terça-feira, 9 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22702: A nossa guerra em números (3): mal comidos, mal pagos, mal vestidos...












Havia quem não gastasse dinheiro à tropa em fardamento (e calçado)... Ou poupasse o camuflado quando ia, em trabalho,  num barco turra até Bissau... Ou, mal chegava do mato e tomava um banho de água ferrosa, vestia as jeans e a camisinha Lacoste de contrafacção para fingir que estava a milhares de quilómetros dali... Mas muitos de nós já nem sequer são do tempo da farda amarela... O verde veio em 1964... Mas com o uso e as lavagens as peças da farda camuflada iam mudando de cor...(Não identifico os camaradas, que por certo não me levarão a mal a brincadeira...). 


Fotos de arquivo © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Houve guerras, no passado,  que se perderam porque os combatentes iam mal alimentados, outras por certo não se ganharam porque os homens foram para a frente de batalha mal recrutados, mal pagos, mal agasalhados, em mau estado de saúde, mal medicados, mal municiados, mal preparados, mal aconselhados, mal endoutrinados, mal equipados, mal enquadrados, mal comandados, etc. Ou então levavam guitarras em vez de espingardas, como em Alcácer Quibir...

Há leitores que se interessam por números... E a "nossa guerra" (, qualquer que seja o significado do adjetivo  possessivo "nossa") também tem alguns números que devem merecer a nossa atenção (*).

O facto de se ter desenrolado a milhares quilómetros de casa, no continente africano, nas nossas antigas colónias (ou "províncias ultramarinas") de Angola, Guiné e Moçambique, sendo os transportes de pessoal e os reabastecimentos feitos por via marítima, obrigava as Forças Armadas (e em especial o Exército) a criar reservas logísticas estratégicas, como se pode ler no livro, didático, do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.).

Por exemplo, ao nível do "fardamento e calçado" (, espantoso, não tínhamos até agora este descritor!) era exigida uma certa quantidade de artigos, em "reserva permanente", nos vários  teatros de operações. No caso da Guiné, que é o que nos interessa aqui, eram os seguintes os valores (pág. 293):

  • Botas de lona (pares) > 13000
  • Botas pretas (pares) > 1900
  • Dólman (camuflado) > 2500
  • Calças > 10000
  • Barretes > 5200.

O que é intrigante é que em todos os itens de fardamento e calçado os valores da Guiné  eram muito superiores aos de Angola e Moçambique. Não se percebe a razão da diferença. Talvez o pessoal gastasse mais solas e tecido... Talvez as lavadeiras de Angola e Moçambique fossem mais delicadas a lavar e a passar a ferro a roupa da tropa... Veja-se, por exemplo, o "stock" de botas de lona de Angola (n=3712) e de Moçambique (n=4500), teatros de operações que, de resto, tinham mais militares mobilizados do que na Guiné...

Fiquei a saber (, embora isso não conte em nada para a salvação da minha alma...) que os artigos de fardamento, que nos eram distribuídos,  "desde a recruta até ao fim da comissão em África", representavam um encargo de cerca de 5300$00 / homem (dois mil euros, em valores de hoje). 

Desagregando este valor, 1300 escudos eram imputados à instrução militar (recruta e especialidade) e os restantes 4 mil à comissão em África, mesmo que lá a malta andasse, muitas vezes, de tanga, em tronco nu, de chanatas (ou até descalça), gastando por isso muito mais pele que tecido... (Os soldados da CCAÇ 12, se a gente os deixasse, iam para o mato descalços...).

Já agora, amigos e camaradas, ficam a saber quanto é que ficaram a dever ao "erário público", só pelos artigos de fardamento que receberam na recruta, a valores de 1964 (pág. 294):

  • Uma boina > 23$70;
  • Duas camisas de uniforme nº 2 > 120$60;
  • Duas calças de uniforme nº 2> 172$20;
  • Um blusão > 282$50;
  • Uma calça poliéster > 202$00;
  • Uma gravata verde > 15$00;
  • Um cinto de lona > 23$50;
  • Uma camisola de ginástica >  8$70;
  • Um calção de ginástica > 18$00;
  • Um par de sapatos (desportivos) > 28$40;
  • Um par de botas > 297$00;
  • Uniforme de instrução / farda detrabalho (nº 3): c. 200$00.
Total = 1391$60 (c. 573 euros, a valores de hoje)

Acho baratos demais os sapatos (desportivos) (28$40) por comparação com as botas (297$00): dez vezes menos|... Mas, claro, não eram em pele, deviam ser "sapatilhas", sapatos de ginástica, estou agora a lembrar-me...

Curioso é que a tropa não te pagava a roupa interior: cuecas, camisolas, peúgas, lenços de assoar, lenços de pescoço... E quanto ao blusão, não era de pele, claro, era de flanela... O blusão de couro, esse, custava uma pequena fortuna, no Casão Militar, e era apenas reservado a oficiais e sargentos, tanto quanto me recordo. Estúpido, comprei um que nunca devo ter usado na Guiné, com aqueles maldito calor e humidade, era uma autêntica estufa quente!...

O fardamento (tirando talvez as botas de lona e o camuflado) era completamente inadequado para aquele meio ambiente físico... Por exemplo, não eram distribuídas máscaras para a mosquitagem, à noite,  nem para o pó vermelho que apanhávamos nas colunas auto... (Era um espectácul0, ver a a velhada, de lenços garridos ao pescoço, nas colunas logísticas, ou até mesmo nas operações de segurança às colunas, visíveis a 100 metros, na orla do capim...). 

Cada um  usava a roupa imterior que trazia de casa, dos mais diferentes materiais, formas e feitios, completamente inadequada para aquele clima tropical... Houve até quem trouxesse ceroulas, por causa da... bicharada das bolanhas e do friods noites de dezembro... A boina e o quico eram outro problema... Mas já não falo do tempo da farda amarela... 

11 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Luís
Eu sempre fui muito poupadinho ao erário militar (ensinamentos da minha saudosa Mãe que só me deixava usar sapatos nos dias de festa)
No tropa e na Guiné só comprei o essencial, só tive uma extravagância ao comprar as botas de lona que nunca utilizei, sempre utilizei as minhas inseparáveis botas pretas de cano alto (ver P 22159). Contudo não me livraram de um ninho de matacanhas no dedo grande do meu pá direito. Muitos dos camaradas na ida de férias aproveitavam para comprar no casão militar roupa nova. É preciso ter coragem, perder um dia de férias para ir ao casão militar! Enfim gente que gosta de se apresentar bem em qualquer circunstância.
Uma das visões mais extraordinárias que tive no Cumbijã, já depois do 25 de Abril, foi ver um Alferes de uma companhia que nos veio substituir a sair da sua tenda vestido com um roupão de cetim (ainda pensei será o Kadafi saindo da sua emblemática tenda ?). Ou seja, a antítese do Cabral!
Não será difícil identificar o camarada alferes que espero que não leve a mal esta inconfidência.
Um grande abraço
Joaquim Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Roupão de cetim ?!... E não tiraste uma foto ?...As boas maneiras são sempre de se manter, mesmo no inferno.

Tens razão, as tuas botas de calfe (couro ou pele de vitela...) eram bem melhores que as botas de lona...No tempo seco ou no tempo das chuvas, os nossos pés vinham numa lástima...

Naquele tempo, ainda não tinha chegado, ao exército, a moda da ergonomia (disciplina que, de resto, se desenvolveu muito com o "warfare", o negócio da guerra, antes de chegar aos locais e equipamentos de trabalho)...

Por outro lado, e sobretudo nos primeiros anos da guerra, ainda havia muita malta que cresceu descalço em casa, na aldeia, na lavoura...

Aquela trampa de guerra não era para meninos de coro!...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mas, como te disse no mail, já não havia livro de reclamações...Nem sei se o exército já tem hoje... Afinal, nós não eramos "consumidores", mas "produtores"...

Mas, bolas, podia ao menos haver um livro de ideias e sugestões de melhoria...como há nas melhores empresas do mundo!

Anónimo disse...

E. Esteves de Oliveira
(atrvés do Formulário de Contacto do Blogger=
9 nov 2021 17:20

Mantanhas para todo o pessoal da Tabanca Grande. A propósito do fardamento,
lembro-me de uma ocasião, já a minha gente tinha manga de tempo na terra
sabi, ter pedido para Bissau a substituição dos mosquiteiros, que já pouco
mais eram do que farrapos remendados vezes sem conta, e nos foi respondido
num ríspido ofício dos serviços da administração que os ditos cujos tinham
uma duração de não sei quantos anos e, portanto, os nossos ainda tinham que
aguentar uns mesitos mais até poderem ser substituídos... Não houve outro
remédio, o nosso primeiro-sargento foi a Bissau comprar panos de
mosquiteiro que o alfaiate mandinga de Buba transformou em mosquiteiros
próprios mesmo...

Cumprimentos,
E. Esteves de Oliveira

Anónimo disse...

eduardo francisco (by email)
9 nov 2021 17:45

Olá Luís, boa tarde!

Tenho acompanhado os posts sobre a nossa guerra em números e acabo de me lembrar de um episódio que aconteceu na CCAÇ 14 durante a minha comissão.

Os soldados mandingas preferiam receber em dinheiro a verba referente à alimentação, pois sempre ficavam com mais uns cobres, mas quando íamos para o mato, recebiam ração de combate que era posteriormente paga aos cofres da companhia, quando recebiam o vencimento.

Acontece porém que em determinada altura do ano de 1970, descobrimos que o 1º sargento debitava o valor da ração tipo E Especial, quando na verdade a ração fornecida era a tipo E.

A diferença multiplicada por 2 grupos de combate que de 6 em 6 dias iam para o mato por períodos de 48 horas pelo menos, dava uma boa maquia.

Levantou-se um enorme burburinho, o saudoso Serifo Sané, exímio apontador de bazooka em tiro instintivo, quis enfiar uma granada na secretaria da companhia e tivemos alguma dificuldade em serenar os ânimos.

A solução encontrada pelo Capitão foi dar corda aos sapatos do 1º sargento, o qual foi colocado em Bissau como prova "exemplar" de disciplina.

Afigura-se-me que ficaram alguns elementos por esclarecer, mas enfim.

Quero aproveitar para perguntar se recebeste ontem 2 fotografias de Cacela Velha e enviar-te um forte abraço com desejos de rápidas melhoras.

Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Eduardo, recebi, sim, senhor, um belo poema e duas fotos sobre Cacela A Velha... Como a tua terra adotiva tem inspirado tantos poetas, fiquei na dúvida sobre a autoria do poema... Se for teu, é ouro sobre azul... Mas eu não gosto de publicar nada seja "apócrifo" ou anónimo... Diz-me quem é o autor (e já agora confirma o título) do poema "Formosa és tu Cacela!"...

Quanto à saúde, vamos melhorando... Obrigado. Luís

Fernando Ribeiro disse...

Li bem? "Barretes"?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Leste bem, "barretes" (pág 293, quadro inumerado, como todos os demais)... E os gajos da Guiné deviam enfiar mais barretes (n=5200), do que os de Angola (n=1972) e Moçambique (n=1700). E esta, heim ?!

PS - Seria o "quico", na linguagem do Zé Soldado ?...

quico
quico | n. m.

qui·co
(origem obscura)
nome masculino
[Informal] Chapéu pequeno e ridículo.


"quico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/quico [consultado em 09-11-2021].

barrete
barrete | n. m.

bar·re·te |ê|
(francês barrette, barra usada como ornamento de vestuário)
nome masculino
1. Cobertura flexível para a cabeça, geralmente de malha ou de pano.

2. [Religião] Cobertura quadrangular da cabeça dos clérigos.

3. Espécie de boné sem viseira.

4. Solidéu.

5. [Zoologia] Segunda cavidade do estômago dos ruminantes. = BONETE, COIFA, CRESPINA, RETÍCULO

6. Engano ou aldrabice.

"barrete", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/barrete [consultado em 09-11-2021].

Valdemar Silva disse...

1.391$60......$60?, na Guiné não havia cêntimos.
Pois, o total do patacão enviado para a nossa CART11 seria p.ex.:200.322$60, os Serviços Financeiros não enviavam os $60.
Pois, pois, mas parcela a parcela havia muitos $60, $70, ou $80, e nos cento e tal militares daria uns 70$00 pesos para as "quebras de Caixa".
(...queixinhas, o que é que isso tinha de grande importância)

Abraços e saúde
Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Imagino que os ditos "barretes" sejam quicos, que outra coisa poderiam ser? Repare-se, contudo, na definição n.º 3 dada ao barrete pelo Dicionário Priberam:

3. Espécie de boné sem viseira.

Ora os quicos tinham viseira. Não era grande, mas tinham!

De qualquer modo, era mil vezes preferível usar quico na cabeça do que capacete de ferro, como se usou no início da guerra em Angola e uma das fotografias documenta. Como é possível que tivessem sido usados capacetes daqueles debaixo de um abrasador sol tropical?! Só se fosse para fritarem os miolos!!!

Em Zemba, nos Dembos, norte de Angola, onde eu estive, havia algumas dezenas de capacetes guardados no depósito de material de guerra, mas nós nunca lhes tocamos. Usamos sempre quico, evidentemente. Os capacetes nunca sairam dali, ficando a fazer companhia às perigosas pistolas-metralhadoras FBP e metralhadoras ligeiras HK21, que também nunca usávamos.

Abílio Magro disse...

Não sabia que noutros tempos a "tropa" fornecia o fardamento aos graduados!
Antes de embarcar tive de devolver as fardas (1.cabo mil.) e tive de comprar outras, incluíndo camuflados. Claro que não devolvi algumas, mas tive de as pagar (não ficou caro). Quanto a camuflados, aproveitei de um irmão que já tinha regressado.
Cheguei à Guiné e já parecia um velhinho, lol.
Abílio Magro