quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!


Guiné >  Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole > Coluna logística: uma viatura civil, transportando cunhetes de granadas e, em cima, pessoal civil. Dizia-se que as nossas GMC, "do tempo da guerra da Coreia", gastavam "100 aos 100"... Não admira, por isso, que o consumo "per capita" mensal, de combustível, fosse de 50 kg numa companhia normal de 160 homens... Em contrapartida, o consumo diário de frescos não ia além dos 500 gramas (15 kg por mês e por homem)...

Foto (e legenda): © Humbero Reis (2006).  Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

 1. Muitos de nós gastámos  uma boa parte da nossa energia juvenil a abastecer-nos uns aos outros... Ainda periquito, participei (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12), no 2º semestre de 1969, em diversas colunas logísticas, fornecendo-lhes a segurança, de Bambadinca até ao Saltinho (via Mansambo e Xitole, mas também via Galomaro), e fazendo chegar às companhias em quadrícula do Sector L1 os "comes & bebes", mas também os artigos de cantinha, os combustíveis, os lubrificantes, as munições, o fradamento e calçado, os medicamentos, o correio, etc., indispensável à organização, funcionamento e manutenção da máquina de guerra... Chegou-se a ter que fazer em dois dias um percurso de 60 km, com vituras civis e militares que, no tempo das chuvas, ficavam facilmente "atascadas"...

Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 40 toneladas de abastecimentos por mês (880 tonelados ao fim de uma comissão de 22 meses)...  

Discriminam-se a seguir, por tipologia de abastecimento, os respetivos valores por mês (em percentagem do total e em quilogramas) (*)

(i) 38,7 %; víveres (alimentação): 14,5 mil  kg, sendo 12 mil kg de víveres secos, e 2,5 mil kg de víveres frescos:

(ii) 34,7%: artigos de cantina (cerveja, tabaco, higiene, papelaria, etc.): 13 mil kg:

(iii) 21,4%: combustíveis (gasóleo, gasolina, petróleo): 8 mil kg;

(iv) 1,6%: munições:  700 kg;

(v) 1,3%: medicamentos; 500 kg:

(vi) 1,1%:  lubrificantes (óleo para viaturas e armamento, etc.): 500 kg;

(vii) 0,7%: fardamento e calçado: 300 kg;

(viii) 0,5%: correio: 250 kg.

Total= 100% | 37750 kg (a dividir por 160 homens=235,9 kg).

O pormenor do correio é relevante: cada um de nós "consumia" em média, por mês,  c. 1,6 kg de cartas, aerogramas, vales postais, telegramas e encomendas... É (era) obra!... É(era) muito papel. 

Mas também cada homem gastava 3,125 kg de medicamentos... (que na altura, ou pelo menos entre 1962 e 1969, eram de fabrico nacional). Sem esquecer, os 1,9 kg de fardamento e calçado.

Já o consumo "per capital" mensal de munições ia para os 4,375 kg. E o de combustível subia, naturalmente, para os  50 kg, abaixo dos 81,250 kg dos artigos de cantina... e dos 90,6 kg de víveres (3 quilos por dia/homem).

Last but not the least, só tínhamos direito a pouco mais de 500 gramas de víveres frescos por dia (2500 kg mês /160 homens= 15,625 kg / 30 dias= 520 gr por dia / homem). 

Parte destes víveres chegavam por via aérea (o DO-27 que trazia o correio, também largava, com sorte, umas caixas de ovos e pouco mais, não sabendo nós o que a Intendência entendia por "víveres frescos": talvez algumas batatas, cebolas e cenouras, que  o frango e o peixe, esses,  eram congelados, ou em conservas (o peixe), o leite era condensado, os legumes (feijão, grão...) eram secos, o bacalhau liofilizado, o tomate em calda, a fruta enlatada... e a carne de vaca só em dia de anos do capitão ou da companhia... 

PS - Não vejo onde estejam, nestas contas, os materiais de construção (cimento, areia, ferro, chapa, madeira, pregos, etc.). Provavelmente os custos eram imputados ao Batalhão de Engenharia (BENG 447, no caso da Guiné). E, por outro, as necessidades eram variáveis, de companhia para companhia.

(*) Fonte:  adapt. de  Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 281 e 284. Com a devida vénia...
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22702: A nossa guerra em números  (3): mal comidos, mal pagos, mal vestidos...

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não sei se naquele tempo o Exército já tinha nutricionistas. Duvido. Tinha capelães, e cangalheiros, nas não tinha psicólogos, por exemplo. De qualquer modo, 520 gramas de viveres frescos. por homem epor dia, não eram suficientés para matar a "malvada" a rapazes na força da vida...Houve seguramente muitos casos de desnutrição..., e alguns dos nossos médicos toparam isso e alertaram as chefias... Mas poucos médicos tinham, na época, formação em nutrição. Aiás, vinham impreparados para lidar com as doenças tropicais e a morbilidade específica da guerra... E oq eu valorizava é a cirurgia (e a estomatologia): a guerra e a Guiné foram uma boa escola para os nossos jovens clínicos...

Valdemar Silva disse...

Julgo que na Especialidade os vagomestres tinham tido instrução de nutricionismo.
Não sei a receita/ingredientes para "estilhaços" como deve ser ou como mandava a Receita/NEP que devia ser uns tantos quilos de chouriço+batatas/esparguete, a cenoura só aparecia na amostra ao comando. Depois, a arte estava na distribuição do "nãochorisso".

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, há falta de vagomestres na Tabanca Grand...Eles devem também dizer da sua justiça...

Abilio Duarte disse...

Ola Luís,
Sobre nutricionismo, só sei, que perdi um dente, que apodreceu, e dentistas nem ve-los.
Dente que só consegui tira-lo, quando cheguei a Lisboa, na velhinha clinica dos Bancários, na
Rua de S.Jose.

Mas aproveitando a foto do camarada Reis, so quero referir, que fiz duas vezes, esta estrada
de Bambadica ao Xitole.

Uns pelotões da C.ART.11,uma das vezes vieram de Nova Lamego, com pessoal civil, em camionetas também civis, que segundo nos disseram, iam capinar, e era muita gente.
Da outra, fomos fazer segurança a uma Companhia, que ia para o Xitole, e levamos, uma eternidade para la chegar, pois as viaturas, ficavam enterradas na lama.
Tenho na memoria, Xitole, pois, ao contrário de Pirada ou Canquelifa, que tinham abrigos, acima da superfície, em Xitole, era tudo ao nível do chão.

Recordações.

Abílio Duarte

.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Abílio, eu ainda não tinha chegado à Guiné. Foi em fins de março de 1969 a meados de maio que se realizou a Op Cabeça Rapada que consistiu na desmatação à volta do novo quartel de Mansambo e de largos troços da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole, mas também Bambadinca - Xime, em quatro sequências e mobilizando milhares de civis recrutados na região de Bafatá mas também Gabu, pelo que.nos contas.


Joao G Bonifacio disse...

OLa a todos os que ainda tem a sorte de por aqui viajarem. E com muito prazer que me apresento pois fui para a Guine ( Co, Mamsaba e Olossato) em 1968/70 fazendo parte da CC2401 BAT CC 2851, este estacionado em Mansaba. Tirei o curso de Alimentacao na Povoa do Varzim parte dos Servicos de Administracao Militar. Em termos genericos fui vagomestre, ou um nutricionista em tempo de guerra. Nos aprendemos muito no curso, mas nada em alimentacao em tempo de guerrilha. Ja na guerra classica, ja podiamos estudar temperaturas e outros temas como o aquecimento local etc. E muito complicado. Quando cheguei a Co em Julho de 1968 e depois de ver tudo arruinado por uma tempestade tropical, o deposito de generos tinha apenas batata desidratada, alguns sacos de arroz e salsichas e cebolas. Considerando que desembarcamos ha quase 48 horas, qualquer coisa era um petisco. Foi nesse momento que o Nutricionista Joao disse ao cozinheiro, que por sorte trabalhou no Hotel da Balaia em Albufeira, para mandar cortr as salsichas e uusar as cebolas e latas de tomate. So vos digo que foi um manjar, regado com algum vinho. Depois o nutricionista comecou a estudar as ementas com mais carinho e valor nutritivo. A zona era rica em peixe (corvina) e outros, camarao, Ostras, tinhamos vacas a disposicao, eramos reabastecidos pelo ar com sardinhas e carapaus, pescada congelada, e fruta fesca local laranjas e bananas, mango e papaia e do continente peras e macas dourada. O ritmo foi o mesmso em Olossato, e como nutriconista da cc2401 fui bafejado, porque tudo correu bem e a malta regressou em formam, criando alguma inveja em Bissau quando nos preparamos para regressar. Fou uma honra olhar pela minha guerra, fizemos o melhor possivel, e no fundo foi uma comissao atribulada mas por vezes muito calma. O meu agradecimento ao Luis Graca por me deixar colocar estas linhas, e dizer a todos os que aqui vierem, que nem todos os nutricionistas sao iguais, se e que me entendem.
Um grand abraco.

Joao Bonifacio
cc2401/bc2851
Guine/Bissau 1968/70
Fur Mil dos SAM (Toronto, Canada)