1. Mário Vitorino Gaspar (1943-2025) vai hoje descer à terra da verdade, no cemitério de Camarate, Loures (*).
Em sua homenagem vamos selecionar alguns dos seus melhores postes. Além de ter escrito o livro "O Corredor da mortes" (2014), foi autor, no nosso blogyue, da série "Recordações de um Zorba".
Foi fur mil, MA, CART 1659, "Zorba (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (divisa,: "Os Homens Não Morrem").
Excerto do capítulo 15 do livro de memórias do “O Corredor da Morte” (ed. autor, 2014):
Dia 15 de Janeiro de 1968 (…), tinha sido chamado na véspera ao capitão que considerou a utilidade de irmos buscar o correio a Sangonhá, assim patrulharíamos a zona. (…).
As tabancas alinhavam-se à direita. Aproximavam -se os Soldados Nativos e as Praças “U”.Dei um nó no lenço que colocara ao pescoço. Um lenço de seda que me dera a minha namorada quando estivera de licença em Portugal. Era também “ronco”, como lhe chamavam os nativos.
O cabelo estava demasiado comprido. Gostava assim. Além disso, a barba. Há quantos dias que não a fazia.
Com o pessoal todo preparado, encaminhámos os nossos passos para a “porta de armas”, se é que poderíamos chamar àquilo tal nome. Seriam duas secções e os Caçadores Nativos e as Praças “U”. O total seria de uns quarenta homens. Não ia qualquer Oficial, seria eu a comandar.
Logo que passada a porta de armas, ficámos automaticamente com as distâncias controladas. Nunca íamos a monte, nem sequer era necessário dizer-se. As picas avançavam ao solo, massacrando-o com ato delicioso. Os arames rompiam pela terra. O trilho estava seco. A pica chocava no terreno, procurando um objecto que impedisse a perfuração. Eram as “carícias” daqueles arames de ferro, instrumentos improvisados. Eram sem dúvida nenhuma os melhores detetores de engenhos explosivos.
À frente ia o guia, logo a seguir, a uma distância de sete ou oito metros, um soldado. Separava-nos por volta dos sete metros da frente para trás. À esquerda e à direita. Todos a picar. Eu seguia o guia, Praça “U”, que picava, com uma certa minúcia.
No meio daquele silêncio profundo, senti um frio percorrer-me o corpo. O cérebro, a espaços, estagnara oco. Nem o vento, as folhas ou viva força da natureza.
– Vamos a ter cuidado – disse-lhe em voz baixa – é picar como deve ser.
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Capa do livro, publicado em 2014, em edição de autor. Prefácio do psiquiatra Afonso de Albiquerque. |
Olhei para trás. Estavam algo eufóricos. Desconhecia o motivo de tal. Seria a correspondência? Não sabia explicar. A verdade é que a alegria é contagiante. Estávamos na guerra, ali não havia espaço nem tempo para a nostalgia daquelas paragens sufocantes e doentias. O meu lenço de seda estava encharcado em suor. Coloquei o nó mais à frente. Notava a anormalidade de comportamento nos dois soldados da minha secção, colocados na berma do lado direito.
A uns vinte metros à frente, do mesmo lado, o guia parou por instantes, enquanto picava. Os dois soldados seguiam-no, ouvindo aquilo que a Praça “U”, transmitira baixo. O soldado que vai à minha frente espeta a pica, com raiva. Um estoiro. Um rebentamento forte. O guia foge para a frente. Apontei-lhe a G3, não sabendo explicar tal ato.
– Alto! – gritei-lhe. – Para aqui já!
O militar negro parou e aproximou-se de nós. Num ápice todos se lançaram para a berma. Era o conhecimento prático, os ensinamentos daquela guerra de guerrilha. O guia estava entre nós.
– Mina! – gritou o soldado que vinha na minha retaguarda, respirando fundo.
Eu era o único que continuava de pé. Rebentando mina, armadilho ou fornilho, acontecia haver uma forte probabilidade de emboscada. De pé e o coração rompia do peito martelando-o, mas como sempre, mais lúcido, uma lucidez difícil de explicar. Numa fracção de segundo. Mais calmo que anteriormente. Também não entendo. A serenidade fazia parte integrante do “eu”. Era talvez como se tivesse ingerido um calmante. O cérebro respondia na íntegra. Deixei de tremer. Transformara-me, como por milagre, num ser diferente.
Ouvi gritos que penetravam não só nos ouvidos, mas também no corpo e no espírito. Excluindo eu e o guia, todos tinham sido atingidos pela mina.
O outro que o seguia era quase o vivo espelho do primeiro, com mais estilhaços talvez. Continuava a não entender porque teria picado com tanta violência. Quereria matar a mina?
– Aqui já! – fiz sinal ao condutor para virar a viatura.
– Informe Gadamael Porto que temos evacuações para fazer, umas seis ou sete.
Disse ao radiotelegrafista com calma:
A GMC tinha já dado a volta. Havia que evacuar os feridos. O soldado que tinha sido atingido no rosto, desabafou, com dores:
– Estou cego, cego..., não vejo nada, merda. Estes filhos de uma puta nem nos deixam ir buscar o correio!
Não via as lágrimas, elas agarravam-se ao sangue que continuava a correr do seu rosto.
– Calma rapaz, vamos para Gadamael, não fazemos aqui nada, as evacuações não podem ser feitas daqui! – disse eu.
Aproximei-me dos feridos. Um gemia em tom demasiado baixo:
– É pá como vai isso? – perguntei-lhe, sorridente, pretendo incutir-lhe a calma e fé que necessitava, enquanto pedia ao telegrafista que pedisse as evacuações.
– Sinto picadas nas pernas. São os mosquitos todos da Guiné que me chupam o sangue – respondeu.
O sangue manchava os camuflados. Julgava serem os três únicos que necessitavam de evacuação, muito embora outros tivessem sido atingidos. A mina era de fraca potência. Feita de madeira, com algum arame. Disse para o condutor:
– É a abrir sempre até Gadamael, não é necessário picar... – disse-lhe em altos berros.
Logo que arrumados na caixa da GMC, a mesma arrancou, com sete feridos e mais quatros homens. Uma secção de Ganturé, chegava com três viaturas. Subimos todos e com alguma velocidade, chegámos ao cruzamento. A secção de Ganturé saiu e continuámos até Gadamael Porto. Não era necessário picar. Gadamael estava à vista. Já se viam os militares da nossa companhia de calções e tronco nu. A GMC estava junto daquilo a que chamavam pista. Todos aqueles a evacuar estavam deitados em macas.
O furriel enfermeiro e o 1º cabo auxiliar enfermeiro encontravam-se junto dando o apoio, limpando os ferimentos e retirando os camuflados. O primeiro soldado atingido, e o que estava em situação mais grave, estava mais sereno. Aproximei-me, eram cinco corpos.
Um murmúrio aqui, outro acolá, nasciam das gargantas daqueles jovens, mas homens de verdade. Homens com um “H” grande.
Ouvia-se o roncar dos helicópteros. Eram dois.
O meu cabelo comprido foi sacudido pelo ar em movimento. Vento.

Aproximou-se das macas, balanceando as ancas.
– Como está? – perguntou ao soldado que tinha sido atingido na vista. – Está bem?
- É muito boa! – respondeu rapidamente o soldado.
Via-se um sorriso naquele homem. Já havia ganho esse estatuto há algum tempo. O capitão, referiu:
– Não ligue, ele não sabe aquilo que diz!
– Já estou habituada! – respondeu a enfermeira com um sorriso.
Os helicópteros levantaram dos torrões da pista e desapareceram no horizonte.
(*) Vd. poste de 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26585: In Memoriam (539): Mário Vitorino Gaspar (1943-2025), ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)... O funeral é hoje, às 15h45, no Cemitério de Camarate, Loures
1 comentário:
Sempre admirei estes homens, a maior parte das milícias (!), que iam à frente,abrindo o caminho... Sem eles, a nossa guerra teria tido muito mais custos humanos por parte da tropa metropolitana... O stress de andar em coluna auto, ou apeado, com os "picas" à frente, era igual em todo o lado...Minas e emboscadas eram um verdadeiro "totoloto"...
É de registar mais este termo da nossa gíria, a "saboneteira", para temível mina A/P, PMD 6...
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