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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'




Documento real de José I de Portugal (1714 - 1777) que declara: "Aos Cristãos Novos privilegio, per que El Rey lhe concede, que se possam ir pera onde quiserem, com outras mais graças nele conteúdas". (A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi abolida por lei do Marquês de Pombal, de 25 de Maio de 1773)

Fonte: Wikimedia Commons  (Com a devida vénia...)

 

Contos com mural ao fundo > O Judeu 

por Luís Graça (*)


O seu nome era Esaú. O pai, Jacó. E o avô era só conhecido pelo apelido da família paterna,  Abraúl. 

Estávamos no início dos anos 20 do século passado. Esaú nascera no início do reinado do senhor dom Carlos, logo a seguir ao Ultimato Britânico. Nesse tempo já não havia a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ou, pelo menos, esbatera-se muito, desde o Marquês de Pombal. A Inquisição acabara há 100 anos, com a revolução liberal,  ou seja, há quatro gerações atrás.

Mas, mesmo assim, tinham ficado os preconceitos contra os judeus portugueses e os seus descendentes, pelo menos entre as classes mais baixas. Ainda se ouvia, em noite de temporal, o povo praguejar: "Até parece que morreu um judeu!".  E, em casa, admoestavam-se as crianças quando faziam... "judiarias".

A família Abraúl, segundo contava a avó Gertrudes, descenderia de judeus sefarditas de Córdoba, no sul de Espanha. Já os Oliveira, os do seu lado,  seriam cristãos novos. No tempo do senhor dom João II, os de Córdova haviam-se instalado em Portugal, fugidos do cruel édito dos Reis Católicos de Espanha. Ter-se-ão espalhado por Lisboa e vilas ribeirinhas do estuário do Tejo. Um ramo fixou-se em Alenquer. Outros tantos  terão seguido as rotas do Império e aproveitado as novas oportunidades de negócio, nomeadamente como  mercadores, prestamistas  e artesãos. 

A família (tanto dos Abraúl como dos Oliveira) não tinha qualquer pergaminho, manuscrito ou papel que comprovasse a sua origem. Era tudo da tradição oral. Nem a avó Gertrudes fazia a mínima ideia por onde os seus antepassados terão deixado os ossos, ao longo daqueles quatro séculos e tal. Espalhados, por certo,  por esse vasto e desvairado mundo, como muitos dos outros portugueses de quinhentos, seiscentos, setecentos…

A avó era do ramo de Alenquer. Gostava muito de contar ao Esaú, em pequeno, histórias, algumas seguramente fantasiosas, sobre os "marranos", os "cristãos-novos" e as perseguições a que a "gente da Nação" sofrera às mãos da Inquisição. "Marrano" era um termo que ela nunca pronunciava: considerava "aviltante" para designar os avós dos seus avós.

No passado, o vocábulo "marrano" (porco) era usado pelos cristãos-velhos para injuriar e discriminar a "gente da Nação", os de origem hebraica, e que em Portugal e na Espanha haviam sido convertidos ao cristianismo pela força, enquanto outros haviam sido forçados ao exílio (em França, Holanda, Norte de África, Império Otomano, etc.). 

− E até levavam a chave de casa!...

E acrescentava a matriarca:

− Sabes, Esaú, até na desgraça os seres humanos são capazes de serem ingénuos, para não dizer estúpidos. Levavam a chave de casa, imagina!… Pobres coitados... Eram como o cordeiro da Páscoa ("Pessach", para os hebreus) que, inocente, não sabe que vai ser sacrificado para a festa...

E, depois, batendo com o punho na mesa, indignava-se:

−  São tão ou mais antigos que os outros povos ibéricos. Depois da queda do templo de Jerusalém, acompanharam as legiões romanas, e aqui viveram e conviveram com outros povos invasores, como os visigodos e os mouros.

O Esaú nunca tinha ouvido,  antes,  falar da Inquisição, dos "marranos", nem de "cristão-novos" e "cristãos-velhos" e das tropelias a que foram sujeitos muitos dos seus antepassados. Na Escola Conde Ferreira em Alenquer (a primeira a ser construída por legado do grande benemérito José Ferreira, apoiante da causa da Dona Maria II), o Esaú aprendeu a ler e a escrever. Mas onde era mesmo bom era nas contas, na tabuada, na aritmética.

A avó, Gertrudes Oliveira, não tinha andado na escola mas era letrada e viajada, como as meninas das classes abastadas  da época. O pai dera-lhe uma educação esmerada e bastante livre para os padrões da época, viajando de barco a vapor e, depois, de comboio, entre algumas cidades e estâncias termais da Europa. Expressava-se fluentemente em francês. O marido, Abraúl,  era primo em segundo ou terceiro grau.

Ao virar do século (teria o Esaú dez anos) mudara-se a família Abraúl para uma vila mais a Norte onde o avô iria construir uma moderna "caldeira de queimar vinho",  capaz de produzir muitas pipas de álcool. A vitivinicultura nacional estava em recuperação, depois da desgraça da filoxera (c. 1887), era precisa então muita aguardente vínica para enriquecer o vinho do Porto, a nossa principal exportação na época. 

A região do Oeste tinha excelentes condições para o aumento do negócio da destilação à escala industrial. Foi uma coisa nunca vista, lá na terra,  com tantos carros de bois a carregar e descarregar tantas estruturas e peças em cobre, tubos, retortas, alambiques, torneiras,  caldeiras, serpentinas, etc., importadas de França e trazidas de barco. E ferros, para construir depósitos para o vinho. E cimento ( da fábrica "Tejo", em Alhandra). 

Foi construída uma grande destilaria, em alvenaria, um edifício, imponente, de elevado pé direito, ostentando ao alto o nome da firma, Abraúl & Filho Lda. A inauguração foi um evento social, como noticiou o jornal da terra.

Infelizmente os pais do Esaú irão morrer, ambos, com a pandemia da gripe espanhola. Aos 20 anos, o rapaz vê-se inesperadamente à frente da firma. O que lhe valeu é que o patriarca Abraúl ainda estava vivo, pelo que beneficiou do seu conselho, experiência e capital de relações pessoais, comerciais e políticas (morreria em 1930, aos 90 anos). Por sua vez, a matriarca, a avó, essa quase que chegaria, já centenária, às vésperas da II Guerra Mundial.

Ninguém sabia a origem da riqueza da família. Era o segredo mais bem guardado. A mãe da avó Gertrudes ter-lhe-á deixado, em herança, umas boas "barras de ouro". Falava-se do saque de igrejas, conventos e palácios no tempo das lutas liberais. Mas isso eram acusações mútuas que faziam "malhados" e "corcundas", liberais e absolutistas. 

A avó falava do "mealheiro do Brasil", deixado pelo avô do seu pai, dono de engenho e de escravos.  Seriam "libras em ouro"... Mas que importava a rota do dinheiro  ? Tinha chegado, por herança, às mãos do Esaú, de resto filho único de Jacó e Rebeca. E deveria chegar ao seu herdeiro, mais velho, se algum dia o chegasse a ter, como os Abraúl e os Oliveira tanto ansiavam. 

−  E depois o dinheiro é fêmea!  −  lembrava o avô Abraúl, transmitimdo-lhe de seguida, ao seu neto querido,  a cartilha que já vinha dos seus progenitores. "O dinheiro não é de que o ganha, mas de quem o poupa ... e o investe, e o multiplica por dois, três e mais".

Na nova terra da Estremadura que o acolheu, o Abraúl era conhecido pela alcunha de "o Judeu" ou então "o Abraúl da caldeira".  Essa alcunha passou para o neto, "Esau, o Judeu" ou o "Esaú da caldeira".

O Esaú não frequentava a igreja, não ia à missa, tal como o pai e o avô. Mas as mulheres da casa salvavam a "honra do convento", isto é, as aparências sociais. 

De resto, os novos tempos, com a República, eram de moderado anticlericalismo e de maior tolerância religiosa. A terra tinha alguma tradição republicana, desde pelo menos o Ultimato Britânico. Os grandes proprietários e os últimos nobilitados do final da Monarquia (os tais que tinham comprado "títulos em saldo") eram poucos, comparados com os de Alenquer. 

Predominava a pequena e média agricultura,  o pequeno comércio, os ofícios tradicionais, uma incipiente indústria e alguns funcionários públicos, incluindo o juiz da comarca, "ainda moço e de ideias arejadas" que frequentava a casa, o "casarão", da família Abraúl, cuja hospitalidade era procurada e reconhecida pela elite local.

Na família ainda era pela via matrilinear (ou "uterina", dizia o avô, brejeiro), que se transmitiam algumas tradições e sobretudo memórias dos antepassados. Os homens tocavam os negócios, ganhavam dinheiro, sustentavam a casa…

− E elas eram as guardiães do templo da memória!  − orgulhava-se a matriarca, uma feminista "avant la lettre". E sufragista!

Da celebração das festividades hebraicas já ninguém tinha a mais pequena memória. Afinal, as duas famílias sempre foram "cristãs-novas" em Portugal. A avó Gertrudes (um nome germânico, talvez visigótico) é que desenterrara o passado, quando veio a moda do sionismo, em finais do séc. XIX. Até então não havia uma consciência nítida da sua origem hebraica, apesar dos nomes de muitos dos seus membros, inspirados em figuras bíblicas.

A avó Gertrudes tinha nascido no final das guerras civis de 1828/34. Lembrava-se do pai dizer que, nessa época, "o clero andava assanhado, contando, de cacete na mão, as ovelhas malhadas" (sic). O pai combatera ao lado das tropas de Dom Pedro e fora dos primeiros a atravessar o rio Tejo e a entrar, vitorioso, em Lisboa, em 24 de julho de 1833, num destacamento avançado das tropas do duque de Terceira.

O Esaú, convenhamos,  não era dado às letras nem ao estudo da história, para grande desgosto da avó, que o amava como se fosse um filho. Casaria com uma "gentia" (sic), por amor, é certo: a primeira professora da terra, a ser formada pelo Magistério Primário, filha de um dirigente local do Partido Democrático, do façanhudo Afonso Costa.

Na terra sempre foi considerado "rico", "filho de rico", se bem que "forreta". Não se lhe conheciam extravagâncias. Nem luxos. Não bebia nem fumava. O único defeito que podia ter era o seu lado "femeeiro". Na tradição da família, emprestava dinheiro a juros, a pessoas conhecidas e de confiança. Era prestamista. Aceitava joias e ouro. Na época não havia bancos na província e a crise financeira dos anos 20 deu cabo de muitas poupanças e patrimónios.

O maior erro da vida do Esaú, entretanto,  terá sido o de dar sociedade a outro dos caciques da terra. Meteu-o como sócio, minoritário, da firma Abraúl & Filho Lda, pelo seu jeito para a parte comercial e as suas ligações aos meios políticos e militares mais conservadores de Lisboa. 

O sócio, o Sequeira, tinha sido o primeiros dos republicanos da terra a apoiar publicamente o golpe militar do 28 de maio de 1926. Faria depois carreira no Estado Novo dentro dos organismos corporativos. 

Esse sócio era "um dos viúvos da gripe espanhola". Mantinha uma amante, mais nova do que ele, antigo combatente da Grande Guerra. Oficiosamente,  e para salvar as aparências, a amante era a "governanta" da casa. Uma das suas criadas "de dentro", que não gostava da "nova patroa", foi meter nos ouvidos do senhor Sequeira que "a governanta andava a fazer olhinhos ao Judeu",

Numa terra pequena e de moral hipócrita, não era preciso muito para que constasse que "o Judeu" andava a infringir a Tábua dos 10 Mandamentos de Moisés, desejando a mulher do próximo…

O Sequeira era ciumento, como qualquer macho que se prezasse naquele tempo. Retorceu o farto bigode e fez questão de tirar "a prova dos noves aos dois safados". Montou a ambos uma armadilha. Aparelhou o cavalo e disse, lá em casa e na caldeira, que tinha de ir a  Lisboa tratar dos "negócios da porca da política", pelo que se iria ausentar por uma semana, pelo menos. 

Montou, cedo, a cavalo, percorreu a artéria principal da vila e perdeu-se na estrada, em  macadame, que levava à estação de comboio, já no concelho vizinho. Pela calada noite, e com a preocupação de não ser visto, deixou o cavalo nas imediações, e entrou furtivamente em casa. Foi encontrar os dois na sua cama, o "judeu" e a "governanta".

 −  Esaú, meu cabrão, nunca pensei!...

E desfechou um tiro de revólver, à queima roupa, nos órgãos genitais do sócio.

O grito de dor, lancinante, que o Esaú soltou não acordou a criadagem a quem a "governanta" tinha dado folga de um ou dois dias, na véspera de feriado do 5 de Outubro.

Por sorte e conveniência do "triângulo amoroso",  o escândalo foi abafado. O João Semana da terra, amigo dos dois, e vizinho do Sequeira, veio de pronto, com a maleta dos primeiros socorros. Tinha sido alertado pela "governanta", de roupão, em estado de histeria.

− Tiveste sorte, meu sacana. − Por um tris, não foste capado!... A bala, de pequeno calibre, passou de raspão por um dos teus tintins. Fez estragos mas ainda tens o sobresselente… Vamos lá estancar o sangramento. Pára de berrar e morde-me a toalha com força!...

O Sequeira, com as mãos na cabeça, deambulava pelo quarto, agitadíssimo, mal acreditando que podia ter morto o seu sócio e rival…

− Bem me tinham dito que não se pode confiar nos judeus!

O crime (aliás, o "duplo crime") ficou confinado às quatro paredes daquela alcova, de janelas largas e pesados cortinados. Um rápido acordo foi selado por intermediação do João Semana: desapartava-se a sociedade; o Sequeira recebia uma indemnização, em dinheiro, para reparar a "ofensa  à sua honra"; o Esaú aos costumes não dizia nada,,, enquanto a "governanta" dava sumiço logo nessa noite. 

À cautela, o médico levou o seu doente ao Hospital de São José, uns dias depois, para ouvir a opinião abalizada de um seu antigo mestre da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A boa notícia é que não havia infeção, que o ferimento iria sarar e não havia razão, em princípio,  para o homem ficar com medo de vir a sofrer de disfunção erétil… A má notícia, é que  muito provavelmente já não poderia procriar no futuro…  

Com a sua extraordinária intuição,  e o "olho de lince" (nunca usou óculos aquela mulher!), acabou por "tirar nabos da púcara" do João Semana de quem, de resto, era uma  "alegre paciente e amiga íntima", tendo ficado a par dos pormenores desta tragicomédia. 

Do alto da árvore da sua sabedoria, e com a autoridade dos seus 90 anos, a avô Gertrudes iria, uns tempos depois, dar um valente puxão de orelhas ao seu "netinho", acabrunhado e humilhado:

− Esaú, Esaú, meu filho!.. Eu bem te ensinei a nunca misturar alhos com bugalhos. De futuro, lembra-te sempre do meu conselho :  "Nunca te metas com a mulher do teu amigo, nem muito menos com a amante do teu sócio... E muito menos se ela for gentia"!

A matriarca tinha-se, entretanto,  convertido ao judaísmo ainda antes de enviuvar. Era, estatisticamente falando, a única judia da terra. E com tal constava do censo de 1930.

Mas a história do "Esaú, o Judeu" ficaria por aqui, se não tivesse entretanto acontecido , uns anos depois, a II Guerra Mundial. A matriarca, felizmente, foi poupada às notícias dos seus horrores. O ex-sócio do Esaú, esse, era agora presidente do Grémio da Lavoura local e um eufórico germanófilo. Curiosamente, já há muito havia esquecido que lutara contra os alemães em Moçambique, tendo sido ferido e feito prisioneiro em Negomano, em 25 de novembro de 1917 (conforme constava do monumento local aos heróis das guerras de África).

O Esaú,  por seu turno, continuava a emprestar dinheiro a juros e a lucrar com a sua "caldeira de queimar vinho" durante a guerra. Era, porém, um fleumático anglófilo. E nunca mais quis ter sócios em negócios. 

Ambos, até por rivalidade, acabaram por comprar, do seu bolso,  aparelhos de telefonia com altifalantes, colocados nos extremos opostos da Praça da República. Claro, com a anuência do presidente da Câmara Municipal, que era por sinal um oficial do exército, já na reserva. Era um "serviço público",  que se prestava ao povo da terra, concordou o autarca. 

A rádio ainda era um luxo para a maior parte da população. O aparelho do "Judeu" estava sintonizado para a BBC e a Voz da América. A do Sequeira para Roma e Berlim. E havia sempre ouvintes para todas as quatro emissoras: quando uma acabava, o grupo mudava-se para o canto oposto. 

Os germanófilos, mesmo assim, uma minoria, refrearam o seu entusiasmo quando as coisas começaram a correr mal para as potências do Eixo.

A celebração da vitória dos Aliados, em 7 de maio de 1945,  também foi comedida, quando a GNR recebeu ordens para dispersar uma pequena multidão que veio espontaneamente para a rua dar vivas aos vencedores. "A nossa política é o trabalho, é o trabalho!", dizia o capitão que estava à frente da edilidade, ajudando a enxotar os populares (que só podiam ser do "reviralho") bem como a banda filarmónica.

A mulher do Esaú, a "senhora professora", tinha muita pena de "não poder ter filhos"... E achava que a "culpa" era dela... O casal acabaria por receber e adotar, legalmente, um menino austríaco judeu, órfão de guerra. Uma linda criança, "lourinha e de olhos azuis". Cresceu mas não quis ser engenheiro:  formou-se em línguas na Universidade de Coimbra. Nunca manifestou interesse pelos negócios do pai adotivo. 

Entretanto, em 1973, rebenta o "escândalo do vinho a martelo" (a produção e destilação de misturas hidro-alcoólicas, com adição de açúcar). A inspeção das atividades económicas acabou por mandar a GNR selar a caldeira da firma Abraúl & Filho Lda. 

O Esaú, na altura,  também já tinha problemas com o delegado de saúde por causa das descargas para o rio e os maus cheiros da caldeira. A sua saúde mental degradou-se. Tinha 83 anos. O filho estava fora, em Angola, para onde havia sido mobilizado: comandava uma companhia de caçadores, como capitão miliciano. 

Inesperadamente a terra foi abalada com a trágica notícia do suicídio do "Judeu", numa trave alta da sua caldeira... A esposa enlouqueceu e viria a morrer em 1975.  O filho ainda veio a tempo, de Luanda, para assistir ao seu funeral.

Em 1977, o ex-capitão aliena o essencial do património da família. E fixa-se em Israel, onde funda uma empresa de guias e intérpretes de língua portuguesa. E deve ter levado com ele o famoso "mealheiro do Brasil"... 

Por volta de 1980 a caldeira, que não tivera comprador, já estava abandonada e vandalizada. Todo o recheio, em cobre, começou a ser paulatinamente roubado. Vinte anos depois o edifício era uma ruina completa, obrigando o município a intervir e a tomar posse administrativo do que restava,  bem como do terreno à volta. 

Acabou por construir-se, já no início do novo milénio, a universidade sénior. Mas nem toda a gente se atrevia a lá ir ou passar por lá, sobretudo à noite.  O sítio ficou amaldiçoado. Os idosos diziam que à noite se ouviam vozes. Era "a alma do Judeu Errante"...


© Luís Graça (2024). Quinta de Candoz, 17 de setembro de 2024.
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terça-feira, 23 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25771: Aristides de Sousa Mendes - Um dos nossos grandes que eu admiro (Carlos Silva, ex-fur mil inf, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) - II (e última) Parte: Visita ao museu da História do Holoscausto / Yad VaShem, Israel, Jerusalém, 2017

Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

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Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


1. Continuação da publicação de fotos relativas ao Aristides de Sousa Mendes (Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, 1885 - Lisboa, 1954), o cônsul de Bordéus, que, para ser fiel a Deus e à sua consciência, teve de desobedecer aos homens (neste caso, a Salazar).

São fotos do álbum d0o  Carlos Silva, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71), advogado, natural de Gondomar, régulo da Tabanca dos Melros, com 145 referências no nosso blogue, para o qual entrou em 20/7/2007.(*)

Nesta segunda parte mostram-se imagens da sua visita (em companhia da esposa e de uma irmã, fotos nº 4 e 5), ao Museu de História do Holocausto, em Jerusalém, em 2017. (Em hebraico, Yad VaShem, criado em 1953, foto nº 6).

A foto nº 7, no interior do museu é o "hall dos nomes das vítimas do Holocausto, de origem judia" (há mais de um milhão ainda por identificar).  

Na foto nº 8, a legenda diz (em inglês e hebraico): "Um envelope postal e um selo, emitidos em memória de Sousa Mendes, em Portugal, 1995. Na parte inferior do selo pode ler-se: 'Lisboa, a porta para a liberdade- com a sua assinatura salvou milhares de vidas' ".

Na foto nº 9, pode ler-se: "Aristitides de Sousa Mendes, Portugal: por sua iniciativa própria, emitiu vistos de entrada em Portugal a milhares de refugiados judeus em França". 

A entrada no museu é gratuita, mas sujeita a inscrição prévia "on line". Três portugueses figuram aqui com o titulo de "justos entre as nações": além de Aristides de Sousa Mendes (nº 264,  entrado em 1996), Carlos Sampaio Garrido (nº 11758 /2010) e Joaquim Carreira (nº 12893 /2014).

Fotos (e legendas): © Carlos Silva (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editort:

Último poste da série > 21 de julho de  2024 > Guiné 61/74 - P25768: Aristides de Sousa Mendes - Um dos nossos grandes que eu admiro (Carlos Silva, ex-fur mil inf, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) - Parte I: Casa do Passal (Cabanas de Viriato), Museu do Holocausto (Jerusalém) e capas de livros

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25150: Blogues da Nossa Blogosfera (187): "Des Gens Intéréssants", de João Schwarz da Silva (Bruxelas, nosso grão-tabanqueiro n.º 768, desde 30/3/2018) - II ( e última) Parte


Música Klezmer na casa de Clara Schwarz da Silva em São Martinho do Porto, por João Graça (violino). 7 de agosto de 2007. A mãe da Clara era russa, de Odessa, hoje Ucrânia. A Clara também formação musical superior, tocava violino. O João tocou o "Bulgar de Odessa", um tema "klezmer" clássico que a emocionou...(Tinha então 92 anos, morreria em 2016, com 101.) (LG)

Vídeo (1' 41'') / You Tube > Luís Graça 




I. Este e outros são alguns dos recursos, em suporte audiovisual, que estão disponíveis  no fabuloso blogue do nosso amigo João Schwarz da Silva (*), irmão do nosso Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2012), filho de Clara Schwarz (Lisboa, 1915  - Oeiras, 2017) e de Artur Augusto Silva (Ilha Brava, 1912- Bissau, 1983.    

A sua antiga página sobre histórias de vida de gente "interessante" (seus familiares, uns mais próximos, outros mais afastados)  passou a ter um novo endereço:

https://des-gens-interessants.blogspot.com

Eis,  a seguir, mais  alguns vídeos (em geral, em português, alguns em francês), que podem interessar os nossos leitores. Recorde-se que, em vida do Pepito e da Clara Schwarz, havia um dia de agosto em que a casa do Facho, na Praia de São Martinho do Porto, se transformava em Tabanca de São Marinho do Porto...
 
Alguns de nós tivemos o privilégio de conhecer um pouco melhor o Pepito e a sua família, na inbtimidade,    a começar pela matriarca, a dra. Clara Schwarz da Silva (durante vários anos, até à sua morte, aos 101 anos, em 2016, foi a "decana da Tabanca Grande").

Estamoa falar da famosa "casa do Cruzeiro", em São Martinho do Porto, no sítio do Facho, uma casa que o pai da Clara (e avô do Pepito), o engenheiro de minas Samuel Schwarz (1880-1953), judeu de origem polaca, lhe comprara quando ainda solteira, antes da II Guerra Mundial...

Por seu turno, o pai do Pepito, Artur Augusto Silva (1912-1983) tinha sido advogado em Alcobaça e em Porto de Mós no pós-guerra. O casal viveu em Alcobaça entre 1945 e 1949, antes de partir para a Guiné (ele, em finais de 1948 e o resto da família em 1949). Foram amigos pessoais e visitas de casa do pintor Luciano Santos (Setúbal, 1911-Lisboa, 2006), que vivia então em Alcobaça. (**)
________________

  • Apresentação do livro “La Découverte des Marranes”, Musée d’Art et d'Histoire du Judaïsme de Paris, 18 de fevereiro de 2016 (em francês)

https://www.mahj.org/fr/media/quand-le-portugal-redecouvre-ses-marranes

  • Entrevista de Clara Schwarz, José Melo e Antonieta Garcia sobre a vida e obra de Samuel Schwarz. Filme realizado pela Comunidade Israelita de Lisboa em 2004

Entrevista de Clara Schwarz por Jose Melo e Antonieta Garcia

  • A comunidade marrana de Belmonte em Portugal, por João Schwarz (em francês):

https://www.youtube.com/watch?v=xCJWe8ZPjfM&t=1s

  • Entrevista de João Schwarz sobre a doação da familia ao Tikva Museu Judaico de Lisboa

Entrevista de João Schwarz para o Museu Judaico de Lisboa

  • A cidade de Tomar, a sua sinagoga e a sua história, por Samuel e João Schwarz. Filme de Livia Parnes (em francês)

https://www.youtube.com/watch?v=UnqmXYvRiJk&t=7s

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25145: Blogues da Nossa Blogosfera (186): "Des Gens Intéréssants", de João Schwarz da Silva (Bruxelas, nosso grão-tabanqueiro n.º 768, desde 30/3/2018) - Parte I


João Schwarz da Silva
1. Mensagem do no amigo João Schwarz da Silvagrão-tabanqueiro, nº 768 (desde 39/3/2018); tem 17 referências no nosso blogue; vive presentemenente em Bruxelas: 

Data - 7 fev 2024 10:38
Assunto - O novo blogue "Des Gens Intéréssants"

Olá,  Luis

O meu site www.desgensinteressants.org acabou porque o software que eu usava (Sandvox) ja não é suportado,  o que significa que não é compatível com as últimas versões do
 IOS (pois ém  eu sou um utilizador de MAC). 
Tive portanto que efetuar uma migração para:

https://des-gens-interessants.blogspot.com

e aproveitei para alterar umas coisas e para acrescentar outras. 

De qualquer modo agradeço a dica sobre o Arquivo.pt. 


https://arquivo.pt/wayback/20230202034507/http://www.desgensinteressants.org/samuel-schwarz/index.html

Se tiveres comentários a fazer sobre esta nova página,  apita,  pois ainda estou a aprender a utilizar o Blogger.

Obrigado também pelo poste sobre as crianças austríacas (**) que,  se bem me lembro,  foram acolhidas em Portugal pela Caritas,  o que levou a abusos em série pois eles entregavam as crianças a pessoas que as exploravam. 

A minha mãe contava que em Alcobaça ela viu uma miúda loira que só falava alemão no stand de um vendedor de legumes. Ela queixava-se amargamente de maus tratos a tal ponto que a minha mãe a levou para casa onde pela primeira vez em Portugal tomou banho e conseguiu tirar a barriga de misérias. Tempos depois,  aparece lá em casa um padre enviado pela Caritas que acusou os meus pais de não terem capacidade para acolherem uma órfã. 

Nessa altura ja o meu pai tinha conta aberta na PIDE,  o que não correspondia aos critérios do Estado Novo. Moral da história, a miúda aos gritos teve que sair da nossa casa e a minha mãe ficou arrasada pois a miúda era muito gira e se sentia feliz em nossa casa.

Pouco tempo depois saímos de Alcobaça rumo à Guiné. Nota que há um filme sobre a história destas crianças, "Viagem ao Sol",  de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias. Ver o trailer aqui: 


2. Um blogue de histórias de vida de pessoas interessantes

Excerto do blogue do João Schwarz da Silva, agora alojado no Blogger (adaptado e traduzido do francês pelo nosso editor LG)

Segunda-feira, 8 de janeiro de 2024 > Porquê este blogue "Des Gens Intéressants?

(...) Há alguns anos, com a idade, quis reconstituir a vida e o contexto de vida de um certo número de pessoas da minha família que passaram por momentos difíceis ou emocionantes na sua exiostència Nenhum deles já está vivo. Um traço comum a todos elees, todos, é o facto de terem sido, em diferentes graus, vítimas das suas crenças, do seu posicionamento político ou simplesmente da sua sede de liberdade. Atravessaram o século e as guerras da época, e muitas vezes cruzaram continentes para p0oder encontrar um mundo melhor.
  • O meu bisavô Ysucher Szwarc  morreu em Zgierz durante a invasão nazi da Polónia em dezembro de 1939. 
  • O meu outro avô, Samuel Matusovitch Barbash, foi fuzilado  pelos bolcheviques durante a tomada de Odessa em 1920. Samuel teve dois filhos e duas filhas do seu casamento com Klara. 
  • Um de seus filhos,  Boris Barbash, foi para Xangai, na Chinba, onde morreu. 
  • O meu avô Samuel Schwarz foi alvo do forte anti-semitismo que reinava em Portugal (entre os anos 20 e 50)  e isso não o impediu de fazer descobertas sensacionais sobre a história e a herança judaica de Portugal. 
  • O meu pai,  Artur Augusto Silva  foi preso pelas suas ideias contrárias às do regime então vigente (o Estado Novo), cujos opositores que defendeu,  nomeadamente em Bissau, na antiga Guiné Portuguesa. Os membros da sua família, originários da Ilha da Madeira e expulsos para a Ilha Brava, Cabo Verde,  viveram numa época em que ter escravos ainda era normal. 
  • Seu irmão  Joao Augusto Silva foi um formidável fotógrafo, desenhador  e escritor. 
  • David Szwarc, filho de um irmão do meu avô Samuel, conseguiu escapar do gueto de Varsóvia enquanto a sua família permaneceu lá.
  • Um tio Alexandre Szwarc, irmão de Samuel, foi feito prisioneiro pelos russos em 1940,  e conseguiu escapar via Portugal e depois ir para o Canadá. 
  • Meu sogro, Jean Roger Chansel, que era piloto de correio aéreo, morreu num acidente no Monte Camarões, em 1953. 
  • Marek Szwarc, um dos irmãos do meu avô, judeu de nascimento, converteu-se ao catolicismo e tornou-se pintor e escultor da Escola de Paris. 
  • Tereska Torres, filha de Marek, teve que fugir de Paris na época da invasão e ocupação nazi da França em 1940 e foi uma das primeiras mulheres a juntar-se ao general De Gaule em Londres. 
  • O último (de outros que se hão de seguir) é o meu irmão Carlos ("Pepito") que, nascido em Bissau (em 1949) e aí tendo vivido toda a sua juventude, regressou à Guiné na época da independência para aí se fixar e contribuir para o novo mundo idealizado por  Amilcar Cabral.
À medida que eu tiver tempo para encontrar os documentos, fotos e outros pedaços de história,  outros personagens passarão a habitar este blogue. Para acompanhar este blog veja os seguintes links: Aqui ficam alguns vídeos realizados em momentos diferentes mas que têm como tema comum um dos membros da família ou um local (Belmonte ou Tomar) que se enquadra perfeitamente na vida de Samuel Schwarz (...)


(**) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25140: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte III: 45 crianças, refugiadas (e provavelmente judias), polacas, alemãs, austríacas e uma russa, embarcam em agosto de 1941 no "Mousinho" a caminho da América

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25140: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte III: 45 crianças, refugiadas (e provavelmente judias), polacas, alemãs, austríacas e uma russa, embarcam em agosto de 1941 no "Mousinho" a caminho da América



Legenda; "Depois de alguns dias de permanência em Lisboa e na Parede, partiram para a América do Norte 45 crianças, polacas, alemãs, austríacas, e uma russa, fugidas aos horrores da guerra. A foto mostra-nos algumas das mais pequeninas refugiadas no momento em que embarcavam a bordo do "Mousinho".






Legenda: "Um aspeto da entrada para o 'Mousinho' das 45 crianças refugiadas que há dias chegaram a Lisboa e seguiram para a América"



1. O drama dos refugiados de guerra é de ontem e é de hoje, é de todos os tempos, de todas as guerras.  Por Lisboa, última porta para a liberdade, passaram muitos refugiados durante a II Guerra Mundial.  Não se sabe como é que estas crianças chegaram a Portugal. O mais provável é terem sido acolhidas pela Comunidade Israelita em Lisboa, que mantinha uma cantinha económica, um albergue e um hospital... E entre os membros ilustres e solidários dessa comunidae, destaque-se o avò do nosso querido amigo Pepito (1949-2012), o eng. Samuel Schwarz (1880-1953), e irmáo do nosso João Schwarz da Silva, que vive em Paris e é membro da nossa Tabanca Grande.

Orfãs ?  Muito provavelmente judias (a avaliar pelo fenótipo de algumas). A "Vida Mundial Ilustrada" omite essa informação, não por  razões éticas ou de segurança, mas mais provavelmente por imposição da omnipotente e farisaica censura do regime... 

Sabemos que o regime de Salazar teve dois pesos e duas medidas em relação aos judeus. Por exemplo, em relação aos judeus com nacionalidade portuguesa, sefarditas, ou seus descendentes, na Holanda, nos Balcãs, na Turquia, na África do Norte..., muitos poderiam ter sido salvos... e não o foram...

Nesta foto, as crianças parecem  estarem  enquadradas por elementos da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), antecessora da PIDE (Polícia Internacional e Defea do Estado)...

______________

Notas do editor:

2 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25128: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte II: embarque de tropas expedicionárias para os Açores, em maio de 1941

29 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25120: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte I: embarque de tropas expedicionárias para Cabo Verde, em junho de 1941.... "Partiram alegres e confiantes"...

segunda-feira, 20 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"


A velha Universidade de Coimbra, uma das dez mais antigas do mundo. Mas há um provérbio que diz(ia): "Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra". E um outro que avisa: Salamanca a uns cura e a outros manca". Mais cáustico, o terceiro denuncia: "Em Valência muitas fraldas,  pouca ciência". 



1. Continuação da publicação de uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que podemos tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença e os prestadores de cuidados de saúde, mas também a sobre a proteção e a promoção da saúde,  incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

Por razões de força maior, ele está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores, e nomeamente com o sempre fiel e incansável Carlos Vinhal, para ir mantendo  todos os dias a "montra do blogue"  atualizada e renovada. 

São textos que foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de  clinica geral e famiiar,  administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança,  educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Espera-se,  ao menos, que a  leitura destes textos desperte algum interesse e tenha algum  proveito para os nossos leitores, lusófonos... Incluindo os medicos: afinal, e parafraseando um deles, o Abel Salazar (perseguido pelo  Estado Novo) mal vai o médíco que só sabe de medicina...
 LG.


Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'

(Continuação) (*)

3. Estereótipos em Relação aos Médicos e à Medicina

3.1. O "mata-são"

A descrença em relação aos médicos e aos seus meios de diagnóstico e de terapêutica traduz-se em ditos mais ou menos jocosos como "Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro" (Quadro VI) ou, noutra variante (tendo porventura como objeto o cirurgião), "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata".

Aos olhos do homem comum, a razão de ser e de existir dos médicos é a doença que, por seu turno, representa, para eles, um verdadeiro "celeiro" ou um "bornal" (ou ainda "gamela", uma imagem típica do mundo rural, significando, neste contexto, fonte de rendimento, de enriquecimento - muitas vezes ilícito - e de saciedade).

O vil metal intromete-se subrepticiamente na relação terapêutica, ao insinuar-se que:
  • "A desgraça de uns é a fortuna de outros";
  • "De São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal";
  • "Mostarda na horta, médico à porta";
  • "Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou; e quando morre, foi o médico que o matou";
  • "Quando os doentes bradam os médicos ganham".

Daí o aviso aos incautos, para que não se metam nem com o homem de leis (o advogado) nem com o praticante da arte médica (o "mata-são#):
  • "Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são".
A incerteza quanto ao diagnóstico e ao prognóstico dos médicos (e, portanto, a falta de confiança na medicina, no passado) está ilustrada em ditos como "Emenda de jogador e prognóstico de médico serão o que for" ou "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não" (Quadro VI), muito embora se trate de dois provérbios de raiz mais erudita do que popular.
Hipócrates  (460-377 a.C.) como Galeno (129-199 d.C.)
f oram, praticamente até ao Século XVIII, o alfa e o omega da arte de curar.

A propósito, refira-se que tanto Hipócrates como Galeno foram as duas grandes autoridades do conhecimento médico que herdámos da Antiguidade Clássica e para cuja preservação e divulgação até à Renascença muito contribuíram os arabistas (judeus, árabes e persas que traduziram os originais gregos para árabe e para latim).

Daí a referência, por ex., a Avicena (980-1037): "Avicena e Galeno trazem a minha casa o bem alheio". Recorde-se que o seu Cânone da medicina (ou inventário geral das doenças do ser humano) foi um dos tratados que marcaram o ensino e a prática médicas até muito para lá da Renascença.

A experiência da negligência médica e do erro clínico ('efeitos adversos', como se diz hoje), por seu turno, é documentada através de ditos,  espirituosos uns, sarcásticos outros, que ainda hoje nos chocam pela sua crueza (Quadro VI):
  • "Com o que sara o fígado, enferma o braço";
  • "Erros médicos a terra os cobre" ou, noutra versão, "O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra";
  • "Guarde-nos Deus do físico esperimentador (sic) e de asno ornejador";
  • "O bom médico é o do terceiro dia";
  • "O melhor médico é o que se procura e se não encontra";
  • "Pior é ter mau médico que estar enfermo";
  • "Salamanca a uns sara e a outros manca";
  • "Se tens físico teu amigo manda-o a casa do teu inimigo".
Salamanca era famosa, no Século XVI, pela sua escola médica, sendo muito procurada por estudantes portugueses (Lemos, 1991; Mira, 1947). Nela se formaram (ou doutoraram) nada menos do que dois dos nossos três maiores médicos até ao Século XVIII, todos aliás de origem hebraica e obrigados a refugiarem-se no estrangeiro por causa da Inquisição: referimo-nos a Amato Lusitano (1511-1568) e a Ribeiro Sanches (1699-1782).

Em todo o caso, era fraca a reputação da universidade, aos olhos da gente comum (Quadro VI):
  • "Mais vale experiência que ciência";
  • "Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra";
  • "Mais vale um burro vivo do que um doutor morto";
  • "Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência".
O médico (ou físico, mais tarde facultativo) faz parte, de resto, da vasta galeria das figuras vicentinas. Gil Vicente devia conhecer bem o meio profissional da medicina a ponto de escrever um Auto dos Físicos (1524) onde caustica a classe médica da época por causa da sua linguagem esotérica e da sua crença na astrologia. Como também conhecia o Hospital Real de Todos os Santos onde seria representado, pela primeira vez, o Auto da Barca do Inferno (1517), perante a Rainha Dona Leonor, sua protectora.

A sátira à medicina é, aliás, um tema recorrente na literatura europeia da época (por ex., Molière e Boileau, em França) como até na própria pintura. Na cidade holandesa de Leiden, no museu de Boerhaave (o professor de quem o nosso Ribeiro Sanches foi um dilecto discípulo), o visitante tem a oportunidade de observar um espantoso painel dum pintor holandês anónimo do Séc. XVII, The four guises of the physician (Os quatro rostos  do médicos). 

Visto pelos olhos do doente (um burguês rico) e da sua família, o médico vai assumindo a forma de diferentes personagens (ou rostos):
  • No momento de aflição, ele é o salvador, representado pela figura de Cristo (1) , enquanto examina um boião com as águas (urina), rodeado pelos seus assistentes e tendo aos pés uma panóplia de instrumentos cirúrgicos;
  • Após a recuperação do doente, o médico transforma-se primeiro em anjo (2) para surgir depois sob a forma de um vulgar ser humano (3);
  • Por fim, no último quadro, o doente acaba por morrer: enquanto a sua alma se liberta do corpo, o médico, em primeiro plano, regressa para reclamar os seus honorários, desta vez vestido de diabo (4) (Graça, 1996)


Quadro VI — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o médico, a medicina e a ciência

Objeto

Provérbio

Anato-mia/ Corpo

  • "Anda em capa de letrado muito asno disfarçado"

  • "Antes burro vivo que doutor morto" (Séc. XVIII)

  • "Com dinheiro, língua e latim, vai-se do mundo até ao fim"

  • "Com latim, rocim e florim andarás mandarim"

  • "De livro fechado não sai letrado"

  • "Discípulo, com cuidado, e mestre, bem pago"

  • "Doutor da mula ruça"

  • "Em casa do letrado tanto se paga de pé como sentado"

  • "Mais vale experiência que ciência"

  • "Mais vale um ano de tarimba que dez de Coimbra"

  • "Mais vale um burro vivo do que um doutor morto"

  • "Mascarado de doutor anda por aí muito burro zurrador"

  • "Moça que casa com bacharel não tem quartel"

  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"

  • "O saber não ocupa lugar"

  • "Quem ler leia para saber; quem souber saiba para obrar"

  • "Um burro carregados de livros é doutor"

Físico/ Médico

  • "A crença dos médicos que falta nos sãos sobeja nos doentes"

  • "A desgraça de uns é a fortuna de outros"

  • "A despeito dos médicos viveremos até morrer"

  • "A doença é o celeiro do médico"

  • "À falta de médico não morre o doente"

  • "Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade" (Séc. XVII)

  • "A médico, confessor e letrado nunca enganes"

  • "Aos trinta anos quem não é tolo é médico"

  • "De médico e de louco todo mundo tem um pouco"

  • "De médico, engenheiro e louco todos temos um pouco"

  • "De poeta, médico e louco cada um tem um pouco"

  • "Deus, assim como dá a doença, dá o médico"

  • "Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro"

  • "Deus é que cura e o médico leva o dinheiro"

  • "Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são"

  • "Do São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal"

  • "É médico ou pregador de dúzias"

  • "Emenda de jogador e prognóstico de médico serão o que for"

  • "Enfermo paciente faz o médico cruel"

  • "Erros de físicos a terra os cobre"

  • "Erros de médicos a terra os cobre"

  • "Guarde-nos Deus do físico esperimentador e de asno ornejador" (Séc. XVI)

  • "Médico novo e puta velha, todos gostam de experimentar"

  • "Médico velho, advogado novo"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência"

  • "Mostarda na horta, médico à porta"

  • "Não há melhor médico do que o fiel amigo"

  • "Nem com cada mal ao médico, nem com cada trampa ao letrado"

  • "O bom médico é o do terceiro dia"

  • "O médico deve ser prudente, o enfermo paciente e o criado diligente"

  • "O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra"

  • "O médico é o pai da crença"

  • "O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão"

  • "O melhor médico é o que menos fala e mais observa"

  • "O melhor médico é o que se procura e se não encontra"

  • "O melhor médico é, por vezes, o pior doente"

  • "Pior é ter mau médico que estar enfermo"

  • "Por causa do fedor ninguém vai ao doutor"

  • "Quando é de morte o mal, não há médico para curar tal"

  • "Quando o doente diz ai, o físico diz dai"

  • "Quando o doente diz ai, o médico diz dai"

  • "Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou;  e quando morre, foi o médico que o matou"

  • "Quando o médico é piedoso é o doente perigoso"

  • "Quando os doentes bradam os médicos ganham"

  • "Quanto mais médicos, mais moléstias"

  • "Quem sempre traz má cor não é médico nem doutor"

  • "Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo"

  • "Serigaita sã não precisa médico"

  • "Tratem-nos à moderna, que eles morrem à antiga"

  • "Um médico cura, dois empatam, três matam"

Medi-

cina

  • "A vida é curta e a arte é longa" (1);

  • "Avicena e Galeno trazem a minha casa o bem alheio" (Séc. XVII)

  • "Com o que cura o fígado adoece a bolsa"

  • "Com o que Pedro sara Sancho adoece"

  • "Com o que sara o fígado, enferma o braço" (Séc. XVII)

  • "Doença bem tratada poucas vezes é demorada"

  • "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não"

  • "Mais matou a ceia que sarou Avicena"

  • "Mais matou o céu que sarou Avicena"

  • "Mal com mal se cura"

  • "Mastigar marmelada para os tísicos"

  • "O bom remédio amarga na boca"

  • "Quem tem doença abra a bolsa e tenha paciência"

  • "Salamanca a uns sara a outros manca"

  • "Saúde o come que não boca grande"


(1) Aforismo hipocrático: referência à arte de curar arte de curar


Os próprios médicos satirizavam certas práticas e crenças dominantes , como por exemplo o uso e o abuso da uroscopia (exame das águas ou urina), ainda largamente difundida entre nós em meados do Séc. XVII a avaliar por este trecho, em verso e em castelhano, de Domingos Pereira Bracamonte (1606-1658), médico de Amarante, que acusa os "medicastros [ médicos charlatães ] urináuticos" (sic) de enganar os pobres doentes:

(...) porque desenganara

Tanta rustica gente que enganada

Piensa que en la urina está cifrada

De Esculápio la sciencia

Y en un canuto solo


Oraculos de Apolo

Y sin mas relacion de su dolencia

Por bien poco dinero

Quiere que sea el medico echicero

Culpa de medicastros urinauticos

Que hipocritas seran, mas no hippocraticos

Bracamonte (1642)
 



3.2. "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo

Em traços físicos e simbólicos, o médico é descrito como "velho", enquanto o cirurgião é "novo" e o boticário, "coxo". Mas mesmo que a medicina seja inútil ("Ciência é loucura se o bom siso a não cura"), o médico sempre é um letrado, o único aliás com formação universitária (...e "ao letrado não o tenhas enganado").

É claro que o prestígio do médico está mais relacionado com a idade e os longos anos de estudo ("Aos trinta anos quem não é tolo é médico") do que com o saber livresco ("Quem ler leia para saber; quem souber saiba para obrar") e com a frequência da universidade ( "Mais vale um ano de tarimba que dez de Coimbra" ) (Quadro VI).

No Séc. XIV bastava saber ler e escrever e pouco mais para se ter acesso à Universidade:

Com três anos de aproveitamento, era-se bacharel; o bacharelato (do latim bacalaureatus, "coroado de louros com bago") era, pois, o primeiro grau académico;

Com mais dois ou quatro, conforme os cursos, era-se licenciado, detentor de licentia docendi ubique, ou seja, licenciatura reconhecida em toda a cristandade;

Só ao fim de muitos anos - já na casa dos trinta, no caso da Teologia -, é que se atingia o cume da pirâmide do saber, o grau de doutor ou mestre, não sendo muito clara a distinção entre um e outro título académico (O termo original magister dá lugar a doutor).

No limiar do Séc. XVIII, a um médico, "para chegar a curar" - no dizer do Doutor Frei Manuel de Azevedo (c. 1600-1672) (cit. por Pina, 1938.21) - seriam necessários "treze anos de estudo, com três ou mais exames muy apertados", assim discriminados:
  • "Quatro anos para bem saber o Latim, delle o examinam para depois entrar na Filosofia, nesta gasta ao menos tres annos, fazendo no discurso delles diversos actos de Conclusões";
  • "No fim o examinarão com todo o aperto, & achando-o habil, lhe dão grau de bacharel em Filosofia" (No total, sete anos de ensino preparatório, dando acesso à Faculdade de Medcina);
  • Com este [ bacharelato ] entra a aprender medicina, nella cursa quatro anos, & nelles com diversos actos de Conclusões, que defende";
  • "No fim de todo este tempo o examinarão apertadissimamente todos os Medicos Doutores da Universidade";
  • Uma vez aprovado, fazia o equivalente ao actual internato geral hospitalar, "onde aprenderia as enfermidades e os pulsos durante dois anos" (Ou sejam, seis anos de ensino pré e pós-graduado de medicina) (Itálicos meus).
Em resumo, aos 23 ou 24 anos era-se médico, o que para a época era já uma idade provecta (se consideramos a baixa esperança média de vida, à nascença, dos portugueses).. Daí também o natural despeito dos físicos em relação aos cirurgiões:

"Como poderà hum Cyrurgião, que mal sabe ler, & escrever, com hum ano, ou pouco mais, que assistio no hospital, aprendendo só a curar feridas e chagas, como poderá curar enfermidade alguma" ?, pergunta Manuel de Azevedo (Itálicos meus).

Já na altura, o diagnóstico do doente (o "conhecimento do pulso") era um acto médico por excelência:

"Em toda a medicina não ha cousa mais dificultosa, que o conhecimento do pulso. E ha tanta ignorância popular, que aos barbeiros, & cristaleiras se dão os pulsos, para lhos tomarem & lhes dizerem se tem febre grande, ou pequena", comenta Azevedo (cit. por Pina, 1938. 22).

"E peyor he, que se dous Medicos disserem ao enfermo, que não tem febre, & vier o barbeiro, ou a crystaleira [ que ministrava clisteres ] a dizer que a tem, lhe dão mãyor credito, que aos ditos Medicos".

De qualquer modo, qual era o sentido de provérbios como "Aos trinta anos quem não é tolo é médico" ou "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"?

Numa amostra de 15 médicos portugueses que viveram entre 1501 e 1859, e para os quais dispomos de informação biográfica, apurámos os seguintes dados que, no mínimo, são curiosos e podem revelar algumas tendências sobre o desenvolvimento histórico do ensino e do exercício da medicina em Portugal (Quadro VII):

Neste período os médicos viviam em média 66,3 anos (Mínimo: 50; máximo: 83), seguramente mais tempo do que a esperança média de vida da população portuguesa;

Acabavam o curso de medicina aos 24,3 anos (Mínimo: 18; máximo: 29);

No período compreendido entre 1523 e 1717, antes portanto da reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772), a idade média de conclusão do curso de medicina seria mais baixa , andando nos 22,7 anos (Mínimo: 18; máximo:26) (n=8);
  • Depois da reforma pombalina, e no período entre 1787 e 1814, a formação dos médicos terminava por volta dos 26 anos (em média) (n=7);
  • Um terço, pelo menos, dos médicos da amostra era de origem cristã-nova e teve problemas com a inquisição (entre eles, estão os nossos médicos mais notáveis do Ancien Régime como, por exemplo, Zacuto Lusitano, Jacob Castro Sarmento ou Sanches Ribeiro);
  • Quatro dos 15 médicos estudaram em Espanha (nomeadamente em Salamanca).
  • Pelo menos até à Renascença, os físicos eram classificados no grupo social, especificamente urbano, dos que "usa(va)m dalgumas artes aprovadas e mesteres" (D.Duarte, O Leal Conselheiro).
  • Os mesteres ou artesãos também eram conhecidos como oficiais mecânicos, distintos todavia dos homens de artes aprovadas que já exerciam claramente uma actividade liberal (caso do jurista e do médico).
Uns e outros pertenciam ao terceiro estado (o povo), donde pouco a pouco se começam a destacar, com a criação e a expansão da universidade, os letrados, bacharéis ou doutores:
  • "Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade";
  • "Com dinheiro, língua e latim, vai-se do mundo até ao fim"
  • "De livro fechado não sai letrado";
  • "Discípulo, com cuidado, e mestre, bem pago";
  • "Em casa do letrado tanto se paga de pé como sentado";
O termo físico, por que eram conhecidos os médicos na Idade Média (em inglês physician, que aparece entre 1175 e 1225), tem, a ver com o facto da medicina, a partir do Séc. IX, ter passado a ser considerada pelas escolas monásticas uma arte liberal (a oitava), a seguir à gramática, a retórica e a dialéctica (que formavam o trivium) e da aritmética, da geometria, da música e da astronomia (que constituíam o quadrivium).

A medicina, integrada na Física, passou a ser ensinada no âmbito do quadrivium.

O papel da universidade, depois da reforma joanina de 1537, era sobretudo o de formar gente que iria depois engrossar as fileiras da burocracia régia, e gerir os negócios do reino e do império. Por outro lado, começava a tornar-se evidente a importância que já era então atribuída à instituição universitária como forma de ascensão social. Daí a maior procura do direito:
  • Mais de 87 % do total das matrículas, neste período de 1573 a 1771 respeitam aos cursos jurídicos (cânones e leis);
  • Contra apenas 6,8% de medicina e 5,3% de teologia (Graça, 1996).
D. Francisco de Lemos que teve um papel importante na reforma da universidade de Coimbra e foi seu reitor, antes e depois de 1772, dava aliás conta do pouco prestígio social que ainda então tinha a Faculdade de Medicina, ao escrever, em 1777, que era "pouco frequentada por quem tem meios de preparar-se para outros destinos mais bem reputados no conceito dos Povos, e pela maior parte abandonada a estudantes mizeraveis e pobres" (Lemos, 1777, cit. por Pina, 1937.7, itálicos meus).

Na época, o estatuto social do estudante de Coimbra media-se pelo número de criados e de cavalos (ou mulas) ao seu serviço. O estatuto social e económico do médico estava ainda longe de ser elevado, o que é bem patente no ditado que diz :

"O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão".

Por fim, o médico é homem: com uma nuance mais burguesa do que fradesca, é conveniente lembrar que "não provam bem as senhoras que se metem a doutoras".

De facto, a universidade (criada entre nós em 1289) era interdita às mulheres, de tal modo que será preciso esperar mais de 600 anos (!) até que apareça a primeira mulher portuguesa diplomada em medicina (Amélia Cardia dos Santos Costa, em 1891, não ainda pela Universidade mas pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que fora criada em 1836).

A arte de curar era, pois, predominantemente masculina, pelo menos nas principais cidades do reino. Quanto aos médicos, letrados e aprovados, esses eram exclusivamente homens. O mesmo se passava com os cirurgiões (Quadro VIII, próximo poste) e os barbeiros-sangradores.

Sabe-se, entretanto, muito pouco sobre a assistência prestada às populações dos campos (e, em particular, às mulheres camponesas). Nos sítios mais recônditos, elas não tinham outra alternativa senão recorrer a bruxas, curandeiras, mezinheiras, parteiras ou aparadeiras, comadres ou simples curiosas, da aldeia ou das redondezas (Joaquim, 1983).

Há toda uma medicina tradicional, de raiz popular, de que as mulheres se tornaram as fiéis depositárias e que exerceram, com algum proveito mas não sem riscos, já que na época era bem pesada a mão da justiça do rei e da Igreja.

Nos arquivos das chancelarias régias, de D. Manuel I a D. Filipe III, há curiosos documentos sobre a prática da arte de curar por parte de mulheres. Reis (1996) identificou uma dúzia de mulheres que exerciam, para todos os efeitos, a medicina, embora sem autorização legal.

O conteúdo dessas cartas régias é muito interessante, para quem quiser conhecer a terminologia nosológica da época, e sobretudo perceber melhor a jurisprudência relativa ao exercício das "artes médicas" e ao seu controlo por parte do poder régio e da própria corporação médica.

Na maior parte dos casos (12) trata-se de concessão de licenças para praticar a cirurgia (5) ou para tratar do mal das boubas (sífilis) (2), do mal da raiva (1), da doidice (1) e de outras enfermidades (2).

Numa dessas cartas, com data de 18 de Setembro de 1611, o rei Filipe II concede licença a Ana Marques, residente em Ceira, no termo de Coimbra, para "no dito concelho de Seira e seus arredores, não sendo para a parte de Coimbra nem onde haja fisico letrado ou examinado" [ poder ] tratar de certas enfermidades com alguns remédios que ela aprendera e sabia", depois de tais remédios bem como a requerente terem sido examinados pelo físico-mor, Doutor Baltasar de Azeredo, catedrático de prima jubilado na Universidade de Coimbra". Além da restrição territorial, a requerente não podia "entermeter-se em mais coisa alguma nem ordenar de beberagens nem outras mezinhas sob pena de se proceder contra ela" (cit. por Reis, 1996).



Quadro VII - Idade de conclusão do curso de medicina, segundo uma amostra dos médicos portugueses do Séc. XVI ao Séc. XIX (n=15)


Nome do médico

Período de vida

Idade em que se formou

Antes da Reforma Pombalina  da Universidade  (entre 1523 e 1717)

Abraão Zacuto Lusitano1575-1642De origem hebraica, fez estudos de filosofia no Colégio das Artes, em Coimbra, e medicina em Espanha, onde se doutorou aos 21 anos pela Universidade de Siguenza. Morreu em Amsterdão. Era neto do grande Abraão Zacuto (1450-1525), médico e astrónomo no tempo de D. João II e D. Manuel II.
Amato Lusitano1511-1568João Rodrigues Castelo Branco, mais conhecido por Amatus Lusitanus, licenciou-se em Salamanca por volta de 1529 (com 18 anos). De origem hebraica, refugiou-se em Antuérpia  em 1533 ou 1534. Terá morrido de peste.
Ambrósio Nunes1529-1611Filho de um físico-mor do Reino, terminou o curso em Coimbra em 1555 (portanto, com 26 anos). Foi professor em Salamanca. Lente de "vacações" (1555), é autor de Enarrationum in priores Aphorismorum Hippocratis cum paraphrasi in Comentaria Galeni tomus prior (Coimbra,  1601).
António Ribeiro Sanches1699-1782Oriundo de família de cristãos-novos, de Penamacor, estudou filosofia e medicina em Coimbra, entre 1716 e 1719. Aos 25 anos obtinha o grau de doutor em medicina por Salamanca. Em 1726 saiu definitivamente do país.
Francisco da Fonseca Henriques1665-1731Também conhecido pelo Dr. Mirandela, terminou o curso de medicina em Coimbra, com 19 anos  (1684), depois de estudar as primeiras letras na sua terra natal (Mirandela). É autor do Aquilógio Medicinal (1726), considerado o primeiro trabalho sistemático sobre a riqueza hidrológico do Reino.
Garcia de Ortac.1501-1568Filho de cristão-novo, natural de Castelo de Vide, frequentou as universidades de Salamanca e de Alcalá de Henares, por volta de 1515-1523 (Ter-se-á, portanto, licenciado em medicina aos 22 ou 23 anos). Só em 1526 obteve autorização do físico-mor para exercer medicina.
João Marques Correia1671-1745Estudou Humanidades e Filosofia em Évora e Medicina em Coimbra onde recebeu o grau de mestre em Artes (1692) e se formou-se em 1696 (com 25 anos).É autor do Tratado Physiologico médico-physico e anatómico da circulação do sangue.
Jacob de Castro Sarmento1691-1762Depois de obter o grau de mestre em Artes na Universidade de Évora (1710), estudou medicina em Coimbra. Conclui o curso em 1717 (com 26 anos). Cristão-novo, fixou residência em Londres em 1721 e aí morreu.

Depois da Reforma Pombalina da Universidade (entre 1787 e 1814)

António de Almeida1767-1839Nascido em Coimbra, matriculou-se no curso de medicina em 1787, que conclui com 24 anos (1791). Foi médico do partido da Câmara de Penafiel.
Francisco Inácio dos Santos Cruz1787-1859Matriculou-se em 1804 em Filosofia e no 1º ano de Matemática, da Universidade de Coimbra, como preparatório do curso de Medicina que terminou em 1814 (com 26 anos).
Francisco Xavier de Almeida Pimenta1775-1839Terminou o curso de medicina de Coimbra em 1799 (com 24 anos).Foi deputado às cortes em 1820 e zeloso propagandista da vacina.
Joaquim Xavier da Silva1778-1835Estudou medicina em Coimbra, onde se doutorou com 26 anos (1804). Publicou um tratado de higiene militar.
Jorge Gaspar de Oliveira Roldão1783-1833Estudou em Coimbra. Recebeu o grau de bacharel em 1808 e formou-se no ano seguinte (com 26 anos). Médico de província.
José Lino dos Santos Coutinho1784-1836Nascido no Brasil, concluiu o curso de Medicina de Coimbra em 1813 (com 29 anos). Foi político e professor na Escola de Medicina da Baía.
José Pinheiro de Freitas Soares1769-1831Frequentou, em Coimbra, as Faculdades de Filosofia e de Medicina. Formou-se na primeira em 1793  (com  24 anos) e na segunda em 1797 (com 28 anos). Autor do Tratado de Polícia Médica.

Fonte: Adapt. de Lemos (1991) e Mira (1947) (entre outros)

Bibliografia a publicar no fim desta série temática

(Continua)
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Nota do editor: