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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26327: Notas de leitura (1759): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Começo por uma manifestação de interesse, no passado domingo, 1 de dezembro, falei desta preciosa obra de literatura memorial, quiçá tratado como romance, pelas gerações vindouras, na apresentação feita na Casa do Alentejo, num mano a mano com Carlos de Matos Gomes. A singularidade detetada em Vindimas no Capim reaparece em força neste Lavar dos Cestos, a própria arquitetura da obra se assemelha com o romance premiado, é um galopar permanente em terras vindimeiras e, súbito, podemos estar em Catió, voltar à recruta e à especialidade, ouvir os estrondos em Gandembel, ter por companhia aquelas noites intermináveis em Mejo, uma emboscada perto do Corredor da Morte, e aquele frio na espinha que acompanhava as colunas de abastecimento para Buba ou Gadamael. Se alguém duvida, ainda hoje, que há memórias da guerra colonial que são inapagáveis, dê-se ao louvor, à exultação, à dor incontida que todo este livro de José Brás encerra,a modos de nos provocar no final, como se estivesse a proferir sermão, se nós não sentimos as liturgias da vinha da guerra, quem afinal, as sentiu? A cada um de nós cabe responder.

Um abraço do
Mário


Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (3)

Mário Beja Santos


Vamos hoje despedirmo-nos de Filipe Bento/José Brás com pompa e circunstância, é uma revisitação do Sul da Guiné, onde passou maus bocados, mas igualmente neste seu livro "Lavar dos Cestos" avulta a memória de acontecimentos da sua juventude em terras vindimeiras. A arquitetura da narrativa da obra é um verdadeiro carrossel de acontecimentos em terras estremenhas, fala-se no padre Gata, no Larixa, no seu avô José da Bonança, no tio Capadinho, na Mulher-João-Granja, no João Malino, no Vidigal Cigano, no Pirolas, no Zé Nicolau, tudo condimentado com intrigas e naifada, e pronto, já está, voltamos a África, mas cuidando sempre de denunciar as relações de poder envolvendo gente sem terra, lembrando tarefas de extrema dureza e até mesmo atentatórias de saúde:
“Nos sulfatos, não imaginam vocês, pelo menos os que nunca ataram esta vidinha das vinhas entre abril e o fim de junho, o cobre da solução cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra no enrugado e os poros. Se passarmos as mãos apenas por água limpa do poço, ou se as deixarmos até ao fim do dia sem uma boa lavagem dos altos para as refeições… ou até ao fim de semana… ou, havia quem fizesse assim, até ao fim da campanha em junho, três meses puxados, aquilo já não eram mãos de gente, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um bicharoco tentacular, um polvo a agitar os seus tentáculos. Eu cá, no fim do dia, lavava as mãos com mijo. Acabava o trabalho, esperava a vontade, afastava-me um pouco da maralha, virava costas a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos.
Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias.”

Estamos agora na Guiné, há ainda a recordação do Padre Francês, era assim que chamavam o Alex, que desertou e foi para Paris, vão suceder-se peripécias, montam-se emboscadas no caminho para o corredor de Guileje, há lembranças do rio Cumbijã, que ele assim apresenta: “É um senhor rio que vai subindo, subindo mapa acima, cruzando terras deste pequeno quase novo país, dando voltas e reviravoltas, a bombordo, a estibordo e de novo a bombordo, por vezes parecendo que volta para baixo, criando e recebendo dezenas de grandes e de pequenos outros rios que se subdividem e se multiplicam eles próprios, alargando chãos, chegando a aldeias, enchendo e vazando bolanhas, terras de arroz, sonhos de gente que se quer ver livre de soldados tugas, de fuzileiros, de barcaças, de canhões e de guerras.”

Mas também descreve lugares: “Catió tinha organização e disciplina militar, com cornetada da alvorada e tudo; casernas alinhadas e com casas de banho mais ou menos; não mostrava ninguém de calção e chinela havaiana; tinha comércios e café com esplanada, e até tinha igreja, aposto que com missa matinal diária, ou pelo menos dominical, arruamentos e valetas com escoamento fluvial, enfim, diziam que ainda assim, com a chatice de um ou outro ataque do inimigo e base agitada para muitas operações de Comandos, de Paraquedistas, de Fuzileiros por esse mato do Cantanhez adentro, aviões, helicópteros, barcos… o eco de muitos combates revoando por matas e ilhotas e tarrafos e bolanhas.”

Há um retorno ao mundo estremenho, novas histórias sobre as rixas, estamos de novo na Guiné, desta vez em Bolama, é este vaivém absolutamente frenético que captura o leitor do princípio ao fim, porque no final da obra José Brás vai inquietar-nos quanto às consequências que podemos tirar das misérias da guerra, das agruras dos vindimeiros, das recordações que ele guarda do Estado Novo, despede-se e deixa-nos no desconforto:
“Perco-me aqui numa embrulhada interminável de historietas sem lhes conseguir encontrar a ligação e o principal fica por contar. E quando comecei a escrever tinha quase a certeza de que iria atingir esse objetivo. Mostrar que a guerra não caiu do céu. Que antes da guerra começar a vida já existia nas aldeias e nas cidades e que não parou só porque a guerra rebentou e os soldados iam e vinham aos milhares. E que nem os soldados nem os pais dos soldados sabiam explicar muito bem porque carga de água, de repente, começou tudo aos tiros. Soldado ia, soldado vinha, quando vinha, e sinais de Pátria não se encontrava senão nas fomes, na enxada e outras ferramentas, e agora, também na G3, no morteiro, na bazuca, no canhão sem recuo e no sangue vertido das veias dos camaradas (…) E vocês viram morrer o Lemos, viram morrer o Cabo Júlio, viram morrer o Madeirense e os dois de Barcelos… Viram é uma forma de dizer!
Mas é a mesma coisa, se sentiram como eu senti ao contar-nos, ainda mais do que senti ao ver de vista mesmo, no ato da sua morte. Não necessitaram sair de casa, claro, para terem notícias circunstanciadas sobre as suas mortes.

Não precisavam de os ver agonizar, de os procurar na mata as pernas decepadas; de os olhar nos olhos na despedida; de os carregar aos ombros ainda vivos já cadáveres inevitáveis; de lhes respirar os pesados cheiros, dias e dias, até que helicópteros lhes retirassem dali as negras caixas; não tiveram de morrer também de medo, de solidão, de impotência, de fome e de sede; de calor e de frio; de mil cansaços; nos estrondos, das rajadas e de semanas inteiras de mato; nos fornilhos de fósforo, nas febres, na água podre da bolanha, nas centenas de quilómetros de picada, de caminhos, de trilhos, de selva subtropical; nas emboscadas, nas flagelações, nas horas a rastejar sobre capim, sobre ramos e raízes, sobre lamas; na lentidão do tempo para o regresso; no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gandembel; na iminência do assalto final; na vertigem da última bala e na brasa do estilhaço… Não tiveram de sentir no ombro a mordidela do arco do caneco pesado na subida inclinada da vinha do Boeiro, nem de fazer ano a ano a viagem de comboio da Beira-Alta para as vinhas do Salazar, em S. Jerónimo, por uma merda de jorna, sardinhas de três meses e feijão-frade com bicho…

Não sentiram nas tripas a frieza metálica do canivete de volta do João Gato, nem o chumbo quente no peito, como o Arlindo.
Não sentiram nunca a alma a estraçalhar-se de desânimo nos trilhos perdidos dos Pirenéus.
Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas das praças de homens; valorados em lanços de coroa ou dez tostões; um quarto de pão escuro na mesa da ceia.
Não sentiram nunca…
Não sentiram vocês…
Não sentiram?
Então quem foi que sentiu?”


Um belíssimo romance de literatura memorial, é o mínimo dos mínimos que se pode dizer de "Lavar dos Cestos", de José Brás.

- José Brás foi Furriel Miliciano de Transmissões na CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras
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Notas do editor

Posts anteriores de:

16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, José Brás e Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)
e
23 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de dezembro de 2024 >Guiné 61/74 - P26319: Notas de leitura (1758): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
O José Brás/Filipe Bento volta a vindimar com a sua escrita assombrosa, creio que traz recados e avisos solenes de que isto de fazer a vindima vai até o lavar dos cestos, ou seja, que nós combatentes não fiquemos no belo recato de ler o que os outros escrevem atirando para trás das costas as tais memórias da guerra colonial que não se apagam. É um livro comprometedor, a arquitetura vem dos tempos do seu belíssimo romance Vindimas no Capim, mas o que agora nos oferece é mais o sinal dos tempos, constrói-se pelo poder da memória, revisitam-se lugares, gentes, pesadelos e solidariedades e posso-vos dizer que dentro deste processo de escrita onde se fala em termos litúrgicos, como antífona, a oração sobre as oblatas, a oração dos fiéis, despede-se de nós com um solene aviso: compete-nos também o registo de deixar para os outros aquilo que sentimos não foi em vão que por ali andámos a penar para tudo cair no esquecimento.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (1)

Mário Beja Santos

A década de 1980 revelou que a literatura da guerra colonial estava a dar um salto qualitativo, entrara-se num período de acalmia e o pulsar da memória levedou numa quase inesperada ficção, podia aqui citar um conjunto de influentes romances, até ensaios, obras de historiografia, poesia, alguma investida memorial, mas fixo-me num surpreendente romance, justamente premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, "Vindimas no Capim", de José Brás, então um autor desconhecido. Tratava-se de um romance de formulação invulgar, uma permanente conversa com o leitor, como se estive a acirrá-lo com perguntas, dando ele próprio respostas exclamativas, uma autobiografia de alguém que passara a sua juventude em meios agrícolas, e depois no Sul da Guiné, aqui as vindimas foram outras, havia Guileje, Mejo, Gandembel, lá ao fundo, sempre próximo do Corredor da Morte, havia Cacoca, Sangonhá e Cameconde, lá em cima Balana e, claro está, Aldeia Formosa, Filipe Bento estacionará em Mejo e noutros lugares de permanente sobressalto, confessará as suas dores e amargores, escreverá de forma inequívoca aquilo que muitos de nós já sabíamos e que se veio a comprovar: há memórias da guerra colonial que não se apagam. Mas nas "Vindimas no Capim" sentia-se aquela onda de calor em comunicar a quem quer que seja que aqueles jovens saídos de terras pobres, ordenados numa vida áspera, tinham sido lançados na defesa de uma parcela colonial, acoitados nuns fortins improvisados, a experimentar as penas do inferno. E Filipe Bento perguntava vezes sem fim porque é que tinha andado naquela vindima de pesadelo e porquê tudo por que passara estava agora tão esquecido, quem iria ganhar com o desmemoriamento de tanta luta inglória.


É nisto que o octogenário José Brás salta do esquecimento em que caiu tanta vindima e nos vem alertar do seguinte modo: “Na liturgia das vinhas a vindima seria o seu último salmo. Todavia, na voz do povo se diz que não acaba a missa no corte do último cacho; na derradeira lagarada; no bago que fecha o tonel, e que muita vindima há ainda por fazer até ao lavar dos cestos. Nas courelas que restaram deste anacrónico império, depois da colheita, quantos cestos continuam melados com o mosto das repisadas uvas brancas e tintas?” Presumo que aquilo que ele nos quer dizer é que temos todos a obrigação de fazermos a nossa vindima até ao lavar dos cestos, é assim o dever de memória para que as novas gerações guardem na sua identidade um sofrimento inaudito dos seus ancestrais, participantes num desastre anunciado.

Temos agora o "Lavar dos Cestos", José Brás e Chiado Books, 2024, Filipe Bento regressa ao Sul da Guiné, quartel de Guileje, estão a ouvir-se estrondos em Gandembel, quem aqui está vive o pesadelo, um quotidiano de infortúnio, fez-se um octógono que até parece inexpugnável, ali no Corredor da Morte, o PAIGC não se intimida com aquele fortim solitário, espicaça quem lá vive com tormentosas flagelações, Filipe acordou arrelampado com tanto estrondo, reflete em voz alta:
“Mejo e Guileje, buracos abertos na mata subtropical do Sul da chamada província ultramarina da Guiné, quadrados de cem, cento e poucos metros de lado, paliçada a todo o perímetro construída por duas paredes de cibes, rijíssimas árvores cortadas a propósito e sobrepondo-se, tronco deitado sobre tronco, deitado até uma altura de um homem baixo, separadas as ditas paredes por cerca de um meio metro de vazio que seria cheio de terra, finalmente, quando não mesmo, muitas vezes ainda, e com isso, nesses casos, lá fica desasada a palavra finalmente, muitas vezes ainda, volto a dizer, cosida exteriormente a chapa dos dois lados, lata recuperada dos bidões de duzentos litros da gasolina que alimentava as viaturas, unimogs, jipes e GMC’s, e o gerador elétrico do local destas praças militares portuguesas intervaladas por postos e aquartelamentos do inimigo a escassas distâncias, quatro, cinco, sete quilómetros de mata densa e alta.”

Pode parecer absurdo um inimigo, feroz e destemido, altamente motivado, estar posicionado a tão curta distância, mas as coisas passaram-se assim, aquele corredor da morte era um cordão umbilical para abastecimentos do PAIGC, de gentes, armamento, coisas de hospital e farmácia e mantimentos para a boca. E Filipe Bento já sonha com a passagem para Bolama, mas para ali chegar há que percorrer uma boa distância até Gadamael-Porto, e então, por lancha ou batelão e rio abaixo até Bolama. Mas, ó gente, vamo-nos preparar porque Filipe Bento tem histórias passadas para contar, fez recruta e especialidade, passou pela Carregueira, vai-nos contar ao pormenor e com palavreado da caserna, tudo quanto ali viveu, nas Caldas da Rainha ou em Tavira, entra em cena o major Leiria, associado àquele território onde ele passou a juventude, o pessoal das vinhas. O segredo desta vibração da escrita passa pela recuperação da arquitetura que o José Brás já utilizara em "Vindimas no Capim", a interpelação que tanto desassossega o leitor, ora estamos no quartel ora na taberna, e até se aproveita a circunstância para se dar ensinamento ao leitor urbano:
“Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, a bendizer só a palavra, desenganem-se!
Enxada de dois ferros, um pouco mais curta na chapa, a fim de realizar uma cava mais funda com duas enxadadas no mesmo exato lugar. Enxada de um ferro, mais compridita para cavar num só golpe, não tão fundo, mas envolvendo uma amplitude maior de terra. Enxada de dois bicos que, como o nome indicia, alongava a meia-lua nos bicos, mais grossa e pesada, com um cabo direito para cavar terra seca e amontoar levas atrás do cavador a fim de facilitar a entrada da luz do Sol até mais fundo.”


Umas vezes estamos lá na terra das vindimas, outras vezes nas Caldas, em Tavira ou em Caçadores de Infantaria. Mas importa que se saiba onde vivia Filipe Bento antes de pegar em armas:
“A aldeia é pequena. Apesar de ser sede de Freguesia, de ter igreja paroquial, procissão dos passos anualmente, duas mercearias, festas de verão, escola de rapazes e raparigas, tem apenas a rua principal que sobe desde o cemitério, mesmo ao pé das abegoarias do Manel, outro Manel, Cortador, dono do talho, perto também da forja do Tóino Ferreiro, e passa pela farmácia, à esquerda, sempre a subir e do mesmo lado, a loja debaixo, o casarão apalaçado do Zé Fernandes, os Figueiras com a padaria.” E a descrição vai até ao largo, ficamos também a saber que o caminho que nos levaria à Seteirinha se à Seteirinha quiséssemos ir, tínhamos duas casas grandes do lado direito de quem entra, subindo como vínhamos subindo, olhando as fachadas, tentando perceber a gente que atrás delas vive. No canto direito do limite do largo, a loja de cima que fica por baixo da escola dos rapazes.

E depois, o Filipe Bento vai-nos falar de vinhas e enxertias e até de podas, prepare-se o leitor para uma exaltação das magnificências do que se extrai da terra, que beleza de escrita.
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

“LAVAR DOS CESTOS - Liturgia de Vinhas e de Guerra” pode ser adquirido na rede de livrarias independentes espalhadas por todo o país;
É também comercializado Online na seguinte rede:
- AtlanticBookshop.pt
- Fnac.pt
- Bertrand.pt
- Wook.pt
- e ainda a pedido via mensagem na página Facebook do autor ou e-mail jasbras1@sapo.pt e enviado via correio CTT.

Último post da série de 13 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Ficarei imensamente grato a quem me puder ajudar com informações sobre a CCAÇ 1591 e Mejo. Quando li "Vindimas no Capim", escrito pelo nosso confrade José Brás, encontrei algumas referências a Mejo, mas fiquei-me por aqui. É uma grande surpresas, esta literatura memorial do Coronel Luís Cadete, chegou à Guiné ainda tenente, aqui foi promovida a capitão, vê-se à vista desarmada que aquela terra vermelha se tornou inesquecível, como aliás ele escreve na introdução:
"Mejo foi, no fim de contas, o nosso primeiro amor na Guiné e ainda hoje temos saudades dele, pois puxou por tudo quanto tínhamos de melhor para ultrapassarmos as dificuldades inerentes a uma situação de campanha."
É um livro que não merece ficar confinado a uma pequena edição, não é justo. Há por vezes ressaibos, ajusta contas com a sua própria instituição militar, maldiz a incompetência, mas até apetece recordar a frase icónica de Álvaro Guerra de que aquela terra foi um permanente avolumar de dores e inquietações, mas foi ali que se selou a nossa têmpera pelos anos vindouros.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (1)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Nunca li uma introdução a um ambiente tão poderosa e tão viva como Luís Cadete faz de Mejo, a ninguém pode deixar indiferente prosa tão precisa, uma demonstração de um olhar tão fecundo, lembra um geógrafo, um antropólogo, um etnólogo:
“A tabanca que dava pelo nome de Mejo situava-se, sensivelmente, a 9 quilómetros de Guileje, na estrada para Bedanda, na bifurcação para Salancaur Fula, colina com cerca de 110 metros de altitude com o cume em forma de tampo de mesa ligeiramente inclinado para Nascente, com o ponto mais elevado a Poente.
Esta colina, restos de formação rochosa de maior vulto dissolvida pelas chuvas diluvianas e ácidas do Pluvial, há vários milhões de anos, domina vasta extensão do rio Cumbijã que lhe corre a Norte. Com as encostas cobertas de grandes poilões e mato rasteiro, é um ponto de referência importante num território predominantemente plano. A vastíssima bolanha do Cumbijã dava arroz em quantidade que, antes da guerra, quer a Casa Gouveia, representante da CUF no território, quer a Sociedade Comercial Ultramarina, vinham comprar, na época própria, ao cais existente na margem direita, isto é, fronteiro a Salancaur e do outro lado do rio.”


Manifesta o autor a preocupação de que o leitor se insira naquele espaço e até naquele tempo, é um observador cuidado, quer manifestamente que o leitor ponhas os pés naquela terra de combate e em voo picado estamos em Mejo:
“Do ponto de vista militar, Mejo era um retângulo de 100 por 110 metros de lado que dependia da companhia de Guileje que aqui tinha um pelotão para garantir um mínimo de proteção à população regressada. A CCAÇ 1591 foi a primeira a estanciar por lá por 8 meses e meio. Sem instalações para alojar o efetivo da companhia mais os do pelotão destacado de Guileje, os primeiros meses foram vividos em tendas cónicas carcomidas pelo sol e pelas chuvas da Guiné. Os buracos eram tapados por rolhões de capim enquanto se trabalhava no fabrico artesanal de tijolos para a construção de casernas. Quando a CCAÇ 1591 arribou a Mejo, cuja má fama corria infrene por todos os cantos da Guiné, só se via capim verde e alto como um homem de pé, não só no exterior, mas também no interior da posição. Embora pareça inconcebível, aqui andava-se por trilhos ladeados de capim!”.

Segue-se a descrição da população civil e do armamento rudimentar da unidade dependente do comando de batalhão de Buba, ficamos a saber que a população de Mejo era da subetnia Futa-fula, mas não faltavam Fulas-forros.
Não se compadece, tem comprovadamente a memória bem acerada, com as jigajogas do decisor militar e muito menos com as manhosices burocráticas. Qual a importância de Mejo? Fazia parte de um plano de operações que tinha como objetivo principal a ocupação da colina de Salancaur, plano que se iniciara alguns meses antes da chegada de Schultz, concebido pelo comandante militar, pois a primeira medida de Schultz foi cancelar toda a atividade operacional determinada por este comandante. “A ordem alcançou a tropa quando esta já marchava rumo a Salancaur com o Pelotão de Reconhecimento Fox de Guileje a abrir a progressão, nunca mais se pensando em acabar algo que fora bem pensado.”

Mesmo a descrição da chegada da CCAÇ 1591 tem toques de originalidade, houve para ali umas trocas a baldrocas no quartel-general, estavam à espera de outra unidade, o Tenente Luís Cadete é mal recebido por aquela burocracia que tinha a inteligência de uma porta ondulada, lá vão para Brá, metidos numa caverna devoluta sem camas, andaram a fazer carreira de tiro em Prábis e depois metidos na LDG Montante, rumo a Fulacunda. Vão agora começar histórias galhardas, pícaras, de entremeio com lembranças afetuosas, algumas delas, garanto a pés juntos, merecia ser reproduzidas aqui por inteiro. Convém que o leitor não se esqueça que estamos em 1966, o corredor de Guileje ainda não assumira a dimensão infernal com que hoje é por muitos lembrado.

No pórtico das lembranças temos a paixão de Mariama, a bajuda mais bela da tabanca, Luís Cadete burila a quintessência da beleza:
“O corpo era escultural, de fazer inveja à estatuária da Antiguidade Clássica. Tinha um par de pernas deslumbrante, bem torneadas e esguias e a mama alta, firme, delicadamente cheia, como eu nunca vira nem voltei a ver outra e que, conforme à tradição, trazia em liberdade franca; a pele escura de tom avermelhado era acetinada, quente e glabra sem imperfeições. Quando ela passava no seu passo elástico e elegante a caminho da Fonte das Mocinhas – nome pelo qual era conhecida a nascente permanente situada a Sul da estrada para Buba e à entrada da tabanca –, sorrindo de olhos baixos aos piropos do pessoal, ninguém havia na Companhia que se não virasse para a ver passar.”

Mariama apaixonou-se pelo soldado D, rapaz sossegado, disciplinado e respeitador, nado e criado lá para as bandas da Lousã. E era correspondida. E não falta uma pitada forte de romantismo para adubar o romance:
“A Mariama e o D namoravam ao arame farpado e era um regalo vê-los conversando horas a fio sem que se descortinasse o que tanto tinham para segredar um ao outro. Dos olhos da Mariama, a ternura daqueles momentos via-se escorrer ao acariciar o rosto do D. E eu, romântico contumaz, nunca fui capaz de proibir aquelas manifestações de um amor impossível, dadas as circunstâncias.
E, durante cerca de quatro meses, aquele amor entre os dois encheu de ternura quantos viam o D e a Mariama no seu enlevo casto e puro ao arame farpado.”

Vieram os comentários libidinosos, nosso capitão não estava ali para os ajustes, lembrou a Mariama aquela evidência de que qualquer dia o D se ia embora sem consequências, era melhor que ela se protegesse para o futuro, e o final deste episódio é mesmo inesquecível:
“Olhou-me com um certo ar de desafio como quem sabe muito bem o que fazer e enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela cara abaixo respondeu-me, fitando-me nos olhos com o seu quê de desafio:
- Hora di D bai, nó na dita i n’bai faziu sabi toc i D cá esquíci Mariama (quando o D se for embora, vamo-nos deitar e fá-lo-emos e o D nunca esquecerá a Mariama).
Foi assim?
Só eles o saberão.”


Prepare-se o leitor para muito mais.

Aquartelamento de Mejo, imagem de Alberto Pires, com a devida vénia
Outra imagem de Mejo, também de Alberto Pires

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19821: Notas de leitura (1180): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O nosso bardo Santos Andrade fixou a data da entrada nas hostilidades, 11 de agosto de 1963. De novo, o tema da comida, a chegada da monotonia e insipidez alimentares. E o espectro da flagelação e a saída para operações.
Valeu-nos para Companhia um confrade que legou à literatura da guerra uma verdadeira gema, "Vindimas no Capim", o Zé Brás, que fez longa permanência no Sul. Aqui temos a impressiva descrição da viagem pela noite fora até Buba, as safadezas da cantina, da messe e do bar, as desconfianças da roubalheira, de quem se abotoava com as vendas debaixo da mesa, e o primeiro embate, o inesquecível primeiro embate, de pesadelo, de um morto que não deu pela morte e de outro que suplica ver o seu filho, que não chegou a conhecer. Parece-nos boa companhia para esta entrada em funções da CCAV 488.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (7)

Beja Santos

“Algum tempo se passava
a luta começou
E no dia 11 de agosto
a 488 alinhou.

Com as marmitas na mão,
nós fazíamos grandes bichas
comendo arroz com salsichas
e sopa de macarrão.
Com esta alimentação
o pessoal não aguentava
e o vague-mestre não gostava
de dar de comer com muito azeite.
Bebendo café com pouco leite
algum tempo se passava.

Ao Sul foram dois pelotões
da 1.ª e 3.ª Companhia.
E como o António José dizia
só comiam rações.
Sofreram muitas aflições:
o Matias também as passou;
o Aníbal Joaquim chegou
a comer carne só com sal.
Com fome na guerra afinal
a luta começou.

Fartaram-se de sofrer
nesta maldita saída.
Já diziam mal da vida
quando não tinham que comer,
pois eles tinham que se defender
com a sua arma ao rosto.
Chegava a hora do sol-posto,
começava a pancadaria
E ao norte saiu o Joaquim Maria.
No dia 11 de agosto.

Ordenou o capitão
a toda a rapaziada
que nesse dia de madrugada
tinham que ir para a missão.
Juntam os comandantes do pelotão
e o que iam fazer lhes contou.
E a dois colegas meus calhou
a saída desta vez.
E no dia 11 deste mês,
a 488 alinhou.”

********************

Há o desembarque, a instalação precária, a viagem para uma unidade ou para o desconhecido, a descoberta das amarguras do rancho, as primeiras operações. Vai-nos servir hoje de guia José Brás e o seu esplêndido “Vindimas no Capim”, Prémio de Revelação de Ficção 1986 da Associação Portuguesa de Escritores:
“… E lá se foi Lisboa, agora longe outra vez, e eu de novo ali na Guiné, na noite anterior a bordo de navio de transporte de tropas Niassa a ver ao longe as luzes de Bissau; a noite toda numa LDG a navegar rios acima por essa Guiné adentro, só com o ruído do motor do barco e a mata adivinhada no escuro das margens, ora longe, ora perto, às vezes tão perto que quase roçavam os bordos da lancha; a manhã vermelha nas copas do matagal; a metralhadora 12,7 na proa, lança-rockets, morteiro 60, tudo a postos no barco a cargo dos fuzileiros. O pessoal da Companhia de Caçadores 1622 era ainda uma excursão, turistas cheios de curiosidade.
E por volta da uma da tarde, Buba!
Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a autoestrada do Norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa.
As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada; um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar. A mancha definia-se, tomava forma, decompunha-se em formas, em gestos… Já se distinguia uma palavra ou outra no emaranhado de berros e de gritos, da beira da estrada, agora de novo a armar-se em rio, para o barco dos fusas, para o Niassa, que estava em Bissau à espera, para o Cais da Rocha, onde outra mancha havia de esperar o que restava destes dois anos”.

Passemos agora, sempre pela mão de José Brás, pelas tremendas questões da cantina, ele vai falar da sua experiência de gerente de bar:
“No início, o batalhão de que dependíamos informara-nos de que deveríamos apresentar balancetes mensais de gerência. O Capitão Velez sugeriu-me que fizesse dois balancetes, um falso, para o batalhão, e um real, para nosso governo.
Queria ele que o batalhão apresentasse saldo pequeno. No fim dos 20 meses não havia de facto, cem contos de lucro, mas apenas dezassete. Espantado fiquei eu quando, no último dia de Guiné, mesmo na véspera do embarque, já com as contas todas fechadas e entregues na respetciva repartição em Bissau, o primeiro-sargento da Companhia me pediu as contas do bar que tínhamos fechado dois meses antes, com os tais dezassete contos de saldo positivo, e que ele conhecia melhor do que ninguém.
No barco ainda tentaram, ele, o capitão e dois alferes, na noite da chegada a Lisboa, até de madrugada, no camarote do Velez, apertar comigo. O único pilim que tinha era o que o Estado depositava mensalmente na minha conta do banco da vila, e com esse contava eu para me aguentar nos primeiros tempos de vida nova”.

E há descrição do primeiro contacto, andava por lá a ceifeira da morte:
“A granada de bazuca, ou de lança-rockets, irá explodir contra uma árvore atrás do bagabaga onde estará abrigado e semeará estilhaços nos corpos todos que ali estarão contraídos de medo. A sementeira é rápida e os frutos brotam de imediato. A terra é virgem e a floração, vermelha e lasciva, salta e alastra em borbotões.
A semente que coube ao Madeirense levou-lhe metade da cabeça num golpe de mágica. Num segundo era uma cabeça normal, cara de fuinha, barba rala, olhos assustados… Um segundo depois já lá não estava tampa, cortadinha assim, pela testa, num golpe a descer para a base da nuca, junto ao pescoço, atrás.
Ao Barcelos, a sementeira abriu-lhe buraquinhos no peito e na barriga. Esse deu pela morte. Levou aí uma hora a esgotar-se, às costas dos companheiros na fuga para o quartel. O perigo da proximidade dos guerrilheiros proibia-lhe os berros de dor, obrigando-nos a enfiar-lhe na boca um rolo de ligaduras.
Para evitarmos as minas na picada, dois soldados, um negro e um branco, abriam mata à faca e os ramos fustigavam-nos e fustigavam o Barcelos, destapando-lhe as brechas da barriga. Nos altos pousávamos o Barcelos no chão e viam-se-lhe dois nós na cara, um de cada lado, logo abaixo das patilhas, e rolos de lágrimas a misturarem-se com suor:
‘- Aguenta-te, pá! Aguenta! Aguenta, que os sacanas andam aqui perto à nossa volta e se nos agarram nesta mata de merda fodem-nos a todos!’.
O alferes Vilar tentava suster o desânimo do soldado e escondia-lhe a sua própria angústia e as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos vermelhos.
‘- Não quero morrer! Quero ver o meu filho!’.
‘- Aguenta, pá! Os gajos estão aqui perto, a cinquenta metros. As rajadas são para ver se a gente responde’.
‘- O meu filho! Morro e não vejo o meu filho!’
Pelo canto da boca saía-lhe um leve fio de sangue.
‘- Não morres nada, pá! Estás a aguentar bem! Ânimo! É só mais um quilómetro!’.
O Barcelos cansou-se daquilo muito antes do helicóptero e não houve forma de o convencer a ficar connosco”.


(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19002: Notas de leitura (1099): Relendo uma obra soberba - "Vindimas no Capim", por José Brás; Publicações Europa-América (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,

Naqueles anos de 1980, a obra do José Brás teria que surpreender pela riquíssima associação criada entre as vindimas que ele conheceu a ponto das suas descrições serem páginas de antologia e as vindimas no capim, como ele relata no final do seu soberbo romance, vindimas de mil cansaços, dos estrondos, das rajadas, nas febres, na água podre, nas centenas de quilómetros de picada, de trilhos, de selva virgem, nas horas e horas a rastejar sobre capim, na lentidão do tempo para o regresso, no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gadembel.

Um acaso feliz permitiu uma nova e naturalmente refrescada leitura de um livro de um confrade nosso que marcou presença, por direito próprio, no que há de melhor na literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2)

Beja Santos

Chama-se Filipe Bento, veio do meio rural (concelho de Alenquer), depois o mancebo percorreu vários quartéis, está agora no Sul da Guiné, foi colocado em Cutima, uma localidade Fula.
Descreve o pesadelo das colunas, neste caso a primeira que lhe coube na rifa:

“Eram quinze ou dezasseis carros. Velhas GMCs, Mercedes, Unimogs, duas autometralhadoras Fox, duas Daimlers da grande guerra. Isto tudo fazia mais de um quilómetro de coluna. O pessoal sobre a carga, camuflados novos, caras pálidas, do Inverno de Santa Margarida e do enjoo do porão do Niassa…

E aquele calor sufocante das três da tarde. Os pulmões à rasquinha para separar o oxigénio da humidade.

A caravana pôs-se em marcha lentamente. Nas caras dos meninos podíamos ver o quê?
Sei lá! Como é que eu posso dizer o que é que ia naquelas caras se eu nem sei o que é que ia na minha! O que lhes ia nas caras era de certeza o que lhes ia nas almas.

Havia ali muita cagufa! Até eu, armado agora em cronista, até eu, repito, até eu não tinha muita certeza se a conversa dos outros gajos era a sério ou… Simples gozo, a acagaçar quem acagaçado estava já…”.

Estamos a falar de um livro soberbo, “Vindimas no Capim”, José Brás, 2.ª Edição, Publicações Europa América, 1987.

E Filipe Bento deambula, deriva para outras histórias, um Benedito que queria matar o capitão e feriu gravemente outros; o padeiro em Camba-Jate, que nunca tirava os pés do quartel, e que um dia lhe deu na bolha e acompanhou uma patrulha, achou um engenho, artesanal, já ferrugento. Fechou-se em copas, trouxe-o para o quartel.

Segue-se a brutalidade da descrição:

“Depois do banho e da cerveja fresca, lembrou-se daquilo. Foi buscá-lo para o mostrar ao cabo do bar e para explicar ao outro, um pouco assustado e a olhar de lado para a lata velha, que não havia perigo nenhum, aquilo havia passado invernos à chuva e já tinha pólvora que prestasse.
Tentou desmanchá-la. Começou a batê-la contra o cimento da cantaria. Uma, duas, três, quatro, pum!

O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E a mão lá se foi!

No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava. A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direção ao posto de socorros”.

O cabo do bar observou que tivera sorte em ser canhoto.

É uma escrita pontuada pelo pícaro, pela intensa coloquialidade, pela ênfase no horrível, na sensualidade, na muita insensatez no uso do mando, na vida insípida e num tempo aparentemente parado arame farpado adentro, de igual modo quando passa a limpo as tragédias das emboscadas.

Mas voltemos a Cutima, um hectare cercado de paliçada de cibos e lata de bidão. Um dito aparentemente vulgar introduz um novo ritmo na atmosfera: comia-se bem em Cutima-Fula, mas havia a ganância do vagomestre, as roubalheiras do despenseiro, ali a vida simulava o ritmo velho, com comerciantes a usar caminhos estranhos para vender a mancarra em Bafatá, as máquinas Singer continuavam o velho costume de juntar o tecido ao destino da linha, e depois chegou o Spínola e a guerra mudou de feição, se no passado em Cutima Fula a guerra só chegava nos estrondos dos ataques a Nhala, a Colibuia e ao Xitole, agora batia à porta de Cutima-Fula, as colunas tornavam-se duríssimas, o sangrento da guerra espalhava-se pelas picadas.

E há discursos que fazem avivar a perda da lógica, o contrassenso de todas as guerras, um exemplo:

“A mina antipessoal estava colocada do outro lado do tronco da árvore caída na picada. Era uma velha prática do PAIGC, toda a gente sabia, mas não havia maneira de evitá-las.

De resto, não era esta a única forma de semear minas e armadilhas num trilho qualquer. E vocês estão a ver! Como é que se podia perder tempo a procurar minas num percurso de vinte quilómetros de carril feito de capim podre e milhões de folhas secas? A bem dizer, de que cada vez que se assentava um pé era uma angústia, a cada passo a sensação de que era o último”.

Temos agora nova deriva, vamos até Gatoeira, não será muito longe de S. Jerónimo, terra da criança Filipe Bento, mas onde onde ele nasceu foi mesmo nesta Gatoeira, veio ao mundo numa das casas do avô materno, ao lado da adega, só aos oito anos é que mudaram para S. Jerónimo.

De novo uma descrição antológica, voltemos às vindimas:

“Fiz toda a limpeza da poda da vinha do meu avô paterno e quando chegaram as curas lá fui eu de novo para o patrão da vindima, agora a carregar o canequinho cheio de sulfato entre a barrica e o pulverizador.

Dias inteiros sem parar.

No princípio, as vinhas ainda têm as golas, as parras pequenas, levam pouco líquido, as boquilhas dos pulverizadores têm os orifícios estreitos, cada carrego do caneco leva um tempo razoável a esgotar-se no pulverizador. Se a barrica da cauda não ficar muito longe do local onde opera o sulfatador, o servente folga um pouco. Depois, começam as cepas a encorpar, as parras a crescer, os buracos de saída das boquilhas a alargar… É um vê-se-te-avias”.

E temos uma confissão, ainda a propósito destas sulfatadas:

“Nos sulfates, não imaginam vocês, o cobre da solução aquosa cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra nos poros todos… Se passarmos as mãos apenas por água do poço, ou se as deixarmos até sem uma boa lavagem… Ou até ao fim da semana… Ou havia quem fizesse assim até ao fim da temporada toda das curas, três meses, mais ou menos, no final aquilo não são mãos, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um polvo negro a agitar os tentáculos.

Eu cá, ao fim do dia, lavava as mãos com mijo! Acabava o trabalho, se tinha vontade de mijar afastava-me um pouco, virava-me a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos. Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias”.

Fala-se de bruxedos, de bebedeiras e navalhadas, de como se soube que havia uma guerra lá para as Áfricas, há queixas na GNR por maus tratos dos patrões, está aqui um retrato finíssimo de um mundo rural que se apagou, décadas atrás. Mas o autor justifica que há amarras entre os escravos brancos e pretos e que essas amarras rebentaram, a um preço sem igual carregámos aos ombros moribundos, conhecemos todas as cores da fome e da sede, do calor e do frio. Mas que o leitor não se iluda, aqui também fomos escravos, embora muitos “Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas da praça de homens, valorados em lanços de coroa ou dez tostões, um quarto de pão escuro na mesa da ceia".

Para que conste, há muitas maneiras de falarmos das vindimas no capim. E José Brás foi magistral nas associações que criou entre o mundo rural de Alenquer e aquele devastador Sul da Guiné, onde ele também vindimou.

[José Brás foi fur mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68); nasceu em Alenquer; trabalhou na TAP como tripulante comercial de 1972 a 1997; foi sindicatlsta e autarca; mora em Montemor-o-Novo; tem cerca de 130 referências no nosso blogue; é também autor de "Lugares de Passagem", Chiado Editora, Lisboa, 2010]
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Notas do editor

Poste anterior de 3 DE SETEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18977: Notas de leitura (1097): Relendo uma obra soberba - "Vindimas no Capim", por José Brás; Publicações Europa-América (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18992: Notas de leitura (1098): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (50) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18977: Notas de leitura (1097): Relendo uma obra soberba - "Vindimas no Capim", por José Brás; Publicações Europa-América (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julno de 2016:

Queridos amigos,
Quis o feliz acaso ou a fortuna que descobrisse em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, na manhã de domingo, 12 de Junho, num mercado onde se vendem, roupas usadas, cds, mil imensos bibelôs, agrícolas biológicos, pão feito por alternativos alemães, o prodigioso "Vindimas no Capim", que em tempos aqui exaltei e pela mesmo ordem de razão aqui volto a ovacionar.
Na verdade, naquele década de 1980, os combatentes, chegados aos 40 e 50 anos, deram para falar de si com uma estonteante sinceridade. Assim aconteceu, no caso da Guiné, com Álamo de Oliveira, Cristóvão de Aguiar e José Brás.
A brutalidade do romance de José Brás é por vezes arrepiante, uma brutalidade que lembra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz ou "Olhos de Caçador", de António Brito. O testemunho violentíssimo de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota tem outras vertentes, há também muita brutalidade (recorde-se a descrição inultrapassável do ataque a Mansabá) mas perpassa pelo seu livro um doloroso lirismo de um herói a quem se lhe nega aquela estranha noiva de guerra. José Brás pode orgulhar-nos por este seu livro soberbo, exclamativo, nunca escamoteando o jargão da caserna.
Abençoada a hora em que me decidi em ir aquele mercado de velharias e reencontrei o nosso admirável José Brás.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1)

Beja Santos

Um acaso feliz permitiu-me adquirir um exemplar de “Vindimas no Capim”, estava a fazer uns dias de férias em Pedrógão Pequeno e foi um bálsamo reencontrar-me com a prosa, encontrada num mercado de velharias que funciona todos os domingos em Vila Facaia. O que é muito bom lê-se com imenso prazer, o que é muitíssimo bom, numa segunda ou terceira leitura, e distante que estamos da descoberta de uma gema preciosa, permite ver a originalidade, cerca de três décadas depois da sua publicação.

O que há de verdadeiramente distinto neste romance avassalador do nosso confrade José Augusto dos Santos Brás? Em seu nome irá falar Filipe Bento, oriundo de um meio rural, onde pontificava o machismo, a rudeza, a praga. Tempos não muito distantes, mas Filipe é solene a desvelar o teatro de origem:
“Vocês talvez não saibam, mas quem já teve a profissão de cavador, digo a profissão, não o passatempo de horas livres em pequena horta de brincar, o ofício mesmo, de levantar às cinco, cinco e meia da matina, ir à porta do patrão, caminhar os quilómetros necessários para estar no rego ao nascer do Sol, almoçar às dez, recomeçar às onze, quando não às dez e três quartos, jantar da uma às duas e largar com o pôr-do-sol, caminhar outra vez para casa, para, no dia seguinte e nos milhares de dias seguintes, repetir o gesto e isto dito assim, num repente, pode até enganar quem lê e da vida de cavador não teve notícia nunca, ou se teve foi só de raspão”.
Adrede a esta apresentação, vem um texto antológico, não é a primeira vez que o reproduzo e com muita ufania, admiração por quem o escreveu:
“Uma enxada não é só aquele pedaço de ferro retangular, moldado em meia-lua de bicos afiados num dos lados menores e encimada de um pequeno anel chamado ‘olho’, no outro lado. A enxada compra-se completa com mais dois ferros: o pescaz e a cunha.
E o que é isso do pescaz e da cunha?
Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mis ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata, semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo”.
Tudo começou para Filipe Bento em S. Jerónimo do Ermo, neste preciso mundo rural, não se pode falar da tropa e sobre a guerra sem ter de se falar de outras coisas.

E depois vem a parada, a ordem unida, a disciplina, andar de quartel em quartel antes de embarcar no Niassa, o destino é o Sul da Guiné. Não há artifícios para a linguagem, o nosso furriel vai para Cutima Fula e passado um mês tudo se revirara na sua vida mas que o leitor não se acanhe para além da sua preparação naquele mundo áspero, onde pontifica a virilidade, aprendeu muito com o professor Leiria, e o seu filho militar, mais a mais major, aprendeu que existia a Legião Portuguesa, que havia maroscas, pequenos e grandes poderes entre oficiais, sargentos e praças, vagomestres ladrões.

Este o pano de fundo, a superfície preparatória de uma viagem que começou em Bissau até Buba e que se espraiou por vários locais do Sul da Guiné. É uma linguagem coloquial, um tu cá tu lá com o leitor, ele que se aguente cada vez que é necessário discorrer sobre uma expressão pertinente, caso de “no cu de Judas” que ele tinha lido num livro celebérrimo de Lobo Antunes.
E o discurso que se segue é frenético entre consonâncias e dissonâncias das diferentes guerras que cada um viveu, como segue:
“A porra toda é que se para o Lobo Antunes os cus de judas eram os casinos e os dancings da Ilha de Luanda, onde kamanguistas, comerciantes do planalto, roceiros, cauteleiros da Baixa, gente se ocupação definida, se babava nas mamas de velhas putas lisboetas e cariocas, vociferando contra os cabrões que não lhes deixavam “tratar da saúde aos pretos”; se para ele os cus de Judas eram Malange e a baixa do Cassanje, o algodão que os agricultores não podiam vender se não à empresa que lhes fornecia os fatores de produção e a que estão presos por dívidas eternas, aumentadas ano a ano, colheita após colheita, e por leis do governo de Lisboa, pela vigilância de sobas e cipaios, da O.P.V.C.D.A. e da PIDE; se para ele os cus de Judas eram o Leste de Angola, Gago Coutinho, Luso, Chiúme, Marimba, Cambo; se para ele os cus de Judas eram o deserto de areia e a chana, onde soldados Ferreiras e cabos Pereiras deixavam as pernas e as tripas e militarzinhos quase crianças se enfastiavam daquela merda de morte em vida e disparavam em si próprios; se para o Lobo Antunes os cus de Judas são os percursos entre Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, o servilismo de sobas e de gentes gingas, a explosão da carne da lavadeira Sofia, a cama da hospedeira da TAP no Bairro Prenda, para mim cumpriu-se os cus de Judas naquela confusão de selva e água, de batelões e LDGs, de CUF e libaneses, e comércio de mancarra com agricultores igualmente esfarrapados, igualmente ligados a dívidas e a leis e a vigilâncias de cipaios e de traidores e de milícias e pides; o meu cu de Judas foram Buba e Cutima-Fula, e Nhala e Colibuia e Cumbijã e Cajamba e Mampatá e Saltinho e Madina e Gandembel e Gadamael-Porto e Cacine, tudo terras de morte de raivas contidas no calor das tardes vazias, nas garrafas de uísque e de gin, e de conhaque e do caralho, nos ataques aos quartéis, nas emboscadas, na humidade linfática daquele ar irrespirável entre as dez e as quatro da tarde; na descarga do intestino revoltado; para mim, os cus de Judas eram as idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados na lama das bolanhas, todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vagomestre e do bar com comes-e-bebes que depois se vomitavam na caganeira, quando o estômago aguentava a corrida, ou logo ali à saída da porta se a golfada saltava sem aviso”.

E prossegue a sua toada a estabelecer diferenças, que também as havia, por exemplo a proveniência da mina, seja anticarro ou antipessoal, até houve um caso em que a mina lhe estava destinada, quis a roda da fortuna que lerpasse o cabo Júlio, e por hoje aqui ficamos com tal pungente descrição:
“Os olhos do Peniche abriam-se espantados. Ali aos pés tinha o volume do resto daquilo que fora o corpo do Júlio, meio aterrado, com os cotos dos braços e das pernas a fumegarem estorricados, apontados ao alto. A pele da barriga esticara, rebentando, e mostrava um amontoado de carvão. Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também”.

E agora vamos vê-lo a viver em Cutima-Fula.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18967: Notas de leitura (1096): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Naqueles anos de 1980, a obra do José Brás teria que surpreender pela riquíssima associação criada entre as vindimas que ele conheceu a ponto das suas descrições serem páginas de antologia e as vindimas no capim, como ele relata no final do seu soberbo romance, vindimas de mil cansaços, dos estrondos, das rajadas, nas febres, na água podre, nas centenas de quilómetros de picada, de trilhos, de selva virgem, nas horas e horas a rastejar sobre capim, na lentidão do tempo para o regresso, no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gadembel.
Um acaso feliz permitiu uma nova e naturalmente refrescada leitura de um livro de um confrade nosso que marcou presença, por direito próprio, no que há de melhor na literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2)

Beja Santos

Chama-se Filipe Bento, veio do meio rural (concelho de Alenquer), depois o mancebo percorreu vários quartéis, está agora no Sul da Guiné, foi colocado em Cutima, uma localidade Fula. Descreve o pesadelo das colunas, neste caso a primeira que lhe coube na rifa:
“Eram quinze ou dezasseis carros. Velhas GMC’s, Mercedes, Unimogs, duas autometralhadoras Fox, duas Daimlers da grande guerra. Isto tudo fazia mais de um quilómetro de coluna. O pessoal sobre a carga, camuflados novos, caras pálidas, do Inverno de Santa Margarida e do enjoo do porão do Niassa…
E aquele calor sufocante das três da tarde. Os pulmões à rasquinha para separar o oxigénio da humidade.
A caravana pôs-se em marcha lentamente. Nas caras dos meninos podíamos ver o quê?
Sei lá! Como é que eu posso dizer o que é que ia naquelas caras se eu nem sei o que é que ia na minha! O que lhes ia nas caras era de certeza o que lhes ia nas almas. Havia ali muita cagufa!
Até eu, armado agora em cronista, até eu, repito, até eu não tinha muita certeza se a conversa dos outros gajos era a sério ou… Simples gozo, a acagaçar quem acagaçado estava já…”.

Estamos a falar de um livro soberbo, “Vindimas no Capim”, José Brás, 2.ª Edição, Publicações Europa América, 1987.

E Filipe Bento deambula, deriva para outras histórias, um Benedito que queria matar o capitão e feriu gravemente outros; o padeiro em Camba-Jate, que nunca tirava os pés do quartel, e que um dia lhe deu na bolha e acompanhou uma patrulha, achou um engenho, artesanal, já ferrugento. Fechou-se em copas, trouxe-o para o quartel. Segue-se a brutalidade da descrição:
“Depois do banho e da cerveja fresca, lembrou-se daquilo. Foi buscá-lo para o mostrar ao cabo do bar e para explicar ao outro, um pouco assustado e a olhar de lado para a lata velha, que não havia perigo nenhum, aquilo havia passado Invernos à chuva e já tinha pólvora que prestasse.
Tentou desmanchá-la. Começou a batê-la contra o cimento da cantaria. Uma, duas, três, quatro, pum!
O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E a mão lá se foi!
No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava. A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direção ao posto de socorros. O cabo do bar observou que tivera sorte em ser canhoto".

É uma escrita pontuada pelo pícaro, pela intensa coloquialidade, pela ênfase no horrível, na sensualidade, na muita insensatez no uso do mando, na vida insípida e num tempo aparentemente parado arame farpado adentro, de igual modo quando passa a limpo as tragédias das emboscadas.

Mas voltemos a Cutima, um hectare cercado de paliçada de cibos e lata de bidão. Um dito aparentemente vulgar introduz um novo ritmo na atmosfera: comia-se bem em Cutima-Fula, mas havia a ganância do vagomestre, as roubalheiras do despenseiro, ali a vida simulava o ritmo velho, com comerciantes a usar caminhos estranhos para vender a mancarra em Bafatá, as máquinas Singer continuavam o velho costume de juntar o tecido ao destino da linha, e depois chegou o Spínola e a guerra mudou de feição, se no passado em Cutima-Fula a guerra só chegava nos estrondos dos ataques a Nhala, a Colibuia e ao Xitole, agora batia à porta de Cutima-Fula, as colunas tornavam-se duríssimas, o sangrento da guerra espalhava-se pelas picadas. E há discursos que fazem avivar a perda da lógica, o contrassenso de todas as guerras, um exemplo:
“A mina antipessoal estava colocada do outro lado do tronco da árvore caída na picada. Era uma velha prática do PAIGC, toda a gente sabia, mas não havia maneira de evitá-las. De resto, não era esta a única forma de semear minas e armadilhas num trilho qualquer. E vocês estão a ver! Como é que se podia perder tempo a procurar minas num percurso de vinte quilómetros de carril feito de capim podre e milhões de folhas secas? A bem dizer, de que cada vez que se assentava um pé era uma angústia, a cada passo a sensação de que era o último”.

Temos agora nova deriva, vamos até Gatoeira, não será muito longe de S. Jerónimo, terra da criança Filipe Bento, mas onde onde ele nasceu foi mesmo nesta Gatoeira, veio ao mundo numa das casas do avô materno, ao lado da adega, só aos oito anos é que mudaram para S. Jerónimo. De novo uma descrição antológica, voltemos às vindimas:
“Fiz toda a limpeza da poda da vinha do meu avô paterno e quando chegaram as curas lá fui eu de novo para o patrão da vindima, agora a carregar o canequinho cheio de sulfato entre a barrica e o pulverizador.
Dias inteiros sem parar.
No princípio, as vinhas ainda têm as golas, as parras pequenas, levam pouco líquido, as boquilhas dos pulverizadores têm os orifícios estreitos, cada carrego do caneco leva um tempo razoável a esgotar-se no pulverizador. Se a barrica da cauda não ficar muito longe do local onde opera o sulfatador, o servente folga um pouco. Depois, começam as cepas a encorpar, as parras a crescer, os buracos de saída das boquilhas a alargar… É um vê-se-te-avias”.

E temos uma confissão, ainda a propósito destas sulfatadas:
“Nos sulfates, não imaginam vocês, o cobre da solução aquosa cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra nos poros todos… Se passarmos as mãos apenas por água do poço, ou se as deixarmos até sem uma boa lavagem… Ou até ao fim da semana… Ou havia quem fizesse assim até ao fim da temporada toda das curas, três meses, mais ou menos, no final aquilo não são mãos, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um polvo negro a agitar os tentáculos.
Eu cá, ao fim do dia, lavava as mãos com mijo! Acabava o trabalho, se tinha vontade de mijar afastava-me um pouco, virava-me a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos. Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias”.

Fala-se de bruxedos, de bebedeiras e navalhadas, de como se soube que havia uma guerra lá para as Áfricas, há queixas na GNR por maus tratos dos patrões, está aqui um retrato finíssimo de um mundo rural que se apagou, décadas atrás. Mas o autor justifica que há amarras entre os escravos brancos e pretos e que essas amarras rebentaram, a um preço sem igual carregámos aos ombros moribundos, conhecemos todas as cores da fome e da sede, do calor e do frio. Mas que o leitor não se iluda, aqui também fomos escravos, embora muitos “Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas da praça de homens, valorados em lanços de coroa ou dez tostões, um quarto de pão escuro na mesa da ceia".

Para que conste, há muitas maneiras de falarmos das vindimas no capim. E José Brás foi magistral nas associações que criou entre o mundo rural de Alenquer e aquele devastador Sul da Guiné, onde ele também vindimou.
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Nota do editor

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sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16233: Nota de leitura (851): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Quis o feliz acaso ou a fortuna que descobrisse em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, na manhã de domingo, 12 de Junho, num mercado onde se vendem roupas usadas, cds, mil imensos bibelôs, agrícolas biológicos, pão feito por alternativos alemães, o prodigioso "Vindimas no Capim", que em tempos aqui exaltei e pela mesmo ordem de razão aqui volto a ovacionar.
Na verdade, naquele década de 1980, os combatentes, chegados aos 40 e 50 anos, deram para falar de si com uma estonteante sinceridade. Assim aconteceu, no caso da Guiné, com Álamo de Oliveira, Cristóvão de Aguiar e José Brás.
A brutalidade do romance de José Brás é por vezes arrepiante, uma brutalidade que lembra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz ou "Olhos de Caçador", de António Brito. O testemunho violentíssimo de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota tem outras vertentes, há também muita brutalidade (recorde-se a descrição inultrapassável do ataque a Mansabá) mas perpassa pelo seu livro um doloroso lirismo de um herói a quem se lhe nega aquela estranha noiva de guerra.
José Brás pode orgulhar-nos por este seu livro soberbo, exclamativo, nunca escamoteando o jargão da caserna.
Abençoada a hora em que me decidi em ir aquele mercado de velharias e reencontrei o nosso admirável José Brás.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1)

Beja Santos

Um acaso feliz permitiu-me adquirir um exemplar de “Vindimas no Capim”, estava a fazer uns dias de férias em Pedrógão Pequeno e foi um bálsamo reencontrar-me com a prosa, encontrada num mercado de velharias que funciona todos os domingos em Vila Facaia. O que é muito bom lê-se com imenso prazer, o que é muitíssimo bom, numa segunda ou terceira leitura, e distante que estamos da descoberta de uma gema preciosa, permite ver a originalidade, cerca de três décadas depois da sua publicação.

O que há de verdadeiramente distinto neste romance avassalador do nosso confrade José Augusto dos Santos Brás? Em seu nome irá falar Filipe Bento, oriundo de um meio rural, onde pontificava o machismo, a rudeza, a praga. Tempos não muito distantes, mas Filipe é solene a desvelar o teatro de origem:
“Vocês talvez não saibam, mas quem já teve a profissão de cavador, digo a profissão, não o passatempo de horas livres em pequena horta de brincar, o ofício mesmo, de levantar às cinco, cinco e meia da matina, ir à porta do patrão, caminhar os quilómetros necessários para estar no rego ao nascer do Sol, almoçar às dez, recomeçar às onze, quando não às dez e três quartos, jantar da uma às duas e largar com o pôr-do-sol, caminhar outra vez para casa, para, no dia seguinte e nos milhares de dias seguintes, repetir o gesto e isto dito assim, num repente, pode até enganar quem lê e da vida de cavador não teve notícia nunca, ou se teve foi só de raspão”.
Adrede a esta apresentação, vem um texto antológico, não é a primeira vez que o reproduzo e com muita ufania, admiração por quem o escreveu:
“Uma enxada não é só aquele pedaço de ferro retangular, moldado em meia-lua de bicos afiados num dos lados menores e encimada de um pequeno anel chamado ‘olho’, no outro lado. A enxada compra-se completa com mais dois ferros: o pescaz e a cunha.
E o que é isso do pescaz e da cunha?
Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mais ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata, semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo”.
Tudo começou para Filipe Bento em S. Jerónimo do Ermo, neste preciso mundo rural, não se pode falar da tropa e sobre a guerra sem ter de se falar de outras coisas.

E depois vem a parada, a ordem unida, a disciplina, andar de quartel em quartel antes de embarcar no Niassa, o destino é o Sul da Guiné. Não há artifícios para a linguagem, o nosso furriel vai para Cutima-Fula e passado um mês tudo se revirara na sua vida mas que o leitor não se acanhe para além da sua preparação naquele mundo áspero, onde pontifica a virilidade, aprendeu muito com o professor Leiria, e o seu filho militar, mais a mais major, aprendeu que existia a Legião Portuguesa, que havia maroscas, pequenos e grandes poderes entre oficiais, sargentos e praças, vagomestres ladrões. Este o pano de fundo, a superfície preparatória de uma viagem que começou em Bissau até Buba e que se espraiou por vários locais do Sul da Guiné. É uma linguagem coloquial, um tu cá tu lá com o leitor, ele que se aguente cada vez que é necessário discorrer sobre uma expressão pertinente, caso de “no cu de Judas” que ele tinha lido num livro celebérrimo de Lobo Antunes. E o discurso que se segue é frenético entre consonâncias e dissonâncias das diferentes guerras que cada um viveu, como segue:
“A porra toda é que se para o Lobo Antunes os cus de judas eram os casinos e os dancings da Ilha de Luanda, onde kamanguistas, comerciantes do planalto, roceiros, cauteleiros da Baixa, gente se ocupação definida, se babava nas mamas de velhas putas lisboetas e cariocas, vociferando contra os cabrões que não lhes deixavam “tratar da saúde aos pretos”; se para ele os cus de Judas eram Malange e a baixa do Cassanje, o algodão que os agricultores não podiam vender se não à empresa que lhes fornecia os fatores de produção e a que estão presos por dívidas eternas, aumentadas ano a ano, colheita após colheita, e por leis do governo de Lisboa, pela vigilância de sobas e cipaios, da O.P.V.C.D.A. e da PIDE; se para ele os cus de Judas eram o Leste de Angola, Gago Coutinho, Luso, Chiúme, Marimba, Cambo; se para ele os cus de Judas eram o deserto de areia e a chana, onde soldados Ferreiras e cabos Pereiras deixavam as pernas e as tripas e militarzinhos quase crianças se enfastiavam daquela merda de morte em vida e disparavam em si próprios; se para o Lobo Antunes os cus de Judas são os percursos entre Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, o servilismo de sobas e de gentes gingas, a explosão da carne da lavadeira Sofia, a cama da hospedeira da TAP no Bairro Prenda, para mim cumpriu-se os cus de Judas naquela confusão de selva e água, de batelões e LDGs, de CUF e libaneses, e comércio de mancarra com agricultores igualmente esfarrapados, igualmente ligados a dívidas e a leis e a vigilâncias de cipaios e de traidores e de milícias e pides; o meu cu de Judas foram Buba e Cutima-Fula, e Nhala e Colibuia e Cumbijã e Cajamba e Mampatá e Saltinho e Madina e Gandembel e Gadamael-Porto e Cacine, tudo terras de morte de raivas contidas no calor das tardes vazias, nas garrafas de uísque e de gin, e de conhaque e do caralho, nos ataques aos quartéis, nas emboscadas, na humidade linfática daquele ar irrespirável entre as dez e as quatro da tarde; na descarga do intestino revoltado; para mim, os cus de Judas eram das idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados na lama das bolanhas, todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vagomestre e do bar com comes-e-bebes que depois se vomitavam na caganeira, quando o estômago aguentava a corrida, ou logo ali à saída da porta se a golfada saltava sem aviso”.

E prossegue a sua toada a estabelecer diferenças, que também as havia, por exemplo a proveniência da mina, seja anticarro ou antipessoal, até houve um caso em que a mina lhe estava destinada, quis a roda da fortuna que lerpasse o cabo Júlio, e por hoje aqui ficamos com tal pungente descrição:  
"Os olhos do Peniche abriam-se espantados. Ali aos pés tinha o volume do resto daquilo que fora o corpo do Júlio, meio aterrado, com os cotos dos braços e das pernas a fumegarem estorricados, apontados ao alto. A pele da barriga esticara, rebentando, e mostrava um amontoado de carvão. Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também”.

E agora vamos vê-lo a viver em Cutima-Fula.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos; o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005)- Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)