Foto: © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
1. Está na altura, caros leitores, de reunir as peças, dispersas, do "nosso cancioneiro"... E já são algumas dezenas: são quadras ao gosto popular, são sonetos, são versos decassílabos parodiando os "Lusíadas", são textos poéticos, livres, são hinos, são fados, etc.
Foram produzidos ao longo da guerra (1961/74), mas também no pós-guerra... e nalguns casos, muito depois do nosso regresso. No essencial, têm um "sentido coletivo", ou procuram interpretar um "sentir coletivo", centrando-se na tropa e na guerra, e tendo por cenário a Guiné.
Nem todos estes textos poéticos eram canções (como o "Cancioneiro do Niassa", por exemplo). Uns tinham (ou poderiam ter tido) suporte musical, outros não. Preocupámo-nos sobretudo com a recolha das letras que correm o risco, isso, sim, de se perderem para sempre... Num caso ou noutro, conseguimos identificar a música que lhe estava associada (, em geral, era parodiada, como acontecia com o "Cancioneiro do Niassa").
Este material, independentemente da qualidade literária, tem interesse documental, tem um grande riqueza socioantropológica, fala de nós, das nossas vidas na Guiné, de uma geração anónima, esquecida, mal tratada, fala de lugares perdidos e estranhos, fala inevitavelmente da trilogia "sangue, suor e lágrimas", mas tamnbém fala de coragem, de camaradagem, de saudade, etc.
A análise de conteúdo desta documentação ficará para os especialistas. Mas, queremos desde já, que os nossos leitores continuem a comentar. E sobretudo queremos continuar a alimentar esta série. Acreditamos que há ainda muitas "canções e outros poemas de guerra" esquecidos no "baú da memória" dos ex-combatentes que fizeram a guerra da Guiné (1961/74)...
As referências a este tópico já são muitas, mesmo assim, no nosso blogue, Haverá, naturalmente, duplicações e sobretudo problemas de classificação temática:
cancioneiro (62)
Cancioneiro da Guiné (5)
Cancioneiro de Bambadinca (3)
cancioneiro de Bedanda (2)
cancioneiro de Canjadude (3)
cancioneiro de Gadamael (1)
Cancioneiro de Gandembel (10)
Cancioneiro de Mampatá (4)
cancioneiro do Cachil (1)
Cancioneiro do Niassa (4)
Canções do Niassa (4)
´
E ainda:
canção de Coimbra (2)
fado (40)
Fado da Guiné (7)
Sem esquecer:
fado (40)
Fado da Guiné (7)
música (99)
música afro-mandinga (10)
música da tropa (1)
música do mundo (2)
música klezmer (5)
música pimba (1)
música tradicional portuguesa (5)
música afro-mandinga (10)
música da tropa (1)
música do mundo (2)
música klezmer (5)
música pimba (1)
música tradicional portuguesa (5)
blogpoesia (559)
poesia (200)
2. Eduardo Manuel Simas, um poeta popular açoriano
Cufar, 3 de Novembro de 1974
Entre os soldados açorianos meus vizinhos, o Eduardo Manuel Simas [nº mec. 04296572]é poeta. Descobrimos afinidades e o rapaz veio mostrar-me uns versos da sua autoria, bem melhores do que os meus. Como acha que eu sou mais entendido nas coisas da arte poética, pediu-me que lhe corrigisse os erros do português e melhorasse as quadras. Elas aqui estão (...).
Vamos (re)começar por uns versos de matriz popular açoriana, Em 14 de junho de 2008, recebemos do António Graça de Abreu (ex-alf mil, SGE, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar1972/74) uma mensagem tendo por anexo un conjunto de 4 dezenas de quadras, da autoria de um militar açoriano, da CCAÇ 4740, que esteve com ele em Cufar.
Em Cufar, o António tinha convivido com, entre outros, os militares (na sua maioria açorianos) da CCAÇ 4740. Estes versos que agora se (re)publicam, em forma de quadras ao gosto popular, de sete sílabas métricas, algumas de pé quebrado, já constavam do seu livro de memórias, Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Edição: Guerra & Paz, 2007), pp. 151-156.
Eis o que o Antóonio escreveu na altura no seu "Diário da Guiné":
Eis o que o Antóonio escreveu na altura no seu "Diário da Guiné":
Entre os soldados açorianos meus vizinhos, o Eduardo Manuel Simas [nº mec. 04296572]é poeta. Descobrimos afinidades e o rapaz veio mostrar-me uns versos da sua autoria, bem melhores do que os meus. Como acha que eu sou mais entendido nas coisas da arte poética, pediu-me que lhe corrigisse os erros do português e melhorasse as quadras. Elas aqui estão (...).
Em 26 de junho de 2008, foram republicados no nosso blogue, com a seguinte nota; "é uma espécie de romanceiro, em que se relata a pobre vida de um militar que vai para a guerra. É um género literário que tem uma larga tradição na nossa poesia popular (veja-se, por exemplo, A Nau Catrineta)."
Na altura, abrimos uma série, a que chamámos Cancioneiro de Cufar, na esperanaça de que outras recolhas pudessem ainda aparecer, relacionadas com Cufar e o sul da Guiné. De qualquer modo, estes e outros versos merecem ser reunidos numa única série, a que passamos a chamar "O cancioneiro da nossa guerra". A seleção é da nossa responsabilidade.
Na altura, abrimos uma série, a que chamámos Cancioneiro de Cufar, na esperanaça de que outras recolhas pudessem ainda aparecer, relacionadas com Cufar e o sul da Guiné. De qualquer modo, estes e outros versos merecem ser reunidos numa única série, a que passamos a chamar "O cancioneiro da nossa guerra". A seleção é da nossa responsabilidade.
O Eduardo Manuel Simas é natural de São Miguel, Açores, vive em Lomba da Maia, concelho da Ribeira Grande. Na CCAÇ 4740, era soldado atirador de infantaria, e pertencia ao 2º pelotão, que era comandado pelo alf mil inf António Octávio da Silva Neto (,segundo a preciosa informação que nos é dado pelo portal da CCAÇ 4740, criado e mantido pelo ex-fur mil Serv Mat Mec Auto, Mário Fernando Lima de Oliveira, a quem agradecemos também as fotos do nosso poeta, de ontem e de hoje; outro dos editores do portal é o nosso grã-tabanqueiro Armando da Silva Faria, ex-fur mil at imf, também da CCAÇ 4740).
É de sublinhar a importância que as saudades da família e das ilhas bem como a fé cristã tinham na capacidade de sofrimento e de resiliência da generalidade dos nossos camaradas açorianos, sobretudo nos momentos de maior provação e dor, numa terra, a Guiné, que lhes é completamente estranha e hostil.
Quando a manhã nasceu,
Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.
Querem homens para a guerra,
Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.
Assim fui tendo Fé,
Assim fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que ao sair da Guiné
Leve a vida e a saúde.
Na altura, deixámos expresso, a ambos, ao autor e ao António (, que é ele próprio um tradutor de poesia chinesa e poeta de grande talento, sensibilidade e cultura, com vários livros publicados), o nosso obrigado pela produção, recolha, tratamento e divulgação destes versos que merecem ser melhor nconhecidos, divulgados e preservados.
Por outro lado, gostaríamos de ter notícias do Eduardo Manuel Simas, e convidá-lo a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande. Espero que esteja bem, de boa saúde, e que continue a viver em São Miguel. Descobrimos, com a ajuda do Carlos Cordeiro,que ele tem página no facebook. Vive em Lomba da Maia, Ribeira Grande. (Já agira acrescente-se que o professor Carlso Cordeiro crou um página, aberta, no Facebook, "Antigos Combatentes Açorianos".
3. O Cancioneiro da Nossa Guerra (1) >
Assim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude:
cancioneiro da açoriana CCAÇ 4740
por Eduardo Manuel Simas
É escrito com sangue e dor
Aquilo que vou falar,
E com o maior fervor
Agora vou começar.
Com licença, meus senhores,
Minha história eu vou contar,
Quando eu saí dos Açores
Para ir pr’ó Ultramar.
Quando à Terceira cheguei
E segui para o quartel,
Logo em mim recordei
A ilha de São Miguel.
Sentia uma coisa estranha,
Sem saber compreender,
Coisa esquisita e tamanha,
Difícil de entender.
O tempo se foi passando,
Dias bem [e] dias mal,
E fomos continuando,
Soldados de Portugal.
Passados [p'ra aí] dois meses,
Lá fomos jurar bandeira.
Sofremos, [pá,] mas às vezes
Parecia uma brincadeira.
Quando um dia na parada,
À noite, a silêncio tocou,
Veio a notícia [inesperada]
Que o comandante contou.
Com umas folhas na mão,
Más notícias veio dar
O nosso [bom] capitão:
- Vão [todos] para o Ultramar!.
[Passados] dez dias mais
[Lá] fui [eu] a São Miguel,
Despedir-me de meus pais,
Eu, Eduardo Manuel.
Ó meu Deus, eu vou partir
Sem saber se isto é justo,
Qual o dia em que hei-de vir,
Vou viver com tanto custo.
Quanto à nossa viagem
Melhor não podia ser,
Com espanto e [com] coragem
Vendo o que tinha que ver.
Corrido cerca de um mês,
Partimos para o mato,
Lá fomos [p'ró] Cantanhez
Onde não parava um rato.
Na LDG embarquei
E belezas eu não vi,
Aquilo em que eu pensei
Foi na terra onde nasci.
Os dias se vão passando,
Dão vontade de chorar,
As horas vou recordando,
Passo a vida a disfarçar.
Na primeira operação
Que [ao mato] fomos fazer,
Deu-me um baque [no] coração,
O que veio a acontecer.
Quando os homens voltaram,
Três grupos da operação,
Logo as minas rebentaram,
Meu Deus, [que] grande traição!
Passou palavra o primeiro,
Diz-me lá o que é que queres,
Vai chamar o enfermeiro
Pr’a vir tratar os alferes.
Ó meu Deus, o que seria,
Quem serão os desgraçados?
Foram para a enfermaria
Três alferes estilhaçados.
Lá ficaram mutilados,
Os infelizes sem sorte,
Turras serão apanhados
E todos irão à morte.
Que tristeza e amargura,
Tanta vez aconteceu,
Morrer uma criatura
Pelas mãos de um irmão seu.
Meus versos não levam cunho
Do que eu amo ou adoro,
Eles são o testemunho
Do que canto, do que choro.
Assim se passa esta vida,
Horas tristes a chorar,
Se a dor fosse esquecida
Eu poderia cantar.
Sofrer vinte e quatro meses,
Um soldado nada tem,
Agonias, tantas vezes,
Só Deus sabe, mais ninguém.
Eu sei que estes versos são
Uma coisa escrita ao [de] leve,
São pobres, sem perfeição,
Como a pena que os escreve.
Estive quase a dar um tiro,
Primeiro dia de Agosto,
Ó que noite de martírio,
Passei a noite no posto.
Meus olhos no firmamento,
Horas e horas, ou mais,
Vieram-me ao pensamento
Os meus [mui] queridos pais.
No dia 9 de Agosto
Fomos pró mato arreados,
Vamos voltar com o gosto
De não sermos apanhados.
À saída do quartel,
Eu pensei na minha cama
E, pensando em São Miguel,
Caí enterrado em lama.
Que será preciso mais,
Estamos aqui como uns parvos,
Tiram-se os filhos aos pais
E fazem deles escravos.
Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.
Lá por fora o dia inteiro,
Sem qualquer resultado,
Perdidos num cativeiro
Entre capim alteado.
Ao quartel, quando chegámos,
Sem forças e cheios de fome,
[Coitados,] quase não falámos,
Fogo dentro nos consome.
Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.
Dia 7 de Setembro,
Saímos ao anoitecer,
Eu não quero que me lembre
Tantos homens a sofrer.
Era tanta a nossa mágoa
E com tantos embaraços,
Apanhámos forte água
Que pareciam estilhaços.
A 23 de Dezembro,
Ó mãezinha, muito querida,
Eu nem quero que me lembre,
Parecia o fim da vida.
À noite, dois pelotões
Saíram todos armados
E com nove foguetões (**)
Lá fomos nós atacados.
O fogo [lá] acabou
Sem nos causar [nenhum] mal,
Nossa Senhora salvou
Os soldados de Portugal.
Isto foi acontecido,
Queiram todos acreditar,
Quanto [nós temos] sofrido
Nesta vida militar.
Que vida tão rigorosa,
Que [a todos] nos faz pasmar,
Que vida tão perigosa,
Soldados do Ultramar.
Assim [eu] fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que, ao sair da Guiné,
Leve a vida e a saúde.
Eduardo Manuel Simas
____________
Notas de L.G.
(*) Vd. poste d e26 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2988: Cancioneiro de Cufar (1): Um poeta açoriano da CCAÇ 4740, Eduardo Manuel Simas (António Graça de Abreu)
(**) Vd. também poste de 17 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3328: Memórias literárias da guerra colonial (7): O baptismo de fogo de A. Graça de Abreu, em Cufar, aos 17 meses (Luís Graça)
Leve a vida e a saúde.
Na altura, deixámos expresso, a ambos, ao autor e ao António (, que é ele próprio um tradutor de poesia chinesa e poeta de grande talento, sensibilidade e cultura, com vários livros publicados), o nosso obrigado pela produção, recolha, tratamento e divulgação destes versos que merecem ser melhor nconhecidos, divulgados e preservados.
Por outro lado, gostaríamos de ter notícias do Eduardo Manuel Simas, e convidá-lo a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande. Espero que esteja bem, de boa saúde, e que continue a viver em São Miguel. Descobrimos, com a ajuda do Carlos Cordeiro,que ele tem página no facebook. Vive em Lomba da Maia, Ribeira Grande. (Já agira acrescente-se que o professor Carlso Cordeiro crou um página, aberta, no Facebook, "Antigos Combatentes Açorianos".
Estas quadras também já foram publicadas no portal da CCAÇ 4740 (na secção "Se bem me lembro"), sob o título "Assim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude". (Segundo o Armando Faria, os versos foram publicados na integra, com a devida autorização do seu autor, no livro "Leões de Cufar, A Historia da Companhia C.CAÇ.4740").
Nesta versão, fizemos revisão de texto, não nos limitando à melhoria da pontuação. Título e notas também são da nossa responsabilidade. Nalguns versos, que não têm as regulamentares sete sílabas métricas (por ex., "passados dois meses" ou "dias bem, dias mal") fazemos pequenas alterações [entre parênteses retos]... Espero que tanto o autor, Eduardo Manuel Simas, como o seu "padrinho literário", o António Graça de Abreu, não levem a mal: achamos que as quadras ficam mais fluentes e com melhor oralidade... (A versão original continua disponível no nosso blogue, no poste P2988 (*).
Feliz a CCAÇ 4740 que teve um poeta, talentoso, que deixou em verso um pouco da sua história por terras dos Açores e da Guiné. Muitas outras subunidades mobilizadas para o CTIG (, para não dizer mesmo a maioria), não tiveram ninguém que as cantasse em verso!... Honra, pois, ao nosso Eduardo Manuel Simas, cujo nome queremos juntar à lista de A a Z dos membros da nossa Tabanca Grande!.. Ele só precisa de nos dar o devido consentimento...
Sobre a CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/74) temos já cerca de 4 dezenas de referências no nosso blogue. Esta subunidade também tem um sítio na Net.
Nesta versão, fizemos revisão de texto, não nos limitando à melhoria da pontuação. Título e notas também são da nossa responsabilidade. Nalguns versos, que não têm as regulamentares sete sílabas métricas (por ex., "passados dois meses" ou "dias bem, dias mal") fazemos pequenas alterações [entre parênteses retos]... Espero que tanto o autor, Eduardo Manuel Simas, como o seu "padrinho literário", o António Graça de Abreu, não levem a mal: achamos que as quadras ficam mais fluentes e com melhor oralidade... (A versão original continua disponível no nosso blogue, no poste P2988 (*).
Feliz a CCAÇ 4740 que teve um poeta, talentoso, que deixou em verso um pouco da sua história por terras dos Açores e da Guiné. Muitas outras subunidades mobilizadas para o CTIG (, para não dizer mesmo a maioria), não tiveram ninguém que as cantasse em verso!... Honra, pois, ao nosso Eduardo Manuel Simas, cujo nome queremos juntar à lista de A a Z dos membros da nossa Tabanca Grande!.. Ele só precisa de nos dar o devido consentimento...
Sobre a CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/74) temos já cerca de 4 dezenas de referências no nosso blogue. Esta subunidade também tem um sítio na Net.
3. O Cancioneiro da Nossa Guerra (1) >
Assim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude:
cancioneiro da açoriana CCAÇ 4740
por Eduardo Manuel Simas
É escrito com sangue e dor
Aquilo que vou falar,
E com o maior fervor
Agora vou começar.
Com licença, meus senhores,
Minha história eu vou contar,
Quando eu saí dos Açores
Para ir pr’ó Ultramar.
Quando à Terceira cheguei
E segui para o quartel,
Logo em mim recordei
A ilha de São Miguel.
Sentia uma coisa estranha,
Sem saber compreender,
Coisa esquisita e tamanha,
Difícil de entender.
O tempo se foi passando,
Dias bem [e] dias mal,
E fomos continuando,
Soldados de Portugal.
Passados [p'ra aí] dois meses,
Lá fomos jurar bandeira.
Sofremos, [pá,] mas às vezes
Parecia uma brincadeira.
Quando um dia na parada,
À noite, a silêncio tocou,
Veio a notícia [inesperada]
Que o comandante contou.
Com umas folhas na mão,
Más notícias veio dar
O nosso [bom] capitão:
- Vão [todos] para o Ultramar!.
[Passados] dez dias mais
[Lá] fui [eu] a São Miguel,
Despedir-me de meus pais,
Eu, Eduardo Manuel.
Ó meu Deus, eu vou partir
Sem saber se isto é justo,
Qual o dia em que hei-de vir,
Vou viver com tanto custo.
Quanto à nossa viagem
Melhor não podia ser,
Com espanto e [com] coragem
Vendo o que tinha que ver.
Corrido cerca de um mês,
Partimos para o mato,
Lá fomos [p'ró] Cantanhez
Onde não parava um rato.
Na LDG embarquei
E belezas eu não vi,
Aquilo em que eu pensei
Foi na terra onde nasci.
Os dias se vão passando,
Dão vontade de chorar,
As horas vou recordando,
Passo a vida a disfarçar.
Na primeira operação
Que [ao mato] fomos fazer,
Deu-me um baque [no] coração,
O que veio a acontecer.
Quando os homens voltaram,
Três grupos da operação,
Logo as minas rebentaram,
Meu Deus, [que] grande traição!
Passou palavra o primeiro,
Diz-me lá o que é que queres,
Vai chamar o enfermeiro
Pr’a vir tratar os alferes.
Ó meu Deus, o que seria,
Quem serão os desgraçados?
Foram para a enfermaria
Três alferes estilhaçados.
Lá ficaram mutilados,
Os infelizes sem sorte,
Turras serão apanhados
E todos irão à morte.
Que tristeza e amargura,
Tanta vez aconteceu,
Morrer uma criatura
Pelas mãos de um irmão seu.
Meus versos não levam cunho
Do que eu amo ou adoro,
Eles são o testemunho
Do que canto, do que choro.
Assim se passa esta vida,
Horas tristes a chorar,
Se a dor fosse esquecida
Eu poderia cantar.
Sofrer vinte e quatro meses,
Um soldado nada tem,
Agonias, tantas vezes,
Só Deus sabe, mais ninguém.
Eu sei que estes versos são
Uma coisa escrita ao [de] leve,
São pobres, sem perfeição,
Como a pena que os escreve.
Estive quase a dar um tiro,
Primeiro dia de Agosto,
Ó que noite de martírio,
Passei a noite no posto.
Meus olhos no firmamento,
Horas e horas, ou mais,
Vieram-me ao pensamento
Os meus [mui] queridos pais.
No dia 9 de Agosto
Fomos pró mato arreados,
Vamos voltar com o gosto
De não sermos apanhados.
À saída do quartel,
Eu pensei na minha cama
E, pensando em São Miguel,
Caí enterrado em lama.
Que será preciso mais,
Estamos aqui como uns parvos,
Tiram-se os filhos aos pais
E fazem deles escravos.
Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.
Lá por fora o dia inteiro,
Sem qualquer resultado,
Perdidos num cativeiro
Entre capim alteado.
Ao quartel, quando chegámos,
Sem forças e cheios de fome,
[Coitados,] quase não falámos,
Fogo dentro nos consome.
Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.
Dia 7 de Setembro,
Saímos ao anoitecer,
Eu não quero que me lembre
Tantos homens a sofrer.
Era tanta a nossa mágoa
E com tantos embaraços,
Apanhámos forte água
Que pareciam estilhaços.
A 23 de Dezembro,
Ó mãezinha, muito querida,
Eu nem quero que me lembre,
Parecia o fim da vida.
À noite, dois pelotões
Saíram todos armados
E com nove foguetões (**)
Lá fomos nós atacados.
O fogo [lá] acabou
Sem nos causar [nenhum] mal,
Nossa Senhora salvou
Os soldados de Portugal.
Isto foi acontecido,
Queiram todos acreditar,
Quanto [nós temos] sofrido
Nesta vida militar.
Que vida tão rigorosa,
Que [a todos] nos faz pasmar,
Que vida tão perigosa,
Soldados do Ultramar.
Assim [eu] fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que, ao sair da Guiné,
Leve a vida e a saúde.
Eduardo Manuel Simas
____________
Notas de L.G.
(**) Vd. também poste de 17 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3328: Memórias literárias da guerra colonial (7): O baptismo de fogo de A. Graça de Abreu, em Cufar, aos 17 meses (Luís Graça)