Fernando de Sousa Ribeiro,
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880,
Angola, 1972-74
Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)
por Fernando de Sousa Ribeiro
INTRODUÇÃO
Este é um conjunto de textos escritos por
Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano da Companhia de Caçadores 3535, do Batalhão de Caçadores 3880. O autor esteve no norte de Angola entre 1972 e 1974, concretamente em Zemba, na região dos Dembos, a noroeste de Luanda, e em Ponte do Zádi, Banza Sosso e Malele, na região de Maquela do Zombo, junto à fronteira norte de Angola.
Quase todos estes textos foram originalmente publicados pelo autor na página do seu batalhão no Facebook, tendo sofrido posteriormente algumas alterações com vista a torná-los mais compreensíveis a pessoas estranhas ao batalhão.
Os factos relatados nos textos aqui reunidos são rigorosamente verdadeiros, tanto quanto a memória do seu autor lhe permitiu. Nada do que aqui está foi inventado. Ficaram por escrever alguns episódios, porque:
— são demasiado pessoais;
— são de interesse (ainda mais) reduzido;
— são de tal modo fragmentários, que com eles o autor não consegue elaborar uma narrativa que tenha princípio, meio e fim;
— o autor não consegue escrever sobre eles, por mais que o deseje, por causa da rofunda marca que lhe deixaram no espírito; foi o caso da queda de um avião em Zemba, em que morreram três pessoas, que tiveram uma agonia lenta e atroz nos seus corpos destroçados, perante a mais desesperada impotência do autor.
Uma homenagem especial deve o autor prestar ao primeiro-cabo Domingos Amado Neto, que foi um moço extraordinário. Até na cor da pele Neto era extraordinário, pois contava-se entre os negros mais negros de todos os negros que existem. Neto devia ter a maior concentração de melanina na pele que é possível haver. Quando Neto chegava, parecia que ficava de noite. Ele era tão negro que dava a ideia de que absorvia toda a luz que o rodeava. Mas a cor da pele de Neto era um pormenor sem importância, uma simples curiosidade, pois ele era dotado de uma inteligência, de um sentido de justiça, de um bom-senso e de um espírito crítico que foram verdadeiramente preciosos para o autor.
Ao contrário de todos os outros subordinados, tanto portugueses como angolanos, que sempre colocaram as suas vidas nas mãos do autor, obedecendo-lhe cegamente, Neto nunca confiou inteiramente em quem o comandava. Desde o primeiro até ao último dia, manteve sempre uma atitude crítica em relação às decisões tomadas pelo autor, mesmo que só se manifestasse através do olhar. Fê-lo, não de um ponto de vista militar, mas sim de um ponto de vista ético e humano, desempenhando um papel de consciência moral do autor destas linhas. O autor ficou com uma dívida por pagar a Domingos Amado Neto.
ÍNDICE
O meu Curso de Oficiais Milicianos_____5
O respeito pelos homens que comandei____27
O que nos fizeram foi criminoso____43
Crimes de guerra____51
À noite, em Zemba____63
Máquinas de costura____65
Discriminação racial____67
Natal de 1972____73
O guerrilheiro Didi____79
A vida nas matas____83
A operação que me fez tremer____93
Abandonados___107
Os trabalhadores ditos bailundos___119
Uma lição___125
Uma emboscada cobarde___133
Batuque___135
A bebedeira do sargento Madeira___137
A revolta do capitão Jardim___141
Ida à Psiquiatria___147
O Afonso___151
O destacamento de Malele e os refugiados angolanos___153
A seca___159
Despedida___161
O MEU CURSO DE OFICIAIS MILICIANOS
(pp. 5-16)
Convento de Mafra, que era na sua quase totalidade ocupado pela Escola Prática de Infantaria, atual Escola das Armas. Naquele tempo, só não estava sob tutela militar a frente do convento, com exceção do torreão mais à esquerda, em cujo 3.º piso se encontrava a minha caserna do 2.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos. Entre o referido torreão e a Basílica, que está ao centro, ficava (e fica) o Palácio Nacional de Mafra. Entre a Basílica e o torreão da direita ficava, no rés-do-chão e no primeiro andar, a Câmara Municipal de Mafra, enquanto o segundo andar também pertencia ao Palácio Nacional. No torreão da direita estava instalado o Tribunal da comarca. O convento é tão grande que cabia lá tudo: quartel militar, museu, Câmara, Tribunal e, se fosse preciso, também se arranjaria espaço para os Bombeiros… Atualmente, o Tribunal e a Câmara Municipal ocupam edifícios próprios na vila de Mafra. De toda esta gigantesca edificação, só merecem ser visitadas a Basílica e a fabulosa Biblioteca do convento, à qual se acede pelo Palácio Nacional. O resto não passa de uma monstruosidade que não tem ponta por onde se lhe pegue.
Nas traseiras do edifício fcava a parada principal da Escola Prática de Infantaria. Mais para trás estende-se a tapada de Mafra.
A minha companhia, CCaç 3535, teve dois capitães. O segundo capitão foi José António Pouille Nobre Antunes que, por coincidência, tinha feito parte do mesmo pelotão de instrução que eu, no 1.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra,
juntamente com o ex alferes Peixoto. Mal sabíamos nós que, mais tarde, os três nos iríamos encontrar na mesma companhia de caçadores em Angola, o Antunes como capitão e o Peixoto e eu como alferes. Estivemos, portanto, os três no mesmo pelotão de instrução, sob o comando de um alferes do quadro permanente chamado Carvalhão. Este alferes, que era de uma enorme ingenuidade, sofreu uma grande evolução e veio mais tarde a ser um ativo "capitão" de Abril (embora ainda só fosse tenente à data da Revolução dos Cravos), estando agora reformado no posto de tenente-coronel.
Tenente-coronel Carlos Manuel Gonçalves Abreu Carvalhão
Durante o meu serviço militar, houve um tempo em que o Antunes me comandou (a mim e à CCaç 3535 toda), em Angola. Houve um tempo, também, em que o Antunes e eu (e o Peixoto) estivemos em pé de igualdade, na qualidade de soldados-cadetes em Mafra. E houve um tempo em que fui eu que comandei o Antunes.
É verdade, comandei o Antunes! Isto aconteceu na última noite da semana de campo do 2.º ciclo do COM, a qual decorreu na serra de Montejunto. Para ser mais rigoroso, eu não só comandei o Antunes, como comandei mais quase 30 futuros capitães e cerca de 150 futuros alferes, todos ao mesmo tempo!
Aposto em como eles não souberam nunca que eu alguma vez os comandei. Devem ter pensado que as decisões tomadas e as ordens dadas naquela noite no Montejunto tinham provindo dos instrutores, mas não, elas provieram de mim.
Como foi isto possível? Aviso desde já que esta história é muito comprida e muito chata. O meu 1.º ciclo do COM foi traumático, sobretudo para os soldados-cadetes da 6.ª companhia de instrução, a que pertencemos o Peixoto, o Antunes e eu. Foi uma companhia que, só na instrução, sofreu, em três
meses, três mortos e dois feridos, um dos quais ficou cego de uma vista. Os mortos foram vítimas de afogamento numa lagoa que havia na tapada de Mafra.
No momento em que eles se afogaram, eu mesmo estava metido numa outra lagoa até ao pescoço, mas mesmo até ao pescoço, com a água a tocar-me na base do queixo. Tinham-nos ordenado que entrássemos na lagoa em fila indiana e eu era o segundo da fila, atrás de um soldado-cadete que era mais alto do que eu. Eu estava fardado, de botas de cabedal e com uma G3 nas mãos, que transportava com os braços levantados para não a molhar. O peso da espingarda, acima da cabeça, agravava ainda mais o meu precário equilíbrio. Avançávamos cautelosamente pelo fundo escorregadio e irregular da lagoa, mas sempre que abrandávamos a marcha éramos logo alvo de berros por parte do instrutor, que exigia que avançássemos sempre mais e mais. Assim, mesmo quando os da frente da fila abrandavam, os de trás continuavam a avançar e empurravam os que estavam à frente. Eu mesmo me sentia empurrado pelo soldado-cadete que estava atrás de mim.
À medida que avançávamos, o movimento dos nossos pés no fundo da lagoa ia levantando lodo, o qual ia tornando a água cada vez mais turva. Toda a água ficou turva de lodo. Se eu caísse, nunca mais me conseguiria levantar e dificilmente me encontrariam a tempo de me salvar, porque não se via um palmo abaixo da superfície da água.
O afogamento dos três camaradas provocou uma onda de revolta de todos os soldados-cadetes que estavam então em Mafra, os quais fizeram um levantamento de rancho, tal como foi noticiado pelo clandestino jornal
Avante!
Recorte do jornal Avante!, Ano 41, Série VI, n.º 431, de julho de 1971, pag. 4, em que é referida a morte de 4 cadetes. Na verdade morreram 3. Quanto ao resto, a notícia aqui relatada é verdadeira, independentemente do tom revolucionário em que está escrita. Nenhum outro jornal noticiou este facto, porque a censura não permitiu.
O modo como decorreu o levantamento de rancho está muito bem descrito no livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Nogueira. Passo a reproduzir a seguinte passagem, que está na pág. 323, de um depoimento de
Vasco Augusto Rodrigues da Gama, que veio a ser capitão miliciano e comandante da Companhia de Cavalaria 8351/72, na Guiné, e que também viveu o acontecimento. [É membro da nossa Tabanca Grande.]
" (…) Nós, simples soldados-cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passaram a ser números de uma máquina sem coração, não fomos soldados-cadetes, fomos Homens.
Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, na posição de sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem, talvez do oficial de dia:
SENTAR!
Como fez barulho o silêncio que se seguiu!
Ninguém, ninguém se mexeu! Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu! Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os 'engraxadores' hesitaram.
Foi chamado o comandante maior:
SENTAR!
Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.
Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.
DESTROÇAR!
E lá foram os soldados-cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos. Não me apercebi de medo em nenhum rosto.
O meu íntimo regozijava. Fomos para a sala número dez, todos, sem excepção, para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para irmos de fim-de-semana.
Seria quarta ou quinta-feira, não me recordo, sei apenas que o rigor, muitas vezes despropositado, da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.
Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida. Como foi isto possível?
Afinal… era possível."
Capa do livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Correia Nogueira, onde se encontra o relato, feito por Vasco Augusto Rodrigues da Gama, do levantamento de rancho ocorrido em Mafra
A reação do comandante da Escola Prática de Infantaria, coronel Hilário Marques da Gama [, 1921-2012], foi miserável. O homem entrou em pânico quando verificou que não era obedecido, gaguejou umas palavras em que disse que não tinha culpa de nada e fugiu apavorado. O comandante da minha companhia, que era o então tenente Aguda — o qual participou no 25 de Abril como capitão, é agora major-general (o mesmo que brigadeiro), é vice-presidente da Liga dos Combatentes — assumiu perante nós, de olhos nos olhos, a responsabilidade pelo sucedido.
Esta atitude do Aguda caiu muito bem na nossa consideração. «Finalmente aparece alguém que não tem medo de assumir s suas responsabilidades», pensei. Porém, apesar da admiração que o Aguda passou a merecer da nossa parte, ele manteve os métodos de instrução completamente inalteráveis, tal e qual, como se não tivesse acontecido absolutamente nada. Como resultado, um novo incidente grave veio ensombrar a companhia.
Com efeito, algum tempo mais tarde, a minha companhia de instrução sofreu mais dois feridos, atingidos por estilhaços na cara que provocaram a cegueira num olho a um deles. Um alferes instrutor mandou os seus homens rastejar, enquanto ele fazia disparos de G3 com bala real, fazendo-lhes tangentes. Uma bala bateu numa pedra e estilhaçou-a. Os estilhaços atingiram dois soldados-cadetes na cara. Como desta vez não houve mortos, aconteceu numa sexta-feira (quando a malta já estava a pensar no fm de semana) e nos foi dito que os ferimentos não tinham gravidade, o caso acabou por passar despercebido à generalidade do pessoal. Só mais tarde, já depois do fm do 1.º ciclo do COM, é que se soube que um dos feridos tinha ficado cego de um olho.
Ainda antes da conclusão do 1.º ciclo, fui convocado para ser submetido a um exame médico e para prestar provas físicas e outras, com vista a uma possível admissão minha no curso de Operações Especiais, a decorrer em Lamego no 2.º ciclo. Fiquei logo a saber, portanto, que a participação ativa na guerra colonial iria ser o meu destino, qualquer que fosse a especialidade que me viesse a ser atribuída. Só faltava saber para que teatro de guerra é que eu iria ser encaminhado: Angola, Moçambique ou Guiné. Para começar, fui ao exame médico.
— O que é que você está aqui a fazer? — perguntou-me o médico, assim que me viu entrar no consultório. — Não me diga que estes gajos querem que você vá para os Comandos! Com esse físico?! Está tudo doido! Vá-se embora, vá-se embora!
Assim que virei as costas para me retirar, o médico chamou-me:
— Espere aí! Vamos só ver quanto é que você pesa. Ora suba para aquela balança
Subi.
— Eu logo vi! — exclamou o médico. — Você só pesa 48 quilos! E estes gajos querem que você vá para os Comandos?! Está tudo doido! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Vá-se embora, vá-se embora.
Desta vez fui-me mesmo embora, enquanto o médico comentava com os seus botões:
— Com 48 quilos nos Comandos! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Está tudo doido!
E não fui para Operações Especiais. Para o médico, que devia ser miliciano, Comandos ou Operações Especiais era tudo a mesma coisa.
O nosso juramento de bandeira foi muito tenso. Como tínhamos feito um levantamento de rancho, éramos tidos como subversivos. Para evitar que nos revoltássemos ou tomássemos alguma outra atitude que saísse fora do estipulado numa tal cerimónia, a nossa formatura esteve enquadrada por soldados da própria guarnição da Escola Prática de Infantaria, armados de G3 e municiados com balas reais. Alguma atitude da nossa parte que fosse considerada como uma revolta seria imediatamente reprimida a tiro. Mas não aconteceu nada, a não ser o silêncio que imperou durante o pronunciamento da fórmula de juramento, o que em Mafra não era inédito. Já tinha acontecido antes e voltou a acontecer depois. Assim, dos cerca de 500 soldados-cadetes que estavam presentes para prestar juramento, só meia-dúzia é que disse «Juro» e o resto da fórmula que desconheço. A esmagadora maioria, eu incluído, manteve-se totalmente silenciosa.
Terminado o 1.º ciclo do COM., fiquei a saber, sem surpresa, que iria ser atirador de Infantaria e que, por isso, continuaria em Mafra, para frequentar o 2.º ciclo. Queria isto dizer que eu permaneceria mais três meses naquele tenebroso convento e continuaria a receber instrução naquela sinistra tapada. Continuaria no local do crime, portanto. Ainda por cima, o meu instrutor era outra vez um alferes do quadro permanente. Chamava-se Lourenço, já tinha o tirocínio feito e estava à espera de ser promovido a tenente a qualquer momento.
Posteriormente, já com o posto de capitão, o Lourenço veio a ser comandante da 112.ª Companhia de Comandos, que foi a principal protagonista da última operação efetuada pelas Forças Armadas Portuguesas em Angola: o assalto ao Comando Militar das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, o braço armado do MPLA), no bairro da Vila Alice, em Luanda, no dia 27 de julho de 1975, de que resultaram 15 mortos e 22 feridos, entre os militares das FAPLA, e 5 feridos, entre os militares portugueses. O Lourenço terminou a sua carreira por volta de 2005 com a patente de major-general, quando
desempenhava as funções de comandante da Brigada de Trânsito da GNR.
Quando iniciei o 2.º ciclo do COM, o meu estado de espírito não podia ser pior. Eu encontrava-me profundamente desmoralizado, em consequência dos acontecimentos ocorridos no 1.º ciclo. Ainda por cima, estava outra vez entregue a um alferes do quadro permanente, isto é, estava entregue a alguém por quem eu não sentia qualquer espécie de respeito, depois de ter assistido, no 1.º ciclo, aos vergonhosos comportamentos de cobardia e de desprezo pela vida humana da parte de militares de carreira como ele. Para mim, naquele momento, todos os oficiais do quadro permanente eram desprezíveis cobardes ou cruéis psicopatas, que não mereciam que eu me esforçasse, e muito menos que me deixasse matar, só para lhes satisfazer a vontade.
A instrução que tive no 2.º ciclo do COM foi muito mais branda do que a estúpida instrução recebida no 1.º ciclo. Mas dado o estado de espírito com que eu estava, quase não fz nada durante o 2.º ciclo. Profundamente desmotivado, eu não me esforçava durante a instrução, não estudava para os testes, baldava-me nos exercícios físicos e por aí adiante.
Nos testes, por exemplo, eu tirava negativas atrás de negativas. Pura e simplesmente eu não estudava, nem sequer me sentia em condições mentais de estudar. Havia matérias, de resto, pelas quais eu não tinha o menor interesse. Leis, normas E regulamentos, por exemplo, com a linguagem árida e burocrática que lhes era própria, eram matérias deste tipo, que me davam vontade de vomitar. Outras matérias eram tão fáceis e tão primárias, que eu pensava: «Estes gajos só podem estar a gozar connosco. Julgarão eles que nós somos burros?» Outras matérias, ainda, estavam ultrapassadíssimas; estudá-las era a mais completa perda de tempo.
Por exemplo, tínhamos que estudar o rádio de campanha AN/GRC-9, um antepassado do rádio AN/PRC-10, que por si só já era uma peça de museu. Ambos ainda funcionavam a válvulas. Na guerra colonial já estava generalizado o uso do TR-28, que era um rádio de campanha transistorizado. Enfim, que nós estudássemos o AN/PRC-10, ainda se poderia compreender, agora o outro…
Um dos manuais utilizados no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. A maior parte destes manuais parecia ter sido escrita para semianalfabetos e não para universitários, que os soldados-cadetes de facto eram.
Decididamente, eu não tinha motivação nenhuma para estudar e as matérias não me interessavam absolutamente para nada. Em resultado, eu ia colecionando notas negativas, o que me levava a passar os fins de semana em Mafra, de castigo. Isto não me incomodou muito porque, como era verão, eu ia até à praia da Ericeira espairecer e esquecia aquela merda toda.
O meu instrutor, o tal alferes Lourenço, começou a multiplicar os avisos dirigidos à minha pessoa, à medida que o tempo ia passando, dizendo-me: «O sr. Ribeiro não estuda nada. O sr. Ribeiro anda a brincar com isto e ainda vai acabar mal. Ou passa a estudar e tira positivas nos testes, ou eu vou ser obrigado a chumbá-lo e o sr. Ribeiro
vai para sargento. Ai vai, vai! Ou eu não me chame Lourenço!» E eu continuava sem estudar.
Foi só quase no fim da instrução que eu me dei verdadeiramente conta da situação em que me encontrava. Nos testes, eu quase só tinha negativas e agora era tarde demais para corrigir a situação. A avaliação da minha pessoa por parte do instrutor, no que respeitava a motivação e força de vontade, devia ser negativíssima também.
A única disciplina em que eu tinha uma boa nota, e que era mesmo muito boa, era o tiro. Apesar da minha falta de visão estereoscópica, por causa de um estrabismo de origem traumática adquirido na primeira infância, eu conseguia acertar quase sempre no centro dos alvos. Não me lembro da nota final que tive no tiro; só sei que ela foi muito alta e correspondeu à classificação de "atirador especial".
Em face deste balanço predominantemente negativo, só me restava a possibilidade de fazer um esforço suplementar nas provas físicas finais, dando tudo por tudo para ter uma nota tão positiva quanto possível, de modo a que eu pudesse vir a ser ofIcial e não sargento.
Como já disse atrás, ao longo do 2º ciclo eu não tinha feito esforço nenhum nos exercícios físicos. Valendo-me do meu aspeto franzino e magricelas, eu fingia que não aguentava o esforço exigido nos exercícios e punha-me de fora. Por exemplo, em vez de fazer todas as flexões de braços que o alferes queria, eu só fazia meia dúzia e fingia-me muito cansado, caindo para o lado. Nos crosses, eu chegava a meio e desistia, fingindo estar estourado; durante aqueles três meses, nunca corri um cross até ao fim. Resultado: eu encontrava-me num estado físico pouco consentâneo com o esforço que teria que fazer nas provas físicas finais para ter positiva.
Custou-me muito, mesmo muito, conseguir boas notas nos exercícios físicos. Mas obtive alguns êxitos notáveis. Nas flexões abdominais, sobretudo, tive vinte valores; fiz as sessenta ou oitenta flexões abdominais (já não me lembro ao certo de quantas eram) necessárias para conseguir a nota máxima. Na pista de obstáculos tive uma nota um bocado mais fraca, mas mesmo assim muito positiva também. E nas outras provas fui sempre tendo notas igualmente positivas, umas mais altas, outras mais baixas. Até que chegou a última prova, que era o cross, que por si só valia tanto como
as outras provas físicas todas juntas. Esta eu não podia deixar de fazer até ao fim, nem que chegasse à meta de gatas!
O cross final consistia em correr de Mafra até Sobreiro e voltar. Sobreiro é uma povoação situada a meio caminho entre Mafra e a Ericeira.
É no Sobreiro que fica a Casa-Museu de José Franco, onde existe um modelo de aldeia saloia em miniatura, todo feito de barro, que o falecido oleiro criou com as suas próprias mãos e que atrai inúmeros visitantes. Naquele tempo, José Franco ainda era um ilustre desconhecido, q
ue ainda não tinha criado a sua aldeia de barro, e o Sobreiro era uma povoação igual a muitas outras existentes na região saloia.
Eu tive uma enorme dificuldade em fazer o cross, por causa da falta de treino. Por mais do que uma vez, senti as pernas fraquejar. Mas com grande esforço consegui manter o ritmo da passada, sempre igual do princípio ao fim, de tal maneira que cheguei a Mafra em segundo lugar!
— O quê?! O sr. Ribeiro fez o cross todo?! E chegou em segundo lugar?! — exclamou
o Lourenço, que estava junto à meta, quando me viu chegar. — Então eu estava cheio de pena do sr. Ribeiro, porque julgava que era tão fraco que não conseguia completar um cross, e agora completa um e chega em segundo lugar?! Nem sequer veio no meio do pelotão; chegou logo em segundo ?! Quer dizer que o sr. Ribeiro andou a fingir este tempo todo?! Andou a gozar comigo, foi?! O sr. Ribeiro vai pagá-las! Se há coisa que eu não tolero é que façam pouco de mim! O sr. Ribeiro não vai esperar pela demora! Na semana de campo vamos ajustar contas! Vai ver como
elas lhe mordem! O sr. Ribeiro vai arrepender-se de ter nascido!
Ao longo dos dias seguintes, o Lourenço repetia-me:
— O sr. Ribeiro não pense que eu me esqueço do que se passou no cross! Eu nunca esqueço uma ofensa! E o sr. Ribeiro ofendeu-me! Eu estava cheio de pena de si e afinal o sr. Ribeiro andava a gozar-me. Na semana de campo o sr. Ribeiro vai pagá-las todas juntas, vai, vai! Não admito que me gozem! Vai pagar com língua de palmo!
(Continua: O meu curso de oficiais milicianos, pp. 17-26)
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]