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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26510: Historiografia da presença portuguesa em África (467): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1896 e 1897 (23) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Os Boletins Officiais de 1896 e 1897 são muito monocórdicos para meu gosto, isto quando, afinal, quando toma posse em janeiro de 1896, Pedro Ignacio de Gouveia, pela 2.ª vez governador, diz abertamente que vai confrontar com um mar de dificuldades, os conflitos do Forreá parecem eternizar-se; o relatório sobre as condições higiénicas e de saúde pública alusivas a 1896 fazem-nos pressentir que a capital é quase uma enxovia, os materiais importados quer para os hospitais ou para as instalações militares estavam totalmente desinseridos do espaço e do clima, interrompera-se a macadamização das ruas, a ilha tinha pontos saudáveis mas a escolha do lugar da capital era totalmente desacertada, enfim, o responsável da Junta de Saúde vai dizendo verdades com punhos. Notícia curiosa é a da experiência em curso para ver se a Guiné aderiria a um novo sistema de comunicação, a dos pombos-correios.

Um abraço do
Mário


A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1896 e 1897 (23)


Em termos informativos, o Boletim Official referente a 1896 e 1897 é quase uma maçadoria, muitos relatórios de saúde pública, transcrição de regulamentos de Lisboa, chegadas e partidas, nomeações, louvores e punições e, como veremos, há muito mais mundo que a descrição de patentes, comércio internacional, taxas alfandegárias ou artigos didáticos como aquele que nos explica a borracha.

Temos novo Governador, regressa Pedro Ignacio de Gouveia, dirá coisas a propósito, vem registado no Boletim Official n.º 4, de 25 de janeiro: “Reconheço as dificuldades sempre crescentes e renováveis para manter no estado pacífico as tribos irrequietas de diversas origens tão disseminadas por esta província. Para o natural desenvolvimento da província carecemos mantê-la num estado de pacificação tão completo quanto o comércio e a agricultura possam desafogadamente expandir-se.”

Anteriormente, o Secretário-Geral do Governo discursará assim: “É certo que com a ocupação do Forreá, devido à iniciativa e bom senso do antecessor de V.ª Ex.ª, o capitão-tenente da Armada, Eduardo João da Costa Oliveira, muito há a esperar que melhorem consideravelmente as circunstâncias do tesouro público.”

Temos também que saber ler notícias curtas, como aquela que diz que Sua Majestade, a quem foi presente o relatório do Governador da Guiné acerca do aprisionamento do régulo Damá, e do seu principal chefe de guerra Moló-Lajó, que há muito hostilizavam os povos do Forreá, se comprazia e louvava o 2.º tenente da Armada, José de Oliveira Júnior – o que quer dizer, por outras palavras, que a questão do Forreá era uma tormenta permanente.

Passando agora para o Boletim Official n.º 20, de 16 de maio, veja-se o que escreve o Governador:
“Encontra-se a vila de Bissau, entre muralhas, nas condições de não comportar mais edificações, com uma população já bastante acumulada, razões de ordem pública não aconselham a ampliar a área, é certo que para alguns naturais já foi consentido a seu pedido estabelecer edifícios para habitações fora dos muros.
O comércio, porém, necessita de estabelecer armazéns à beira-mar, para fácil tráfego de embarque e desembarque de mercadorias permutadas com o indígena.
A situação geográfica do ilhéu do rei, fronteira a Bissau, permite que os negociantes, tendo a sua habitação na vila, edifiquem vastos armazéns neste ilhéu, hoje apenas ocupado, quase, que pelo Lazareto.
Bissau e o ilhéu do Rei é a chave do comércio entre os povos de Geba, Corubal, Balantas e Biafadas e pode desenvolver-se extraordinariamente quando o comércio encontre facilmente onde armazenar as mercadorias, o que presentemente não tem, e que o indígena ali traz para permutação.”

E o Governador Pedro Ignacio de Gouveia faz certas determinações sobre o aforamento do ilhéu do Rei.

É também altura de sabermos um pouco mais sobre o estado da saúde e os Boletins Officiais n.º 16 e 17, respetivamente de 17 e 24 de abril, dão-nos sumariamente conta. Para o autor Bolama é a população mais saudável em toda a província, porém são desgraçadas as condições higiénicas na capital. “Situada em terrenos baixo e argiloso, que absorve e retém durante as chuvas grande quantidade de água sem escoante possível, com uma praia totalmente lodosa, uma atmosfera excessivamente húmida, uma temperatura ordinariamente elevada, com habitações péssimas, água ordinária, com falta de recursos necessários para manter a regular limpeza das ruas.”

E acrescenta:
“Tenho notado desde que vim para o Ultramar que nunca foram as condições higiénicas de situação que presidiram à escolha do local para as diferentes povoações. Naturalmente mesquinhos e insignificantes interesses foram atendidos de preferência aos higiénicos para a escolha do local onde assenta a povoação de Bolama, quando bem perto tínhamos pontos mais saudáveis, em muito melhores condições de altitude, com praia arenosa, água regular, etc.; e o que se dá com Bolama dá-se em maior escala com todas as povoações que conheço na província, sobretudo Bissau, o empório comercial da Guiné e Geba. Em Bolama não há uma única habitação que se possa dizer razoável. Se há três casas que pela sua aparência grandeza e material empregado são as melhores da capital, estão, contudo, bem longe de satisfazer, relativamente à higiene o que era absolutamente necessário.”

E vai esmiuçando o material empregado na maior parte das construções, a má escolha dos pavilhões importados para serem edifícios públicos, piores ainda os pavilhões destinados ao alojamento dos oficiais, refere a falta de ventilação e, sobretudo, a falta de higiene. A água é ordinária. “A única suportável é a denominada do Intachá, nascendo a 2 km da povoação. À simples vista, parece pura por ser límpida, mas com certeza tem em suspensão muitos microrganismos e outras substâncias orgânicas, porque demorando envasilhada durante algum tempo, começa a fazer sentir-se o seu mau cheiro.”
Não esquece a irregular limpeza das ruas, largos, pátios e quintais e o facto de no princípio das chuvas tudo se torna num mar de lodo. “Macadamizadas as ruas com uma convexidade acentuada completada a obra iniciada pelo vogal da Junta de Saúde, dr. António Maria da Cunha, quando diretor interino das obras públicas, que mandou abrir largas valetas nas ruas para escoante das águas, ter-se-ia conseguido muito em benefício de Bolama. Mas apesar de se terem já corrido alguns meses depois de que as valetas foram abertas, e de terem vindo tubos para serem colocados nos pontos necessários, ainda elas não foram convenientemente empedradas e cimentadas como é indispensável, a não ser nas duas frentes da Casa Comercial Gouveia e à custa do seu proprietário.”
E vai por aí fora: o sistema de remoção das fezes, a situação do cemitério, o estado do hospital, é uma descrição minuciosa que nos provoca consternação.

Isto que acabámos de escrever tem a ver com o relatório de abril de 1897. Voltando a 1896, e à laia de despedida desse ano, regista-se a publicação de uma portaria do Boletim Official n.º 37, de 12 de setembro, em que se nomeia o capitão do quadro de comissões Luís da Costa Pereira para proceder à montagem dos pombais militares em Bolama e Bissau, seguindo no treino as instruções do continente de Portugal, e experimentando se os pontos indígenas podias ser empregados nos serviços de pombos-correios.

Publicidade publicada num número do Boletim Official da Guiné Portuguesa, 1923
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 12 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26488: Historiografia da presença portuguesa em África (464): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1895 (22) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26506: Historiografia da presença portuguesa em África (466): "Campanhas de pacificação": contra os papéis e os grumetes, Bissau, 1915 - Parte II ("Ilustração Portuguesa", 2.ª série, n.º 514, 27 de dezembro 1915, pág. 806)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Confrontado com esta nova linguagem do Boletim Oficial da Província da Guiné que passou a ser omisso quanto à história política, económica e social, reduzindo-se à rotina burocrática, vi toda a vantagem em revisitar o acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva na sua gigantesca obra A Presença Portuguesa na Guiné, 1878-1926. No texto de hoje, são referidos os dois primeiros governadores, Agostinho Coelho e Pedro Ignacio de Gouveia, tiveram que apagar incêndios, sobretudo à volta de Geba e na região do Forreá, são notórios os lugares onde ainda não há presença portuguesa, as hostilidades sucedem-se, exigindo expedições, punições, perdões e tratados de paz, muitas destas iniciativas são pura fantasia, os insubmissos voltarão à carga. A França tudo vai fazendo tudo o que pode para pôr os Fulas revoltosos, aquela região sul ainda é para ela um grande atrativo, para juntar ao Futa-Djalon. Aqui fica o registo de duas governações dificílimas, há pouquíssimo dinheiro, os meios navais são frágeis e até há revoltas no Batalhão de Caçadores nº1, com os oficiais punidos.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2)

Mário Beja Santos

Estamos agora no Governo de Agostinho Coelho, ele é o 1.º Governador da Guiné como província independente de Cabo Verde, desembarca em Bolama a 20 de abril de 1879. Começa por mexer no dispositivo militar, constituiu o Conselho do Governo, a província da Guiné é dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola, Bissau compreende a vila de S. José e o presídio de Geba, Cacheu inclui, além da praça deste nome, os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor enquanto Bolola inclui Sta. Cruz de Buba e todos os mais pontos que venham a ocupar-se no Rio Grande, era esta a divisão administrativa da Guiné autónoma. É claro que havia porções do território ainda não ocupadas, outros com presença duvidosa, e esta situação irá perdurar por algumas dezenas de anos. A divisão administrativa levantou críticas e o Governador seguinte, Pedro Ignacio de Gouveia, fará alterações.

Melhorou o equipamento naval, havia a canhoneira Rio Lima, vai chegar o vapor Guiné, o Rio Lima regressará a Cabo Verde. O coronel Agostinho Coelho tinha à sua espera problemas que requeriam inadiável solução, era indispensável garantir um quadro de normalidade em Buba, os Futa-Fulas impunham tributos aos negociantes. O Governador procurou fazer tratados com régulos, havia pretensões territoriais francesas no sul, o Governador deixou um documento esclarecedor sobre a situação existente no Rio Grande:
“É uma das zonas mais produtivas da província; as suas margens são povoadas até muito para o interior por tribos laboriosas e agrícolas e convém a todo o custo dar-lhe segurança e proteção. Há nas margens deste rio 53 feitorias portuguesas e francesas, onde vão muitos navios à carga; porém, estes agricultores, têm vivido até hoje expostos aos vexames dos Futas, os quais, em diversas épocas do ano, percorriam os vários estabelecimentos e exigiam, mesmo à mão armada, o tributo a que eles chamam dacha. Cobravam a título de senhores do território um imposto de proximamente 12 mil pesos, e os cofres da província nada lucravam. Como medida de transição, determinei que a importância da dacha fosse paga pelos negociantes por uma comissão composta da autoridade militar de Buba e de três negociantes, competindo a esta comissão reunir, em determinado dia do ano, os principais chefes Fulas e Futas, a quem distribuiria com o simples caráter de presentes, alguns donativos em panos, armas, e bijutarias, uma parte do produto do imposto, entrando na Fazenda o resto, quando o houvesse.” E mais adiante dirá que houve resistência dos negociantes franceses que tentaram atrair os chefes indígenas para ações de descontentamento.

O Governador empregou esforços para a ocupação do Rio Grande, assinou em Buba o tratado de paz com os régulos de Biafadas e com o chefe principal do Forreá. O Governador informa Lisboa que com este tratado terminava uma guerra encarniçada entre etnias. Mas havia continuidade de problemas em Geba, encontravam-se em guerra Fulas-Pretos e Mandigas. Atenda-se a um parágrafo de um documento que Agostinho Coelho mandara ao Governo: “Geba era antigamente o principal centro de resgate do ouro e do marfim na Guiné; hoje do primeiro aparece muito escassa quantidade e do segundo nem a mínima partícula. Dirigi-me a Geba, e foi aí tal o espanto produzido pela aparição de um navio a vapor que muito do interior vieram inúmeras pessoas verificar tão assombroso facto. Esta romaria de visita ao Guiné durou nos 3 dias em que nos conservámos em Geba. Os Fulas-Pretos e Mandigas andavam em guerra, Agostinho Coelho reforçou a defesa de Geba. Dá-se a sublevação do Batalhão de Caçadores n.º 1. O capitão e o ajudante suscitavam comentários injuriosos acerca dos actos de Governo da província. Agostinho Coelho aplicou-lhes dois meses de prisão, houve tentativas de levantamento, o Governador respondeu mandando levantar autos do corpo de delito".

Tavares da Silva destaca a dimensão daquela Guiné com o propósito de degredados, estes, por sua vez, eram sujeitos a um tratamento vexatório, o Governador tomou providências para aquilo que hoje se designa reinserção social. Foram efetuados tratados, houve esforço para a pacificação do Forreá, que culminou com o tratado de paz com os régulos do Forreá e do Futa-Djalon. Mas a questão nevrálgica dava pela delimitação da Guiné, havia a presença estrangeira, particularmente a francesa, fazia-se uma enorme pressão para a ocupação de pontos onde a administração portuguesa não se encontrava estabelecida. O Governador pede a Lisboa recursos financeiros; se havia problemas no sul, surgiram novos problemas fronteiriços envolvendo o Senegal. O que se passava no sul era preocupante, o próprio governante comunica que naquele sul era débil o movimento comercial, muita gente a viver em condições miseráveis, o que inaceitável.

Assim se passaram dois anos é nomeado novo Governador, o 1.º Tenente da Armada Pedro Ignacio de Gouveia, toma posse do cargo em dezembro de 1881, após três semanas de permanência no território, manda uma exposição ao Governo, constata que os povos da região estão longe da civilização, fala sobre o cultivo da mancarra, o principal produto agrícola de exportação, manifesta dúvidas que em pouco tempo se faça a substituição desta cultura de um produto pobre como é a mancarra pela cana sacarina, algodão ou café e cacau. Manifestando a sua preocupação sobre as produções agrícolas da província, escreve:
“A árvore que dá borracha e que aqui é abundante também sofre umas incisões primitivas: se na América ainda não compreendem bem a maneira de obter-lhe o líquido sem prejuízo temporário da árvore, aqui o definhamento é quase completo e o produto que sai é perfeito.” Falando do elemento militar ao Governo, é profundamente crítico: “As autoridades subalternas não são sempre aquelas que coadjuvam melhor o magistrado superior da província: o elemento militar tem o seu lado bom e o seu lado mau. Quando o militar não é ilustrado, e que saiu unicamente da fileira, sem noções razoáveis de administração civil, colocado à frente do concelho, vê nos indivíduos que o rodeiam soldados ou, quanto muito, sargentos. Se este indivíduo, entregue aos próprios recursos naturais, e uns hábitos de vida que destoam completamente da sua educação militar, não é vigário a mando, principia a destemperar e, por fim, desproposita, estabelecendo completamente a desarmonia social.” Pede meios de transportes, recorda a dificuldade em obter o combustível apropriados para os navios a favor.

Ignacio de Gouveia lança uma nova expedição contra os Biafadas de Jabadá, a exposição acontece em janeiro de 1882, está ciente de que deu uma lição aos rebeldes, é feita a paz com o régulo de Jabadá, fará outros tratados de paz, é confrontado com novos atritos com os Fula-Forros de Bakar Quidali. Muitos anos mais tarde, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Fausto Duarte louva o documento enviado por Pedro Ignacio de Gouveia a Lisboa, dizendo a seu favor: “Espírito lúcido, observador arguto e com uma cultura digna de apreço […] Não faz literatura, nem procura servir-se de artifícios de linguagem para esconder ou mesmo diminuir certas deficiências da administração local. Num período incerto para a vida da província que adquirira a tão almejada autonomia política, mas se via a braços com toda a sorte de dificuldades, era preciso expor ao Governo de Sua Majestade em toda a sua crueza variadíssimas contrariedades que mantinham dentro de certos limites a ação do Governador.”

Mas ainda iremos falar adiante deste Governador, haverá acusações de alegada escravatura, novas desavenças em Geba e Buba, o alferes Marques Geraldes entra em cena, haverá perda do vapor Guiné, operações em Nhacra, a criação de escolas em Bissau e Bolama, dar-se-ão passos na organização administrativa e na ocupação do território.
1902, o Boletim Oficial passa por uma fase burocrática, não há conflitos, não há tensões políticas, é só rotina administrativa
Notícia da chegada de novo governador, em novembro de 1902, o 1º tenente da Armada Judice Biker
Pedro Ignacio de Gouveia
Imagem do que foi o último Palácio do Governador em Bolama

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 8 de novembro de 2024 > 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24627: Historiografia da presença portuguesa em África (384): Grandes surpresas na revista "As Colónias Portuguesas" e a Guiné na Exposição Internacional de Antuérpia, 1930 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
É compensador andar a bisbilhotar em publicações que à primeira vista não nos fazem pensar que dali salta pepita de ouro. Sugeriram-me na Biblioteca da Sociedade de Geografia que começasse a ver os primeiros volumes da revista As Colónias Portuguesas, e fiquei assombrado por encontrar um mapa com a localização dos estabelecimentos comerciais portugueses nas margens do Rio Grande de Buba, tratou-se, sem margem para dúvidas, do primeiro grande empreendimento económico do século XIX, teve vida efémera devido às sangrentas guerras no Forreá, mas aqui fica a ilustração desta nossa presença, eram fundamentalmente portugueses e cabo-verdianos; não deixa de ser interessante folhear o catálogo português, a apresentação da Guiné no contexto da Exposição Colonial Portuguesa na Grande Exposição de Antuérpia de 1930, publicação da Agência-Geral das Colónias, edição em francês.

Alude-se à descoberta da Guiné, aos primeiros navegadores, ao primeiro povoado protuguês, Porto da Cruz, fundado em 1584 pelos frades em Guinala, nas margens do Rio Grande de Buba; repertoriam-se as primeiras fortalezas, e as companhias comerciais; não escapa uma referência à questão de Bolama e às campanhas de Teixeira Pinto, tudo para se dizer que reinava agora uma paz profunda. Não falta um esquisso fisiográfico com rios, estações do ano e dados meteorológicos. Não havia então censo demográfico, mas são apresentadas as principais etnias, menciona-se que em 1925 havia na Guiné 768 europeus e sírios; depois de se falar nas 11 circunscrições administrativas, mencionam-se 2800 km de estradas, uma rede de 685 km para as comunicações telegráficas e duas estações de cabos submarinas. Quanto a dados económicos, toda a riqueza da Guiné provinha da agricultura e da criação de gado: arroz, amendoim, óleo de palma, couros, cera e borracha. Não deixa de surpreender a imagem com a cultura do algodão, é facto que ela existiu, embora sem continuidade. Obviamente para atrair os caçadores alerta-se para o facto da Guiné ser uma região privilegiada para a caça.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na revista "As Colónias Portuguesas" e a Guiné na Exposição Internacional de Antuérpia, 1930

Mário Beja Santos

A revista "As Colónias Portuguesas" publicou-se entre 1833 e 1891, era inequivocamente dirigida à atração de investimentos, de funcionários da administração colonial, potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1933 e a 1934. E fui surpreendido por gravuras para mim totalmente inéditas, mesmo que conhecesse o conteúdo. Por exemplo, desconhecia por inteiro a marcação das feitorias portuguesas no Rio Grande de Buba, na sua época áurea, foi um período flamejante que acabou de forma caótica por causa da guerra do Forreá, mesmo quando as autoridades portuguesas conseguiram encontrar um régulo fiel que estabilizasse as relações entre Fulas e Biafadas, os estabelecimentos comerciais apagaram-se. A imagem deixou para a posteridade a localização desses empreendimentos que depois se reduziram à insignificância ou ao apagamento.
Pedro Ignacio de Gouveia, brilhante oficial da Marinha, é depois de Augusto Frutuoso Figueiredo de Barros, Governador interino, o primeiro Governador da Guiné (1881-1884), haverá um segundo mandato. A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
A Igreja de São José de Bolama era o templo religioso da capital da colónia. Será devorada por um incêndio e deu origem à atual igreja.
Duas imagens, Cacheu e Bissau, respetivamente, desconhecia inteiramente estas gravuras, ajuda-nos a entender a relação entre as povoações e a fortificação de cada uma. Aspeto curioso é a minucia do artista que nos mostra a navegação do Geba, ainda não existe o cais do Pidjiquiti.


A participação portuguesa na Exposição Internacional de Antuérpia, 1930:
A Guiné no catálogo da Exposição Colonial Portuguesa


Rosto, a cores, da apresentação da Guiné
Uma imagem idílica de uma estrada da Guiné. A autora deste conjunto de ilustrações foi uma reputada ilustradora e pintora, Raquel Roque Gameiro Ottolini, filha de um famosíssimo aguarelista, Alfredo Roque Gameiro, que tem uma cativante casa-museu em Minde, aí se podem ver obras que revelam o seu excecional talento. É bem provável que a autora tenha recebido informações sobre as estradas de terra batida da Guiné e idealizou esta atmosfera de sonho
Três imagens da Guiné para visitantes da Exposição Internacional de Antuérpia. Raquel Roque Gameiro era uma artista modernista, pendo para este arrozal, linhas sóbrias, com um arroz fora da moldura, para nos sugerir a pujança da cultura orizícola, já muito importante neste tempo. A segunda imagem é esclarecedora que havia cultura do algodão, o capataz branco segue atentamente o trabalho guineense.
Um curioso mapa da época, atribuindo o nome de Senegâmbia ao Senegal. A Africa Ocidental francesa era vastíssima e o nome Senegâmbia vinha do passado remoto. Veja-se os nomes do que se consideravam as povoações principais e como se procura caracterizar o Boé.
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Nota do editor

Último post da série de 30 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24601: Historiografia da presença portuguesa em África (383): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Ignacio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21191: Historiografia da presença portuguesa em África (223): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Esta viagem à Guiné do Capitão-de-Fragata Cunha Oliveira merecia reedição, é uma narrativa de viagens de muitíssima qualidade, com pormenores raros, vão primeiro à região de Cacine, sobem até ao Corubal e depois ao Casamansa. É uma missão histórica, é a tomada de soberania da península de Cacine e a entrega a França de todo o estuário do Casamansa. Julga-se oportuno, neste contexto, de voltar a documentos extraordinários constituídos pelos boletins da Sociedade de Geografia da época e descrever como se tomou posse do Forreá, graças ao espírito indómito do governador Pedro Inácio de Gouveia, alguém também possuidor de excelentes qualidades literárias, será ele que enviará para o Ministro da Marinha e do Ultramar aquele portentoso relato da viagem do Alferes Marques Geraldes até ao Casamansa, onde foi resgatar, atravessando todos os perigos de florestas e populações desconhecidas, mulheres raptadas em S. Belchior, junto do rio Geba.
Que bem escreviam estes homens e como é doloroso ver esta documentação a empoeirar-se nas bibliotecas!

Um abraço do
Mário


Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (3)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregue de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa. É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo Secretário-Geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral.

Como a comissão portuguesa e o próprio Capitão-de-Fragata Costa Oliveira irão passar pelo Forreá, talvez seja útil fazer-se aqui uma referência a uma comunicação à Sociedade de Geografia de Lisboa, oriunda de Bolama, e com data de 1 de novembro de 1882 e que tem a ver com a posse do Forreá. Este território fora entregue à Coroa Portuguesa no dia 27 de outubro e os autores da notícia escrevem impantes:
“É de tão grande alcance económico e político para a nação portuguesa este facto, que aos sócios da Sociedade de Geografia não lhes cabe no seu ânimo deixar de transmiti-lo à Sociedade, de que são aqui representantes.
Raiou agora nova época de felicidade para a Guiné Portuguesa com a entrega do território do Forreá, entrega devida ao muito zelo e incansável desvelo que o nosso consórcio e actual Governador, Pedro Ignacio de Gouveia, tem manifestado na sua ilustrada administração, sempre cheia de abrolhos, os quais contudo com tenacidade e muita energia tem sabido vencer.
É sabido que os Fulas-Pretos e Fulas-Forros são raças irreconciliáveis, sendo aqueles em tempo escravos destes; a sua emancipação foi meditada e o governo português em tempo, mais por humanidade e menos por política, protegeu os Fulas-Pretos, sendo assunto debatido em território, onde a Coroa Portuguesa não tinha jurisdição efectiva.
Daqui nasceu uma hostilidade mais ou menos constante do lado dos Fulas-Forros contra a bandeira portuguesa, levando um dos chefes a dizer que ainda havia de servir-se do pau da bandeira portuguesa para com ele cozinhar.
Ao pau da bandeira vinham agarrar-se os Fulas-Pretos que esperavam emancipar-se. Daqui nasceu a paralisação do comércio, sendo preciso mais tarde fazer-se um tratado entre o governo português e os chefes Fulas-Pretos, Forros e Futa-Fulas.
Este tratado foi celebrado em Bolama, em Julho de 1881, vindo apenas representantes dos régulos.
O gentio cumpre, quando cumpre; as conveniências aconselhavam-no a tratar efectivo o tratado, porém, o governo português não se lhes tinha manifestado de uma maneira enérgica e temida, para que oferecesse sérias garantias, e de uma vez para sempre.
Passado tempo, o tratado estava esquecido e os Fulas-Forros atacavam as feitorias portuguesas e sem nenhum respeito nem medo de serem castigados.

O actual Governador, vendo que só uma lição severa podia consolidar o nosso poderio e que só pelo receio das nossas armas podia o gentio recear-se e sujeitar-se, enviou uma expedição à tabanca do Mamadu Paté, que em 28 de Setembro a atacou com o melhor êxito, destruindo aquela, classificada invencível, fortaleza gentílica.
Depois de uma tão completa e pronta aniquilação do prestígio do gentio do Forreá, estando tudo a postos para o ataque à tabanca de Ugui, corrido de medo, o seu régulo principal, veio pedir a paz, sujeitando-se a pagar uma indemnização de guerra conducente com as exigências naturais e bem pensadas do governador da província.
O nosso ilustre consórcio, o Governador, foi ainda intransigente quando se lhe pedia que a paz fosse feita ou fora da praça de Buba ou entrando o régulo na praça acompanhado da gente, talvez em número de mil homens armados.
Ao bom nome da bandeira portuguesa, que ele aqui representa, nada disto convinha, e ainda o nosso actual Governador, carácter enérgico e de fina compreensão, não permitiu transigência com aqueles usos, verdadeiros abusos, e o poderoso régulo viu-se obrigado a entrar com apenas vinte homens da guarda de honra, acompanhados dos seus chefes, e não esqueceu a ameaça de que só assim se poderia realizar a paz e inteira sujeição à Coroa Portuguesa.
Um emissário do governo seguiu o Futa acompanhado de um régulo do Forreá, a significar a paz ao chefe Almani, para que as suas caravanas de comércio possam seguir incólumes através deste território, e num curto período veremos chegar à praça de Buba os ricos produtos naturais que outrora tanto enriqueceram aquele mercado”.
E quem assina o documento exalta os incansáveis esforços do Governador Pedro Inácio de Gouveia.

A comissão portuguesa, em março de 1888, bem como a comissão francesa, partiram para Kandiafara, ao alcançar a ribeira Queúel, as abelhas atacaram a caravana, e o autor comenta:
“O burro saltava, corria, deitava-se no chão, espojava-se, parecia doido!”.
Dado ao pormenor, observa:
“As fortificações do gentio na Guiné são extremamente curiosas. As habitações ou cubatas são dispostas circularmente. Em torno delas constroem uma espécie de muralha com altos e grossos troncos de árvores das espécies mais resistentes, pau-carvão, pau-ferro, cibes, etc. E a dois metros pouco mais ou menos de distância, e pela parte de fora, uma segunda estacaria de troncos mais delgados e menos unidos, mas cobertos de ramos de plantas espinhosas. Grossos portões de madeira fecham estas tabancas. Tudo nos leva a supor que estas tabancas, assim construídas e ainda com o fosso interior para abrigo dos defensores, são consideradas inexpugnáveis, e que os gentios só atacam povoações abertas ou mal defendidas”.

É neste contexto que o Capitão-de-Fragata procede a uma minuciosa descrição das guerras no Forreá, mas acrescentando que a extensão das guerras alastrou com o envolvimento dos Beafadas. Em 15 de março, as duas comissões determinaram as posições geográficas do rio Cogon e no dia seguinte rumaram para Kolibá, e o autor esclarece:  
“Corubal, Kolibá, Kokoli e Koli são diferentes nomes do mesmo rio, dados nas diversas zonas onde corre. É sempre um grande rio de duzentos a trezentos metros de largura. Passa por Kadé, e dizem nascer numas altas montanhas do Futa-Djalon; é fundo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de quatro metros de altura próximo de Cussilinta”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 15 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21171: Historiografia da presença portuguesa em África (220): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21187: Historiografia da presença portuguesa em África (222): Tratados, convenções e autos firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné (1828-1918) - Resposta a comentários de Cherno Baldé, Luís Graça e Valdemar Queiroz (Armando Tavares da Silva, historiador)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20539: Historiografia da presença portuguesa em África (195): A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Ignacio de Gouveia (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,

Estes relatórios dos primeiros governadores da Guiné são peças documentais de valor incalculável.

No caso vertente, Pedro Inácio de Gouveia deixa-nos aqui o primeiro relatório, ele foi o primeiro governador, entre 1881 e 1884, a ele se deve um texto esplêndido referente à viagem que o então Alferes Francisco Marques Geraldes fez a Selho, para resgatar um conjunto de mulheres raptadas em S. Belchior, no Geba.

É um documento que revela a situação de uma colónia que continua sem projeto, é uma feitoria e um entreposto em decadência, alerta o Governo para a presença crescente dos franceses no Casamansa, a colónia tem tropa deficiente e entusiasma-se a falar das potencialidades agrícolas.

Peço a atenção do leitor para três imagens do chão Felupe, que é o tema de eleição da doutoranda Lúcia Bayan e que gentilmente as cedeu e as comentou, uma bela intervenção que apraz agradecer e até pedir mais.

Um abraço do
Mário


A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia

Beja Santos

Desafetada de Cabo Verde em 1879, o primeiro governador da Guiné tomou posse em 1881 e enviou ao Ministro da Marinha e do Ultramar o seu primeiro relatório em 1882. É um documento de muito interesse, o brioso oficial da Marinha percebe-se estar entusiasmado, não esconde a penúria que envolve a sua administração, sente-se no dever de entrar em detalhes para que Lisboa compreenda que aquela colónia não passa de uma feitoria, está completamente subaproveitada e cercada pelos apetites coloniais franceses, daí o seu esforço de sensibilização. É um tanto formal, por vezes eloquente, é explicativo, não quer deixar nenhuma verdade na penumbra.

Ele escreve assim:

“A História da Guiné Portuguesa desde a sua fundação como Feitoria, depois como Distrito, até à sua autonomia como Província, não se faz num limitado campo de um relatório. A história política do território da Senegâmbia Portuguesa há-de fazer-se um dia com os elementos arrecadados no Arquivo do Ministério e outros dispersos na sede do Governo da Província de Cabo Verde.

O Arquivo da Província é o mais deficiente possível; os elementos escasseiam por toda a parte, e tudo é pobre em subsídios para a História da Guiné, desde o primeiro estabelecimento na antiga Praça em Bissau até à ocupação em Bolama. A Província que tenho a honra de administrar, o território que compreende a Senegâmbia Portuguesa, não está definido, não está limitado. Segundo as opiniões mais conspícuas, situar-se-ia ao sul do rio Gâmbia, o limite boreal, e ao austral em Cabo Verga, entre os rios Casamansa e Nuno. A Guiné, pela sua autonomia, foi dividida em quatro concelhos, com sedes em Bolama, Buba, Bissau e Cacheu, divisão que não foi sancionada pelo Governo de Sua Majestade.

O actual Concelho de Buba era no passado denominado de Bolola. Os pontos fortificados, partindo de sul para norte são: Bissau, Geba, Cacheu, Zinguinchor e Farim. As leis repressivas contra o infame tráfico de escravos, dificultando a sua exportação e a carência quase completa de mercado importador, puseram termo a este vil comércio. Na impossibilidade de comerciar em escravos, dirigiram-se as atenções europeias para os vastos campos incultos, e puseram ombros à agricultura, que então só era embrionária, compensando aliás generosamente os capitais empregados (da leitura deste parágrafo, compreende-se que a consideração do autor é dirigida ao desenvolvimento em geral do Império Português em África).

Enquanto a Guiné não for verdadeiramente conhecida, despida de temores devidos ao seu passado, enquanto as informações colhidas na metrópole não colocarem esta Província no seu verdadeiro pé, há-de vegetar e não viver, apesar das suas muitíssimas riquezas. Mandei confeccionar o recenseamento geral da população, através de mil dificuldades pelos atritos que tive de vencer”.

O documento é detalhado sobre o estado geral das infraestruturas e equipamentos, em dado momento o governador pormenoriza o estado da administração militar:

“A força militar da Província compõe-se do Batalhão de Caçadores 1 da África Ocidental e de uma Bateria de Artilharia. Em geral, a soldadesca é bastante eivada de vícios; nos angolanos predominam o da embriaguez e o crime de furto, nos cabo-verdianos a insolência e o desrespeito; os europeus são, talvez, os melhores, ainda que tragam já consigo uma bagagem pouco brilhante de faltas disciplinares. O angolano na paz não presta, em fogo é suportável, portando-se até com bravura; o cabo-verdiano, salvo excepções, é tímido e fraqueja no combate, pensa demais na família e arreceia-se pela morte. 

"O Batalhão, que veio transferido em condições muito más, por falta de quartel apropriado, sendo os soldados obrigados a dormir sob as árvores e comandados por oficiais que não tinham as verdadeiras noções do seu dever, ressentiu-se por muito tempo da pouca disciplina de então”.

Mostra-se muito preocupado com a efetiva colonização e explica ao Ministro o que pretende fazer para haver pacificação com os povos da Guiné e disciplina nas suas tropas:

“Posso garantir a V. Ex.ª que não há nada preferível para captar a confiança destes povos incultos a dar-lhes uma lição severa. Compreendem a força e entendem também a generosidade.

No princípio da ocupação de Bolama, quando a Guiné ainda era distrito, os Bijagós quando vinham a Bolama consideravam-se em país conquistado, e o saque era geral quando não havia a prevenção de fechar os estabelecimentos a tempo. Mais tarde, já na minha administração, sucedeu o que já tinha sucedido; os Bijagós vinham fazer o seu tráfico humilde e sisudamente já ninguém os receava; a pilhagem existia pela inversa, eram os soldados que roubavam os Bijagós, a ponto de não quererem estes vir a Bolama comerciar porque os interesses eram para a soldadesca, pelo furto de grande número de artigos.

A Bateria de Artilharia foi destinada a guarnecer as fortalezas da Província. O princípio era justo se a Província tivesse fortalezas. Bolama não carece delas; Bissau possui uma meio derrocada, que tem para mim o defeito de ter sido útil, está hoje a população da vila de S. José de Bissau sofrendo, sem necessidade, as consequências de uma aglomeração de gente e daquele espaço inutilizado em que as condições higiénicas da localidade são das piores possíveis; Cacheu possui apenas uns fortins desmantelados; Geba, semelhantemente; e só Buba e Farim é que têm um sistema de fortificação passageira.

A disciplina quanto a oficiais parece-me que devia ser o mais rigorosa possível, evitando-se que chegassem a oficiais superiores, ou mesmo a capitães, oficiais que têm estado na inactividade temporária por castigo, ou hajam cometido faltas que os obriguem à prisão”.

E depois destas considerações pormenorizadíssimas, o governador discreteia sobre a economia, fala das produções da Guiné ao tempo, a saber: mancarra, amêndoas de palma, arroz em casca, couros e goma. Dá informação de que o comércio estava todo entregue às casas francesas de Marselha e às situadas na Bélgica, o centro das operações era no Senegal, na Guiné estas casas comerciais apenas conservavam sucursais e os capitais lucrativos não eram empregados em benefício e para a prosperidade do território guineense.

Na continuação do seu relatório fala da administração da justiça, da instrução pública, da administração eclesiástica, chega mesmo a referir o número de freguesias, nove, e dotadas com seis padres, cinco dos quais eram missionários oriundos do colégio de Cernache do Bonjardim.

Revela-se muito inquieto com a situação existente no Forreá e a necessidade de proteger os Fulas-Pretos.

Este é o primeiro documento de um governador da Guiné, a Biblioteca da Sociedade de Geografia conserva outros documentos destes primeiros governadores, voltaremos ao assunto.

Honra-nos com imagens da vida Felupe a doutoranda Lúcia Bayan, que gentilmente oferece três fotografias do seu acervo e tece os seus comentários:

O chão Felupe, apesar de pequeno, tem características muito distintas, visíveis na instalação das tabancas, tipo de casas e na produção agrícola. Devido a estas características, os Felupe consideram o seu chão dividido em três zonas:


a) zona de mato (kajamutai) com 11 tabancas: Sucujaque, Tenhate, Basseor, Caroai, Varela Medina, Varela Iale, Catão, Cassolol, Edjatem, Budjim e Suzana.

Tal como o nome indica, esta zona tem muitas árvores, especialmente palmeiras e cajueiros, sendo por isso zona de produção de vinho de palma e de caju. As moranças são espaçosas e as casas com grandes varandas abertas. Há estradas e caminhos pelo que a comunicação entre tabancas é fácil e recorrente.


b) zona de areia (kassukai) com 5 tabancas: Edjim, Elalabe, Ossor, Bolor e Jufunco.

Esta é uma zona com poucas árvores, onde não há produção de vinho de palma nem de caju. Em vez disso, a população dedica-se à pesca e secagem de peixe e, na estação seca, produz tomate nas bolanhas. Estes produtos são depois vendidos nos mercados de Elia e Arame a mulheres que vêm propositadamente de Bissau. As moranças são menos espaçosas e as varandas das casas são fechadas com paus para diminuir a entrada de areia. Sendo zona de areia, o acesso é difícil, reservado apenas a carros com tração às quatro rodas. Por isso, não há estradas e a comunicação entre tabancas é feita essencialmente através de canoas.


c) zona da água (assumulô) com 3 tabancas: Arame, Elia e Jobel.

As duas primeiras tabancas estão situadas numa zona mista, isto é, com mato e água. Por isso, nestas tabancas há áreas de produção de vinho de palma e de caju. Jobel está totalmente situada na água. Esta tabanca é constituída por grupos de casas instaladas em pequenos montes que, durante a maré alta, parecem pequenas ilhas e algumas casas parecem mesmo assentes em palafitas. Em Arame e Elia, as moranças são muito dispersas. Na parte norte, zona de mato, a comunicação entre elas é feita por estrada e de canoa na parte sul, zona de água. Em Jobel a comunicação é feita apenas por canoa e depende das marés.

Fotos (e legendas): cortesia da doutoranda  Lúcia Bayan
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20519: Historiografia da presença portuguesa em África (194): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (7): "As rotas da escravatura, 1444-1888”, por Jordi Savall (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
No laborioso levantamento a que procedeu Armando Tavares da Silva ganha clareza, nos registos historicamente sequenciados, os lamentos dos governadores sempre a pedir mais efetivos, mais meios navais, mais dinheiro. Toda a década de 1890 é extremamente penosa: não é só a falta de meios, os grupos étnicos vivem em franca ebulição, caso clássico do Forreá, vai-se continuamente ao Oio sem sossego e na região do Geba não há descanso.
Armando Tavares da Silva refere ao detalhe a figura de Graça Falcão, pertence à galeria dos valentes que caem em desgraça, como Marques Geraldes já caíra.
Ao tempo, a questão da delimitação das fronteiras ainda tem pano para mangas.

Um abraço do
Mário


A presença portuguesa na Guiné: história política e militar 1878-1926,
Por Armando Tavares da Silva (4)

Beja Santos

Dentre os mais importantes trabalhos historiográficos referentes à Guiné, é da mais elementar justiça pedir a atenção de todos os interessados para uma investigação de grande fôlego: “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016.

Não posso deixar de enfatizar a profundidade da investigação, partindo de um professor catedrático que nada sabia de hermenêutica e heurística, que se lançou numa sequência cronológica quase sem folgas no que é político e militar, é difícil conceber um registo de acontecimentos tão completo, direi mesmo que doravante quem se dedicar ao levantamento deste período histórico, para efeitos de análise interpretativa, tem aqui um acervo inigualável.

Pedro Ignacio de Gouveia regressa à Guiné em que há graves desinteligências no Forreá. Criara-se na região um posto militar em Contabane, era grande a vontade de dilatar a presença militar e administrativa, pretendia-se até um posto militar no Xitole, mas viva-se em défice orçamental, no ofício que envia ao ministro adianta as suas razões: “É inquestionável a vantagem de um posto militar no Xitole para a facilidade dos transportes das caravanas que recolham a Buba fazer o comércio, evitando-se assim estar à mercê das intrigas entre régulos que repetidas vezes interrompem o comércio e prejudicam os réditos da província, não lhe permitindo o desenvolvimento de que é suscetível, sem grande esforço”. O governador procura evitar interferências nas guerras étnicas, recebe diferentes régulos, conversa com eles, parece que vai haver uma acalmia no Forreá e no Corubal. No rio Grande houve que prender um chefe Beafada e volta-se a entrar no Oio, onde a obediência à autoridade é mínima ou nenhuma. O governador anterior, Vasconcellos e Sá, criara um imposto de capitação, o governador sugere a prudência, quer que seja uma operação consistente e tolerável, fala num imposto de capitação de 240 réis para os adultos ou de 960 réis por palhota. O Ministro Barros Gomes não aciona este mecanismo. No fim de 1896 sai legislação fazendo cessar a circulação de prata estrangeira no território da Guiné. O ano seguinte não nasce com bons auspícios: os Manjacos de Caió assaltam embarcações, criam-se condições para uma resposta enérgica, numa parceria entre o Exército e a Marinha faz-se uma incursão e os rebeldes rendem-se. Temos depois a desastrada incursão de Graça Falcão no Oio, o autor detalha o que aconteceu, recorre ao testemunho de quem lá esteve, Graça Falcão será inquirido, corriam notícias que o tenente exerceria escravatura. O governador adoece e morre na viagem de regresso a Lisboa, há incidentes fronteiriços à volta do rio Cacine e novo incidente no Forreá.

Em 1897 é nomeado governador o 1.º Tenente da Armada Álvaro Herculano da Cunha. Inicia o seu mandato com visitas, deixou-nos relatos curiosos. Um deles:  
“Em Cacheu fui esplendidamente recebido. Ao fundear às 7h30 da noite começaram as danças, tiros e iluminações, que duraram até à meia-noite. Às 11h30 dirigi-me para terra levando no meu escaler, tripulado por quatro remadores, o meu ajudante. Ao aproximar-me de terra, os grumetes, entrando por água dentro, pegaram no escaler em peso e levaram-nos com todos dentro, depondo em terra a uns 50 metros da linha da preia-mar. Na praia estava toda a população masculina civilizada e todo o povo, homens e mulheres. Ouvidas duas palavras do comandante militar, do comércio e colónia estrangeira, a que respondi com breves palavras, dirigi-me para uma casa preparada para me receber, onde fui convidado a ser hóspede de Cacheu”.
Na sua epistolografia constam existências para aumentar os contingentes de oficiais e de praças da província, reclama mais lanchas-canhoneiras. Revela-se muito atento ao que se passa à volta, desta feita há indisciplina no destacamento de Geba, faltam oficiais, mas ele não pode colmatar a lacuna. Ganha mais intensidade o comércio de armas. Herculano da Cunha pretende ocupar o interior da província, concretamente a região do Gabu. Adoece o governador e vem até Lisboa mas regressa tempo depois. A par da muita instabilidade, o governador vai escrevendo ao ministro de que está a estabelecer novas relações e que cresce o clima de paz. Em 1899, os régulos, os chefes de tabanca e os grandes do Oio pedem ao governo paz.

Caminhamos para o dobrar do século, dão-se passos de ocupação militar e administrativa, obtém-se com os Balantas a paz de Encoche. Temos aqui outro texto sugestivo do governador:
“É o rio de Mansoa o de maior movimento da Guiné, posto que mais ricos sejam os de Geba, S. Domingos de Cacheu e Grande de Bolola, mas é das margens daquele que provém a maior parte do arroz consumido na Guiné e, presentemente, a maior parte da mancarra além de bastante borracha, cera, etc. Do rio Impernal para o Norte é habitado por povos Balantas até à povoação de Mansoa, e daí até à origem por Mansoancas e Mandingas. Os pontos mais importantes são, em primeiro lugar, a povoação de Mansoa, habitada por cristãos e Mansoancas, sendo estes pouco numerosos e que praticam como o cristão e o Mandinga, sendo, para assim dizer, a linha divisória entre os Balantas e Mandingas. Depois, pela sua origem, os povos de Encoche na margem do rio Encoche, afluente de Mansoa; Encheia e, por fim, Famby e Nhacra. Encoche é para Mansoa o que Bissau é para o Geba: o depósito. Por consequência, a paralisação do comércio no Encoche ressentia-se em todo o rio”.
Viajou até lá e escreve as suas impressões. Armando Tavares da Silva reporta estas digressões de Herculano da Cunha, um viajante que não desfalece.

Entra-se numa nova fase da delimitação da fronteira, os franceses estão relutantes sobre o traçado na fronteira Sul. Este período é dado por concluído em Maio de 1903, acordam-se diversas compensações territoriais, mas ainda há assuntos para resolver na fronteira entre o Casamansa e o rio Cacheu, será uma nova missão que iniciará trabalhos em Janeiro de 1904.

O novo governador é o 1.º Tenente da Armada Júdice Biker. Parece interessado em não perder tempo e lança-se numa expedição a Canhabaque, nos Bijagós. Bombardeia-se e incendeia-se, são processos de intimidação para régulos que tinham praticado assaltos e roubos às embarcações. E foi assim que se restabeleceram as relações comerciais com os Bijagós. Chega igualmente uma notícia que traz alívio: a morte de Mamadi Paté, alguém que há muito tempo marca a turbulência na região do Geba. Chegam novas lanchas canhoneiras, tenta-se de novo uma paz duradoura no Oio, castiga-se o gentio Balanta de Nhacra e finalmente procede-se ao ataque do Oio, com o governador no comando, o autor dá-nos uma elucidativa exposição. Ganha forma a cobrança do imposto de capitação. Em 1903 o novo governador é o 1.º Tenente de Armanda Alfredo Cardoso Soveral Martins, temos agora pela frente a resolução da “questão indígena”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
A investigação de Armando Tavares da Silva não ilude (pelo contrário, ilumina) as vicissitudes da vida da província, a partir de 1879, as sublevações, os conflitos, os tratados, a paz instável. Fica-se com a noção de que neste período que vai até 1890 avultam atos de heroísmo e de galhardia militar, como Marques Geraldes, e regista-se uma governação exímia, a de Pedro Ignacio de Gouveia.
Somam-se as dificuldades, há muita tropa indisciplina, os degredados são problema, não há dinheiro para desenvolvimento. É um verdadeiro jogo do empata e da manha para tentar ocupar o território, na ausência de uma administração efetiva.

Um abraço do
Mário


A presença portuguesa na Guiné: história política e militar 1878-1926, 
Por Armando Tavares da Silva (2)

Beja Santos

Dentre os mais importantes trabalhos historiográficos referentes à Guiné, é da mais elementar justiça pedir a atenção de todos os interessados para uma investigação de grande fôlego: “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016.

Que o leitor se previna: são mais de 960 páginas, uma belíssima apresentação gráfica, poder-se-á mesmo adjetivar que é inexcedível, um bom acervo fotográfico e um conjunto de mapas que facilitam a leitura de tão avultado miolo. O investigador escolheu aquele período peculiar que vai das primícias da autonomização da Guiné face a Cabo Verde até à chegada da Ditadura Nacional, correspondente na colónia a uma fase que prometia arranque económico, num quadro de uma certa pacificação, em que a administração colonial se estava a disseminar por pontos importantes no território.

Armando Tavares da Silva é imbatível nos elementos carreados, não hesito em dizer que doravante, quem se quiser abalançar a revisitar este período histórico, tem que percorrer esta obra, sem prejuízo das outras investigações que fazem parte da bibliografia obrigatória.

Pedro Ignácio de Gouveia é o segundo governador da Guiné  [1881-1884, 1º mandato] , tem uma prosa exemplar nos seus relatórios e considero que o seu texto sobre a epopeia do Alferes Marques Geraldes que foi resgatar a Selho gente tirada de S. Belchior uma obra-prima, já o disse num dos meus livros. O autor descreve as preocupações deste governador, ele é contemporâneo de uma nova expedição contra os Beafadas de Jabadá, é favorável a tratados de paz e pressente a gravidade do que se está a passar no Forreá, um fenómeno ainda mal estudado, tem a ver com a crescente pressão dos Fulas que vieram do Futa Djalon e puseram em alvoroço o mosaico étnico, fazendo avivar guerras entre Fulas Forros e Fulas Pretos.

Dá relevo a desavenças que ocorrem em Geba e em Buba, vive-se numa turbulência constante de saqueios de povoações, roubos, atos hostis. É nesse contexto que irão ocorrer operações em Nhacra, os Balantas tinham aprisionado uma embarcação e foram assassinados alguns tripulantes. Mais negociações com rei de Safim, obteve-se uma submissão temporária. No seu segundo relatório, com data de 26 de Janeiro de 1884, o governador volta a dizer algumas verdades como punhos: insuficiência da guarnição, indisciplina militar (recomenda que se realize o recrutamento na província), propõe reformas, pede recursos para lançar empreendimentos essenciais.

Os incidentes no Casamansa vão ser uma constante a partir de 1884, a França pressiona, percebe-se claramente que quer arredar qualquer presença portuguesa na região. Problemas não faltam, o autor fala-nos de um habitualmente omitido na historiografia, o dos degradados. O governador solicitara que fosse abonada a passagem para a metrópole aos indivíduos que houvessem completado o tempo de degredo em Angola; mas este problema não se limitava às questões de patrulhamento, como escreve: “De Angola e de S. Tomé estavam sendo enviados degredados para a Guiné, onde não existia colónia penal, nem condições para evitar a fuga dos presos como já tinha acontecido”.

Pedro Ignácio de Gouveia teve uma governação sem descanso, até houve guerra entre os Beafadas e Mandingas e Fulas-Forros. Volta a fazer minucioso relatório e chega novo governador em 1885, o Capitão-Tenente Francisco de Paula Gomes Barboza [1885-1886], também não teve a vida descansada, por esse tempo uma figura que irá dar muitas dores de cabeça, Mussá Moló, ameaçou fechar o rio Geba, houve que fazer uma incursão a Sambel Nhantá, então a capital do regulado do Cuor. Marques Geraldes passa à chefia de presídio de Geba, aqui granjeará fama.

O autor desenvolve os acontecimentos do Casamansa que irão desaguar na Convenção de Maio de 1886, é capítulo de primordial importância, convém não esquecer que houve perdas graúdas como o Casamansa, mas Portugal que tinha ali uma colónia de praças e presídios ganhou território para o interior, praticamente desconhecido, sobretudo no Leste e no Sul.

No período de 1886-1887 continua-se na efervescência de todo o fenómeno da expansão do Reino de Alfa Moló que encontra apoios em Mussá Moló, entre outros, para espalhar a guerra. Marques Geraldes escreverá que “Moló lutou até ao último dia da sua vida, tendo conseguido destruir quase todo o poder dos Beafadas e Mandingas nos territórios de Geba até Gâmbia (…) As margens do rio Geba, desde a sua embocadura, eram povoadas por Beafadas e Mandingas que ainda não tinham sentido a mão do vencedor. Mussá, por meio de planos bem combinados, soube vencer aqueles restos dos grandes povos que dominaram na Guiné e que em poucos anos tinha suplantado Beafadas e Mandingas, ficando possuidor de ambas as margens do rio Geba desde a sua embocadura, e nós à sua perfeita disposição”.

Houve que fazer expedições, tiveram à frente Marques Geraldes. Em Setembro de 1886, virá novo governador, o Tenente-Coronel João Eduardo Brito [1886-1887], prosseguem as operações, os tratados de paz, sempre efémeros. Marques Geraldes preparou um ataque à capital Sancorlã, teve que suspenda a guerra, assinou-se um tratado como Mussá Moló.

Chegou o momento de tentar um esforço de síntese para apreciar o trabalho de Armando Tavares da Silva. Compila muitíssimos dados, desde as primícias da consagração da Guiné como província, mostra os meios de que o governador dispõe para proceder a operações militares, a natureza buliçosa das diferentes etnias que não se reconhecem na soberania portuguesa. Repertoria as sucessivas operações e não esconde as diferentes deceções dos governadores perante uma quase indiferença dos políticos de Lisboa, que não correspondem ao apelo de mais meios.

O período subsequente, 1887-1890, traz acontecimentos na esteira dos anteriores. Agora o governador é o Contra-Almirante [Francisco] Teixeira da Silva [1887_1888]. Problemas em Buba não faltam. Mussá Moló continua a atacar tabancas. Marques Geraldes, até então um militar de comprovado brio e heroísmo, termina a sua presença na Guiné de forma inglória. Incidentes não faltam, um pouco por toda a parte. Demarcam-se fronteiras para a província, há nova operação contra os Balantas de Nhacra. Com dor e mágoa, abandona-se Ziguinchor. Teixeira da Silva escreve relatório, é documento com laivos de amargura. O relato de conflitos e rivalidades prossegue, ocupa-se Cacine, a contragosto dos franceses. E em 1890 chega novo governador, o Major Augusto Rogério Gonçalves dos Santos [1890-1891].

(Continua)
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Nota do editor

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