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segunda-feira, 17 de março de 2025

Guiné 61/74 - P25592: O melhor de ... Mário Gaspar (1943-2025) - Parte II: "Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia: – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe: – Sou o único culpado!"





Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Monumento aos Combatentes do Ultramar > Memorial dos Mortos do Ultramar > c. 2018 > O Mário Gaspar aponta os nomes dos seus camaradas António Lopes Costa, soldado, natural  de Vila Real,  e Victor José Correia Pestana, furriel, natural de Santarém, mortos em "acidente com arma de fogo", em 12 de outubro de 1967, perto de Ganturé, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri.


Fotos (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Mário Gaspar (Sintra, 1943 - Lisboa, 2025) teve, depois da "peluda", pelo menos duas grandes paixões (além de Alhandra da sua infância e adolescência): 

(i) a DIALAP- Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, onde foi lapidador, sindicalizado, e delegado sindical (ficou desempregado, em 31/5/1996, por extinção do posto de trabalho); 

e (ii) a Apoiar - Associação de Apoio Aos Ex-Combatentes Vítimas de Stress de Guerra, de que foi sócio fundador e dirigente. Temos que relembrar, proximamente, estas duas facetas do nosso "Zorba".

Tanto quanto a sua saúde o permitiu (era DFA - Deficiente das Forlas Armadas, com 40% de incapacidade, e nos últimos conheceu o calvário dos lares, clínicas e  hospitais, sofrendo de problemas do foro cardíaco), teve uma presença ativas nas redes sociais (em particular no nosso blogue e na sua por vezes atribulada página do Facebook: queixava-se que lhe cortavam inúmeros comentários). 

Tinha um humor instável e truculento; detestava que lhe chamassem Mário Gaspar ou Mário Vitorino. Era o Mário Vitorino Gaspar.  Sofreu muito em vida.

Recorde-se que o Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68),  era, como gostava de ser conhecido, "Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado"; e ainda "cofundador e dirigente da associação Apoiar"...

Tinha, além disso,  o curso de minas e armadilhas. E terá sido em Tancos e depois no teatro de operações no sul da Guiné que ele afinal iria descobrir o seu talento para o trabalho minucioso,paciente e... arriscado de lapidador de diamantes.

É autor do livro de memórias "Corredor da Morte" e da série, publicada no nosso blogue, "Recordações de um Zorba". Republicamos, dele, mais um poste, em que conta como é que a burocracia da tropa o matou (ou deu-o como morto) e relata  a tragédia da morte de três Zorbas, o Pestana, o Costa e o Gouveia. (*).



"Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:  – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe:  – Sou o único culpado!"    

por Mário Vitorino Gaspar (1943-2025)  (**)


Que interesse têm os portugueses de saberem que existiu uma Guerra Colonial? Já basta o “A
aquecimento global”, que nem sequer sabemos ao certo o que é, ainda para cúmulo essa guerra onde os nossos pais ou avôs combateram. Pois vou narrar-lhes aquilo que me sucedeu, talvez em agosto, no período das férias de 1969.

– Foi precisamente no dia 12 de o
utubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.

– Mas o que é isso do paludismo ou matacanha? Compreendia antes se fosse da saudade!

– Esquece!

Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o padre na igreja de São João de Brito disse:

– Estou a casar o morto vivo!

– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!

Sorri e tudo se sumiu como espuma!

Pois no dia que me desloco à sacristia para levantar a certidão de c-asamento, recordei aquele episódio rocambolesco na greja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra caderneta m-ilitar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias: data do casamento e mudança de residência.

Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos: 

 "Baixa de Serviço: – por falecimento a 12 de outubro de 1967!" ... Algumas páginas a seguir: "Morto a 12 de outubro".

Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel, e um padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.

Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…

Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.

Nas férias em agosto dirigi-me ao quartel mobilizador, o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na secretaria o major (julgo ser ainda major), o oficial que me colocara de sem erviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a família antes de embarcar para a Guiné.

Quando lhe dei para as mãos a caderneta logo me arrependi. Leu e disse:

– Que mal faz estar aqui dado como morto? -Ao senhor pouco ou nada importa!

Interrompi-o ao escrever na caderneta com uma bic azul e outra vermelha.

– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.

Tirei-lhe a caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.


Fotocópia da folha da caderneta militar, do Mário Gaspar, correspondente à página das "ocorrências extraordinárias", onde é de novo referida a sua morte...




Tratei-o mal, chamando a atenção àquilo que me fizera colocando-me no domingo anterior à partida de serviço:

– Sargento de Dia ao Regimento!

Ninguém aceitou fazer esse serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse serviço, inclusive eu pagava bem.

Passado algum tempo desloquei-me ao departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta, o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.

Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida ,
os três indivíduos riram. Entreguei a caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
-
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de outubro de 1967!

O sargento tirou os agrafos – eram os três sargentos – e referiu logo:

– Olhem, este camarada era nosso vizinho na Guiné!

Disse-me junto ao balcão:

– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.

Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:

– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.

Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na caderneta. Não compreendiam a razão do major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.


O jovem Mário Vitorino Gaspar






Ainda fui a programas de Rádio; dei entrevistas para jornais e fui a dois programas de televisão. Um deles, da Fátima Lopes.

Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o furriel miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém.  e o soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.

Quando gozei férias fui entregar à família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso. 

Como tivessem morrido num período em que eu não estava, fui verificando não me terem narrado tudo sobre ambas as mortes, por saberem sermos muito amigos. A razão de tal é termos cumprido grande parte do serviço militar juntos.

Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel me contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem com regresso pelo mesmo lado.

O alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajeto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário.

 Insistiu o alferes, eram ordens. O Costa disse ao furriel que o acompanhava, os dois avançaram. Pára o Pestana, olhando para os pés. Não podia escapar e lançou-se sobre a granada armadilhada que rebenta. O Costa fica encostado a uma árvore, parecia descansar, nem sequer tinha sinais de ter sido atingido, estava morto. O Pestana tinha braços e pernas seguros do restante corpo por linhas. No peito um buraco. Estava vivo. Ainda chegou vivo a Gadamael Porto e foi visto pelo médico do batalhão que se encontrava perto.

O Pestana pedia, e por favor, aos furriéis milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença de férias. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.

Todas as vezes que via o alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:

– Você matou o Pestana e o Costa!

Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com capitão miliciano de infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha [nosso antigo comandante] que me informou:

– O Gouveia suicidou-se na lha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!

Respondi-lhe:

– Sou o único culpado.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)


2. Comentário do editor LG:

Faço questão de repetir aqui o que disse em 2018, em comentário ao poste P19093 (**),  mesmo sabendo que o Mário, lá no além, já não me pode ler nem muito menos responder:

Mário, é bom voltar a "ver-te" aqui na Tabanca Grande. Já tinha estranhado o teu silêncio. Esta "macabra" efeméride, já a tinhas relatado há uns anos atrás... Mas agora percebe-se melhor a origem do erro: em 12 de outubro de 1967, morrem os teus dois camaradas, no acidente com a granada armadilhada. Um deles, o Victor Pestana, é furriel... Houve uma troca de identidades... Lamentável, mas aconteceu, e seguramente que não foi caso virgem...

Quanto ao eventual suicídio do Gouveia, seria "monstruoso" tu assumires a "culpa" desse ato, tantos anos depois... Tira-me isso da cabeça!... Um grande abraço, Luis.

2018 M10 12, Fri 14:36:09 GMT+1
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Ficha de unidade >  Companhia de Artilharia n.º 1659

Identificação: CArt 1659
Unidade Mob: RAC - Oeiras
Cmdt: Cap Mil Art Manuel Francisco Fernandes de Mansilha
Divisa: "Os Homens não Morrem" - "Zorba"
Partida: Embarque em 11jan67; desembarque em 17Jan67 | Regresso: Embarque em 300ut68

Síntese da Actividade Operacional

Em 19jan67, rendendo a CCaç 798, assumiu a responsabilidade do subsector de Gadamael, com um pelotão destacado em Ganturé, e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1861 e depois do BArt 1896 e ainda do BCaç 2834.

Em jul68, face à intensificação da actividade de patrulhamento de itinerários e emboscadas na linha de infiltração inimiga na região de Guileje, o destacamento de Ganturé foi reforçado, temporariamente, por outro pelotão da companhia.

Em 20out68, foi rendida no subsector de Gadamael pela CArt 2410 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa nº 81 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 448

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"


(**) Vd. poste d12 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sábado, 15 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"

1. Mário Vitorino Gaspar (1943-2025) vai hoje descer à terra da verdade, no cemitério de Camarate, Loures (*). 

Em sua homenagem vamos selecionar alguns dos seus melhores postes. Além de ter escrito o livro "O Corredor da mortes" (2014), foi autor, no nosso blogyue, da série "Recordações de um Zorba".

 Foi fur mil, MA, CART 1659, "Zorba (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (divisa,: "Os Homens Não Morrem").


Excerto do capítulo 15 do livro de memórias do “O Corredor da Morte” (ed. autor, 2014):


Dia 15 de Janeiro de 1968 (…), tinha sido chamado na véspera ao capitão que considerou a utilidade de irmos buscar o correio a Sangonhá, assim patrulharíamos a zona. (…).

As tabancas alinhavam-se à direita. Aproximavam -se os Soldados Nativos e as Praças “U”.

Dei um nó no lenço que colocara ao pescoço. Um lenço de seda que me dera a minha namorada quando estivera de licença em Portugal. Era também “ronco”, como lhe chamavam os nativos.

O cabelo estava demasiado comprido. Gostava assim. Além disso, a barba. Há quantos dias que não a fazia.

O camuflado, uma miséria, parecia que velhice o engolia aos poucos. Tinha que me confundir com os negros no mato. Assemelhava-me, talvez.

Com o pessoal todo preparado, encaminhámos os nossos passos para a “porta de armas”, se é que poderíamos chamar àquilo tal nome. Seriam duas secções e os Caçadores Nativos e as Praças “U”. O total seria de uns quarenta homens. Não ia qualquer Oficial, seria eu a comandar.

Logo que passada a porta de armas, ficámos automaticamente com as distâncias controladas. Nunca íamos a monte, nem sequer era necessário dizer-se. As picas avançavam ao solo, massacrando-o com ato delicioso. Os arames rompiam pela terra. O trilho estava seco. A pica chocava no terreno, procurando um objecto que impedisse a perfuração. Eram as “carícias” daqueles arames de ferro, instrumentos improvisados. Eram sem dúvida nenhuma os melhores detetores de engenhos explosivos.

À frente ia o guia, logo a seguir, a uma distância de sete ou oito metros, um soldado. Separava-nos por volta dos sete metros da frente para trás. À esquerda e à direita. Todos a picar. Eu seguia o guia, Praça “U”, que picava, com uma certa minúcia. 

Tinha notado, já há algum tempo, que dois soldados que iam à minha frente depois de eu recuar, mais parecia quererem brincadeira. Algo de estranho se passava entre os dois. Saltei para a berma direita, colocando-me entre os dois, fiz sinal para terem cuidado. Mudei-me logo para de trás dos dois soldados e continuei a picar.

No meio daquele silêncio profundo, senti um frio percorrer-me o corpo. O cérebro, a espaços, estagnara oco. Nem o vento, as folhas ou viva força da natureza.

 Vamos a ter cuidado  – disse-lhe em voz baixa – é picar como deve ser.



Capa do livro, publicado em 2014, em edição de autor.
Prefácio do psiquiatra Afonso de Albiquerque.


Olharam-me, quase como envergonhados, sorrindo de seguida. Transportava, como todos, a G3 sobre o ombro esquerdo, enquanto a mão direita segurava a pica. As Praças “U” e os Caçadores Nativos batiam com a pica na terra que parecia ser acarinhada pelo arame. Continuei a avisar os dois soldados que me antecediam. Afastei-me para a berma contrária. O silêncio preocupava-me.

Olhei para trás. Estavam algo eufóricos. Desconhecia o motivo de tal. Seria a correspondência? Não sabia explicar. A verdade é que a alegria é contagiante. Estávamos na guerra, ali não havia espaço nem tempo para a nostalgia daquelas paragens sufocantes e doentias. O meu lenço de seda estava encharcado em suor. Coloquei o nó mais à frente. Notava a anormalidade de comportamento nos dois soldados da minha secção, colocados na berma do lado direito.

A uns vinte metros à frente, do mesmo lado, o guia parou por instantes, enquanto picava. Os dois soldados seguiam-no, ouvindo aquilo que a Praça “U”, transmitira baixo. O soldado que vai à minha frente espeta a pica, com raiva. Um estoiro. Um rebentamento forte. O guia foge para a frente. Apontei-lhe a G3, não sabendo explicar tal ato.

 Alto! – gritei-lhe. – Para aqui já!

O militar negro parou e aproximou-se de nós. Num ápice todos se lançaram para a berma. Era o conhecimento prático, os ensinamentos daquela guerra de guerrilha. O guia estava entre nós.

 
– Mina! – gritou o soldado que vinha na minha retaguarda, respirando fundo.

Eu era o único que continuava de pé. Rebentando mina, armadilho ou fornilho, acontecia haver uma forte probabilidade de emboscada. De pé e o coração rompia do peito martelando-o, mas como sempre, mais lúcido, uma lucidez difícil de explicar. Numa fracção de segundo. Mais calmo que anteriormente. Também não entendo. A serenidade fazia parte integrante do “eu”. Era talvez como se tivesse ingerido um calmante. O cérebro respondia na íntegra. Deixei de tremer. Transformara-me,  como por milagre, num ser diferente.

Ouvi gritos que penetravam não só nos ouvidos, mas também no corpo e no espírito. Excluindo eu e o guia,  todos tinham sido atingidos pela mina. 

A minha experiência como especialista de explosivos, minas e armadilhas dizia-me que era, mais uma vez, uma PMD 6, vulgarmente conhecida por “saboneteira”. Uma antipessoal, que possuía mais o efeito psicológico. O que parecia estar pior era o soldado que ia à minha frente, com o rosto de menino, coberto de sangue. Fechava os olhos. O camuflado estava repleto de estilhaços e também de sangue que haviam atingido também o rosto, na zona da vista. Sofria. Aquele sangue do corpo jovem molhava o trapo.

O outro que o seguia era quase o vivo espelho do primeiro, com mais estilhaços talvez. Continuava a não entender porque teria picado com tanta violência. Quereria matar a mina? 

Gritei para o radiotelegrafista, depois de pedir a um soldado que o chamasse:

– Aqui já! – fiz sinal ao condutor para virar a viatura.

–  Informe Gadamael Porto que temos evacuações para fazer, umas seis ou sete.

Disse ao radiotelegrafista com calma: 

 – Não é grave!

A GMC tinha já dado a volta. Havia que evacuar os feridos. O soldado que tinha sido atingido no rosto, desabafou, com dores:

– Estou cego, cego..., não vejo nada, merda. Estes filhos de uma puta nem nos deixam ir buscar o correio!

Não via as lágrimas, elas agarravam-se ao sangue que continuava a correr do seu rosto.

 
– Calma rapaz, vamos para Gadamael, não fazemos aqui nada, as evacuações não podem ser feitas daqui! – disse eu.

Aproximei-me dos feridos. Um gemia em tom demasiado baixo:

– É pá como vai isso? – perguntei-lhe, sorridente, pretendo incutir-lhe a calma e fé que necessitava, enquanto pedia ao telegrafista que pedisse as evacuações.

–  Sinto picadas nas pernas. São os mosquitos todos da Guiné que me chupam o sangue – respondeu.

O sangue manchava os camuflados. Julgava serem os três únicos que necessitavam de evacuação, muito embora outros tivessem sido atingidos. A mina era de fraca potência. Feita de madeira, com algum arame. Disse para o condutor:

 
– É a abrir sempre até Gadamael, não é necessário picar... – disse-lhe em altos berros.

Logo que arrumados na caixa da GMC, a mesma arrancou, com sete feridos e mais quatros homens. Uma secção de Ganturé, chegava com três viaturas. Subimos todos e com alguma velocidade, chegámos ao cruzamento. A secção de Ganturé saiu e continuámos até Gadamael Porto. Não era necessário picar. Gadamael estava à vista. Já se viam os militares da nossa companhia de calções e tronco nu. A GMC estava junto daquilo a que chamavam pista. Todos aqueles a evacuar estavam deitados em macas.

O furriel enfermeiro e o 1º cabo auxiliar enfermeiro encontravam-se junto dando o apoio, limpando os ferimentos e retirando os camuflados. O primeiro soldado atingido, e o que estava em situação mais grave, estava mais sereno. Aproximei-me, eram cinco corpos.

Um murmúrio aqui, outro acolá, nasciam das gargantas daqueles jovens, mas homens de verdade. Homens com um “H” grande.

Ouvia-se o roncar dos helicópteros. Eram dois.

O meu cabelo comprido foi sacudido pelo ar em movimento. Vento.

O capitão estava junto do primeiro helicóptero. Desceu a enfermeira paraquedista de calça camuflada e camisola de um branco lavado. Sobressaíam uns seios rígidos. A enfermeira era de cor branca. A única branca naquele local afastado da civilização. Uma mulher branca, era impensável. Bem torneada!
Aproximou-se das macas, balanceando as ancas.

 
– Como está? – perguntou ao soldado que tinha sido atingido na vista. – Está bem?

- É muito boa! – respondeu rapidamente o soldado.


Via-se um sorriso naquele homem. Já havia ganho esse estatuto há algum tempo. O capitão, referiu:

– Não ligue, ele não sabe aquilo que diz!

– Já estou habituada! – respondeu a enfermeira com um sorriso.

Os helicópteros levantaram dos torrões da pista e desapareceram no horizonte.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)


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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26585: In Memoriam (539): Mário Vitorino Gaspar (1943-2025), ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)... O funeral é hoje, às 15h45, no Cemitério de Camarate, Loures

Guiné 61/74 - P26585: In Memoriam (539): Mário Vitorino Gaspar (1943-2025), ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)... O funeral é hoje, às 15h45, no Cemitério de Camarate, Loures

 

Mário Gaspar (1945-2025)

1. Mais uma notícia profundamente triste, que nos chega ao conhecimento, através da página do Facebook do Carlos  Pedro Marques Gaspar, filho do nosso camarada Mário Gaspar, com data de ontem, sexta, de manhã:

É com profundo pesar que comunico a morte do meu pai Mário Vitorino Gaspar e que as cerimónias fúnebres terão início hoje, a partir das 17h, com velório na Igreja do Campo Grande (Igreja dos Santos Reis Magos - Paróquia do Campo Grande).(*).

Amanhã, sábado, às 15h45, será realizada a despedida final no Cemitério de Camarate.

Obrigado.

Fonte: Página do Facebook de Carlos Pedro Marques Gaspar




Mário Gaspar
2. O Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art,  minas e armadilhas, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), integrava a Tabanca Grande desde  8/12/2013 (*). 

Tem 144 referências no blogue (**). Eis uma breve nota biográfica:

(i) nasceu a 9 de abril de 1943  na freguesia de Santa Maria, em Sintra;

(ii)  foi alistado em 27/7/63 e incorporado em 3/5/65, de acordo com a sua caderneta militar;

(iii) viveu em Alhandra desde os 3 anos; "vila industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira";

(iv) "desde os meus treze anos namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom: Alhandra foi a minha Universidade, tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários";

(v) à vila de Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, estão ligados os nomes de grandes portugueses como Afonso de Albuquerque (Alhandra, 1452 -Goa, 1515), o médico Sousa Martins (Alhandra, 1843- Alhandra, 1897) (que o povo transformou em santo) ou o escritor Soeiro Pereira Gomes (Baião, 1909 - Lisboa, 1949), autor de "Esteiros" (1941) (obra ilustrada por Álvaro Cunhal, e dedicada aos "filhos dos homens que nunca foram meninos");

(vi) durante a pandemia de Covid-19, o Mário foi  também um dos nossos bons e fiéis companheiros, mandando-nos quase todos os dias emails, alimentando o nosso blogue com imenso material, desde poemas a vídeos, mesmo que muito desse material  não fosse publicável, por razões editoriais (por exemplo, tudo o que era referente à atualidade política, social e cultural);

(vii) foi também um exemplo, corajoso, de um camarada nosso que, apesar dos seus inúmeros problemas de saúde nos últimos anos, conseguiu remar contra a maré da infelicidade, e ensinar-nos a maneira como podíamos envelhecer,  ativa, proativa, produtiva e saudável:  escrever no nosso blogue ou em boletins como  "O Olhar do Mocho", era  um dos muitos meios que ele apontava, e que praticava;

(viii)  trabalhou  perto de 30 anos na Dialap - Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA : "éramos nós, Portugueses, os Melhores Lapidadores de Diamantes do Mundo, e a Dialap talvez a maior Empresa de Portugal";

(ix) era DFA - Deficiente das Forças Armadas;

(x) foi cofundador e dirigente da APOIAR -  Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra.

O último mail que recebemos dele,  foi no dia 9, há seis dias. A Tabanca Grande apresenta à família os votos de pesar pela morte do seu familiar, e nosso amigo e camarada Mário Gaspar. Que descanse finalmente em paz.


 
Capa do livro de memórias que publicou em vida, em 2014, 
com prefácio do psiquiatra dr. Afonso de Albuquer

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar





José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985)

1. Foram-nos enviados dois poemas do José Gomes Ferreira,  pelo Mário Gaspar,  muito antes da pandemia ... Já transcrevemos o teor da mensagem  (*) em que o nosso camarada, ex-fur mil, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), fala da sua intância e do meio operário em que foi criado, em Alhandra, e em que tomou o gosto pela leitura de  grandes escritores, neorrealistas, como o Soeiro Pereira Gomes e o Alves Redol... 


(...) Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16

Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

(...) Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.(...)

(...) Tanto que aprendi... Conheci um senhor da nossa literatura, Alves Redol. Reunia com ele (...).

(...) Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na literatura. Grandes senhores e esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci. (...)

Aqui vão para a nossa série "Poemateca" (**). O Mário não cita a fonte. Procurámos colmatar essa lacuna. E ficámos a saber que o poeta nasceu em Santo Ildefonso, Porto. De qualquer modo, nesta série , os poetas e os poemas selecionados são sempre uma escolha pessoal e livre dos nossos camaradas. O Mário manda-nos regularmente poesia, e mandou-nos muita, durante a pandemia de covid-19. Não mo agradeco. Faço-o agora.



Viver Sempre Também Cansa!

por José Gomes Ferreira



O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


In: José Gomes Ferreira - "Viver Sempre também Cansa" (publicado originalmente na "Presença, folha de arte e crítica", ,julho-outubro,1931)


Devia Morrer-se de Outra Maneira

por José Gomes Ferreira



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens. 

Quando nos sentíssemos cansados, 
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs, 
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: 
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
 em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, 
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, 
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. 
Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!" 

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... 
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer, 
começaria a transfigurar-se em fumo... 
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem? 

Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… 


In: José Gomes Ferreira, "Poeta Militante I, II e III"  (
1978)

(Revisão / fixação de texto, notas: LG)


___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 21 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26387: História de vida (53): Mário Gaspar ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), lapidador de diamantes reformado... mas começou por ser um "rapaz de Alhandra"



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > ... "É preciso ser doido para vir para aqui a 4 mil quilómetros da minha Alhandra", parece dizer o nosso Mário Gaspar, em 1968, "apanhado do clima".



Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Gadael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  "Uma foto importante para os tempos de hoje. Sempre no mato na Guiné. De vez em quando, ou me vestia à civil ou então era um Militar vestido a rigor. À direita nota-se movimentação de naturais. Abandonado o aquartelamento de Sangonhá, sucede a distribuição da população. É a instalação da população e o princípio de muitas asneiras militares, (...) Foi em 1968. Outra curiosidade, essa bem mais forte:  Estou sobre um paiol construído pela CART 1659, Gadamael Porto, com cimento e ferro, material que sobrou da construção do cais, Na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, onde frequentei o XX Curso de Minas e Armadilhas, os Paióis eram - e de certeza que ainda são - em tijolo. É obrigatório que um paiol seja um cofre forte."



Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Gadamael, 1968


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  Gadamael, s/d, sem legenda...



 
Foto nº 5 > Guiné > Bissau > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > "Eu com alguns Bravos Militares que comandei na Guiné, no regresso a Bissau no fim da comissão... Estou em cima, ao centro, de pé".


Foto nº 6 > Guiné > Bissau > 1968 > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  Despedida: foto do Mário Gaspar tirada junto á estátua do cap Teixeira Pinto (ou "capitão-diabo", para os guineenses)

Fotos do álbum foto gráfico do Mário Gaspar, disponíveis no seu Facebook.

 Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art,  minas e armadilhas, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), está connosco desde  8/12/2013 (*). Tem mais de 140 referências no blogue.


(i) nasceu na freguesia de Santa Maria, em Sintra, e foi no antigo edifício dos Bombeiros Voluntários de Sintra que foi à Inspecção, embora desde os três anos morasse em Alhandra: 

(ii) Alhandra; "vila industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira";

(iii) "desde os meus treze anos namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom: Alhandra foi a minha Universidade, tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários";

(iv) à vila de Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, estão ligados os nomes de grandes portugueses como Afonso de Albuquerque (Alhandra, 1452 -Goa, 1515), o médico Sousa Martins (Alhandra, 1843- Alhandra, 1897) (que o povo transformou em santo) ou o escritor Soeiro Pereira Gomes (Baião, 1909 - Lisboa, 1949), autor de "Esteiros" (1941) (obra ilustrada por Álvaro Cunhal, e dedicada aos "filhos dos homens que nunca foram meninos");

(iv) durante a pandemia de Covid-19, o Mário foi  também um dos nossos bons e fiéis companheiros, mandando-nos quase todos os dias emails, alimentando o nosso blogue com imenso material, desde poemas a vídeos, mesmo que muito desse material  não fosse publicável, por razões editoriais (por exemplo, tudo o que era referente à atualidade política, social e cultural);

(v) é também um exemplo, corajoso, de um camarada nosso que, apesar dos seus diversos problemas de saúde nos últimos anos, tem sabido remar contra a maré da infelicidade, e ensinar-nos a maneira como podemos envelhecer, ativa, proativa, produtiva e saudável:  escrita, no nosso blogue ou em boletins como  "O Olhar do Mocho", é apenas um dos muitos meios que ele aponta; 

(vi) é DFA.



Foto nº 7 > Vila Franca de Xira > Alhandra > O Mário, na escola primária


Foto nº 8 > Vila Franca de Xira > Alhandra >  A sua querida mãe



Foto nº 9 > Lisboa > Sede da Dialap– Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA (posteriormente foi edifício da Expo 98 e atualmente da RTP). Peça emblemática da arquitetura fabril de Lisboa na década de 60 (arquitectos: Carlos Manuel Ramos e António Teixeira Guerra) (LG).


 "Trabalhei lá perto de 30 anos. Éramos, nós Portugueses, os Melhores Lapidadores de Diamantes do Mundo, e a Dialap talvez a maior Empresa de Portugal. 

"Alterámos e criámos novas ferramentas e ultrapassámos tudo e todos. Após o 25 de Abril houve uma troca de galhardetes entre os dois Estados. Portugal nacionaliza o capital angolano na Dialap e Angola nacionaliza o capital Português da Diamang. Nada se fez para se encontrar uma solução. A Empresa de quase 700 trabalhadores, a pouco e pouco sumiu-se. Os trabalhadores foram simplesmente títeres, robertos e palhaços. A Administração deixou de administrar e passou a ter quotas em tudo que era da Dialap. Abrem uma Empresa em Viseu (Porcut) ficando o Estado com 49% e eram nossos adversários e concorrentes. A Dialap é feita de pedaços. Qual a razão de não terem ficado com 51%? 

"E trabalhámos pedras que ninguém queria lapidar. Foram as administrações e o Estado que mataram a Dialap. Fui dos últimos a ser despedido. Falou-se sempre em reestruturar. Existiam hipóteses da Dialap ser maior. Verdade que houve trabalhadores que tiveram culpas no desmanchar da Empresa. A Dialap pagou tudo para a Expo 98 se instalar e a Secção de Pessoal desta chegou a abrir a minha correspondência. Queixei-me ao senhor administrador Sá Pires que nada fez. Fui à Judiciária queixar-me e responderam-me que a Expo 98 era forte e com poder e perdia tempo. Acrescentou que a Empresa era para acabar. Este um muito pequeno resumo da extinção de uma Grande Empresa."






Foto nº 10 > Lisboa > Dialap– Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA > Cartão profissional do Mário Gaspar, lapidador qualificado, secção de facetagem.

Fotos do álbum fotográfico do Mário Gaspar, disponíveis no seu Facebook.,,, (Com a devida vénia.)

 Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Mensagem do Mário Gaspar, que fomos recuperar, e onde podemos saber algo mais sobre a sua singular história de vida (**), em complemento de outros postes dele já aqui publicados (***):

Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16
Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

Conheci muita boa gente. Além dos meus Pais, fixo a minha "padeira de Aljubarrota", a Mãe. E a "Tia Quitéria".

Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.

E os avieiros? Aprendi com homens e mulheres muito pobres que vieram de Vieira de Leiria para o Tejo.

E os operários das fábricas de Alhandra, onde cresci?

Tanto que aprendi... Conheci um Senhor da Nossa Literatura, Alves Redol. Reunia com ele, nem sequer inicialmente pensei estar com aquele Homem que também me ensinou a crescer. Sonhava. Nunca ser rico, milionário, antes operário. 

A primeira profissão depois de deixar de estudar, foi de "Ajudante de Padeiro", com Carteira Profissional. Portanto Operário, trabalhava todos os 7 dias – visto ter de suportar de sexta para sábado o dobro de horas. Tinha uma pequena Venda de Pão, deslocava-me à casa do cliente. 

Fui Operário e continuo a ser um mero Operário. Lapidador, palavra nem sequer é reconhecida. Sou Lapidador de Diamantes na situação de Reformado. Fui Sindicalista. Cooperativista (fiz parte de um Grupo que fundou uma estrutura – pensou-se ser Nacional), existem uns restos em algumas terras – a"COOP Lisboa".

Na Dialap – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA, foi onde passei toda a minha vida de trabalho, após cumprir o Serviço Militar – nem fui voluntário, e obrigaram-me a passar por Comandos, essa tropa de elites. Também passei pelos Rangers, em Lamego. 

Acabei por novamente ser obrigado a tirar um Curso de Minas e Armadilhas, após julgar estar a terminar essa vida militar. 

Fui para a Guiné, como Furriel Miliciano, Atirador e de Minas e Armadilhas. Sou Deficiente das Forças Armadas. 

Na Dialap fui eleito e fiz parte da Comissão Negociadora após Greve, antes do 25 de Abril, nos princípios de 1974. Se não acontecesse o Abril,  bem arranjados estávamos. Fui eleito para o Grupo de Reestruturação da Empresa, era um dos três executivos. Colocaram a hipótese de representarmos os Trabalhadores como Administradores. 

Conheci muito escritor da nossa praça. Fui fundador de Comissões de Moradores e fui Autarca. Mais tarde, em 1996 fui fundador da Associação Apoiar – Associação de Apoio aos Ex Combatentes Vítimas do Stress de Guerra. Onze anos Dirigente, os últimos seis como Presidente. Fundador e Director do Jornal Apoiar.

Conseguimos vencer todos os objetivos que se pretendia. Percorri o país. Reuni com Ministros, Deputados, Presidentes e de tudo um pouco. Após muitos dias sem dormir – por tal venci – caí como um passarinho que voa alto.

Operado ao coração e em coma. Acordei, voltei e assinei Protocolos. Fui para uma Academia Sénior e ainda fui fundador e primeiro diretor do jornal "Olhar do Mocho"

A vida ofereceu-me tudo. Recusei. Sonhava, um sonho que se evaporou. Foi uma onda que molhou areias e se afundou nelas. Se ainda sonho? Espero sonhar sempre – até acordado – vejo-me pequeno, tão minúsculo no meio de uma multidão.

Estive num debate e o tema era o "Dia da Liberdade", ou o "Dia Mundial da Liberdade". Desconhecia essa homenagem a esse "dia de liberdade", anunciada.

Liberdade,  onde estás tu ?!... Encontrei-me com o Jornalista José Luís Fernandes que foi director do "Diário de Notícias". Conheci-o, nunca mais nos vimos. Foi ele que me reconheceu.

Neste momento, o meu computador também teve uma síncope, não tem cura e ficou em coma.

Reconheceram que não temos essa Liberdade, tal como a Liberdade de Imprensa. Quem domina é o dinheiro. Os portugueses andam nas penumbras do medo.

Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na Literatura. Grandes Senhores e Esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci.

Mário Vitorino Gaspar

PS -  O Mário mandou-nos em anexo dois poemas do José Gomes Ferreira ("Viver Sempre Também Cansa!"  e "Devia Morrer-se de Outra Maneira"): um deles talvez venha a ser escolhido para figurar oportunamente na série "A Nossa Poemateca". Obrigado, Mário. E força para ti!

_________________
 
Notas do editor:

(*) Vd. poste de;


10 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12426: Tabanca Grande (414): Ainda o "zorba" Mário Gaspar (ex-fur mil, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), natural de Sintra, residente em Lisboa, e lapidador de diamantes reformado

 (***) Vd. postes de:



13 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14356: A minha mãe, Maria Eugénia da Conceição Vitorino Gaspar, a minha Padeira de Aljubarrota (Mário Vitorino Gaspar)

sábado, 4 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26348: Humor de caserna (91): O anedotário da Spinolândia (XIV): "Vão-se todos vestir com a roupa que tinham quando viram o helicóptero!"... (Mário Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gandembel e Ganturé, 1967/69)


1. Excerto do poste P12412(*), de Mário Gaspar:

(...)  A CART 1659, "Zorba", só conheceu dois governadores, o General Arnaldo Schulz e o Brigadeiro António de Spínola. Só este último nos visitou – e por duas vezes. – mas, na segunda vez, discursou depois de formada a Companhia:

− Vão-se todos vestir com a roupa que tinham quando viram o helicóptero!

E assim sucedeu, depois de destroçarmos todos, rapidamente surgimos, de calções, tronco nu, chinelos e cabeça destapada.

 Continuou o discurso e, já no fim, um soldado perguntou quando terminávamos a comissão, já que nos tinham prometido sairmos ao fim de 18 meses se terminássemos de fazer o cais, e este já se encontrava funcional há muito tempo. 

António de Spínola respondeu:

Não venho fazer promessas. Venho pedir mais privações e sacrifícios! (...) (**)

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12412: Tabanca Grande (413): Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art, MA da CART 1659 - Zorba (Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Vd, também poste de 19 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25657: Humor de caserna (68): O anedotário da Spinolândia (XIII): na ilha das Cobras, a ementa hoje é... cabrito com ostras... V. Exas são servidas ?

Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)


Mário Gaspar
1, A escolha é do Mário Vitorino Gaspar,
(ex-fur mil art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68); lapidador de diamantes reformado, cofundador e antigo dirigente da Associação APOIAR; ele próprio leitor e cultor de poesia, porque "ler poesia faz bem ao cérebro"; tem c. 140 referências no nosso blogue; ingressou na Tabanca Grande em 8/12/2013.


Adeus
por Eugénio de Andrade  






Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade
in "Os Amantes sem Dinheiro" (1950)


Eugénio de Andrade, pseudónimo literário de José Fontinhas (Fundão, 1923 — Porto, 2005). Tem mais de 40 títulos publicados, em poesia, em prosa e em obras de tradução. Um dos poetas maiores, portugueses, do séc. XX. Dos mais lidos e traduzidos, Entre muitos prémios, recebeu o Camões em 2001. Por razões profissionais ( era inspector administrativo dos Serviços Médico-Sociais da Caixa de Previdência, 1947-1983), adotou o Porto como a sua cidade, a partir de 1950.

Para saber mais, ver Biblioteca Digital Eugénio Andrade

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)