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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22628: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VI: Contuboel (mai-set 1965), com gozo licença de férias nos Açores (de 24/8 a 25/9/1965) onde se foi casar...


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)  > "A necessidade faz o órgão": com três pirogas, o Beja Santos improvisou  uma jangada, sem qualquer apoio técnico do BENG 447,  e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem (direita) do Rio Geba Estreito  e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão na sede do batalhão,  o BCAÇ. 2852, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"... Como se fossem piores que  os corsários bérberes que infestavam as costas  algarvias no saudoso tempo do reino de Portugal e dos Algarves.

Três anos antes, o pessoal da CCAÇ 800 que chegou de viatura, de  Bissau, via Mansoa, até à margem direita do Rio Geba Estreito. frente a Bambadinca, deve ter utilizado a mesma engenhoca, uma jangada improvisada para cambar o rio e prosseguir viagem, via terrestre, até Bafatá e depois Contuboel. No seu "diário", o Cristóvão de Aguiar diz que esta simples operação de cambança levou "dois dias e duas noites" (25 e 26 maio de 1965). Chegaram a Bambadinca a 24 e a Contuboel a 27.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). 
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)




Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar



(Continuação)

Contuboel, 27 de Maio de 1965

Demorámos dois dias e duas noites para atra­ves­sar o rio Geba com todo o nosso material de campanha. Não tivemos outro re­médio senão comer rações de combate e beber água meio choca e bi­chen­ta. Dor­mi­mos, isto é, atravessámos as duas longas noites com muita mosquitada a atazanar os miolos e a pele. E não houve repelente que a afastasse. 

Chegámos ao que vai ser a sede da nossa companhia anteon­tem ao princípio da noite. Estavam aqui apenas nove homens e um furriel miliciano, que comandava a re­s­pectiva secção de armas pesadas. 

Com a guerri­lha a apertar cada vez mais, os chefes desta guerra estão a guarnecer melhor certas posições-chaves. Fui cum­primentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-semi­narista, e dois comerciantes − um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e res­pectiva consorte; e um li­banês, tam­bém casado, cujo estabelecimento fica em frente da messe. 

Ambos os tra­ficantes não se podem ver um ao outro, como mandam as re­gras da boa vizi­nhan­ça. Não lhes dei grandes con­fianças, sobretudo ao chefe de posto que, para se mostrar valente diante de mim, es­bo­feteou um cipaio que se não levantou à minha passagem na varanda do posto. Cha­mei-lhe a atenção para o facto e ele pare­ceu-me que não ficou nada satis­feito, pelo menos senti-o pelo olhar, que agarrei pelo cabo e devolvi ao seu dono.


Contuboel, 1 de Junho de 1965

PROMESSA

Trago à cabeça
Um cesto de rimas
Que é uma promessa
De novas vindimas...

Meu Avô era tanoeiro:
Fazia pipas e selhas,
Tonéis, dornas e barris...
Meu Pai é serralheiro:
Forja foices e relhas,
Machados e picare­tas...
Somente eu pouco fiz:
- Apenas versos e tretas!



Camamudo, 12 de Junho de 1965

Vim a este destacamento de Bafatá en­con­trar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comis­são. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de cam­panha, im­plan­tado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atrevia a entrar ou a sair. 

Vie­ram de lá todos bem marcados. Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encon­tro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolu­cio­nário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase ins­tan­tanea­mente. Quando des­pertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Ba­fatá, na sede do batalhão.


Contuboel, 22 de Junho de 1965

Acabei de riscar a sexagésima cruzinha no ca­len­dário. É uma espécie de desobriga que pratico todos os dias, à noite, antes de me dei­tar. Ainda faltam tantas centenas, meu Deus! Será que chego ao fim? Comprei doze livros de Aquilino Ribeiro num estabelecimento de Bafatá. Cada um custou-me qua­renta e cinco escudos. Tenho muito que ler, se para tal tiver cabeça.


Contuboel, 29 de Junho de 1965

Fui com o meu pelotão reforçar a com­pa­nhia de Fajonquito numa operação de dois dias ao mato do Caresse. Chegámos ontem. Ao descalçar as botas de lona e tirar as peúgas grossas, encardidas, vieram-me pe­daços de pele a elas agarrada. 

Anteontem, a um domingo logo de manhã, ainda an­tes da missa na minha freguesia, na Ilha, onde assisti, durante a emboscada, à en­trada e à saída para lhe receber o sorriso e ficar comungado para o resto do dia, tive então o meu baptismo de fogo. 

Foi cerca de uma hora e meia (o tempo da missa ar­rastada do senhor padre Joaquim) que estive debaixo de metralha constante. Não vi nenhum ini­migo, mas senti-lhe a presença. Fumei quase um maço de cigarros Sa­gres e bebi toda a água do meu cantil e a do meu guarda-costas. 

Os velhinhos da companhia a que nos juntámos, a quatro meses apenas do fim da comissão, estão tão tarimbados nisto, que nem fizeram grande caso do tiroteio, nem sequer respon­deram. A dada altura, piraram-se no en­calço do capitão, para uma clareira onde já não havia perigo de maior. E fiquei mais o meu pelotão ainda durante algum tempo na mira dos guerrilheiros, mas não houve nem mortos nem feridos.


Contuboel, 25 de Julho de 1965

O TEU ANIVERSÁRIO

Neste dia dos teus vinte e um anos,
Dependurei uma violeta
No meu lembrar-te.
Queria oferecer-te açafates
De ternura
E beijos buliçosos
Como estes pássaros
Nos fios de alta tensão...

Lembrei-te
Como quem se demora
No beber uma memória antiga
Em fotografias desmaiadas...


O meu recordar-te
Foi um cortejo de martírio
Ao longo de canadas íntimas
Do saber-te cada vez mais longe,
Fictícia,
E no entanto perto,
Tão aconchegada ao meu peito,
Que deixaste de ser fora de mim...



Bissau, 23 de Agosto de 1965

Parto amanhã para Lisboa em gozo de férias. Vou dar um passo importante na vida e, se calhar, não estou para ele preparado nem ama­du­re­cido. Que se lixe. Preciso urgentemente de um descendente que me pro­longue, no caso de vir a morrer com um tiro na cabeça um dia destes nesta desal­mada guerra de nervos e do resto. 

O livrinho que publiquei não vai dar boa conta de mim [. "Mãos vazias", poesia, 1965]. Precipitei-me. Já tinha plantado uma árvore. Tem apanhado bordoada da críti­ca, que até ar­repia. Vide Pinheiro Torres, no Diário de Lis­boa, e Jaime Gama, no Açores

Quanto ao as­sunto que me leva de viagem, devia es­pe­rar mais algum tempo para depois ler, com outra reflexão e outro descanso, Um Casamento do Pós-guerra, de Carlo Cas­sola.

Pico da Pedra [, terra natal do escritor, ilha de São Miguel] , 19 de Setembro de 1965

Domingo de procissão de Nossa Se­nho­ra dos Prazeres. Durante o almoço familiar, estalejaram alguns foguetes, anun­ciando o le­vantar a Deus da missa da festa. Quando dei por mim, estava deitado no chão, de­baixo da mesa. O que são os reflexos condicionados! Na guerra, temos de actuar o mais rápido possível: mal se ouve um tiro ou qualquer detona­ção, tem uma pessoa de se ati­rar logo para o chão, caso contrário.


Pico da Pedra, 23 de Setembro de 1965

SONS DE DESPEDIDA

No magoado cantar desta chuva,
Es­cuto tristes sons de despedida:
- Amargurados prantos de viúva
Suplicando que o amante torne à vida.

Partir só de braços livres, sem destino,
Como esta chuva caindo sem fim:
- Ter um barco e um sonho de menino,
Que o mar já o trago dentro de mim.

Partir é soltar a tranca da porta
Desta alma que vive quase morta
Na jaula duma luta que se não cansa...

Se o mar que me deixaram em herança,
Me desse uma resposta, uma esperança,
Eu fingiria um tiro na lembrança...


Lisboa, 25 de Setembro de 1965

Acabaram-se as tréguas. Vou de novo de re­gresso a Bissau, sem ânimo de qualidade nenhuma. Quando chegar ao mato, vão de­certo al­guns estranhar que tenha voltado. O sargento Cabaço dizia, em segredo, an­tes de eu vir a férias, que o alferes Aguiar nunca mais poria os pés no teatro de guerra, com certeza iria desertar. E teimava que o sabia de fonte limpa e segura.


Contuboel, 29 de Setembro de 1965

EU E A NOITE

Abro as mãos
E a noite poisa,
A noite pesa-me.

Trago a noite
Vestida
Muito justa
No corpo todo.

Se fecho as mãos,
Não esmago
A noite,
Porque a noite
É tudo
E eu sou
A própria noite.

A noite não se anula
No fogo das estrelas...
Nem a guerra se cala
Na boca das ar­mas.

Nas mãos estendidas,
O peso da noite
E um vendaval de tosse
Na casa­mata do peito...

__________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

domingo, 3 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21731: Fotos à procura de... uma legenda (136): Pistas de leitura para um casamento Balanta-Mané, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)


Foto nº 1 >Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > "Um casamento em Bigene"... 

Fotos (e legenda): © António Marreiros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


António Marreiros

1. Respondendo pronta e generosamente  ao desafio do nosso editor LG ("Fotos a precisarem da ajuda de etnólogo ou, talvez ainda melhor, do 'conselho sábio' do nosso assessor para os assuntos etnolinguísticos, o Cherno Baldé que 'firma' em Bissau"), o nosso amigo e colaborador permanente, sacrificando o seu descanso, acaba, às 13h00 de hoje, de fazer o seguinte comentário ao poste P21729 (*) . 


O nosso editor agradece ao Cherno Baldé: mais do que um longo comentário, trata-se  de uma verdadeira lição de etnografia guineense, à volta do tema (fascinante) do casamento. Voltamos a reproduzir, embora em formato mais reduzido, as belíssimas imagens captadas pelo nosso camarada António Marreiros, um algarvio que vive há muito no Canadá e que, noutra encarnação, foi alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74.(*)


Legendas para as fotos de um casamento balanta-mané, em Bigene, em janeiro de 1973





A Guiné-Bissau é um pequeno país, um enclave territorial que, paradoxalmente, alberga um número de etnias mais diversificado que qualquer dos seus vizinhos mais próximos e maiores em extensão territorial.  

Foto nº 2 
E o Sector de Bigene (oficialmente a sede do Sector, mas que, devido às dificuldades de acesso, está a perder este estatuto, pouco a pouco, a favor de Ingoré, cidade situada na via principal de acesso a S. Domingos e que dá acesso também à cidade senegalesa de Ziguinchor), é habitado maioritariamente pelo grupo Balanta-Mané que, sob o domínio do império mandinga de Gabu (Séc. XII-XIX), foram submetidos a uma dupla conversão à cultura mandinga e à religião islâmica, mesmo que superficialmente.

Culturalmente e por força de um longo dominio, militar, político e comercial na região no periodo pré-colonial, toda a região e, particularmente, o corredor desde Ingoré, Bigene, Binta, Guidage até Farim e arredores faz-se sentir fortemente a influência mandinga em todos os domínios da vida social e cultural dos diferentes grupos que aqui conviveram ao longo dos tempos.

Falando concretamente das bonitas imagens captadas pela objectiva do ex-Alf MilAntónio
Marreiros em Bigene em meados de 1973, provavelmente no mês de Janeiro a julgar pelas flores dos mangueiros, como o próprio faz notar, tenho a tecer as seguintes considerações (**):


I. Pelos detalhes e o ritual presentes na imagem, não se trata de um casamento Manjaco, longe disso, nem Mandinga ou Felupe, pelo que acredito que se trata de um casamento da etnia Balanta-Mané (a confirmar).

Foto nº 3
Estamos na presença de uma cerimónia que, visivelmente, apresenta elementos rituais animistas (o lenço vermelho na cabeça e o pano preto a cobrir o corpo da noiva) e muçulmanos (a noiva depois do ritual do arroz/milho e a cambança do pilão em casa dos pais num ambiente de festa (foto 1 e 2) é carrregada à cabeça de um jovem possante e só pisará o solo em casa do noivo, ou seja, realiza-se a simbologia da transferência definitiva da morada da mulher que, para todos os efeitos, deixa a casa dos pais e passa a fazer parte da familia do marido (fotos 3, 4 e 5) e não é suposto fazer o percurso inverso salvo por necessidade inadiável e/ou razões de força maior (divórcio).


II. A noiva ostenta ainda nos dois lados do rosto e preso aos cabelos, nozes de cola de cor vermelha (foto 1) 

.... que tem um significado especial para os muçulmanos e que simboliza o carácter sagrado e inviolável do casamento que tem o consentimento de Deus, a benção dos pais e dos mais velhos da comunidade (o correspondente ao ritual cristão que diz:  "O que Deus uniu que o homem não separe").
 
Foto nº 4

III. A chegada a casa do futuro marido a noiva, por algumas horas, fazem-na sentar-se numa esteira à  porta da casa do marido (foto 5)..
.

... e aqui repete-se a festa da chuva do arroz sobre a noiva que simboliza abundância e prosperidade e realiza-se o ritual da recepção por parte da família do marido que dá a entrada/aceitação e promete protecção e apoio à noiva na sua vida futura de mulher dedicada à vida do marido e da familia que doravante fará parte até ao fim da sua vida.

Ao mesmo tempo é dada a todos os membros da familia do futuro marido a oportunidade de se pronunciar, de apresentar ou não suas objecções quanto à futura esposa e que doravante fará parte da familia. 

É ocorrespondente Cristão do "Digam agora ou calem-se para sempre". Todavia, é muito raro que hajam pronunciamentos contrários, pois os investimentos já feitos desaconselham tais atitudes num meio de per si já pobre e bastante precário. E mesmo que houvesse dúvidas sobre o comportamento da noiva prevalecerá a confiança na sua mudança radical a partir desse momento fulcral na vida de uma mulher casada.


Foto nº 5
No fundo, o mundo é transversal e a cultura é universal e, muitas vezes, lá onde queremos ver grandes diferenças, são simplesmente variações de um mesmo fenómeno que é diversificado e vestido de outras roupagens e matizes culturais. 

Antes da chegada dos europeus à Africa, o Império do Mali e sua expansão ja tinham feito chegar outras culturas, técnicas e influências sociais globalizantes.

Actualmente os casamentos continuam a ser feitos com os mesmos rituais e simbologias, mesmo se há algumas inovaçõs e mudanças em função da evolução e da dinâmica multicultural que a globalização está a acelerar a bom ritmo, onde a inclusão da música global em detrimento da tradicional é um dos marcos mais visíveis.


Cherno Baldé, Bissau, 3 jan 2021, 13h
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(**)  Último poste da série > 17 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21459: Fotos à procura de... uma legenda (128): Levantamento de minas A/P no carreiro de Uane, em julho de 1974 (António Murta, ex-alf mil inf, MA, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)... E um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

Guiné 61/74 - P21729: Memória dos lugares (416): Um casamento em Bigene (António Marreiros, ex-alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74)








Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3  (1973/74) > "Um casamento em Bigene"... Fotos a precisarem da ajuda de etnólogo ou, talvez ainda melhor, do "conselho sábio" do nosso assessor para os assuntos etnolinguísticos, o Cherno Baldé que "firma" em Bissau... Parece ser um casamento manjaco, não, Cherno ? Podes dar-nos alguns "pistas de leitura" ?


Fotos (e legenda): © António Marreiros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem de  António Marreiros, a viver há 48 anos no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Burumtuma, 1972,  e, meses depois, transferido para Bigene/Guidage, CCaç 3, até Agosto 1974 (*):


Data - 2 jan 2021 22:19
Assunto . Casamento em Bigene
 

Para o álbum de recordações...são 5 fotos.

Penso que foi em 73, os mangueiros estão em flor... (**)

António Marreiros


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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21713: Recortes de imprensa (113): Guiné-Bissau: Crianças tornadas mulheres à força (Joana Benzinho, "Bird Magazine", 19 de outubro de 2020)




"Neste mesmo dia, em 1959, era aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança e, em 1989, a Convenção dos Direitos da Criança. Mas temos ainda um longo caminho a percorrer para que todas as meninas e meninos possam efetivamente ver os seus direitos reconhecidos, cabendo a cada um de nós um papel decisivo nesse processo. Para que esta seja realmente uma data de celebração para todas as Crianças." 

(Com a devida vénia, página do Facebook da Afectos com Letras, ONGD., com sede em Pombal)


1. Com a devida véniaa autora, Joana Benzinho,  e ao editor, Bird Magazine:


Bird Magazine > Cidadania e Sociedade > (*)

 CRIANÇAS TORNADAS MULHERES À FORÇA

19Out 2020

por Joana Benzinho (**) 



Um dia conheci uma menina numa instituição da Guiné-Bissau com um ar demasiado frágil para os seus 14 anos e com quem me sentei a conversar. Contou-me que um dia, há alguns meses atrás, tinha fugido da aldeia onde vivia com os pais e irmãos para não acabar na cama e na vida de um homem muito mais velho.

Os seus pais tinham acertado o dote e o casamento à revelia da sua menoridade e da sua vontade e era questão de horas ou dias acontecer aquela violação consentida e para a vida, por parte de quem a devia proteger. A menina encheu-se de toda a coragem que nunca pensou concentrar na sua breve juventude e saiu de casa sem nada, quando a noite caiu e todos dormiam.


Talvez não tenha tido noção da amplitude do seu gesto naquele instante mas ele veio mudar toda a sua vida de uma forma dura e definitiva. A partir daquele momento a menina deixou de ter família, de ter aldeia, de ter amigos, de ter escola, de ter amparo. A corajosa decisão que tomou fez os pais, familiares e vizinhos cortar definitivamente relações com ela. É sempre assim.


Aos 14 anos partiu para o mundo sozinha. Procurou ajuda ao cabo de muitos quilómetros a errar pela noite escura e encontrou-a, mesmo que de forma temporária. Quando a conheci, a precariedade da sua situação ainda se mantinha e o medo de ser procurada fazia-a tremer a cada chegada de um carro ou ao cruzar um rosto desconhecido.

Estas meninas feitas mulheres pela crueldade da família ou casam ou ficam sozinhas no mundo. Não há meio termo. E quando ficam sozinhas nem sempre conseguem encontrar a ajuda adequada ao drama que estão a viver. Umas acabam violentadas, outras violadas, outras enganadas por quem é suposto protegê-las, algumas na prostituição. Outras fogem para o colo de quem as devia defender dos casamentos forçados e onde acabam precisamente pela sua mão.

São meninas a quem foi roubada de repente a vida na sua plenitude, quando este conceito por si já é tão limitado na Guiné-Bissau. Algumas infelizmente não aguentam a pressão da fuga e voltam para os braços dos carrascos que as agridem e as casam de imediato.

São estas meninas feitas mulheres que vivem no anonimato na Guiné-Bissau mas que engrossam estatísticas dos casamentos forçados e precisam de quem as proteja. De quem as acolha e lhes proporcione apoio emocional, depois de se verem despojadas de qualquer afecto filial e traídas pelas pessoas em quem mais confiavam. De quem lhes dê apoio pedagógico para que não engrossem os números da ileteracia da Guiné-Bissau. De quem lhe dê ferramentas formativas para abraçarem a vida de forma activa e com independência financeira quando atingirem a maioridade.

Como esta menina com quem conversei, há muitas outras na Guiné-Bissau e pelo mundo fora. E com a pandemia, os estados de emergência e os confinamentos os casos tornaram-se aparentemente mais numerosos, mais incógnitos e com consequências mais graves pois muitas meninas não conseguem fugir deste drama que lhes vai cortar a infância e destruir a vida.

Nunca esquecerei o seu rosto e a fragilidade da figura que encobriam a força hercúlea daquela menina criança e penso ainda hoje, ao recordá-la, que me ensinou que coragem não vive de aparências nem de estádios de maturidade. Aprendi com ela que a coragem ali foi um grito de desespero, um Enorme ato de amor à vida que neste caso não aceitou que lhe violassem o direito à infância e à sua integridade fisica e psicológica.

Uma menina frágil transformada à pressa pela família numa mulher fortaleza mas que no fundo ainda precisa da ajuda, ainda precisa de colo.

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(*) A BIRD Magazine é uma revista online nascida em 2013. A BIRD Magazine é um meio independente, plural e equilibrado, orientado pela ética e deontologia jornalística. A BIRD Magazine procura a verdade, o rigor, a isenção e promove um espaço público de debate através dos seus cronistas residentes. 

(**) Joana BenzinhoAssessora Parlamentar no Parlamento Europeu desde 1999 | Fundadora e presidente da ONGD Afectos com Letras, criada em 2009, com sede em Pombal | Tem página no Facebook | É uma grande amiga da Guiné-Bissau e das suas gentes]  Tem 7 referências no nosso blogue.
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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)



Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. (Preço de capa: 10 €). 




 Índice

O livro (*) pode ser adiquirido de duas maneiras:

(i) diretamente, na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). preço de capa: 10 €

(ii) "on-line", em www.leituria.com: envio pelo correio: 10,00 €, mais 0,90 € de expedição; pode ser pago por multibanco, transferência, PayPal, etc.



1. Como já aqui dissemos em tempos (*), o "alfero Cabral" trouxe ao nosso blogue, à nossa tertúlia, à nossa caserna virtual, hoje Tabanca Grande. algo que podemos descrever como sendo o nosso lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, pícaresco, saudavelmente louco, próprio dos verdes anos (não é por acaso, que são os jovens que matam e morrem nas guerras)... Mas, neste caso, a guerra não foi só "sangue, suor e lágrimas"...

Finalmente ele deu à estampa o 1º volume das suas já famosas, aqui no blogue, "Estórias cabralianas". E no prefácio que lhe escrevi (**), com todo o gosto, eu digo que, para além do competente militar, alf mil at art, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71), ele  foi o que mais nenhum de nós foi em simultâneo: "homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais." (p. 10). 

E tudo isto, sem nunca se ter batido ao louvor, à medalha, à cruz de guerra... Nem à simples comenda!

Bem, uma das estórias que eu agora reli, deliciado, fez-me recuar no tempo, ao relembrar-me  o anúncio comercial que um dia apareceu cravado no poilão da Tabanca de Fá Mandinga, à entrada do destacamento: "Alfero poi catota noba, dam trez bintim" ["Alferes põe catota nova, dá os três vinténs", em crioulo de caserna]... 

Não sei se o comandante de batalhão, a que ele estava adido [,primeiro o BCAÇ 2852 e depois o BART 2917], algum dia passou por lá e deu conta da tabuleta.  Mas ainda bem que não, porque teria que meter explicador...

Sei que não foi o melhor negócio da vida do "alfero Cabral", porque sempre o conheci como sendo um homem honesto, feito à semelhança e imagem de Deus, "pai dos orfãos e defensor das viúvas", incapaz de tirar proveito da miséria alheia... E, como advogado, trabalhou muitas vezes "por bono"...

Terá sido, isso sim, um das muitas boas ações, de natureza psicossocial, que  ele levou  a cabo no CTIG, nas tabancas à sua guarda, sempre perfeitamente alinhado com o espírito e a letra da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"... 

Sendo eu  seu contemporâneo e visita frequente dos seus destacamentos (Fá Mandinga e depois Missirá),posso atestar duas coisas, por mor da verdade e da minha honra:

(i) nunca vi por lá nenhuma bajuda, bonita ou feia, com ar infeliz; 

(ii) quando fui gerente da messe de Bambadinca (tocava um mês a todos...), nunca arranjava galinhas (e muito menos ovos) nas suas tabancas... Mistério ?!...Só agora percebi porquê: o "alfero", que era também o "chefe da tabanca", tinha dado ordens terminantes às "mulheres grandes" para manter sempre um elevado "stock" de galináceos e de ovos, disponíveis para o supremo sacríficio das noites de núpcias...

Por tudo isto, recomenda-se vivamente a (re)leitura destas pequenas obra-primas (***) que é uma aperitivo e um convite para a compra e leitura integral do livro.


2. Estórias cabralianas > Cabral, salvador das bajudas desfloradas [, título original: "Alfero Cabral põe "catota nova"], pp. 93-94 [, há erro de paginação no índice]

por Jorge Cabral


Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois [, com sede em Bafatá,] referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.

Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…

Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, casar saía caro [, originalmente: "as mulheres eram compradas"], alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero "odjo grosso" era procurado para remediar o que parecia irremediável.

Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo (!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.

O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia. Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais, embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado, deram um resultadão.

Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.

Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero "poi catota noba, dam trezbintim".



Texto: © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados


3. O notável comentário, ou  crítica, mais de natureza socioantropológica, feito na altura [2013] pelo nosso Cherno Baldé [, hoje nosso assesssor para as questões etnolinguísticas], merece aqui ser publicado, na montra principal do nosso blogue (*):

(i) Comentáriodo Cherno Baldé:

Caro "Alfero Cabral",

Bonita descrição de factos de uma realidade vivida. O homem é plural.

O conceito da virgindade e a prática de testes de comprovação entre os povos islamizados da África deve ter as suas raízes nos antigos usos e costumes árabes.

Não concordo com o uso da palavra "compradas". Aqui fica melhor falar de dote, porquanto o valor total dos bens com que a noiva é dotada (o seu capital inicial) é sempre superior ao pretenso "valor da compra" e, em caso de incompatibilidade comprovada, a noiva é livre de voltar a casa dos pais e, se for por justa causa, a familia da mulher não é obrigada a devolver o dote ou valor da "compra".

 
(ii) Resposta do Jorge Cabral:

Eu sei, Cherno. Mesmo em Portugal existiu o dote. E, se consultarmos o velho código civil, lá encontramos o regime dotal. Quanto à virgindade, a falta dela, conduzia à anulação do casamento...Outros tempos...
 
(iii) Novo comentário do Cherno Baldé:

Obrigado por concordar comigo, obrigado pelo bom humor e não esqueça de fazer a devida correcção [,o que foi feito pelo autor...] antes da publicação do grande "best-seller" que se adivinha com as Estórias Cabralianas.

Como dizia o outro Cabral, as manifestações culturais são sempre o produto de uma época (tempo) e de um espaço bem determinado.

Desde criança que não me sentia bem na pele de um nubente fula por causa destas "provas" materiais a quente, que me pareciam humilhantes, ridiculas e injustificadas do ponto de vista humano (social) e económico (por causa do desperdício).

Assim, muito cedo, comecei a pensar numa estratégia para não me sujeitar a estas práticas que considerava caducas.

Quando voltei dos estudos, pensei que podia dar a volta, convencendo a minha namorada fula para um casamento discreto, sem barulho e sem a habitual cerimónia. "Niet!", ela, ao princípio concordou, mas rapidamente mudou de ideias, influenciada pela familia e colegas. Ela, uma menina ainda "virgem" (o que não era verdade), não podia ir a casa do seu homem assim às escondidas como se fosse um embrulho, nunca.

Com este primeiro desaire, compreendi que devia matar os germes do tribalismo que habitavam em mim, da mesma forma que habitam um pouco em cada Guineense, e ultrapassar os esteréotipos "raciais" alterando os gostos e as convicções interiorizadas na mente, como quem toma medicamentos amargos para sarar uma doença crónica mas curável. Mudei de perspectiva e comecei a ver as mulheres com outros olhos.

Foi assim que comecei a namorar com a minha actual mulher e companheira, com a qual vivo há mais de 20 anos. Não estando sujeita a mesma pressão social das mulheres fulas, ela aceitou, sem dificuldades, a minha proposta.

Com ela consegui fugir da exposição pública da nossa intimidade, mas em contrapartida fui obrigado (eram as suas condições) a formalizar três casamentos: Apresentação do "Cabaz" à familia (o pacto da etnia Papel, da parte dos pais), "amarra" (pacto muçulmano para satisfazer a parte materna - Nalú- e a minha familia) o casamento civil junto ao Tribunal com escritura e tudo.

No computo geral, acabei por pagar mais caro, financeiramente, do que seria normal e, apesar de tudo, ainda é cedo para concluir que a minha decisão foi acertada, pois o casamento misto, na Guiné e em qualquer outra parte do mundo, é um desafio com muitos imponderáveis. Foram muitas as vezes que surpreendi a minha esposa a questionar a honestidade do pacto que esteve na base do nosso casamento e, as vezes confessa para as amigas: "Se eu soubesse que estava a tratar com um economista, educado no mundo comunista..." enfim, com muitos "ses" e "istas" no meio de dúvidas e interrogações.

Na altura, a minha familia discordou, a minha mãe barafustou, mas como não tinham que pagar nada, acabaram por aceitar.

E tudo por querer fugir do barulho da multidão de mulheres curiosas (são as verdadeiras guardiães da tradição)e 5 minutos de stress sexual com truques e "mesinhas" a mistura para a perpetuação dos usos e costumes e, também, para a manifestação da virilidade masculina de ser homem, "macho". (****)
 
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Notas do editor:


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21008: Notas de leitura (1285): 20 de abril de 1970: o meu casamento na Catedral de Bissau (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Isto de andarmos a remexer em gavetas fechadas há décadas traz resultados como este: encontra-se um filme super 8, o tema é um casamento que se realizou em 20 de abril de 1970, na pomposamente chamada Sé Catedral de Bissau. Retive o essencial do que se passou neste dia no segundo volume do meu diário, O Tigre Vadio, onde se conta que o Comandante de Batalhão se revelou cúmplice de uma proposta do médico, forjou-se uma baixa à psiquiatria para haver casório.
Numa cena da maior indignidade, durante uma visita de Spínola a Missirá, onde era patente a escassez de recursos, e depois mesmo de se ter mostrado a documentação a pedir materiais para dirigir abrigos seguros e melhores habitações para os Caçadores Nativos e Milícias, o comandante de Bafatá entendeu em premiar-me com dois dias de prisão simples por eu não estar a dar o máximo da minha competência para a segurança do quartel no destacamento. Reagi, pedi mesmo para que este processo chegasse a instâncias superiores. O ignóbil veio depois, quando o mesmo comandante de Bafatá me deu o meu primeiro louvor, onde exarou que a minha mentalidade ofensiva e o garbo dos militares que comandava eram apontados como exemplo para todos. Moral da história: não houve férias, e arranjou-se uma estrangeirinha para aquele casamento de 20 de abril de 1970.

Um abraço do
Mário


20 de abril de 1970: o meu casamento na Catedral de Bissau

Mário Beja Santos

O autor do filme super 8, de onde se extraíram estas imagens, foi o Capitão de Engenharia Rui Gamito, alguém que, vindo um dia de helicóptero na Ponte dos Fulas, ficou surpreendido com uma bandeira portuguesa a tremular no meio de uma mata imensa, pediu ao piloto para baixar e veio conhecer-me. Não indiferente à miséria que viu, abriu-me as portas ao descaro, pedi-lhe tudo e mais alguma coisa, a começar pelos vulgares sacos de cimento, passando pelas tesouras de corte de arame, as chapas onduladas e o Sintex, este fazia muita falta, na época das chuvas a bolanha de Finete ficava intransitável, como boa parte do itinerário entre Canturé e Gã Gémeos, autênticos lodaçais, o Unimog enterrava-se até ao volante, o Sintex era a boa alternativa. E nas minhas visitas ao Batalhão de Engenharia 447 conheci o Emílio Rosa, será ele o meu padrinho de casamento, a mulher, Elzira Dantas Rosa, a minha madrinha, a filha mais velha, muito pequenina ainda, aparece numa imagem. Este filme culmina num restaurante que em 2010 já era uma ruína. No momento em que eu estava a pagar o jantar com escudos metropolitanos, o Rui Gamito fez questão de me emprestar dinheiro, alegando que se justificava pagar em escudos guineenses. Imperdoavelmente, esqueci a dívida. Uns bons anos depois, estava a almoçar com a Cristina na Portugália, vejo chegar o Rui e a mulher, e fui direito a eles movido por uma mola, depois dos cumprimentos, sentei-me e passei um cheque, pedindo mil perdões pela tropelia. A mulher do Rui estava atónita enquanto eu falava sobre uma dívida que o próprio Rui tinha esquecido.

O dia foi muito feliz para os noivos e seguramente para os seus convidados, mas nesse dia na estrada entre Có e Jolmete foram despedaçados à catanada quatro oficiais e elementos de uma comitiva, iam negociar os termos da transferência de um grupo do PAIGC para o Exército português. Tudo correu mal, hoje há elementos fiáveis sobre como tudo se passou. Apercebemo-nos de que algo de muito grave se estava a passar quando o Alexandre Carvalho Neto, a trabalhar junto do General Spínola, meu antigo colega de colégio, apareceu esbaforido a dizer que se estavam a viver momentos dramáticos na Guiné, felicitava os noivos, mais tarde falariam. E agora as imagens de um super 8 que estava esquecido e que foi transformado num CD, talvez a minha neta se venha a interessar por esta relíquia do casamento dos avós.



Na sacramental espera da noiva, conversa-se com o Capitão Laranjeira Henriques e mulher. Conheci este oficial quando fui mandado para uma operação em Mansambo, íamos até Galoiel, uma antiga base do PAIGC e patrulhar uma região do Corubal. Não escondi a minha surpresa quando este oficial chamou os alferes intervenientes para uma apresentação do que era a operação, como se iria proceder, os riscos a perder. Em operações anteriores, limitara-me a ser informado em cima da hora do que se ia fazer. Houve mesmo uma operação ao Buruntoni, a uma certa distância do Xime, em que o major de operações me informara que ia em reforço ao grupo atacante, em cima dos acontecimentos logo se veria. Não se viu nada, à saída do Xime desabou uma chuva diluviana, andámos aos tropeços horas a fio, até que ao princípio da tarde o guia considerou que estava perdido, recebemos ordem para regressar. Este oficial era primoroso no trato, quando descobri que estava em Bissau, convidei-o para o meu casamento, prontamente aceitou. Há anos atrás telefonei-lhe, está octogenário, tagarelámos, bem gostaria de o voltar a ver.




Os padrinhos de casamento da Cristina foram o David Payne Pereira e a mulher, Isabel, com gravidez pronunciada do primeiro filho. Conheci o David na crise académica de 1962, contactos de raspão, reencontrámo-nos a bordo do Uíge, e foi com muita alegria que o vi chegar ao Xime, integrado no BCAÇ 2852, um dos três batalhões de que dependi ao longo da comissão. Foi uma amizade muito terna com este casal que se prolongou por muitos anos, o David especializara-se em psiquiatria, e marcava-me almoços num tasco ao pé do hospital Miguel Bombarda, tínhamos começado rigorosamente ao meio-dia porque ele à uma e meia começava as consultas. Dediquei-lhe várias páginas do meu Diário, recebia regularmente os meus militares e a população civil, visitou-me em Missirá algumas vezes, uma delas ele veio na companhia do então Comandante do Batalhão, o Tenente-Coronel Manuel Pimentel Bastos, após o jantar, e sabedores que eu tinha levado várias óperas, “exigiram” ouvir uma fabulosa versão da Aida, de Verdi, e no final preparavam-se para eu pôr no gira-discos As Bodas de Fígaro, mas aí fiz finca-pé, pedi-lhes para irem fazer oó, tinha patrulhamentos para fazer nas redondezas e suas excelências queriam regressar de manhã cedo a Bambadinca. Como aconteceu. Ainda hoje estou inconsolável com a morte do David.



Considero que a passagem deste super 8 para CD foi uma operação quase milagrosa, desapareceram imagens da cena do jantar, convidei dois primeiros-cabos de quem era muito amigo, o António Ribeiro Teixeira, cabo de transmissões, e o Benjamim Lopes da Costa, guineense, que durante muitos anos encontrei em Lisboa, quando vinha a tratamentos. Na primeira imagem estão o Capitão Laranjeira Henriques e o inesquecível Barbosa, andava sempre com uma boina verde, numa terrível emboscada que preparámos na região de Chicri, e que apanhou em completa surpresa uma coluna que vinha de Medina, fizemos uma retirada em passo de corrida, pela noite escura, até estarmos a meio caminho de Missirá. Pois foi nesse exato momento que o Barbosa me disse, e de forma perentória, que teria de regressar a Chicri porque perdera ali a boina, a discussão a tempestuosa, eu afiancei ao Barbosa que lhe comprava uma boina verde, desse por onde desse, que não, respondeu sempre obstinadamente, era prenda de alguém a quem garantira regressar com aquela boina. E quando eu vi jeitos do Barbosa levar uma coça dos seus camaradas, encontrei uma solução, eu sabia que na tarde seguinte tinha que regressar a Mato de Cão, qualquer coisa como seis quilómetros de Chicri, garanti-lhe que ele viria comigo para resgatar a boina verde. Como aconteceu, dentro daquele quadro macabro de haver corpos espalhados, vítimas da emboscada. Foi assim.

Na última imagem está outro inolvidável amigo, o médico Joaquim Vidal Saraiva, que veio para Bambadinca depois do David Payne Pereira ser chamado para o Hospital Militar em Bissau, fiquei também com uma dívida de gratidão insuperável. Muitos anos mais tarde, telefonou-me do Hospital de Gaia, consegui encontrá-lo, chorei comovidamente quando o ouvi, sempre tonitruante e afetuoso. Aquele capitão fardado era o Capitão Miliciano António dos Santos Maltez, então Comandante da CART 2520, era licenciado em Físico-Química, sofreu muito por ter vindo para a guerra, conversámos e ele extravasou o seu estado de alma, sobre tudo quanto se passou depois e que me levou ao Xime um mês antes de casar, vai comigo para o túmulo. Há segredos que não devem ser desvendados.

No exato momento em que vos escrevo, e revisto o CD de onde se extraíram estas imagens, só resta dizer que a noiva trouxe a fatiota para o noivo, o que havia de indumentária civil foi pasto de chamas em Missirá, na noite de 19 de março de 1969, o comportamento do BCAÇ 2852 quando a nossa tropa apareceu em Bambadinca praticamente sem roupa foi inexcedível, três quintos das moranças arderam, como há imagens a atestar a dimensão do desastre, voltámos a cobrir a nudez graças à pronta disponibilidade da malta de Bambadinca; e aquele restaurante de nome Pelicano, voltado para o Geba e com vista desafogada para o Pidjiquiti, podendo-se mesmo olhar o Ilhéu do Rei, estava muitíssimo bem decorado ao gosto da época. Foi um belo jantar que paguei sem juros, uns bons anos mais tarde.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18723: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte III: Reordenamentos & Casamentos... Ou quem casa, quer casa...


Foto nº 12



Foto nº 11


Foto nº 13


Foto nº 14


Foto nº 15


Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 18


Foto nº 19


Foto nº 20


Foto nº 21

Guiné > Região Cacheu > Bula > Ponta Consolação > CCAV 2639 (1969/71) > Capunga > 3º Grupo de Comnbate

Fotos (e legendas): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendag complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

António Ramalho

1. Continuação da publicação do álbum de António Ramalho, ex-fur mil at cav,  CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), membro da Tabanca Grande, nº 757, natural de Vila Fernando, Elvas (*):

CCav 2639 > Guiné 1969/1971 > Listagem de fotos (11 a 21/55)

11. Capunga > Os meus 22 anos com amigos.

12. Cpunga > A minha linda lavadeira Maria que me acompanhou até Bissum.

13. Capunga >  Matéria-prima para o reordenamento.

14. Capunga  > Reordenamento > Fases de Construção.(I)

15. Capunga > Reordenamento >  Fases de construção. (II)

16. Casamento em Capunga >  A noiva.

17. Casamento em Capunga > A bebida.

18. Casamento em Capunga > O Escanção.

19. Casamento em Capunga > Os  convidados.

20. Casamento em Capunga> O serviço de Catering.

21. Casamento em Capung >  Malaque pai da Sandra, Homem Grande da Tabanca. 

(Continua)
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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15225: Inquérito "on line" (3): Total de 188 respostas: a maior parte da malta casou-se depois de vir a Guiné... Apenas uma minoria (1 em cada 5) já era casado antes da tropa (11,2%), ou casou-se antes de embarcar (4,8%) ou durante a comissão (4,2%)

O nosso camarada José Augusto Ribeiro e a Adriana:
deram, o nó em 1966, nove meses depois
do regresso dele (**)
Inquérito "on line" desta semana: "SÓ ME CASEI DEPOIS DE VIR DA GUINÉ" (*)


1. Já era casado quando fui para a tropa > 21 (11,2 %)


2. Casei-me durante a tropa, antes de ir para a Guiné > 9 (4,8 %)


3. Casei-me na Guiné, por procuração > 2 (1,0 %)


4. Casei-me durante a comissão, quando fui de férias à metrópole > 6 (3,2 %)


5. Casei-me logo depois de vir da Guiné, nesse ano ou ano a seguir > 84 (44,7 %)


6. Casei-me só mais tarde, dois a cinco anos depois de vir da Guiné > 53 (28,2 %)


7. Casei-me muito mais tarde (mais de cinco depois) > 11 (5,9 %)


8. Nunca me cheguei a casar > 2 (1%)


TotaL= 188 (100%)


Total de respostas: 188
Inquérito "on line", diretamente no nosso bogue, fechado em,  7/10/2015, às 12h30

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 4  de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15198: Inquérito "on line" (2): resultados preliminares (n=129): a tendência era para a malta se casar "logo depois de vir da Guiné, nesse ano ou ano a seguir" (48% das respostas)

(**) Vd. poste de 2 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15190: História de vida (40): Casei-me, em 31/7/1966, nove meses depois do regresso da guerra; quinze dias depois, embarquei no paquete Império, a caminho de Angola onde trabalhei como professor primário e quadro bancário (José Augusto Miranda Ribeiro, ex-fur mil, CART 566, 1963/65)


(...) Regressei da Guiné no dia 1 de novembro de 1965 e fui colocado como professor na Escola do Magistério de Coimbra.

Casei-me nove meses depois, do regresso da Guiné, no dia 31 de Julho de 1966.  Partimos para Angola 15 dias depois do casamento, no Paquete Império e fui trabalhar como professor em Sá da Bandeira, onde nasceu o meu filho João, que tem agora 48 anos, casado há já 20 anos, mas não tem descendentes.

Em 1968, saí de Sá da Bandeira e fui para Luanda, a 1100 Km, trabalhar no Banco de Angola, para dar oportunidade à minha mulher de ntirar o curso do Magistério. Teve a nota de 17 valores, que nunca ninguém ultrapassou.

Regressei de Angola em 1975 e voltei a trabalhar como professor em Condeixa, até à aposentação em 1999.(...)