavra: Comandos. (***)
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Notas do autor ou do editor literário (VB)
[1] Nota do editor: operação “Safira Solitária”, 20/24 Dezembro 1971.
[2] Base aérea em Bissalanca, arredores de Bissau.
[3] Nas imediações do itinerário entre Bissorã e Mansabá.
[4] Nota do editor: o Soldado Aliu Jaquité, da 1ªCCmds, “na noite de 23/24 Dezembro, após receber ordem para retirar, respondeu que um Comando só retira pelos braços de um camarada. Tendo avistado alguns elementos IN a meia dúzia de metros da sua posição, abriu fogo com a sua arma ligeira, abatendo-os, tendo sido por isso referenciado, sendo morto de seguida por uma granada de RPG-2.” Relatório da operação “Safira Solitária”.
[5] Em árabe, Abdulai quer dizer “Escravo de Deus”
[6] Nota do editor: 22 Dezembro 1971.
[7] Nota do editor: oito no total, segundo o relatório da operação “Safira Solitária” (***)
[8] Nota do editor: quarenta e cinco, segundo o relatório.
[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.] (****)
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