Fotos de arquivo © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
1. Houve guerras, no passado, que se perderam porque os combatentes iam mal alimentados, outras por certo não se ganharam porque os homens foram para a frente de batalha mal recrutados, mal pagos, mal agasalhados, em mau estado de saúde, mal medicados, mal municiados, mal preparados, mal aconselhados, mal endoutrinados, mal equipados, mal enquadrados, mal comandados, etc. Ou então levavam guitarras em vez de espingardas, como em Alcácer Quibir...
Há leitores que se interessam por números... E a "nossa guerra" (, qualquer que seja o significado do adjetivo possessivo "nossa") também tem alguns números que devem merecer a nossa atenção (*).
O facto de se ter desenrolado a milhares quilómetros de casa, no continente africano, nas nossas antigas colónias (ou "províncias ultramarinas") de Angola, Guiné e Moçambique, sendo os transportes de pessoal e os reabastecimentos feitos por via marítima, obrigava as Forças Armadas (e em especial o Exército) a criar reservas logísticas estratégicas, como se pode ler no livro, didático, do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.).
Por exemplo, ao nível do "fardamento e calçado" (, espantoso, não tínhamos até agora este descritor!) era exigida uma certa quantidade de artigos, em "reserva permanente", nos vários teatros de operações. No caso da Guiné, que é o que nos interessa aqui, eram os seguintes os valores (pág. 293):
- Botas de lona (pares) > 13000
- Botas pretas (pares) > 1900
- Dólman (camuflado) > 2500
- Calças > 10000
- Barretes > 5200.
O que é intrigante é que em todos os itens de fardamento e calçado os valores da Guiné eram muito superiores aos de Angola e Moçambique. Não se percebe a razão da diferença. Talvez o pessoal gastasse mais solas e tecido... Talvez as lavadeiras de Angola e Moçambique fossem mais delicadas a lavar e a passar a ferro a roupa da tropa... Veja-se, por exemplo, o "stock" de botas de lona de Angola (n=3712) e de Moçambique (n=4500), teatros de operações que, de resto, tinham mais militares mobilizados do que na Guiné...
Fiquei a saber (, embora isso não conte em nada para a salvação da minha alma...) que os artigos de fardamento, que nos eram distribuídos, "desde a recruta até ao fim da comissão em África", representavam um encargo de cerca de 5300$00 / homem (dois mil euros, em valores de hoje).
Desagregando este valor, 1300 escudos eram imputados à instrução militar (recruta e especialidade) e os restantes 4 mil à comissão em África, mesmo que lá a malta andasse, muitas vezes, de tanga, em tronco nu, de chanatas (ou até descalça), gastando por isso muito mais pele que tecido... (Os soldados da CCAÇ 12, se a gente os deixasse, iam para o mato descalços...).
Já agora, amigos e camaradas, ficam a saber quanto é que ficaram a dever ao "erário público", só pelos artigos de fardamento que receberam na recruta, a valores de 1964 (pág. 294):
- Uma boina > 23$70;
- Duas camisas de uniforme nº 2 > 120$60;
- Duas calças de uniforme nº 2> 172$20;
- Um blusão > 282$50;
- Uma calça poliéster > 202$00;
- Uma gravata verde > 15$00;
- Um cinto de lona > 23$50;
- Uma camisola de ginástica > 8$70;
- Um calção de ginástica > 18$00;
- Um par de sapatos (desportivos) > 28$40;
- Um par de botas > 297$00;
- Uniforme de instrução / farda detrabalho (nº 3): c. 200$00.
Total = 1391$60 (c. 573 euros, a valores de hoje)
Acho baratos demais os sapatos (desportivos) (28$40) por comparação com as botas (297$00): dez vezes menos|... Mas, claro, não eram em pele, deviam ser "sapatilhas", sapatos de ginástica, estou agora a lembrar-me...
Curioso é que a tropa não te pagava a roupa interior: cuecas, camisolas, peúgas, lenços de assoar, lenços de pescoço... E quanto ao blusão, não era de pele, claro, era de flanela... O blusão de couro, esse, custava uma pequena fortuna, no Casão Militar, e era apenas reservado a oficiais e sargentos, tanto quanto me recordo. Estúpido, comprei um que nunca devo ter usado na Guiné, com aqueles maldito calor e humidade, era uma autêntica estufa quente!...
O fardamento (tirando talvez as botas de lona e o camuflado) era completamente inadequado para aquele meio ambiente físico... Por exemplo, não eram distribuídas máscaras para a mosquitagem, à noite, nem para o pó vermelho que apanhávamos nas colunas auto... (Era um espectácul0, ver a a velhada, de lenços garridos ao pescoço, nas colunas logísticas, ou até mesmo nas operações de segurança às colunas, visíveis a 100 metros, na orla do capim...).
Cada um usava a roupa imterior que trazia de casa, dos mais diferentes materiais, formas e feitios, completamente inadequada para aquele clima tropical... Houve até quem trouxesse ceroulas, por causa da... bicharada das bolanhas e do friods noites de dezembro... A boina e o quico eram outro problema... Mas já não falo do tempo da farda amarela...
Enfim, mal comidos, mal pagos, mal vestidos... (Oh!, Joaquim, grande "tigre do Cumbijã", como é que a gente havia de ganhar aquela p... de guerra ?!).
__________
__________
Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série >
3 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22684: A nossa guerra em números (1): os soldados do recrutamento local, de 1ª e 2ª classe, as milícias, os soldados básicos e o patacão que recebiam (Valdemar Queiroz / Fernando Sousa Ribeiro / Luís Graça)
5 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22690: A nossa guerra em números (2): Alimentação, ração de combate, "comes & bebes"... "Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também" (Joaquim Costa, minhoto, dixit)
(*) Postes anteriores da série >
3 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22684: A nossa guerra em números (1): os soldados do recrutamento local, de 1ª e 2ª classe, as milícias, os soldados básicos e o patacão que recebiam (Valdemar Queiroz / Fernando Sousa Ribeiro / Luís Graça)
5 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22690: A nossa guerra em números (2): Alimentação, ração de combate, "comes & bebes"... "Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também" (Joaquim Costa, minhoto, dixit)