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sábado, 22 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19036: Blogues da nossa blogosfera (105): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (1): Criado e editado por José Ramos, ex-1º cabo cav, EREC 3432 (1972/74)



1. Estava eu hoje no mercado municipal da Lourinhã, por volta das 11h00, quando fui abordado por alguém, que me tratou pelo nome...
 
Imaginei logo que fosse um camarada da Guiné, que me reconhecesse pelo blogue... E assim era: José Ramos, ex-1º cabo cav, apontador de Panhard, do EREC 3432, que esteve em Bula, de 1972 a 1974, juntamente com o nosso grã-tabanqueiro e escritor, Leonel Olhero, ex-fur mil cav 1971/73. Falámos logo de outros nomes ilustres da arma da cavalaria, que passaram por Bula, nesta época: o Salgueiro Maia, o Manuel Monge... Sobre o ERec 3432 temos apenas 5 referências no nosso blogue.

O José Ramos mora atualmente na Lourinhã, no Casal Santos, faz parte da direção do Núcleo de Torres Vedras da Liga dos Combatentes. Tem página, pessoal, no Facebook, e e criou em 2014 o blogue Panhard Esquadrão de Bula, Guiné 1963-1974. O blogue tem cerca de 18,8 mil visualizações de páginas.

Há referências a outros EREC: 2454, 2641, 8740/73, bem como aos Pel Rec Panhard 1106 e Pel Rec AML 202, e ainda aos BCAÇ 2926 e BCAV 8320/72.

Este segue, e cita, entre outros o nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Fui entretanto recuperar uma mensagem do José Ramos, de 8 de março de 2014 a que, lamentavelmente, não foi dada a devida resposta em tempo oportuno.  Fica aqui, para conhecimento dos nossos leitores, e com pedido de desculpas por parte do editor.

Reitero o convite que fiz ao José Ramos, na Lourinhã, para integrar a nossa Tabanca Grande, com todos os direitos e deveres que nos assistem. Somos já 777 membros, dos 3 ramos das Forças Armadas,  dos quais  66 falecidos. Mais camaradas da arma de cavalaria são, naturalmente, bem vindos.

Acrescente-se que o José Ramos, de acordo com a sua página pessoal: (i)  é coordenador da ação social da Liga dos Combatentes-Núcleo de Torres Vedras; (ii)  estudou Ciências Sociais Aplicadas em Universidade Aberta - UAb; e  (iii) estudou Serviço Social na mesma universidade.


2. Mensagem do nosso camarada José Ramos:

Data: sábado, 8/03/2014 à(s) 20:10

Assunto: Esquadrão de Bula

 Meus caros,

Venho acompanhando ao longo do tempo o vosso blogue, sempre na expectativa de ver mensagens sobre os Pel Rec e ERec que operaram as Panhards na Guiné, o que  espaçadamente foi aparecendo, através de camaradas que estiveram nas unidades ou de quem com eles conviveu ou viu as viaturas a operar no terreno.

Nunca participei no blogue pois tinha auto-proposto o desafio de  criar um que falasse do Esquadrão, onde estive de 1972-1974, das histórias e estórias em seu redor e da Panhard.

Algo que o tempo apenas agora permitiu, através do esquadraodebula.blogspot.pt que vos apresento.

Para documentar algumas mensagens venho solicitar a vossa autorização,  para pontualmente, citar algumas das vossa postagens ou usar fotos, com a devida referência, ficando desde já autorizado o contrário.

Com um abraço de camaradagem,
José Ramos

3. Ficha da unidade: EREC 3432 (reproduzida com a devida vénia do blogue Panhard, Esquadrão de Bula, poste de 8/3/2014):

(i) Unidade mobilizadora: Regimento de Cavalaria 7 (RC 7)
(ii) Comandantes:  Cap Cav Henrique António Costa de Sousa; Cap Cav Armindo José Pinto Machado
(iii) Divisa: Panhard
(iv) Partida/Regresso:  1ª Fase – Lisboa, 25Ago71(Bissau, 03Set71) / 05Out73 | 2.ª Fase – 30Mai72/06Jul74
(v) Síntese da Atividade Operacional:

“Em 07Set71, a 1.ª fase da subunidade integrou os efectivos do ERec 2641, em substituição da 1.ª fase desta subunidade, tendo-se instalado em Bula.

Em 30Mai72, após o desembarque, a 2.ª fase da subunidade seguiu para Bula, a fim de efectuar a adaptação e sobreposição com o ERec 2641.

Em 18Jun72, substituiu o ERec 2641, enquadrando a 1.ª fase da antecedente integrada neste, como subunidade de reserva móvel de intervenção do BCaç 2928 e depois do BCav 8320/72, ficando colocado em Bula.

Um pelotão foi destacado para reforço do BCaç 3832 até 16Jul72, instalando-se em Jugudul e Mansoa. Por períodos variáveis, cedeu ainda pelotões para reforço de diversos batalhões os quais foram destacados para Bissorã, de 05Out72 a 20Abr73, na dependência do BCaç 4610/72:

Para Catió, de 20Abr73 a meados de Set73, na dependência do BCaç 4510/72 e para Mansoa, a partir de 14Set73, na dependência do BCaç 4612/72, com vista a colaborar na segurança e protecção dos trabalhos das estradas em construção e das colunas de reabastecimento e de transporte de materiais.

A partir de 11Abr73, integrou a 1.ª fase do ERec 8740/72, então chegado para reforçar os efectivos da subunidade e depois render a 1.ª fase desta.

Em finais de Abr74, foi substituído pelo ERec 8740/72 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.”
Observações: Tem História da Unidade – só até 31Mar74 (Caixa n.º 127-2.ª Div/4.ª Sec do AHM)

Fonte: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) (2002). 7.º Volume – Fichas das Unidades - Tomo II – Guiné. Lisboa: Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). 1.ª edição.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ   > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...



1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:

Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.

 Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.

Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.

O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.

Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.

E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?

Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.

O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.

Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.

Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.

E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.

Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo  – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre  – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.


Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
–  Ó Gomes, preciso de ti, pá.

Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre  o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.

Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.

Adicionar legenda
Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.

Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.

Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.

Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.

Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.

Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.

Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.


De ontem e para sempre, o meu safeu

Texto, fotos (e legendas): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.

[Com este relato,  quero homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Vinagre, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.]

______________

Nota do editor:

(*) Último poste da sério > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

domingo, 9 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge




Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 >  O 1º Sargento Correia, eu e o morro que separava a parada das instalações onde dormia e vivia o pessoal do EREC 2454, que era comandado pelo cap cav Manuel Monge




Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 > Eu e o Furriel Moncada Cordeiro 



Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 >  CCS/BCAÇ 2861 > O Furriel Francisco Dias e eu, em traje domingueiro,  passeando pelas ruas de Bula. De costas, o Luís Crasto, furriel  mecânico de transmissões da CCS.

Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados


1. O Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) é um homem da rádio e tem um particular talento para contar histórias. Está connosco, atabancado, desde agosto de 2009 (segundos os registos oficiais). Tem vindo a reencontrar camaradas que com ele partilharam as alegrias e as tristezas dos dias de Bula e Bissorã, nos tempos idos de 1969/70. E tem escrito sobre isso (*).

Tem, já cerca de duas dezenas de referências no nosso blogue. Mais recentemente mandou-nos esta história que se segue, com seguinte nota: "Meu Caro Luís Graça, Camaradas Editores: Aqui vos trago mais um contributo para a história dos nosso dias na Guiné. A abraço a vós e a todos os camaradas tabanqueiros". 

Entendo isto como um desafio e uma promessa: outras mais histórias virão... Pelo que, e à revelia do autor, decidi criar uma série só para ele, com um título provisório "Recordações de um furriel enfermeiro, infante, fadista, ribatejano, amigo da cavalaria (Armanod Pires)"... Fica bem ao jeito dele, emotivo, solidário, amigo do seu amigo, camaradão... A criação de um série implica o compromisso da publicação de pelo menos seis postes...

Acho que o Armando vai aceitar, de bom grado, o desafio, que matéria prima não lhe falta nem muito menos a palheta... E tempo julgo que é coisa que não lhe falta. Seria pena que uma história  como esta,  de antologia (no sentido de ser uma história forte e bem escrita), ficasse por aí, no nosso querido blogue, como "estória avulsa" (sem menosprezo para todas as muitas pequenas grandes histórias que temos publicado sob essa rubrica)... Por fim, e não menos importante, sei que o Armando Pires tem sentido de missão, além de sentido de humor, e nutre pelo nosso blogue um especial carinho. (LG)




2. A estreia de um fadista  ou a desesperança do Esperança,

por Armando Pires

Bula, 15 de Abril de 1969, depois das oito da noite.

Ofegantes, os noventa cavalos da velha GMC galgaram a cancela do aquartelamento e estacaram às dez rodas em frente ao bar. Ao lado do condutor ergueu-se o Caeiro e gritou-me:

 –  Salta práqui, ó pira, que esta noite vai haver espectáculo no Esquadrão. 

Ordem cumprida, ou não fosse o Caeiro um sargento velhinho e eu furriel periquito, e antes de arrancar ainda perguntou se não vinha mais ninguém à festa. Apenas o Basso, furriel de transmissões da minha companhia, aceitou o convite.

Meia volta volver e lá vai a GMC à desfilada. A tosca luz dos faróis rasgava a noite, o roncar do motor quebrava o silêncio da Vila, o Caeiro e seus rapazes gritavam e cantavam coisas indizíveis a filhos de Deus.

Era uma cena digna de um filme do faroeste. Mas afinal, para onde íamos nós?:
 – ... Esta noite vai haver espectáculo no Esquadrão!... -  mas o Esquadrão ficava no sentido oposto àquele que levávamos. 

Íamos na direcção da estrada de Binar, mas chegados ao fim da Vila contornámos Bula por fora, pelo lado de Sanhar e Ponta Alfama, seguimos sempre pela orla da bolanha (gente atrevida, como se saberá mais à frente), como se em direcção ao Dingal, tornámos a entrar na estrada e eis-nos chegados ao aquartelamento do Esquadrão de Reconhecimento AML 2454.

Estava ali fazia pouco tempo. Ali, era a meio caminho entre Bula e o lugar onde a estrada de Có ligava a João Landim. Antes, aquele espaço fora ocupado pelo Batalhão de Engenharia que levara a cabo a abertura e asfaltagem da estrada João Landim-Bula, daí para Có, Pelundo e Teixeira Pinto.

Terminados os trabalhos, ficando vago o lugar, o comandante do EREC, capitão Manuel Monge, um homem notável que nasceu para comandar sem galões nem gritos, intercedeu junto do General Spinola para que ali o deixasse instalar a sua gente.

Moravam entre chapas onduladas de zinco que mal se viam da parada, porque dela separadas, como protecção, por um morro de terra com quase três metros de alto.

E o que fazia eu ali?

Bom, porque tudo tem um começo, temos de regressar ao dia 15 de Fevereiro daquele ano de 1969, quando eu, com cinco dias de Guiné, aturdido com tudo à minha volta, saltei da jangada em João Landim.
- Armando! Armando! Ó Pires!

Olhei à roda para ver dos meus quem me chamava, mas a voz que com insistência dizia o meu nome vinha de lá, de onde não estava ninguém do meu pessoal. A voz transformou-se numa figura que corria para mim.
Era o Moncada Cordeiro, meu amigo e conterrâneo.

Trocámos um forte abraço e ficou a promessa de falar amanhã, que o Cordeiro tinha mais que fazer. Ele era Furriel Miliciano do Pel Rec AML 2024, e estava ali como parte da escolta que havia de garantir a nossa segurança até ao Quartel de Bula. 

Como previsto, falámos no dia seguinte. Da nossa terra, dos nossos amigos, da nossa Feira do Ribatejo e do fado. Sim, é que o Cordeiro, sabendo da minha queda para cantar o fado, logo ali me disse que eu tinha de ir lá abaixo cantar para a malta do Esquadrão.
 
– É pá, tu sabes que eu só canto com acompanhamento – disse-lhe eu, tentando matar o convite. 
–  Pois aí é que tu te enganas –  matou-me ele a mim, revelando que no Esquadrão havia um furriel que tocava muito bem guitarra. – É o Dias, pá, o Francisco Dias. Não imaginas como o gajo toca. Vais ter de o ouvir para tirares as dúvidas. 

E tirei. Um bom par de dias mais tarde, mas tirei. O furriel Dias tocava mesmo bem guitarra mas com “sotaque” de Coimbra, a sua terra natal. 
–  Ó Dias – atirei-lhe, um tanto desconsolado  –  mas eu canto é fado de Lisboa.  
– E daí? – pergunta ele, para num remate dar a táctica. –  A gente tem tempo, ensaiamos e vais ver como o corrido me sai das cordas da guitarra. 

E lá andámos, sempre que possível, de ensaio em ensaio, ele apanhando o tom e eu afinando a garganta. Até ao dia do grande espectáculo.

Já sabem agora o que fazia eu ali, naquela noite de Abril, “nas Panhard”, como nós chamávamos ao aquartelamento do Esquadrão.

Eu e o Dias fomos para um quarto, eufemismo de um espaço “enlatado” com quatro camas em beliche, ensaiar os fados que, daí a pouco, iria cantar. A assistir ao ensaio ficou o Basso, o tal furriel da minha companhia, o Caeiro e mais um alguém que a memória já não identifica. 

Ia com estilo no segundo verso do “Bairro alto com os seus amores”, quando um tiro suspende a estrofe. 
–  UPS!...  Calma que é fogo nosso  –  sossegou o Caeiro, e voltámos ao fado. 

Voltámos, é uma força de expressão. Ainda mal tínhamos recuperado a posição de sentados quando BUM!!, e o aquartelamento estremeceu.  Afinal, o espectáculo anunciado pelo Caeiro não era o meu, ia ser aquele.

A luz apagou-se e era tudo negro à minha volta, a chapa silvava como sacudida por um furacão, gente a correr e eu sem as ver, gritos de “Vamos lá atrás, vamos lá atrás”, e eu sem saber onde ficava lá atrás nem quem lá ia, as costureirinhas riscavam o céu com tracejantes, a cada granada que caía, o chão sacudia como agitado por um terramoto. 

Eu já tinha embrulhado umas três vezes com a 2466. Uma delas, na estrada de Binar, foi feia, muito feia mesmo. Três emboscadas na mesma manhã. Cinco feridos do nosso lado. Do lado de lá, entre outras baixas, a mais significativa foi a da morte do comandante Nhaga, chefe do 1º bigrupo do Choquemone. Foi a 9 de Abril, seis dias antes daquele ataque dirigido, particularmente, contra o Esquadrão, e que foi, soube-se depois, represália pela morte do Nhaga.

Portanto, eu já sentira o cheiro da pólvora, mas naquela ainda não me vira. Era o meu primeiro ataque dentro do quartel. E no dia do baptismo, via-me “fora de casa”, às escuras, sem ninguém para me dizer que fazer ou para onde ir.

O Dias, o Caeiro e o outro, reagiram ao fogo correndo para os seus lugares, esquecendo-se que aqueles dois pobres de cristo, eu e o Basso, não conheciam o caminho das pedras. Estupidamente, dentro da “casa escura”, sem refúgio nem abrigo, metemo-nos debaixo das camas, cercados de chapa por todos os lados menos por um, o chão, contra o qual colámos os nossos corpos, como se a ele quiséssemos amarrar as nossas vid
as. 
–   F… !, que isto está feio – foi a única coisa que nos dissemos.

Lá fora ouvi alguém dizer que o Esperança tinha morrido. 
–  O Esperança morreu! O Esperança morreu!. 
 – E o enfermeiro, merda? 
–  Estou aqui!” – berrei com quanta força tinha para que me pudessem encontrar. 
 – Aqui, onde? 
–  Aqui, porra, não sei, está escuro, não vejo nada. 

Percebo passos a virem ao meu encontro ao mesmo tempo que uma voz, aproximando-se, ia dizendo: 
–  Mas este gajo tá parvo, ou quê? 

Entra alguém que me aponta a luz e segue-se um diálogo de loucos à beira de um ataque de nervos:
–   Não és tu, porra!| 
– não sou eu, o quê? 
– o enfermeiro!
– Então eu sou o quê?
 – Não és tu, é o nosso
– E eu não sirvo? 
– Serves, anda lá. 

Pelo caminho percebi que procuravam o “Madeirense”, furriel enfermeiro do Esquadrão, com quem acabei por me encontrar quando entrei na enfermaria.  Lá dentro estavam quatro homens feridos. Ferimentos ligeiros, felizmente.

Pior foi o Esperança, soldado maqueiro que morreu estupidamente no dia em que fazia anos.
Ao longo da noite, naquelas horas em que se lambiam as feridas, soubemos que lá em cima, no meu aquartelamento, o furriel mecânico de transmissões, apanhado dentro da “fortaleza” que eram as comunicações, quando uma canhoada desfez parte da parede, saiu pelo buraco do projéctil, mas para o lado de fora do quartel, de onde vinha o fogo inimigo. Encontrou-o o grupo de combate que partiu na perseguição dos atacantes.

Soubemos que naquela viagem nocturna, com o Caeiro aos gritos, entre o aquartelamento de Bula e “as Panhard”, passámos mesmo nas barbas da força do PAIGC que aguardava a hora de atacar.

E soubemos como morreu o Esperança.  O soldado maqueiro do Pel Rec AML 2024, Bento Lemos Esperança, estava no bar com outros camaradas, celebrando o seu aniversário, quando se iniciou o ataque. Saiu em direcção à enfermaria mas, para atalhar caminho, em vez de ladear o morro subiu-o para atravessar a parada. Foi morto pelo rebentamento, ali à sua frente, de uma granada de morteiro.

Os dias que se seguiram foram muito difíceis para os homens do EREC. Não esqueço as lágrimas que vi, naquela noite, nos olhos do capitão Monge.

Há dias, numa troca de e-mails com o nosso recém grã-tabanqueiro Bernardino Cardoso, meu amigo e ex-furriel miliciano do Pel Rec AML 2024, tendo-lhe dado conta de que iria contar aqui aquela noite no Esquadrão, e que falaria de como morrera o Esperança, ele respondeu-me num texto com esta revelação:

“Tenho para te dizer que no dia da saída da tropa no cais de Alcântara, ele foi o único que chorou e chorou de forma muito consternada e veemente, proclamando que morreria e nunca mais voltaria a ver a sua filha. Tentávamos todos que se mentalizasse que não era assim etc. , mas ele estava certo disso. Absolutamente seguro. Premonições dos diabos”.

Que puta de desesperança a tua, ó Esperança!

Armando Pires

PS – O António Basso, infelizmente, há muito que nos deixou. Do Caeiro nada sei. O Francisco Dias está em Coimbra e é um notável guitarrista. O Cardoso apresentou-se aqui no P10156. O Moncada Cordeiro continua na nossa terra e vou almoçar com ele um dia destes. Agradeço à malta do EREC sempre me ter visto como um dos seus. Por último, declaro agora e para futuro que não assinei nenhum acordo ortográfico.


3. Resposta do Armando na "volta do correio":

(i) Meu caro Luís Graça, Camarada:


Deixa que te agradeça as palavras com que apresentas o meu último texto para o nosso blog e o desafio que me lanças. Tal como escrevo em comentário "lá no sitio", já me lixaste com F grande. Mas vou procurar corresponder à expectativa.

Quanto ao titulo que propões para os meus textos futuros, "Recordações de um furriel enfermeiro, infante, fadista, ribatejano, amigo da cavalaria (Armanod Pires)"... ainda bem que o dás como provisório porque, e aqui tens de me perdoar mas, "defeito" de jornalista antigo, não consigo abandonar o rigor.

Tudo certo, se quiseres, até chegar ao "amigo da cavalaria". É um exagero porque pode levar a que confundam a parte com o todo. Eu apenas estive seis meses em Bula, com o EREC 2454. Aconteceu de Fevereiro a Agosto de 1969. 

Depois a sede do batalhão zarpou para Bissorã e não mais voltei a ver "um cavaleiro" à minha ilharga.
Apenas estiveram comigo, ou eu estive com elas, tanto faz, a CCAÇ 2444 e a CCAÇ 13. Sim, a minha amizade com o EREC (ou com o Pel Rec 2024) solidificou-se, não apenas por causa do fado, e manteve-se para além do nosso "contacto físico".

De tal forma que aquando dos encontros de confraternização por eles levado a cabo, sempre que e minha vida profissional fazia coincidir a minha presença no país com a data desses encontros, eu era convidado e marcava presença.

Mas amigo da cavalaria, para me apresentar, é exagerado. Espero que me compreendas e que aceites a minha explicação. Numa casa em que tanta gente, de todos os lados, partilha o seu salão e honra, não gostava de ver niguém melindrado.

Aceita um abraço camarada do Armando Pires.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10156: Tabanca Grande (350): Bernardino Cardoso, ex-fur mil, Pel Rec Panhard 2024 (Bula, jan 1968/dez 1969), grã-tabanqueiro nº 567

1. Mensagem do Bernardino Cardoso, deixada em 9 do corrente, na página do Facebook da Tabanca Grande.

Será privilégio meu pertencer à Tabanca Grande. Não fazia a menor ideia que havia um blogue [, Luís Graça & Camaradas da Guiné,] ou mesmo uma página no Facebook [, Tabanca Grande Luís Graça,] apenas relacionada com a Guiné. 

Passo a apresentar-me.

Em 14/1/68 cheguei a Bissau a bordo do Quanza. Como bom periquito que era, saltei do navio para cima duma GMC que nos levou a passar pelos Adidos onde nos deram uma ração de combate.

Como estava cheio de sede por causa do novo clima, bebi a primeira e única Coca-Cola. Esta era genuína. Voltei a saltar para a GMC e os soldados da escolta aconselharam-me a tirar as divisas porque íamos viajar até Bula, mais ou menos 30 km e depois do Rio as coisas podiam ser feias.


Estão a ver como se encorajam os piras, não é verdade? Atravessámos o rio [ Mansoa,] na jangada em João Landim [, foto à esquerda, de Virgínio Briote,] e lá seguimos até Bula.


De Bissau,  nem o cheiro. Se eu não fosse pira, sabia muito bem que se as coisas fossem assim ruins, toda a gente teria levado uma G3 nas unhas. Na verdade o território ali era já de guerra plena mas não era caso para tanto. A escolta era suficiente para para tomar conta do caso.


Era um novo PEL REC de Cavalaria, o 2024 que ia operar as Panhards que aí estavam estacionadas. Mas era um pelotão especial pois levava 30 Soldados atiradores, 2 cabos mecânicos do quadro, 12 Furrieis de Rec, 1 Fur rádio montador, 2 Sargentos, e 2 Tenentes do quadro. Isto porque tinha em vista a formação dum Esquadrão de Rec Cav, como veio a acontecer (, o EREC 2454, ) comandado pelo, na altura, Capitão Manuel Monge, homem de grande carácter e elevação.


Durante a comissão fiz serviços em Bula, Teixeira Pinto, Pelundo e Có para além de imensas viagens, como seria de esperar, para um pelotão que escoltava colunas de todo o tipo.


Saudações combatentes.


Bula, Jan68 / Dez69, Bernardino Cardoso,
ex-fur mil rec cav


2. Comentário do editor L.G.:

Sê bem vindo, camarada! Passas a ser o grã-tabanqueiro nº 567!

De acordo com os ainda escassos dados que possuímos sobre este  novo grã-tabanqueiro, sabemos que o Bernardino Cardoso - vd. a respetiva página no Facebook -, nasceu em 1 de fevereiro de 1945, andou no Colégio João de Deus, no Porto, entre 1961 e 1963, e trabalhou como inspetor no Círculo de Leitores.

De qualquer modo, temos muito gosto em aceitá-lo na nossa Tabanca Grande e assentá-lo no bentém, sob o nosso mítico poilão, à sombra do qual convivem, há mais de oito anos, mais de meio milhar de camaradas (e amigos) da Guiné.

Bernardino: para completar o teu pedido (formal) de adesão à Tabanca Grande, gostaríamos que  nos mandasse uma foto (ou mais) digitalizada do seu tempo de Bula, e que nos contasses mais alguma coisa sobre as andanças do seu Pel Rec 2024. Também era conveniente termos o teu endereço de email, para troca de mensagens (a nível interno). Todos os elementos informativos sobre o nosso blogue, estão afixados na coluna do lado esquerdo, incluindo o nosso endereço e os contactos dos nossos editores.


Segundo informação do nosso colaborador permanente José Martins, o Pel Rec 2024 [, imagem á esquerda do respetivo crachá, cortesia do sítio Ultramar Terraweb], foi mobilizado pelo RC 7, Lisboa, e esteve no TO da Guiné entre  Jan 68 e Nov 69, sendo depois  integrado no ERec 2454.

Ainda recentemente, e segundo imformação constante no síto Ultramara Terraweb, realizou-se em 12 de maio de 2012, em Algeruz, Palmela, no Clube Golfe do Montado, o almoço de confraternização dos camaradas de cavalaria que passaram por Bula (1968/71), a saber, o Esquadrão de Reconhecimento AML 2454, o Pelotão de Reconhecimento AML 2024 e o Esquadrão de Reconhecimento 2641 (1.ª fase)... A organização do evento esteve a cargo de Custódio Morais e Vânia Morais Contactos: tefef 265 718 651 / telem 936 924 944).
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10151: Tabanca Grande (349): Abel Moreira dos Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69)

domingo, 25 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3790: Dossiê Guileje / Gadamael (3): "Um precedente grave" (Diário, Mansoa, 28 de Maio de 1973) ... (António Graça de Abreu)

Capa do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e ÁguiA Pura (Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp)... O autor, António Graça de Abreu , foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74). Dele se publica a seguinte mensagem:


Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a, de facto, e que remédio - índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce, deixa de ser criança, fica logo com oito séculos.

José Cardoso Pires (1925-1998) em E agora, José? publicado em 1977.


Meus caros camaradas e amigos

O Luís Graça, por bem, infatigável no labor de nos unir neste seu, nosso blogue, mesmo quando desentender é também uma forma de nos entendermos, (somos gente plural), o Luís Graça pediu-me autorização para publicar o meu texto sobre Guileje escrito em Mansoa, uma semana após a retirada de Guileje.

Aí está o balanço do dia, tal como surge no meu Diário da Guiné, Lisboa, Guerra e Paz Editora, 2007, pag. 106.


Mansoa, 28 de Maio de 1973

O outro “Gui”, Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto afiançado.[1]

Guileje fica a cinco quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacry e sempre foi um dos lugares mais atingidos pela guerra. Os aquartelamentos junto à fronteira têm estes problemas, são fáceis de flagelar. Os guerrilheiros dispõem de muitos quartéis no país ao lado, Senegal ou Guiné-Conacry, caminham uns quilómetros, entram na nossa (deles!) Guiné e despejam toda a artilharia pesada e ligeira que têm à disposição sobre os aquartelamentos onde se encontra a tropa portuguesa. Depois regressam aos quartéis do outro lado da fronteira. Missão cumprida.

Guileje é um precedente grave. Diz-se por aqui que depois de Guileje outros aquartelamentos se seguirão, irão sendo abandonados, tipo bola de neve e já se fala em começarmos todos a preparar a trouxa para marcharmos para Bissau, a caminho de casa. Não acredito. É verdade que alguma coisa se alterou, as nossas tropas quase não podem contar com a força aérea, o que é muito negativo, mas ontem já ouvi dizer que Guileje ia ser reocupada pelos pára-quedistas das minhas conhecidas companhias 122 e 123.

De Lisboa, chegam bocas, deformações, notícias fantásticas: um quartel a vinte quilómetros de Bissau tomado pelo PAIGC, centenas de mortos. Valha-nos Deus! Guileje fica talvez a uns cento e cinquenta quilómetros de Bissau e dentro do aquartelamento houve quatro ou cinco mortos. Mas é verdade que naquela região continua a morrer gente, demasiada gente. As NT retiraram de Guileje porque eram constantemente flageladas, viviam dentro dos abrigos, não podiam sequer vir cá fora para se abastecerem de água, não tinham apoio aéreo, a situação era insustentável.



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[1] “Deixando as instalações (de Guileje) e o material pesado, incluindo a artilharia, nas mãos do PAIGC, o major Coutinho e Lima fez seguir a tropa para Gadamael, transportando o que podia. Em 22 de Maio chega a Bissau para ficar sob prisão no quartel da Polícia Militar, na Amura. É substituído pelo coronel pára-quedista Rafael Durão, em fim de comissão e pelo capitão Manuel Monge. E foi sobre os seus ombros jovens mas firmes que, após o regresso de Durão a Bissau, caiu a pesada responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.” Em Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, Livraria Bertrand, 1977, pag. 122.


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Permitam-me agora apenas um comentário (*).

Este texto foi escrito há quase trinta e cinco anos, em Mansoa, uma semana após o abandono de Guileje, com as informações de que dispunha na altura, via meu CAOP 1, através dos meus majores, etc. O último parágrafo contém algumas incorrecções factuais.

Em Guileje não “houve quatro ou cinco mortos”, como escrevi , apenas faleceu um furriel. As tropas em Guileje naqueles dias críticos, apesar dos Strella, tiveram apoio aéreo como demonstrou recentemente no nosso blogue o tenente-general António Martins de Matos, na altura um dos pilotos dos Fiats. Por último, se na altura, com 26 anos, eu afirmei que “a situação era insustentável”, hoje, com 61 anos, conhecendo melhor a distribuição das forças no terreno e todo o enquadramento militar que rodeou a retirada de Guileje, estou convencido de que a situação era sustentável. Basta recordar Guidage e Gadamael, sofreram mais do que Guileje e não houve retirada militar.

Curioso também recordar que o hoje general Manuel Monge, meu amigo, actual Governador Civil de Beja, é singularmente elogiado por Otelo Saraiva de Carvalho na nota de rodapé que acrescentei em 2007, por ter aguentado Gadamael, com os pára-quedistas e a restante tropa. Curioso recordar que o então major Manuel Monge, com o major Casanova Ferreira, encabeçou a coluna militar que, a 16 de Março de 1974, saiu das Caldas da Rainha em direcção a Lisboa, antecipando o 25 de Abril.
O problema era de natureza política.

Um abraço,

António Graça de Abreu,
(alf mil, CAOP 1, Guiné, 1972-1974)
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Nota de L.G.:

(*) vd. postes anteriores desta série (Dossiê Guileje / Gadamael 1973):

24 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3789: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (2): Esclarecimento adicional de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação da LFG Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, no Rio Cacine, em Junho de 1973 (Manuel Rebocho, ex-Srgt Pára, CCP 123, 1972/74)

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Guiné > Região de Tombali > Cacine > Rio Cumbijã > Junho de 1973 > "A LFG Orion, com populares a serem evacuados (...). A população de Guileje, não sendo aceite pela população de Gadamael, por serem chãos diferentes (no sentido de etnias), embarca num navio Patrulha que a levaria para Bissau, onde desembarcou".


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Guiné > Região de Tombali > Cacine > Junho de 1973 > Uma LDM [Lancha de Desembarque Média] com militares e populares e a costa do rio onde nunca o Orion conseguiria chegar".

Legendas de Manuel Rebocho. Fotos de Delgadinho Rodrigues (2006), gentilmente cedidas por Manuel Rebocho (2006). Todos os direitos reservados.

Fotos alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.




Manuel Rebocho, ex-srgt pqdt, BCP12 / CCP 123 (BS 12, Bissalanca, 1972/74)

Foto: © Manuel Rebocho (2006)


Texto enviado pelo Manuel Rebocho, ex-sargento paraquedista da CCP 123 (Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975").

Carta a Pedro Lauret (1)

Não pretendo fazer polémica mas também a não recuso. Assumo a frontalidade e a responsabilidade do fiz e vi fazer.

A actuação da LFG [Lancha de Fiscalização Grande] Orion, na evacuação das populações de Guileje, que tinham sido forçadas a acompanhar as tropas portuguesas que se retiraram para Gadamael Porto, na manhã do dia 22 de Maio de 1973, teve o seu mérito (2), mas não exageremos.

Nas duas fotografias, que junto, a primeira é da LFG Orion, onde se vêem os populares a serem evacuados. Contudo, a segunda mostra uma LDM [Lancha de Desembarque Média] com militares e populares e a costa do rio onde nunca o Orion conseguiria chegar.


Temos assim que só chegaram ao Orion as pessoas que foram transportadas pela LDM, que era comandada por um Sargento. Acresce, que esta LDM estava aportada em Cacine e foi o então Major Manuel Monge, que desempenhava as funções de Segundo Comandante do COP 4, quem lhe ordenou aquela missão. 

Tendo o Sargento procurado esquivar-se ao cumprimento da ordem, a mesma foi-lhe imposta pela força já que o então Capitão Pára-Quedista Norberto Crisante de Sousa Bernardes que, como eu próprio, assistiu à ordem, determinou a uma força, que ele próprio integrou, que acompanhasse o Sargento e assegurasse a defesa da dita LDM.

Todos sabemos que Manuel Monge era um dos Oficiais mais íntimos de Spínola, cujo comportamento não pretendo justificar, mas antes, ser cientificamente sério. Neste sentido, Monge determinou a evacuação só depois de ter o beneplácito de Spínola.

Neste caso, não recuso méritos ao Orion, que os teve, mas não exageremos, quanto às motivações e iniciativas. O Orion cumpriu uma missão que lhe foi ordenada. E só. Lembro que o Orion estava no local, porque havia ido buscar a CCP [Companhia de Caçadores Pára-quedistas] 123, que integrei como operacional durante 26 meses, a Cadique (Cantanhez) no rio Cumbijã, precisamente para auxiliar Gadamael Porto, como fez. 

O Orion desembarcou a CCP 123 em Cacine, tendo a companhia seguido depois para Gadamael,  de LDM, mas, mesmo assim, desembarcou na zona onde estava a população, seguindo depois a pé até Gadamael, dado que o porto estava a ser constantemente bombardeado.

O Orion esteve sempre muito distante do alcance das granadas que o PAICG estava lançando sobre Gadamael. A população estava dispersa na margem, mas também muito distante de Gadamael.

A presente carta é da responsabilidade do tertuliano Manuel Rebocho, mas não só, também o é do Sargento-Mor Pára-Quedista Manuel Rebocho, que esteve nos actos que refere, e também do Doutor Manuel Rebocho que investigou estas operações durante mais de cinco anos.


Aceite o tertuliano, o camarada e V. Excia. os protestos dos meus mais elevados cumprimentos pessoais.

PS - O Delgadinho Rodrigues era na altura dos factos, tal como eu, Segundo Sargento Pára-Quedista e éramos da mesma companhia [CCP 123]. O facto de ele ter tirado as fotografias prova que estava lá. Como estava.

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)


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Notas de L.G.:

(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 >

(2) Vd. posts de 15 de Junho de 2006 :

Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)