sexta-feira, 24 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19821: Notas de leitura (1180): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O nosso bardo Santos Andrade fixou a data da entrada nas hostilidades, 11 de agosto de 1963. De novo, o tema da comida, a chegada da monotonia e insipidez alimentares. E o espectro da flagelação e a saída para operações.
Valeu-nos para Companhia um confrade que legou à literatura da guerra uma verdadeira gema, "Vindimas no Capim", o Zé Brás, que fez longa permanência no Sul. Aqui temos a impressiva descrição da viagem pela noite fora até Buba, as safadezas da cantina, da messe e do bar, as desconfianças da roubalheira, de quem se abotoava com as vendas debaixo da mesa, e o primeiro embate, o inesquecível primeiro embate, de pesadelo, de um morto que não deu pela morte e de outro que suplica ver o seu filho, que não chegou a conhecer. Parece-nos boa companhia para esta entrada em funções da CCAV 488.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (7)

Beja Santos

“Algum tempo se passava
a luta começou
E no dia 11 de agosto
a 488 alinhou.

Com as marmitas na mão,
nós fazíamos grandes bichas
comendo arroz com salsichas
e sopa de macarrão.
Com esta alimentação
o pessoal não aguentava
e o vague-mestre não gostava
de dar de comer com muito azeite.
Bebendo café com pouco leite
algum tempo se passava.

Ao Sul foram dois pelotões
da 1.ª e 3.ª Companhia.
E como o António José dizia
só comiam rações.
Sofreram muitas aflições:
o Matias também as passou;
o Aníbal Joaquim chegou
a comer carne só com sal.
Com fome na guerra afinal
a luta começou.

Fartaram-se de sofrer
nesta maldita saída.
Já diziam mal da vida
quando não tinham que comer,
pois eles tinham que se defender
com a sua arma ao rosto.
Chegava a hora do sol-posto,
começava a pancadaria
E ao norte saiu o Joaquim Maria.
No dia 11 de agosto.

Ordenou o capitão
a toda a rapaziada
que nesse dia de madrugada
tinham que ir para a missão.
Juntam os comandantes do pelotão
e o que iam fazer lhes contou.
E a dois colegas meus calhou
a saída desta vez.
E no dia 11 deste mês,
a 488 alinhou.”

********************

Há o desembarque, a instalação precária, a viagem para uma unidade ou para o desconhecido, a descoberta das amarguras do rancho, as primeiras operações. Vai-nos servir hoje de guia José Brás e o seu esplêndido “Vindimas no Capim”, Prémio de Revelação de Ficção 1986 da Associação Portuguesa de Escritores:
“… E lá se foi Lisboa, agora longe outra vez, e eu de novo ali na Guiné, na noite anterior a bordo de navio de transporte de tropas Niassa a ver ao longe as luzes de Bissau; a noite toda numa LDG a navegar rios acima por essa Guiné adentro, só com o ruído do motor do barco e a mata adivinhada no escuro das margens, ora longe, ora perto, às vezes tão perto que quase roçavam os bordos da lancha; a manhã vermelha nas copas do matagal; a metralhadora 12,7 na proa, lança-rockets, morteiro 60, tudo a postos no barco a cargo dos fuzileiros. O pessoal da Companhia de Caçadores 1622 era ainda uma excursão, turistas cheios de curiosidade.
E por volta da uma da tarde, Buba!
Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a autoestrada do Norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa.
As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada; um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar. A mancha definia-se, tomava forma, decompunha-se em formas, em gestos… Já se distinguia uma palavra ou outra no emaranhado de berros e de gritos, da beira da estrada, agora de novo a armar-se em rio, para o barco dos fusas, para o Niassa, que estava em Bissau à espera, para o Cais da Rocha, onde outra mancha havia de esperar o que restava destes dois anos”.

Passemos agora, sempre pela mão de José Brás, pelas tremendas questões da cantina, ele vai falar da sua experiência de gerente de bar:
“No início, o batalhão de que dependíamos informara-nos de que deveríamos apresentar balancetes mensais de gerência. O Capitão Velez sugeriu-me que fizesse dois balancetes, um falso, para o batalhão, e um real, para nosso governo.
Queria ele que o batalhão apresentasse saldo pequeno. No fim dos 20 meses não havia de facto, cem contos de lucro, mas apenas dezassete. Espantado fiquei eu quando, no último dia de Guiné, mesmo na véspera do embarque, já com as contas todas fechadas e entregues na respetciva repartição em Bissau, o primeiro-sargento da Companhia me pediu as contas do bar que tínhamos fechado dois meses antes, com os tais dezassete contos de saldo positivo, e que ele conhecia melhor do que ninguém.
No barco ainda tentaram, ele, o capitão e dois alferes, na noite da chegada a Lisboa, até de madrugada, no camarote do Velez, apertar comigo. O único pilim que tinha era o que o Estado depositava mensalmente na minha conta do banco da vila, e com esse contava eu para me aguentar nos primeiros tempos de vida nova”.

E há descrição do primeiro contacto, andava por lá a ceifeira da morte:
“A granada de bazuca, ou de lança-rockets, irá explodir contra uma árvore atrás do bagabaga onde estará abrigado e semeará estilhaços nos corpos todos que ali estarão contraídos de medo. A sementeira é rápida e os frutos brotam de imediato. A terra é virgem e a floração, vermelha e lasciva, salta e alastra em borbotões.
A semente que coube ao Madeirense levou-lhe metade da cabeça num golpe de mágica. Num segundo era uma cabeça normal, cara de fuinha, barba rala, olhos assustados… Um segundo depois já lá não estava tampa, cortadinha assim, pela testa, num golpe a descer para a base da nuca, junto ao pescoço, atrás.
Ao Barcelos, a sementeira abriu-lhe buraquinhos no peito e na barriga. Esse deu pela morte. Levou aí uma hora a esgotar-se, às costas dos companheiros na fuga para o quartel. O perigo da proximidade dos guerrilheiros proibia-lhe os berros de dor, obrigando-nos a enfiar-lhe na boca um rolo de ligaduras.
Para evitarmos as minas na picada, dois soldados, um negro e um branco, abriam mata à faca e os ramos fustigavam-nos e fustigavam o Barcelos, destapando-lhe as brechas da barriga. Nos altos pousávamos o Barcelos no chão e viam-se-lhe dois nós na cara, um de cada lado, logo abaixo das patilhas, e rolos de lágrimas a misturarem-se com suor:
‘- Aguenta-te, pá! Aguenta! Aguenta, que os sacanas andam aqui perto à nossa volta e se nos agarram nesta mata de merda fodem-nos a todos!’.
O alferes Vilar tentava suster o desânimo do soldado e escondia-lhe a sua própria angústia e as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos vermelhos.
‘- Não quero morrer! Quero ver o meu filho!’.
‘- Aguenta, pá! Os gajos estão aqui perto, a cinquenta metros. As rajadas são para ver se a gente responde’.
‘- O meu filho! Morro e não vejo o meu filho!’
Pelo canto da boca saía-lhe um leve fio de sangue.
‘- Não morres nada, pá! Estás a aguentar bem! Ânimo! É só mais um quilómetro!’.
O Barcelos cansou-se daquilo muito antes do helicóptero e não houve forma de o convencer a ficar connosco”.


(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 20 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)

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