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domingo, 7 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

FIAT G-91 R4 em voo. 
Foto: Mário Correia (editada por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2025)


No TO da Guiné, pelo menos em 1972/73, de até à entrada dos Strela (março de 1973), 5%  das missões do Fiat G-91 eram de bombardeamento com napalm a objetivos estritamente militares (de acordo com a caderneta de voo do António Martins de Matos, cuja comissão vai de maio de 1972 a fevereiro de 1974)



Gráfico (nº 1)  com as missões de Fiat G-91 (a laranja) (n=386)  e DO-27 (a azul) (n=114), realizadas pelo então ten pilav António Martins de Matos (de maio de 1972 a fevereiro de 1974) (Total=500)  

Infografia: António Martins de Matos (2010) (**)

Legenda do autor:
  • A laranja estão as minhas missões em Fiat-G91, e a azul as de DO-27;
  • Nos meses de nov72 e ago73 estive de férias;
  • Os mísseis Strela apareceram em abr73;
  • Guidaje, Guileje e Gadamnael foram em maio/junho 73;
  • Canquelifá e Copé em janeiro de 1974.


Gráfico (nº 2)  com as missões de Fiat G-91, realizadas pelo então ten pilav António Martins de Matos (de maio de 1972 a fevereiro de 1974): missões de alerta (a laranja)(n=78)  e missões planeadas (a verde)(n=308). Total=386

Infografia: António Martins de Matos (2010) (**)

Legenda do autor:

  • As missões a verde eram planeadas,  de véspera (por ex. ida a Cumbamori, no Senegal);
  • As missões a laranja eram as solicitadas pela rede do Exército para apoio urgente;
  • Em termos práticos representam o número de quartéis a quem fui dar apoio imediato (n=78);
  • Quanto mais “laranja” apresentar o gráfico,  tanto mais violenta estaria a guerra;
  • Em maio73 o apoio foi maioritariamente a Guidage e Guileje; em janeiro74 a Canquelifá e Copá.

I.  O nosso tabanqueiro António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen ref, não podia ser mais claro ao comentar no poste P27184 (*):


Da minha caderneta de voo, [ constam ] 17 missões napalm, entre 20mai72 e 1fev73 [ em oito meses,  foram 2 em média, por mês ].
 
Os alvos eram instalações dissimuladas nas orlas das matas. 

Como agora em Gaza, “à procura do Hamas, a população a sofrer”.  É sempre assim.

AMM

sexta-feira, 5 de setembro de 2025 às 14:12:18 WEST

Recorde-se que o AMM era o nº 2, na escala hierárquica da Esquadra 121 (Fiat G-91, T-6 e DO-27), tendo 6 pilotos de Fiat, "Os Tigres", que voavam também um dos outros aviões; e mais 14 pilotos, milicianos, alferes e furriéis, que voavam indistintamente o T-6 e o DO-27.

O número de missões que executou no Fiat G-91, de maio de 1972 a fevereiro de 1974, com dois meses de férias (novembro de 1972 e agosto de 1973) totalizou as 386 (77% do total, Fiat G-91 + DO-27)... 

As 17 missões com napalm representam apenas 4,4% do total das missões com Fiat G-91, realizadas até fevereiro de 1973 (**).
 
Segundo o António Martins de Matos, deixaram-se de realizar bombardeamentos de napalm a partir de março de 1973, quando os Strela passaram a ser usados pelo IN.

De qualquer modo, as suas missões  dos Fiat G-91 intensificaram-se, na segunda metade da comissão, apesar do aparecimento do Strela nos céus da Guiné. O que só prova que o PAIGC não "calou" a FAP, e muito menos o ten pilav António Martins de Matos; mandou para o "estaleiro" o Miguel Pessoa, mas também não o "arrumou", porque ele voltou ao CTIG...).

II. Sabemos, por outro lado, que no final da guerra havia, na BA 12, Bissalanca, na Guiné, um "pequeno arsenal" de bombas de napalm (ou, pelo ,menos os seus "invólucros", segundo o testemunho do nosso António Martins de Matos)...  

Reproduz-se a seguir um  documento  que vai ter que passar pelo crivo do contraditório:

 

Repartição de Operações 

AO GENERAL CHEFE DO ESTADO-MAIOR GENERAL DAS FORÇAS ARMADAS 

Nº 10.078/C 

 PARA CONHECIMENTO: 

Pº  CZACVG 

ASSUNTO: BOMBAS NAPALM

 1. Existem no TO.

 – 1170 bombas NAP de 350 litros

 – 790       "          "   de 100 litros


2. Dado que, pelo seu volume, não é possível subtraí-las das vistas a possíveis observadores, e ainda porque a utilização de Napalm tem sido motivo de acérrimas críticas feitas pelo In, na sua campanha diplomática e psicológica, torna-se necessário retirá-las do TO.

3. De contacto havido entre a ZACVG e o Estado-Maior da Força Aérea foi estabelecido, com o que este Comando concorda, que as bombas em referência fossem transportadas para a Ilha do Sal, de onde lhes seria dado posterior destino, salvaguardando, no entanto, uma dotação de emergência, a manter no TO. 

4. Solicita-se a V. Exa. uma decisão sobre o assunto. 

Bissau, 27 de Maio de 1974 

O COMANDANTE-CHEFE 

CARLOS ALBERTO IDÃES SOARES FABIÃO, BRIGADEIRO 


III. O documento que acima se transcreve é um dos quatro que os investigadores António de Araújo e António Duarte Silva  publicam em artigo de 2009, numa publicação académica ("O uso de napalm na Guerra Colonial - quatro documentos", Relações Internacionais R:I, n.º 22, junho de 2009, pp. 121-139). (***)

Os documentos reproduzidos pelos autores foram localizados no Arquivo da Defesa Nacional, em Paço de Arcos, onde se encontram sob a cota Cx. 1011, 1011/12, tendo sido desclassificados, a seu pedido,  por despacho de 17 de setembro de 2008. 

O documento em questão (o n º 2 de 4):

(i) é um oficio em papel timbrado do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné (Quartel-General – Repartição de Operações), classificado «Secreto», datado de Bissau, 27 de Maio de 1974;

(ii) está assinado pelo comandante-chefe, brigadeiro graduado Carlos Alberto Idães Soares Fabião;

(iii) é um ofício, os dactilografado, de uma página, dirigido ao chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, gen Costa Gomes; 

(iv)  Com conhecimento ao Comando da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (CZACVG);

(v) em que se solicita instruções quanto ao destino a dar às "bombas de napalm" (sic) existentes no CTIG (1170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros). 

(v) possui um carimbo a óleo que certifica a sua recepção no Gabinete do Estado-Maior General das Forças Armadas, em 6 de junho de 1974, com as indicações «Pº 2034, N.º 3107»:

(vi) à margem, encontra-se exarado um despacho manuscrito, do seguinte teor: «Urgente. Ao CEMFA para proceder de acordo com o n.º 3. Lisboa 15-6-74. ass). Francisco da Costa Gomes». 

Nesse ofício, sugere-se a  transferência das "bombas de napalm" (sic) para a ilha do Sal, em Cabo Verde, salvaguardando-se, todavia, uma «dotação de emergência» (sic), que permaneceria no CTIG.  Esta sugestão é feita após ter sido estabelecido um contacto com o Estado-Maior da Força Aérea. 

De acordo com o despacho manuscrito, de 15 de junho de 1974, os autores inferem  que tal sugestão foi acolhida (não se podendo no entanto saber qual foi o destino final dado ao material).

Citemos ainda os autores, a respeito do uso do napalm no teatro da guerra do ultramar:

(...) "Apesar de ainda ser controversa, a presença de bombas incendiárias nos territórios portugueses em África é relativamente conhecida, não tendo, porém, sido divulgados, ao que sabemos, elementos comprovativos da sua utilização em combate por parte das Forças Armadas Portuguesas. (...)

 Mário Canongia Lopes («A história do F-84 na Força Aérea Portuguesa». In Mais Alto. Revista da Força Aérea. Suplemento. Ano XXVI. N.º 258. Março-Abril de 1989, p. 12), citado pelos autores,  "afirma ter sido o napalm 'utilizado contra objectivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea (AAA) ou veículos', acrescentando que o napalm era carregado 'em depósitos de origem americana de 750lbs. [340 kgs] ou portuguesa de 660 lbs. [300 kgs] sendo o pó [combustível] fornecido por Israel' ".

" (...) Por outro lado, é reconhecido o uso de bombas de 50 quilos e de 60 litros de napalm em certas operações de destruição de meios antiaéreos do PAIGC (por exemplo, nas operações com o nome de código «Resgate» e «Estoque»)" (Fonte citada pelos autores: Luís Alves Fraga, "A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974)". Lisboa: Prefácio, 2004, pp. 109-111).

Não restam dúvidas, que os documentos publicados por António Araújo e António Duarte Silva.   "permitem afirmar, com um elevado grau de fiabilidade, que, pelo menos até meados de 1973, as Forças  Armadas Portuguesas utilizaram napalm e outras bombas incendiárias nos três teatros de operações em África." (...)

Veremos, em próximo poste, com mais detalhe os outros documentos (nº 1, 3 e 4). Mas, para já,  adiantaremos, citando  os autores, que "a Guiné era o território onde mais se recorria a este tipo de armamento", sendo "o consumo médio mensal" o seguinte;

  • 42 bombas incendiárias de 300 quilos;
  • 72 bombas incendiárias de 80 quilos; 
  • 273 granadas incendiárias M/64
Convertido em litros de napalm, teríamos um consumo médio mensal de 22 mil litros de napalm. Total anual médio (estimado): 264 mil...  (****)

A utilização de napalm no TO da Guiné, por parte de Portugal, foi repetidas vezes denunciada por Amílcar Cabral nas instâncias internacionais, e nomeadamente na ONU (Comissão de Descolonização, Comissão de Direitos do Homem, Assembleia Geral, Conselho de Segurança),  tendo-se tornado um cavalo de batalha na frente diplomática e uma dor de cabeça para o governo português.   

Os autores estranham que "Costa Gomes haja afirmado nada saber quanto ao uso de napalm na Guiné".

 Já quanto a António de Spínola, escrevem que, "apesar de nunca se ter pronunciado expressamente sobre o tema (...)  havia reconhecido, numa entrevista concedida a Peter Hannes Lehman, da revista alemã Stern, que as armas químicas eram usadas 'para limpar o mato de ambos os lados das estradas, para evitar emboscadas' " (o que nos parece uma "blague").

IV. Comentário de António Martins de Matos, âs 11.15 de hoje:

.(...) Na Guiné, em 1974 não existiam 1960 bombas napalm, quanto muito os seus invólucros, vazios. Ainda menos os fantásticos meio milhão de litros, capazes de incendiar a Terra.

 O napalm era fabricado apenas e só na quantidade necessária para as saídas programadas.

Isto para dizer que:

  • Em 1974, havia na Guiné zero bombas napalm, apenas invólucros;
  • Napalm larga-se junto à copa das árvores;
  • Em 1974, e por via do Strela, deixou de ser utilizado;
  • Napalm em stock, só no ChatGPT;
  •  O ChatGPT é uma merda;
  • O Brig Fabião sabia de napalm tanto ou menos que eu sei de submarinos;
  • O Blogue costumava ser mais cuidadoso com o que vai divulgando;
  • Não gostei de ver a minha foto num poste tão aldrabado.(...)
 
domingo, 7 de setembro de 2025 às 11:15:00 WEST 

3. Comentário do editor LG

Obrigado, António.

Tens toda razão, devia ter-te consultado previamente, a ti e ao Miguel Pessoa. Vou tentar,  se possível,  reparar os estragos. E ter mais cuidado no futuro...Retiro a tua foto, mas os gráficos são oportunos e elucidativos...O documento do QG/CIFAG reproduzido existe (foi publicado num artigo académico, que eu cito).  Os autores deveriam também ter mais cuidado no que escreveram, levando o leitor, leigo como eu,  a confundir "bombas" com "invólucros"... 

Acredito que o Carlos Fabião soubesse pouco ou nada de napalm... Eu ainda menos sei, que não andei na Academia Militar.  Eliminei a segunda parte do poste, baseada em pesquisas do assistente de IA... 

Apresento as minhas desculpas à malta da FAP, e aos nossos leitores.  Aceita tu, também, as minhas desculpas. E os protestos da minha amizade e camaradagem. Luís

Observações - Posso concluir, depois das explicações dadas pelo ten gen ref António Martins de Matos, que, a Guiné, durante a guerra colonial, o napalm não vinha em “bombas” prontas a largar, como  muitos "leigos" (como eu) imaginam.

O que havia eram invólucros ou depósitos (bombas de queda livre, por exemplo de 350 ou 100 litros) que podiam ser carregados com diferentes recheios. 

O napalm era preparado localmente, “na hora”, a partir de gasolina misturada com espessantes (por vezes alumínio em pó ou sabões metálicos) que lhe davam a consistência gelatinosa e adesiva.

Assim, o “stock" mantido era sobretudo de gasolina e aditivos, não de bombas já cheias de napalm. O enchimento dos invólucros era feito na BA 12, Bissalanca, conforme a necessidade das operações. Daí a confusão que por vezes se gera entre o conceito de bomba (o invólucro, reutilizável em termos logísticos) e o de carga incendiária (o napalm, preparado "ad hoc")

Obrigado, António, pela lição. Espero não ter dececionado o professor, com este resumo.


(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

______________



(i) é a revista do Instituto Português de Relações Internacionais, da Universidade NOVA de Lisboa (IPRI-NOVA), 

(ii)  é publicada desde março de 2004;:

(iii) é uma publicação académica trimestral, de reflexão e debate sobre questões internacionais;

(iv) tem como objetivos abordar as grandes questões da atualidade internacional numa perspetiva pluralista e multidisciplinar, e fomentar o debate teórico na área das Relações Internacionais;

(v) áreas primordiais de publicação: política internacional, história, estratégia, segurança e defesa, política comparada, economia, direito internacional.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25061: Notas de leitura (1657): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
No rescaldo da Operação Tridente (1964) o então Comandante-chefe, Brigadeiro Louro de Sousa, decidira a criação de um destacamento numa das pontas da ilha do Como, Cachil. A vida deste destacamento tornou-se intolerável, tais e tantas eram as incursões dos grupos do PAIGC, cuja propaganda fazia alarde daquele "campo fortificado" de onde não se podia sair. O Comandante-chefe Schulz propôs ao Coronel Abecasis uma operação que levasse à erradicação das forças do PAIGC, a Operação Samurai. Foram mobilizados bastantes meios, sabia-se que o PAIGC dispunha de um sistema defensivo forte, como se veio a comprovar, mas os bombardeamentos deixaram os guerrilheiros moralmente em baixo. O que aqui se descreve são os preparativos dos meios aéreos que nela intervieram.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (7)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 2: Eles não conseguiram parar a nossa luta


Continuando a dar informações quanto ao armamento de que o PAIGC estava dotado em termos de sistema de defesa antiaérea, na continuação da Operação Estoque, a Força Aérea voltou duas noites depois, dois C-47 aproximaram-se da aldeia de Cassebeche, perto do Sul da ponta da Península de Quitafine. Apesar de o céu estar enevoado, o bombardeiro improvisado foi capaz de localizar e atacar o PAIGC, a despeito da reação antiaérea. Os dois C-47 largaram com sucesso bombas de 800 libras, vieram depois os Fiat e também encontraram uma reação no sistema de defesa antiaéreo, os alvos eram Cassebeche, Cabonepo, Cassacá e Camissorá. Um dos Fiat, pilotado pelo comandante dos Tigres, Tenente Egídio Lopes, regressou da sua missão atingido, era a primeira vez que um Fiat sofria danos em combate na Guiné. Devido à deterioração das condições atmosféricas, incluindo uma cobertura de nuvens até 900 pés, suspenderam-se as operações de dia, em 10 de agosto, mas naquela noite vieram os C-47 e bombardearam Cassebeche e a ilha de Canefaque, apesar da reação do PAIGC. No dia seguinte, os Fiat atacaram quatro outros locais antiaéreos, um Fiat foi forçado a aterragem de emergência no aeródromo de Cufar. A Operação Estoque terminou pelas 12 horas do dia 12 de agosto.

As aeronaves da Zona Aérea tinham feito 34 missões de combate e largaram 6800 libras de bombas e granadas incendiárias contra as posições do sistema antiaéreo do PAIGC, destruindo pelo menos uma metralhadora antiaérea. Mas o mais importante é que os ataques provocaram uma “desorientação moral” entre os guerrilheiros, como observou mais tarde o Coronel Abecasis: “Se não tínhamos destruído o sistema antiaéreo no Quitafine, tínhamos pelo menos provocado uma grande paralisação.”

Esta avaliação revelou-se prematura, uma vez que as chamadas zonas libertadas do Sul e as rotas de infiltração prosseguiram as suas ações; entretanto, o Grupo Operacional 1201 e os Tigres tinham aprendido uma série de lições relativamente ao emprego do Fiat. A Operação Estoque demonstrara a ineficácia dos foguetes de 2,75 polegadas contra as posições inimigas, as equipas do Fiat foram obrigadas a desenvolver outro tipo de perfis de fogo contra alvos precisos.

Apesar dos reversos temporários no Quitafine, o PAIGC continuava a desafiar a FAP noutros locais do Sul da Guiné, próximo da ilha do Como. Do final de agosto e até ao início de novembro de 1966, a guerrilha organizou uma sucessão de grandes ataques contra a guarnição portuguesa que estava no destacamento do Cachil, “o único, último e meio desmoronado bastião das nossas forças na ilha do Como Norte”, como observou o Coronel Abecasis. As forças da guerrilha também intensificaram a sua atividade antiaérea na região, quase derrubando um DO-27 numa missão de reconhecimento diurno. Temendo uma ofensiva da guerrilha mais forte com o intuito de expulsar as tropas portuguesas no Como, Schulz instruiu a Zona Aérea para planear uma resposta, destinada a “forçar o Inimigo a mudar de atitude.”

Para tal, o Coronel Abecasis e a sua equipa gizaram a Operação Samurai que mais tarde o comandante da Zona Aérea descreveu como “a operação mais ousada no teatro da Guiné.”

A Operação Samurai foi totalmente concebida como uma operação da Força Aérea, realizada em duas fases, com um empreendimento da Zona Aérea, primeiro, e depois um batalhão de paraquedistas no terreno. Na primeira fase, a aviação deveria fazer um esforço para atingir o sistema antiaéreo durante 3 dias, começando em 13 de novembro de 1966, para tirar benefício ou vantagem da Lua Nova, envolvia o Grupo Operacional 1201 com a sua frota de 8 Fiats, três C-47 e todos os operacionais T-6 e Alouette III, era a etapa inicial destinada a quebrar a resistência antiaérea. As Operações Resgate e Estoque tinham revelado a necessidade de precisão ao atacar estes alvos, sobretudo o ataque inicial com os C-47. A Operação Samurai devia utilizar o seu material bélico a menos de 4 mil pés, o que era suscetível de os deixar com um considerável risco. Estes ataques incluíam os acampamentos do PAIGC nas localidades de Cauane, Cachide, Cassacá e Caiar, bem como as rotas de abastecimento e de infiltração.

A segunda fase da Operação Samurai envolvia vários helicópteros que largavam as forças paraquedistas nos respetivos objetivos, a missão fundamental destas operações era de busca e destruição na ilha do Como. Estabeleceu-se em Cufar um apoio aéreo para auxiliar a ofensiva terrestre com coordenação em Bissalanca e com um posto de comando avançado em Catió. As aeronaves de serviço para apoiar os paraquedistas incluíam um par de Fiat em alerta terrestre em Bissalanca, um par de T-6 em alerta de 15 em 15 minutos em Cufar, havendo um DO-27 e um Alouette III em Cufar para eventuais evacuações. Ao longo de todas as fases de operação, um PCV DO-27 sobrevoou continuamente a área do objetivo, havia dois T-6 adicionais e um helicanhão em alerta. As aeronaves portuguesas foram também encarregas de operações noturnas de bombardeamento no centro do Como e operações de intervenção diurna noutros lugares da ilha, durante a operação. Assim que se deu por concluída a segunda fase, esperava-se que o Exército assumisse a responsabilidade pela reocupação do Como e pela erradicação de qualquer vestígio da presença do PAIGC. A Operação Samurai foi precedida por um esforço de reconhecimento de uma semana, a partir de 4 de novembro, abrangendo especialmente o Sul e o Oeste da ilha. Os Fiat voaram em missões de reconhecimento fotográfico de baixo nível, usando as suas câmaras de 70 mm para detetar alvos e ameaças, estas câmaras estavam dotadas de imagens de “claridade surpreendente”, segundo o Coronel Abecasis.

Os acampamentos dos rebeldes em São Nicolau e Cauane foram reconhecidos com especial atenção pelo Fiat, enquanto os DO-27 voavam exaustivamente para pesquisar potenciais locais para pouso de helicópteros. Centenas de fotografias aéreas, incluindo imagens panorâmicas e estereoscópicas foram entregues ao recém-criado Centro de Campanha de Exploração Fotográfica em Bissalanca para identificação e análise de alvos em preparação para a próxima ofensiva terrestre. O esforço deste reconhecimento operacional foi elogiado pelo Comando da Zona Aérea por ter produzido informação de “valor extraordinário”. A operação contra os sistemas de defesa antiaérea do PAIGC começou pelas 22 horas do dia 13 de novembro, com bombardeiros noturnos C-47 a atingir a defesa antiaérea do PAIGC. Houve resposta à volta da base Cauane, mas era um fogo defensivo de pouca intensidade, nada comparado com o que se tinha visto nas Operações Resgate e Estoque. O primeiro bombardeamento transportava bombas de 15 e 50 kg, bem como granadas de iluminação de magnésio. Ao longo dos três dias seguintes, os Fiat e T-6 procuraram obter informações para as tropas paraquedistas. De acordo com relatórios das tropas portuguesas e dos prisioneiros do PAIGC, a ação aérea resultou na morte de 6 militantes e 20 desaparecidos, na destruição de “todos os objetivos militares” identificados durante o reconhecimento aéreo e os prisioneiros confessaram ter havido uma grande desmoralização como resultado do bombardeamento noturno.
Objetivos da Operação Estoque, agosto de 1966 (Matthew M. Hurley)
Aviões Fiat dispondo de rockets durante a Operação Estoque (Coleção José Nico)
Comandante dos Tigres, tenente Egídio Lopes (Coleção Egídio Lopes)
Operação Samurai, novembro de 1966 (Matthew M. Hurley, adaptado do relatório da Operação Samurai)

(continua)

____________

Notas do editor:

Post anterior de 5 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25050: Notas de leitura (1656): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Os autores observam a evolução da situação político-militar entre 1966 e 1967, do lado português renascera a motivação com a chegada do helicanhão e do Alouette III, para suporte das operações de superfície, do lado do PAIGC remodelaram a estratégia introduzindo sistemas antiaéreos, nomeadamente na península do Quitafine; a propaganda do PAIGC brandia nos areópagos internacionais de ter autoridade em metade do território, um hábil mantra propagandístico, de muito difícil contestação, quer forças especiais quer as forças em quadrícula quando atingiam um objetivo podiam destruir os meios existentes mas tinham rapidamente que retirar, a guerrilha montava dispositivos que iam de emboscadas ao uso de morteiros. Para o Comando-Chefe e para a Força Aérea havia problemas delicados como os que foram postos pela Operação Estoque, bombardear horas a fio os tais lugares que dispunham de sistemas de defesa antiaérea punham problemas humanitários, o bombardeamento podia-se saldar numa autêntica carnificina da população civil, daí terem-se lançado panfletos a pedir a esta população que se deslocasse do local. Evidentemente que o fator surpresa ficou comprometido.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 2: Eles não conseguiram parar a nossa luta


Recapitulando a evolução dos acontecimentos de 1966 para 1967, observam os autores que do lado português se ganhara confiança com a chegada do Alouette III, do Fiat e da possibilidade de utilizar na atividade operacional o helicanhão. Do lado do PAIGC, e após o tremendo susto provocado pela entrada em cena do helicanhão, Amílcar Cabral readaptou a estratégia do PAIGC, a guerra expandiu-se, apareceu na propaganda do PAIGC um conjunto de territórios tratados como zonas libertadas, onde o partido nacionalista alegadamente dominava e governava através de políticas rudimentares abarcando a economia, a saúde, a educação, apareceram mesmo os chamados armazéns do povo. Já em 1966, o PAIGC reivindicava a libertação de mais de metade do território, uma estatística veementemente contestada pelas autoridades portuguesas, mas de difícil refutação, as próprias forças portuguesas sabiam perfeitamente que mesmo quando desalojavam ou destruíam instalações precárias dos guerrilheiros, milícias e populações, mal abandonavam os locais esses mesmo guerrilheiros, milícias e populações regressavam, alterando o seu posicionamento, procurando assim também enganar os meios aéreos e não serem atingidos por bombardeamentos.

Seja como for, estas zonas ditas libertadas representavam uma componente essencial do PAIGC na sua estratégia mais ampla, divulgada como o progresso militar e a capacidade administrativa política que legitimava o movimento de libertação. Amílcar Cabral afirmava: “Nas nossas regiões libertadas temos agora os ingredientes de um Estado. O nosso povo tem uma personalidade política e vida económica e cultural, é o povo que governa o povo.” A natureza desta mensagem dava confiança a quem estava sob a égide do PAIGC, começaram a surgir filmes e reportagens que se publicavam e mostravam em diferentes países, e toda esta dinâmica encorajava o apoio de benfeitores estrangeiros, foi a alavanca para o sucesso do PAIGC a longo prazo.

A única forma de Portugal refutar ou procurar contrariar a propaganda do PAIGC quanto a reivindicações de domínio territorial tinha de se exprimir através da ocupação militar, criando destacamentos de diferentes dimensões e intervindo militarmente, na tentativa de desmantelar as posições do PAIGC. Em 1966, as forças portuguesas tinham adotado uma estratégia predominantemente “posicional”, fortificando as guarnições não só nas principais povoações como criando ou reforçando destacamentos e povoações em autodefesa, procurando intimidar a guerrilha por meio de emboscadas ou minas, ou contrariando emboscadas e minas por parte do PAIGC. Como explicou o Chefe de Estado-Maior do Exército, General Câmara Pina, durante uma visita em Abril à Guiné: “Para nós, é fundamental neste momento garantir a segurança das populações; é por isso que empregamos as nossas forças em missões mais estáticas, independentemente da utilização operacional das forças especiais.”

Um jornalista britânico que visitou na época a Guiné teve uma leitura menos positiva da situação, escrevendo que as forças terrestres portuguesas estavam acantonadas e sitiadas em 60 vilas, povoações e quartéis fortificados, só a reagir às ações do PAIGC, deixando à Força Aérea a iniciativa para projetar rapidamente a presença portuguesa em áreas dominadas pelos rebeldes.

Surgiu, entretanto, uma capacidade antiaérea do PAIGC, particularmente nas chamadas zonas libertadas do Sul. Cabral e outros líderes partidários tinham prometido defender e alargar estas áreas libertadas a todo o custo, e uma vez que os portugueses optaram por atacá-los principalmente pelo ar, os guerrilheiros do PAIGC teriam de lhes resistir. E, para esse efeito, concentraram os seus meios e atividade de defesa antiaérea em certos pontos do Sul, onde o PAIGC estava mais entrincheirado. De 1963 a 1965, quase dois terços de todos os incidentes antiaéreos relatados ocorreram no Setor Sul. Houve uma ofensiva aérea de três dias para neutralizar posições antiaéreas na região do Cantanhez (Operação Resgate, de 17 a 20 de dezembro de 1965), esta operação foi a primeira centrada em procurar neutralizar as defesas antiaéreas do PAIGC, o sucesso foi relativo, não foi destruído o poder dos guerrilheiros. Ao longo da primeira metade de 1966, os insurgentes continuaram a expandir e consolidar a sua presença nas penínsulas do Cantanhez e do Quitafine. O Quitafine teve grande importância para a guerrilha, assegurava transporte costeiro e fluvial, área influente para corredores de ligação à República da Guiné, por isso estava no topo das prioridades para a defesa antiaérea do PAIGC.

O Coronel Abecasis observou que os militantes de Cabral começavam a desafiar a FAP com arrogante ousadia, a Operação Resgate provocara danos a várias aeronaves portuguesas que sobrevoavam a região. As posições antiaéreas do PAIGC também ameaçavam as operações aéreas portuguesas de apoio às guarnições de Cacine e Cacoca. No total, os disparos antiaéreos relatados pela FAP aumentaram de 103, durante 1965, para 110, em 1966, e novamente dois terços ocorreram na zona Sul da Guiné. Ao mesmo tempo que acelerava o ritmo da atividade antiaérea, o PAIGC melhorava o seu arsenal. Inicialmente, havia guerrilheiros com armas ligeiras, em meados de 1964 os insurgentes estavam equipados com metralhadoras antiaéreas (AAMGs) de 7,6 mm e 12,7 mm, depois o Bloco Comunista nos anos seguintes fez a entrega de canhões antiaéreos de 14,5 mm da série ZPU, de design soviético: o ZPU-1, de cano único, e o ZPU-2, de cano duplo, e o ZPU-4, de quatro canos, o que veio ampliar significativamente o alcance da defesa aérea do PAIGC.

Este sistema da defesa antiaérea funcionava sobre rodados, limitava-se em grande parte para operações bem-definidas, usavam-se estradas ou trilhos no Sul. A ameaça antiaérea aumentou em termos de alcance e sofisticação com um aumento correspondente de risco para as aeronaves da FAP (ver o quadro n.º 4 e o gráfico dos incidentes relatados).

A Zona Aérea lançou uma série de operações para mitigar a ameaça no Sul da Guiné, começando com a Operação Estoque, em agosto de 1966, destinada a destruir ou desmantelar a organização do PAIGC na península do Quitafine. A operação foi concebida como um ataque de 12 horas em duas fases. Na primeira fase, que durou das 19 até à meia-noite de 9 de agosto, C-47 modificados com bombardeiros noturnos tentaram neutralizar as posições antiaéreas do PAIGC, a iniciativa era considerada essencial para uma segunda etapa, como a que consistiu principalmente numa operação de reconhecimento na superfície e missões de intermissão nos corredores de abastecimento e infiltração a partir da República da Guiné. Participaram também na operação da Força Aérea, além dos C-47 e dos T-6, os recém-chegados Fiat. O Quitafine era uma área que albergava significativa população civil e tanto Schulz como Abecasis reconheceram que bombardeamentos indiscriminados podiam resultar em inaceitáveis carnificinas, dando aos sobreviventes uma razão convincente para apoiar a guerrilha. Estoque foi precedida, tal como ocorrera em 1964 na Operação Tridente, do lançamento de folhetos no dia 7 de agosto, aconselhando os não combatentes a desocupar aquela área. Como observou mais tarde Abecasis, o principio da surpresa foi sacrificado por razões humanitárias.

Distribuição e atividade das forças do PAIGC entre maio de 1966 e fevereiro de 1967 (Matthew M. Hurley)
Atividade militar do PAIGC/FAP entre 1963 e 1966 (ataques de morteiro e bazuca, emboscadas, minas e ações defensivas), segundo Matthew M. Hurley
Os sinistrados portugueses em 1966 (mortos e feridos) totalizaram 1266, incluindo ações em combate e acidentes (Coleção José Matos)
Uma escola do PAIGC em zonas libertadas na região norte (Coleção Roel Coutinho)
Tabela com o sistema antiaéreo do PAIGC entre 1963 e 1970
Família na zona libertada de Cubucaré a segurar vestígios de uma bomba de napalm lançadas pela Força Aérea Portuguesa (Coleção Mikko Pyhälä)
Fogo antiaéreo do PAIGC referindo incidentes entre 1963 e 1967 (Matthew M. Hurley)

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 29 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25012: Notas de leitura (1653): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (5) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 1 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25027: Notas de leitura (1654): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Assim se chega ao fim deste primeiro volume, em 1964 o PAIGC dá sinal de vida às suas armas antiaéreas no Cantanhez, as forças portuguesas respondem com operações de bombardeamento e depois com forças (Operação Resgate, Operação Mercúrio, Operação Safari). 1965 será um ano sem perdas para a FAP, mas a guerra alastrou, o PAIGC consolidou-se no sul, no Morés, donde se dissemina até ao norte e ao Geba, está bem implantado no Corubal. Vamos agora esperar pelo segundo volume, assim que os autores tiverem a amabilidade de nos facultar. Bastava ler este volume I para perceber como muita gente que anda a escrever sobre a Guiné e a afirmar impudicamente que a governação Schulz foi atrabiliária, para se ver a ignorância que por aí vai, nem as memórias de José Krus Abecasis tiveram a oportunidade de ler.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois, dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Seguiu-se uma descrição sobre os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. Por fim, abordou-se a Operação Tridente, começa agora o período da governação Schulz. Pela narrativa destes autores, revela-se à puridade a ideia feita de que Schulz não tinha estratégia adequada para querer contrariar a ofensiva guerrilheira, adotou um modelo de disseminação da quadrícula que era totalmente partilhado por outros potências coloniais a enfrentar a insurgência, e, obviamente, apercebendo-se da natureza do terreno, teria de apostar no apoio aéreo e na capacidade dos bombardeamentos. E os autores explicam claramente as dificuldades surgidas com as aeronaves. Vamos continuar esse relato e acompanhar o período da governação Schulz, e procurar entender a natureza da resposta do PAIGC.

Em meados de 1964, o PAIGC dotara-se de armas de defesa aérea de 12,7 mm, entre elas o DShK ou “Degtyarov-Shpagina de grande calibre”, conseguiu danificar 42 aviões durantes os primeiros oito meses de 1964, foi a frota T-6 que sofreu o maior dano. A intensa atividade antiaérea do PAIGC continuou no ano seguinte. E à medida que o armamento do sistema antiaéreo se tornava mais eficaz, o PAIGC criou equipas de armas que poderiam agir de forma independente ou ligar-se a formações maiores para grandes operações. No início de 1965, o PAIGC tinha reorganizado a sua ala militar regular, as FARP, constituíram-se grupos autónomos de 17-25 combatentes cada, dois grupos formavam um bigrupo que se iria tornar a formação tática padrão das FARP. Cada bigrupo poderia ser reforçado com elementos da defesa aérea ou outras armas empregando morteiros, RPGs, canhões sem recuo, entre outros. Essas forças locais eram importantes para manter uma aparência de soberania do PAIGC nas chamadas zonas libertadas, um pilar fundamental do seu programa político.

O primeiro teste sério à capacidade do PAIGC blindar território “libertado” de ataque aéreo ocorreu na Península do Cantanhez. Em 6 de dezembro de 1965, um C-47 recebe uma autêntica barragem de fogo antiaéreo enquanto sobrevoava o sul da Guiné à noite e a uma altitude de 5000 pés. De acordo com os relatórios da operação, sugeria-se que o PAIGC tinha usado armamento antiaéreo mais pesado, seriam os canhões antiaéreos ZPU de 14,5 mm, era uma metralhadora com alcance de quase uma milha podendo fazer fogo até 4500 pés, o cano podia disparar 600 tiros por minuto. Como observou Krus Abecasis, o inimigo tinha escalado e procurava desafiar o domínio aéreo da Força Aérea, o incidente sobre o Cantanhez exigiu a ativação de uma estratégia, a Força Aérea ia responder ao desafio. Foram preparados planos para tal contingência e em 10 de dezembro Schulz aprovou a proposta de Abecasis para a Operação Resgate, nome escolhido com a intensão de restaurar a nossa liberdade de ação nos céus da Guiné. Schulz e Abecasis esperavam provocar estas equipas do sistema antiaéreo do PAIGC no Cantanhez, puseram em campo toda a gama da capacidade ofensiva: 2 C-47, 12 T-6, 3 Do-27, 2 helicópteros Alouette III e 2 P2V-5 (os Neptune chegaram a Bissalanca vindo das Ilha do Sal a 12 de dezembro trazendo consigo bombas de 325 kg para uso na operação). A Operação Resgate foi desencadeada a 17 de dezembro, um C-47 aproximou-se das posições antiaéreas à altitude de 400 pés, levava apagadas as suas luzes de navegação, atuava como isca, era um barulho destinado a provocar uma reação violenta dos sistemas antiaéreos, expondo as suas posições; atrás desta aeronave seguia outro C-47 que ia iluminar esses locais, a sua missão era identificar os alvos com mais precisão e simultaneamente atrapalhar a visão noturna dos artilheiros, este C-47 também vinha carregado de bombas de fragmentação de 50 kg e latas de napalm de 60 litros. A aeronave isca atraiu o fogo esperado, foram lançados flashes de magnésio e o primeiro bombardeiro Neptune chegou à área alvo dois minutos depois lançando bombas; os Neptunes despejaram as suas munições nos 50 minutos seguintes. Apesar da ferocidade do assalto, os artilheiros antiaéreos das FARP iam vomitando estilhaços de grande calibre contra os nossos aviões, como descreveu Krus Abecasis. Esta primeira onda de ataque foi seguida por mais três em dezembro a 18 de dezembro, completaram a primeira noite da Operação Resgate.

Ao amanhecer, os T-6 começaram a fazer o reconhecimento, a verificar como se processava a infiltração e o abastecimento das FARP, quais as rotas que levavam àquela península. Na avaliação de resultados da primeira noite, o comandante da ZACVG concluiu que houvera êxito na missão, tinham sido descarregadas 30 toneladas de bombas nas posições do PAIGC.

A punição recomeçou duas noites depois, a 19 e 20 de dezembro, as aeronaves da FAP lançaram a segunda série de ataques na região do Cantanhez. Observou-se logo um declínio acentuado no fogo antiaéreo, presumivelmente devido aos danos causados durante a primeira noite da Operação Resgate. A FAP não perdeu nenhuma aeronave durante estes dias de operação, embora dois T-6 tenham sido atingidos no dia 19 e um P2V-5 ficou ligeiramente danificado pelas defesas antiaéreas durante a noite final da operação. Até ao fim do ano fizeram-se voos noturnos para avaliar os resultados, e havia o intuito de preparar uma operação conjunta para expulsar em definitivo o PAIGC do Cantanhez. Embora os sistemas antiaéreos do PAIGC estivessem piados, as FARP continuavam numa total liberdade de movimento naquela península densamente florestada e frequentemente inundada. Na sequência da Operação Resgate ocorreu a Operação Safari em 3 e 4 de janeiro de 1966, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, fizeram vários desembarques simultâneos na Península de Cantanhez. Apesar de alguns sucessos iniciais, incluindo a destruição do que se considerou uma bases central das FARP, as forças portuguesas encontraram uma forte oposição e foram obrigadas a retirar-se. Retornou-se ao Cantanhez dois meses e meio depois, as forças portuguesas desembarcaram com a proteção de aeronaves, era a Operação Mercúrio, em 19 de março de 1966; pela primeira vez, alguns DO-27 foram utilizados para atacar, empregando granadas de mão como bombas de fragmentação improvisadas – um método não isento de riscos para o avião e a tripulação. A Operação Mercúrio foi considerada um sucesso tático, não encontrado resistência da guerrilha e não houve vítimas do lado português a assinalar.

Noutro lugar desta volátil Região Sul, em 1 de agosto de 1966, a ZACVG lançou a Operação Ribalta, com a duração de três dias, abarcando a fronteira sudeste com a República da Guiné, operação que foi precedida por bombardeamento noturno, procuraram afetar unidades guerrilheiras que flagelavam os destacamentos de Beli e Madina do Boé. A operação foi um êxito, os guerrilheiros sofreram 60 mortos e o remanescente das unidades de guerrilha teve de fugir.

Atenuou-se, mas não se destruiu esta dinâmica do PAIGC. Ao longo de 1966, a região sul iria permanecer como o teatro de guerra mais ativo, o PAIGC consolidava o seu controle em zonas pouco povoadas de florestas, pântanos e mato. As FARP também aumentaram a sua presença e atividades no noroeste da Guiné ao longo da fronteira com o Senegal, explorando a escassez de forças portuguesas na área. As FARP estavam bem instaladas na região do Morés e dali partiam operações para todo o oeste. No leste, o PAIGC encontrou forte resistência por parte da população Fula dominante, mas conseguiu estabelecer uma presença disruptiva no setor, fazia-o mediante forças que se infiltravam na fronteira e que depois regressavam aos seus santuários da Guiné-Conacri.

Felizmente para a ZACVG, 1965 foi um ano relativamente bem-sucedido, não se perdeu nenhuma aeronave desde dezembro de 1964. Um dos oficiais superiores que trabalhavam com Schulz, o Tenente-Coronel Castelo Branco descreveu os problemas que estavam a ser enfrentados pelas tropas portuguesas em carta enviada ao Comandante-Chefe: insuficiência de recursos em tropas, veículos, aeronaves e pilotos; a guerrilha estava profundamente entrincheirada no sul da Guiné. O tenente-coronel considerava que o Governo teria de se comprometer mais com uma guerra em grande escala que queria reconquistar a região e as gentes, e escrevia: “Em suma, o inimigo colocou a mão no nosso pescoço, como um bom lutador de judo, e estamos com imensa dificuldade de sair desta posição.” Ora, para grande desconforto da ZACVG, deu-se a retirada do F-86, as funções de apoio de fogo iam ser centradas nos velhos T-6. As FARP aumentavam a frequência da sua presença e as forças terrestres mostravam dificuldade em responder com oportunidade célere às atividades da guerrilha.

As iniciativas diplomáticas desenvolvidas por Lisboa junto de Paris e Bona tiveram sucesso, conseguia-se contornar o embargo de armas norte-americano, adquirindo aeronaves pelos parceiros europeus. Estava iminente a entrada em cena dos Fiat G.91 da República Federal Alemã e a entrega dos helicópteros Alouette III, o que trouxe algum otimismo tanto a Schulz como a Abecasis, supunha-se que estas aeronaves iriam trazer novas capacidades e fazer pender a balança graças a uma fase qualitativamente nova da guerra aérea, na Guiné Portuguesa.

Fim do volume I.


Um caça Fiat G.91
Uma metralhadora antiaérea Degtyarev de 12,7 mm
Guerrilheiros do PAIGC com uma arma antiaérea ZPU-4 de 14,5 mm
Metralhadora pesada ZPU-4.

OBS: - As quatro imagens acima apresentadas foram retiradas do trabalho de José Matos intitulado “A GUERRA DAS ANTIAÉREAS NA GUINÉ (1965/1970)”, com a devida vénia
Quadro da penetração do PAIGC em meados de 1966 (Matthew M. Hurley)
Quadro que reporta as perdas em combates e acidentes de aeronaves na Guiné (1962-1966)
F-86 destruído em 31 de maio de 1963, na sequência de um bombardeamento que correu mal (Arquivo Histórico da Força Aérea)
À atenção do leitor: estes dois volumes de memórias de José Krus Abecasis continuam a ser leitura fundamental para análise do comportamento da FAP na Guiné, neste período
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Notas do editor

Vd. Postes anteriores de:

6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

13 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)

20 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23998: Notas de leitura (1545): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (13) (Mário Beja Santos)
e
27 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24015: Notas de leitura (1547): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (14) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)