Fotos (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. O Mário Gaspar (Sintra, 1943 - Lisboa, 2025) teve, depois da "peluda", pelo menos duas grandes paixões (além de Alhandra da sua infância e adolescência):
Tanto quanto a sua saúde o permitiu (era DFA - Deficiente das Forlas Armadas, com 40% de incapacidade, e nos últimos conheceu o calvário dos lares, clínicas e hospitais, sofrendo de problemas do foro cardíaco), teve uma presença ativas nas redes sociais (em particular no nosso blogue e na sua por vezes atribulada página do Facebook: queixava-se que lhe cortavam inúmeros comentários).
Recorde-se que o Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), era, como gostava de ser conhecido, "Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado"; e ainda "cofundador e dirigente da associação Apoiar"...
É autor do livro de memórias "Corredor da Morte" e da série, publicada no nosso blogue, "Recordações de um Zorba". Republicamos, dele, mais um poste, em que conta como é que a burocracia da tropa o matou (ou deu-o como morto) e relata a tragédia da morte de três Zorbas, o Pestana, o Costa e o Gouveia. (*).
– Foi precisamente no dia 12 de outubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.
– Esquece!
Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o padre na igreja de São João de Brito disse:
– Estou a casar o morto vivo!
– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!
Pois no dia que me desloco à sacristia para levantar a certidão de c-asamento, recordei aquele episódio rocambolesco na greja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra caderneta m-ilitar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias: data do casamento e mudança de residência.
Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos:
Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel, e um padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.
Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…
Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.
Nas férias em agosto dirigi-me ao quartel mobilizador, o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na secretaria o major (julgo ser ainda major), o oficial que me colocara de sem erviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a família antes de embarcar para a Guiné.
Quando lhe dei para as mãos a caderneta logo me arrependi. Leu e disse:
– Que mal faz estar aqui dado como morto? -Ao senhor pouco ou nada importa!
Interrompi-o ao escrever na caderneta com uma bic azul e outra vermelha.
– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.
Tirei-lhe a caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.
– Sargento de Dia ao Regimento!
Ninguém aceitou fazer esse serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse serviço, inclusive eu pagava bem.
Passado algum tempo desloquei-me ao departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta, o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.
Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida ,
os três indivíduos riram. Entreguei a caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de outubro de 1967!
O sargento tirou os agrafos – eram os três sargentos – e referiu logo:
– Olhem, este camarada era nosso vizinho na Guiné!
Disse-me junto ao balcão:
– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.
Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:
– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.
Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na caderneta. Não compreendiam a razão do major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.
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O jovem Mário Vitorino Gaspar |
Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o furriel miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém. e o soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.
Quando gozei férias fui entregar à família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso.
Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel me contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem com regresso pelo mesmo lado.
O alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajeto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário.
O Pestana pedia, e por favor, aos furriéis milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença de férias. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.
Todas as vezes que via o alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:
– Você matou o Pestana e o Costa!
Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com capitão miliciano de infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha [nosso antigo comandante] que me informou:
– O Gouveia suicidou-se na lha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!
Respondi-lhe:
– Sou o único culpado.
Quanto ao eventual suicídio do Gouveia, seria "monstruoso" tu assumires a "culpa" desse ato, tantos anos depois... Tira-me isso da cabeça!... Um grande abraço, Luis.
(*) Último poste da série > 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"
(**) Vd. poste d12 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)