quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22705: Historiografia da presença portuguesa em África (289): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (4): "As Colónias Portuguesas", por Ernesto Vasconcelos (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à releitura do importante ensaio de Maria Luísa Esteves sobre a delimitação das fronteiras que definiu, com ligeiras alterações posteriores, a superfície atual da Guiné-Bissau. Entendi, para que quem tem curiosidade nesta matéria, selecionar um conjunto de obras que possam trazer alguma iluminação sobre as controvérsias da época e as dificuldades sentidas pelos contemporâneos.

Um abraço do
Mário



A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (4)

Mário Beja Santos

E
ncontraram-se três referências que poderão ter utilidade para quem pretenda saber um pouco mais sobre a situação da Guiné na época da delimitação das fronteiras, numa abrangência do século XIX. Em "As Colónias Portuguesas", obra que teve sucessivas edições, Ernesto Vasconcelos, que foi presidente e secretário perpétuo da Sociedade de Geografia de Lisboa escreveu:
“Os trabalhos de balizagem da fronteira só puderam começar em 1900, tendo durado até 1905, em consequência das interrupções forçadas pela quadra das chuvas anuais. No ano de 1906 foi aprovada a balizagem por meio de troca de notas entre Portugal e a França.
A linha de separação de esferas, parte do Cabo Roxo ao norte e segue a meia distância entre os rios Casamansa e Cacheu, até atingir o paralelo de 12º 40’ de Latitude Norte, acompanha este Paralelo até ao Meridiano de 13º 40’ W Greenwich, o qual serve de limite para sul numa extensão de 7500 metros, cortando depois para sueste até ao rio Puira, próximo de Candica, indo por ele ao rio Cocoli, cujo curso acompanha para jusante, até ao seu confluente Cambuco e sobe este rio para chegar ao Djacapi com que se confunde, infletindo para sueste a procurar a origem do Ualeuale. Desce este rio até à sua entrada no Componi, de onde passa para o Cadji que sobe até à sua origem junto ao monte Dongol Teliri. Daqui segue sensivelmente para o Sul, cortando vários cursos de água, até ao rio Binasse próximo do confluente Bibá Mangol, confundindo-se então novamente com o meridiano de 13º 40’ W, até à nascente do pequeno rio Baleona, seguindo por ele e pelo Senta até ao rio Fefine que desce até à confluência do Tara Maca. Deste ponto continua para Oeste, segue o Paravi Niabi, passa no lugar de Vendu Tiaurane e sobe o rio Capjeol para atingir o marco n.º 24, que fica a meia distância entre o rio Corubal e o Cogon, inflete para oessudoeste, conservando-se a igual distância destes dois rios até junto da antiga povoação de Cam Sambeli, onde se inclina para sudoeste, a fim de ficar a meia distância entre o rio Cacine e o Componi, indo terminar na ponta Cajet, ao sul e ao fundo do canal a que dá lugar a ilha Caterak, uma das ilhas Tristão, que perpetuam, como o Rio Nuno, o nome do navegador Nuno Tristão”.


Achei curiosa esta leitura de Ernesto Vasconcelos sobre a fronteira sul, nunca encontrara algo de parecido.
Pede-se também a atenção do leitor interessado para o artigo de Armando Tavares da Silva, "A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa de Maio de 1888", publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, janeiro-dezembro de 2017.

Vejamos agora a comunicação do Capitão Marques Geraldes, parece-me que contextualiza a época próxima da Convenção Luso-Francesa e da delimitação das fronteiras. Narra os antecedentes históricos da presença portuguesa e a chegada dos franceses ao Casamansa em 1837. Procede depois à apresentação dos concelhos da Guiné e que eram: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. Quanto a Bissau, descreve ao mais ínfimo pormenor a guerra travada com Mussá Moló, em que ele próprio esteve envolvido, era o responsável por Geba. Falando do Conselho de Cacheu, este oficial do Exército expende interessantes considerações sobre Casamansa:
“Entre os Banhuns não se admite escravatura; a sua única ambição consiste em viverem livres e poderem trabalhar o preciso para se sustentarem. Dedicam-se tão somente à criação de gado suíno, mas numa quantidade relativamente pequena, consistindo a sua indústria no fabrico de esteiras. Os homens, no tempo em que a sua presença não é necessária para o cultivo do arroz, saem desde pela manhã e recolhem a maior parte das vezes à noite embriagados. A extração de vinho de palma e a caça são as únicas ocupações em que os Banhuns se empregam. De todo o gentio do Casamansa é este o que menos trabalha e onde mais pobreza se encontra.
Um facto que demonstra o quanto esta gente é suscetível de entrar no grémio da nossa religião é o caso que eles fazem as imagens dos santos, chegam a criar e engordar porcos para os irem vender a troco de um pequeno crucifixo de metal ou qualquer verónica que eles considerem como o melhor talismã entre as balas.
Os Felupes, situados na margem direita e esquerda do Casamansa, constituem tribos independentes entre si, e sendo as suas causas decididas também pelos mais idosos, que entre eles são considerados como grandes e únicos em quem se julgam os predicados indispensáveis para poder resolver qualquer negócio de pequena ou grande monta. O Felupe é de todo o gentio do Casamansa o mais trabalhador, sem ele o comércio seria quase nulo. Os seus campos produzem em abundância o arroz, tanto para consumo particular como para vender feijão, mandioca e batata-doce. Dedicam-se igualmente à criação de gado vacum e suíno e têm a sua indústria de panos que eles tecem tanto para seu uso como para permutarem com os objetos de que carecem”.


Segue-se a descrição detalhada do presídio de Ziguinchor:
“Dos Grumetes da Senegâmbia Portuguesa são estes os mais dóceis, muito amigos da terra que os viu nascer e fiéis respeitadores da autoridade. São quase todos de origem Banhum mesclada com a Felupe, falando o dialeto crioulo”.

E adianta as seguintes observações:
“A França, por sua alta recriação e abusando da nossa boa-fé, introduz-se no Casamansa, a título de proteger os seus concidadãos, e pouco a pouco, aproveitando-se do nosso desleixo, pobreza e mesmo falta de senso político, ou para mais fracamente falar, de tudo isto reunido, faz contratos com os régulos das duas margens, levanta guerras, castiga os que ela intitula de rebeldes, impõe contribuições onerosíssimas aos que a não querem reconhecer como senhora do rio, usando em terra alheia, como se própria fosse, e não tendo dúvida em apresentar contas de despesa e quiçá sacrifícios que Portugal, já a braços com dificuldades sem número, antes prefere ceder a pérola mais rica da Guiné do que satisfazer às loucas exigências da república. Vivi três anos em Ziguinchor e por vezes percorri vários pontos do Casamansa. Não há gentio na Guiné que mais amor mostre pela nação portuguesa do que a que habita as margens deste rio. Desde a sua embocadura até Selho é o dialeto crioulo-português corrompido que se ouve falar, tanto aos Banhuns como Felupes ou Balantas”.

E a sua narrativa sobre o Casamansa finda do seguinte modo:
“Com franqueza o digo: vi-me vexado perante as contínuas representações das tribos gentílicas, e a França, a querer ser verdadeira, não pode negar que os filhos do Casamansa são portugueses de coração e séculos hão de passar sem que o nosso nome se apague da memória desta pobre gente, que ainda hoje pergunta com toda a ingenuidade como é que os brancos proibindo a escravatura vendem uns aos outros tantas tribos independentes entre si? Que precisão tinha Portugal para vender à França aquele rio? Se precisara de dinheiro, porque não impunha contribuições, todos pagariam, gostosos?”

Depois de descrever o concelho de Bolola lança um alerta sobre a delimitação das fronteiras da Guiné:
“Vai o governo mandar à Senegâmbia Portuguesa uma comissão de oficiais para a delimitação das fronteiras daquela colónia. Muito bom seria que se fizesse escolha de pessoal conhecedor das condições do país, da história da província, dos povos que vivem entre os limites que nos são assinalados, de forma que salvássemos deste naufrágio o mais que pedíssemos. Para isso, além de conhecimentos teóricos, conhecimentos práticos das localidades e sobretudo habilidade é o que tanto se requisita. E oxalá que ao mérito dos que devem ser preferidos para tal serviço, se não anteponham considerações meramente pessoais que se têm por escopo beneficiar as condições financeiras dos afilhados”.

Aqui findam as considerações sobre as delimitações das fronteiras da Guiné e talvez valha a pena recordar o que André Alvares de Almada no seu "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde (1594)" considerou como espaço físico: “A Guiné começa no rio Sanaga (Senegal) pela parte norte e acaba na Serra Leoa”.


Ernesto de Vasconcelos
Carta da colónia da Guiné, 1933
A fortaleza da Amura fotografada por Henriques de Melo que acompanhou a expedição punitiva de 1908, no Cuor
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22685: Historiografia da presença portuguesa em África (288): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"Que precisão tinha Portugal para vender à França aquele rio?"
O Rio Casamance vendido? evidentemente que só pode ser uma força de expressão do autor Ernesto Vasconcelos.