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quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27488: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (6): o primeiro e o único morto do meu pelotão, o sold pqdt António da Silva Ramos (1947-1970), natural de Santo Tirso



Angola > Norte - Montes Mil e Vinte > 26 de junho de 1970 > Heli SA-330 Puma na recuperação do 3º Pel da 1ª CCP /BCP 21 (1970/72)... Nesta operação, "Não Esquecemos"  morreu um soldado do meu pelotão, o António da Silva Ramos. O primeiro e o único.




Foto à direita: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), 235 pp.

Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, nº 643, desde 31/1/2014, tendo já cerca de 130 de referências, no nosso blogue; reside na Lourinhã, é professor de educação física, reformado, foi autraca em Fafe, com o pelouro de "Desporto e Cultura": residiu lá durante cerca de 4 décadas): Tem página pessoal do Facebook




Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (6) > o primeiro e o único morto do meu pelotão, o sold pqdt António da Silva  Ramos

por Jaime Silva


Não esqueci nunca… nunca… o único morto do meu pelotão, o António da Silva Ramos, soldado Paraquedista nº108/67. 

Foi na Operação "Não Esquecemos”, realizada no dia 25 de junho de 1970, na zona de ação entre os rios Onzo e Quifusse,  nos Montes 1020, no Norte de Angola.

Nesse dia fatídico, o grupo de combate foi transportado num helicóptero SA 330. Entretanto e, simultaneamente com o nosso lançamento, dois avões de combate T6 da Força Aérea despejavam quatro bombas de napalm sobre a base guerrilheira.

Dá-se um confronto, com tiroteio, rebentamentos, o comum nestas circunstâncias. Pouco depois do início desse confronto, o soldado Ramos apanha um tiro certeiro nas carótidas que lhe ceifou, imediatamente, a vida.

Foi evacuado por um Alouette III. Passámos a noite no mato e, no dia seguinte, quando nos preparávamos para sair do local, na direção da zona de recuperação, sofremos, de novo, uma forte emboscada. Valeu-nos a intervenção do helicanhão que metralhou a zona, permitindo que o helicóptero SA 330 nos recuperasse em segurança.


Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pãg. 87




Sold pqdt António da Silva Ramos (1947-1970)

Morto em combate em Angola (Onzo, região de
Nambuangongo), em 25 de junho de 1970.
Nasceu a 3 de fevereiro de 1947, na freguesia de
Muro, concelho de Santo Tirso, distrito do Porto.
Frequentou o Curso de Paraquedismo nº 46,
 tem o Brevet nº 6140.
Encontra-se sepultado no cemitério da freguesia de
Modivas, concelho de Vila do Conde, distrito do Porto.


(Revisão / fixação de texto, edição de imagem,  título: LG) 

_____________

Nota do editor LG:

Último poste da série > 23 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27455: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (5): a mina A/P que ceifou a perna do soldado radiotelegrafista Santos, alentejano

Postes anteriores:

13 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”

6 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27390: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (3): estive sempre no "gastalho", em guerra comigo e contra o IN

31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27369: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (2): perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas

29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27363: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (1): A minha (im)possibilidade de desertar

domingo, 30 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27479: Recortes de imprensa sobre o império colonial (1): Sociedade Agrícola do Gambiel, Lda, Aldeia do Cuor, Bambadinca: entrevista a um administrador ("Portugal Colonial", nºs 55-56. set/out 1935)

 














Fonte: Excertos de Portugal Colonial: Revista de Expansão e Propaganda Colonial (Diretor: Henrique Galvão, 1895 - 1970-), Lisboa, nºs 55-56, setembro / outubro de 1935, pp. 12-13 (Cortesia de Câmara Municipal de Lisboa / Hemeroteca Digital)

Veja-se aqui a excelente ficha história sobre a recvista mensal "Portugal Colonial", de 9 páginas,  de Rita Correia. Publicaram-se 72 números, de março de 1931 a fevereiro de 1937. 

(...) Entre todas as colónias, Angola foi a que mereceu maior atenção, sobretudo nos primeiros anos. O assunto era caro ao diretor da Portugal Colonial, que ali viveu uma curiosa experiência, entre 1927 e 1929, que o catapultou da condição de degredado à de governador da província de Huila. 

Mas sobretudo porque a crise económica de Angola, filiada numa não menos gravosa crise financeira, teve um impacto significativo na vida da metrópole. Desde logo porque significou uma quebra nas trocas comerciais entre ambas, mas que foi mais penalizadora para a produção nacional,  em particular para a indústria têxtil e o setor dos vinhos, repercutindo-se também na atividade da marinha mercante, nas receitas tributárias, e nas transferências bancárias. 

MoDepois, porque desencadeou uma sequência de episódios e decisões que contribuíram para a clarificação do quadro político da Ditadura Militar, instituída pela revolução de 28 de Maio de 1926. (...) 


1. Há muitas referências no nosso blogue a esta Sociedade Agrícola do Gambiel Lda, que foi um fiasco, bem como ao regulado do Cuor, à Aldeia do Cuor, e ao rio Gambiel... 

Estes eram domínios do "Tigre de Missirá", o nosso amigo e camarada Mário Beja Santos (cmdt, Pel Caç Nat 52, 1968/70). Ele ainda hoje fala do Cuor com emoção e paixão.

 E outros camaradas do nosso blogue, como o saudoso Jorge Cabral,  cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) bem como a malta da CÇAÇ 12 (eu próprio, o Humberto Reis, etc.), temos recordações ainda muito vivas desses lugares, que palmilhámos muitas vezes, em patrulhamentos ou a caminho de operações mais a norte... 

Mas eu, pessoalmente, já não me recordo de ver os restos das instalações e das máquinas da Sociedade Agrícola do Gambiel Lda, se é que ainda existiam no nosso tempo... O Beja Santos julgo que sim, deve lá ter andado a vasculhar o sitio... 

Para quem ainda acredita, piamente, que o colonialismo  (português) nunca existiu, leia, com o devido distanciamento e espirito critico, este resumo de uma entrevista, que tem 90 anos, ao então administrador desta empresa agrícola, o ribatejano Sebastião Nunes de Abreu (que veio em 1930, de Angola, para se enterrar naquelas terras palúdicas do Cuor). 

Em 1935, ainda havia a distinção entre portugueses da metrópole, "assimilados" e "indígenas"... Mas uma empresa agrícola como aquela, onde foi enterrado bastante dinheiro em máquinas e equipamentos, não conseguia recrutar gente para nela trabalhar...

O entrevistador foi Armando de Landerset Simões, que  terá nascido em Moçambique, Caconda, em 1909. Além de funcionário da administração colonial, foi escritor e etnógrafo, tem 8 referências na Porbase. como Simões Landerset. Destaque para a sua obra, "Babel negra: etnografia, arte e cultura dos indígenas da Guiné" (Porto, Oficinas Gráficas de O Comércio do Porto, 1935) (prefácio de Norton de Matos).


2. Para melhor contextualizar a entrevista, acrescente-se que, em 1935, o diploma legal que regulava o trabalho indígena nas colónias portuguesas, incluindo a Guiné, era o Código do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas de África (sic), aprovado pelo Decreto n.º 16:199, de 6 de Dezembro de 1928.

Este Código estabelecia o regime jurídico do trabalho para os africanos considerados "indígenas" e tinha caráter obrigatório, embora a legislação colonial o apresentasse como uma forma de combater a "ociosidade" e promover a "civilização" (sic).

Todo o "indígena" á partida "não gostava de trabalhar": este era o preconceito básico do administrador, do chefe posto, do colono, do comerciante, de missionário e do soldado. Logo, "era preciso obrigá-lo". 

Principais aspetos do Código de 1928:

(i) Obrigatoriedade: impunha o trabalho obrigatório aos indígenas do sexo masculino, com exceções limitadas (como régulos, sobas e outros  chefes gentílicos, repatriados por seis meses, e homens alistados no exército);

(ii) Curador: criava a figura do "Curador dos Indígenas" e seus agentes (delegados, administradores), responsáveis pela "proteção, tutela e fiscalização" dos trabalhadores, mas também por distribuir os encargos de trabalho;

(iii) Contratos: regulava os contratos de trabalho, estabelecendo direitos e deveres para patrões e trabalhadores, mas com garantias que, na prática, permitiam o uso de métodos coercivos por parte dos patrões para manter a disciplina e evitar o abandono do trabalho (veja-se o drama dos "contratados" das roças de São Tomé);

(iv) Estatuto diferenciado: este Código integrava um sistema jurídico mais amplo que consagrava a inferioridade jurídica do indígena, afastando-o da legislação civil e penal aplicável aos cidadãos portugueses da metrópole (o chamado "Estatuto do Indigenato");

(v) a legislação sobre o trabalho indígena, depois de muitas críticas  (de instâncias internacionais como  a OIT - Organização Internacional do Trabalho, etc. ) foi posteriormente revista e alterada ao longo do período colonial, sendo o Código de 1928 substituído pelo Código do Trabalho Rural em 1962, através do Decreto n.º 44309.



Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955)   (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Aldeia do Cuor, Rio Gambiel (afluente do Rio Geba), Missirá, Fá Mandinga e Bambadinca, uma das regiões mais exuberantes da zona leste, pela sua vegetação e hidrografia... 

O rio Geba (Estreito) entre o Xime, Mato Cão, Bambadinca e Bafatá espraiava-se por aquelas terras baixas como uma autêntica cobra, e originava riquíssimas bolanhas e lalas. No tempo das chuvas, redesenhava-se o curso do rio.  Imaginem uma viagem, de  "barco turra" no Xaianga (ou Geba Estreito).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27459: Efemérides (475): Mais de cem anos depois do Armistício de 11 de novembro de 1918, que encerrou a Primeira Guerra Mundial, é essencial registar o percurso de Portugal até esse conflito e os seus impactos (José Marcelino Marins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)



Loures e Odivelas na Guerra
(Memória, Sacrifício e Monumentos)

José Marcelino Martins

Mais de cem anos depois do Armistício de 11 de novembro de 1918, que encerrou a Primeira Guerra Mundial, é essencial registar o percurso de Portugal até esse conflito e os seus impactos. Num período de grandes crises políticas, financeiras e económicas, Portugal conseguiu ainda defender a sua soberania e os territórios ultramarinos. Este artigo recupera a memória desta geração de Combatentes e o preço da guerra para a Nação.


Do mapa Cor-de-Rosa ao fim da Monarquia

Em 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro do ano seguinte, realizou-se em Berlim uma célebre conferência que reuniu catorze países com interesses em África. Portugal apresentou duas propostas: o denominado “Mapa Cor-de-Rosa”, que pretendia ligar Angola a Moçambique, e o direito de posse fundamentado na “descoberta ou achamento”. Ambas foram liminarmente rejeitadas. A partir daí, a ocupação efetiva dos territórios tornou-se condição essencial para o reconhecimento internacional da soberania legitimando, inclusive, anexações pela via militar.

Em 30 de janeiro de 1892, como resposta à grave situação das finanças públicas, o governo instituiu impostos extraordinários. Os rendimentos do trabalho (ordenados, soldos e pensões) estavam sujeitos a taxas entre 5% e 20%, enquanto os rendimentos prediais, de capitais e industriais podiam atingir 30%. Paralelamente, Portugal foi obrigado a renegociar a sua dívida externa.

Entre 1895 e 1910 intensificaram-se as chamadas Campanhas de Ocupação em África. Esta campanha era para “ocupar efetivamente” o território, mas provocaram forte resistência das populações locais, determinadas na defesa da sua autonomia sob a liderança de chefes regionais. A persistência dos combates deu origem às designadas Campanhas de Pacificação, realizadas com forças expedicionárias metropolitanas de cerca de 650 a 700 homens, compostas por infantaria, artilharia e cavalaria, serviços de saúde, engenharia e administração.

Perante a contínua asfixia financeira, o deputado José Bento Ferreira de Almeida (1847-1902), Capitão-de-Mar-e-Guerra e antigo ministro da Marinha e Ultramar, propôs, na sessão parlamentar de 12 de janeiro de 1902, uma medida extrema: a venda das colónias portuguesas, com exceção de Angola e São Tomé e Príncipe. O objetivo seria liquidar a dívida externa e utilizar o eventual excedente para dinamizar a economia nacional.

(Curiosamente, sessenta anos mais tarde, em 12 de janeiro de 1962, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira (1918-1993), entregou a António de Oliveira Salazar (1889 - 1970) um documento intitulado “Notas sobre a Política Externa Portuguesa”. Nele defendeu a entrega de Macau à China, de Timor à Indonésia e a abertura de conversas condutoras à independência da Guiné e de São Tomé e Príncipe. Propunha ainda que Portugal mantivesse apenas Angola, Moçambique e Cabo Verde. Ao receber o documento, Salazar anotou: “Começado a analisar com o ministro dos Negócios Estrangeiros numa das nossas conferências”) (Revista Expresso, 31 de agosto de 2002, p. 12).


A República e o caminho para a guerra

Quando a República foi proclamada, a 5 de outubro de 1910, uma das primeiras medidas de vulto foi a reorganização do Exército. O serviço militar tornou-se obrigatório para todos os jovens, que passavam inicialmente por uma escola de recrutas, com formação de 15 a 30 semanas. Nos dez anos seguintes foram chamados ainda em períodos regulares de instrução de duas semanas. Criaram-se também escolas de quadros para preparação de oficiais milicianos. Estava previsto um corpo permanente de 11.210 militares: 1.870 oficiais e 9.540 praças e sargentos.

Tal como aconteceu no regime monárquico, o governo republicano não esqueceu a prioridade das possessões ultramarinas. Pouco a pouco, as forças militares instaladas nas colónias foram colocadas sob a tutela do recém-criado Ministério das Colónias (3 de setembro de 1911), embora mantendo uma ligação operacional ao Ministério da Guerra. Esta dualidade prolongou-se até 1959, altura em que a reorganização do Ministério do Exército lhe devolveu a jurisdição plena sobre os territórios ultramarinos.

No plano interno, os primeiros tempos da República ficaram marcados pelas investidas monárquicas de Paiva Couceiro (1861-1944). Entre 1911 e 1912, as suas incursões mantiveram uma instabilidade no norte do país, com combates e escaramuças. Foram silenciadas definitivamente com a batalha de Chaves, em 8 de julho de 1912.  Se internamente a República se consolidasse, externamente enfrentaria ameaças graves: o alegado acordo secreto entre a Grã-Bretanha e a Alemanha. Confirmado por alguns e negado por outros, punha em risco a velha aliança anglo-portuguesa e, sobretudo, a continuidade da presença portuguesa em África. Portugal encontrou-se numa posição delicada: Angola partilhava fronteira com o Sudoeste Africano Alemão e Moçambique com a África Oriental Alemã.

Em 13 de agosto de 1913, foi assinado um novo protocolo que retomou o acordo de 1898, prevendo uma partilha ainda mais ampla das colónias portuguesas. A 20 de outubro desse ano, o entendimento foi rubricado e, semanas depois, reforçado no Reichstag, onde o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros proclamava o “êxito” das negociações. A França reagiu e, em fevereiro de 1914, o embaixador francês em Londres avisou que esta aproximação entre Londres e Berlim punha em causa o Acordo Cordial franco-inglês.

Em 3 de agosto de 1914, a Alemanha invadiu a Bélgica, violando o tratado de 1831, que consagrava a sua neutralidade perpétua. No dia seguinte, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha. A Europa estava em guerra e não demoraria para que Portugal fosse chamado a escolher um lado.

Quando o Congresso da República se reuniu extraordinariamente, em 7 de agosto de 1914, para aprovar um documento relativo à Grande Guerra - que tinha sido iniciada em 28 de julho desse ano, quando o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia - Portugal já enfrentava graves problemas políticos, económicos e coloniais. O conflito europeu viria assim apenas agravar uma conjuntura já marcada por instabilidade e incerteza.


África e a entrada antecipada na Grande Guerra

Em setembro de 1914, Lisboa enviava a 1.ª Expedição a Angola, com 1.526 militares, e no mesmo dia, uma outra com 1.539 militares para Moçambique. Pouco depois, em 11 de novembro, partiu o 1.º reforço de 2.803 soldados para Angola. A mobilização contínua em 1915: em janeiro, mais 4.318 homens foram enviados para reforço e, em setembro, a 2.ª Expedição para Angola, com 1.789 efetivos. Entretanto, para Moçambique, também foi destacada uma 2.ª Expedição com 1.558 militares.

As pressões cresceram quando, em fevereiro de 1916, o governo britânico pediu oficialmente a Portugal que, “em nome da aliança luso-britânica”, apreendesse todos os navios mercantes alemães que se encontrassem nos portos portugueses e ultramarinos. A missão, cumprida a 23 de fevereiro pelo capitão-de-fragata Jaime Daniel Leote do Rego (1867-1923), desencadeou protestos violentos em Berlim. Poucos dias depois, a 9 de março, o representante alemão, Rosen, entregou pessoalmente ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Luís Vieira Soares (1873-1954), em Lisboa, a declaração formal de guerra. Foram apenas quinze minutos de reunião - mas mudariam para sempre o destino de Portugal.

A 15 de junho de 1916, o governo britânico fez um convite formal a Portugal para que participasse nas operações militares ao lado dos Aliados. O Parlamento aceitou esta convocação a 7 de agosto, numa altura em que já decorriam as célebres “Manobras de Tancos”, que reuniram cerca de 30.000 militares provenientes de todas as divisões do país. Enquanto isso, foi organizada a 3.ª Expedição para Moçambique, composta por 4.386 militares, que embarcaram em vários navios entre maio e julho de 1916.


O Corpo Expedicionário Português Rumo a França

No início de 1917, deu-se a grande viragem: a 3 de janeiro ficou previsto que o Corpo Expedicionário Português (CEP) atuasse integrado na Força Expedicionária Britânica (BEF). Poucos dias depois, a 17 de janeiro, o Decreto-Lei n.º 2938 formalizou oficialmente a criação do CEP. A 30 de janeiro, o primeiro comboio de tropas partiu para França em navios britânicos. Até agosto de 1917, foram realizadas 50 viagens, transportando 55.165 militares portugueses para a frente europeia. Entre eles estavam soldados que já tinham sido combatentes em África. Enquanto isso, Moçambique continua a receber reforços: a 4.ª Expedição, entre julho e outubro de 1917, levou mais 5.267 homens, a que se juntou um reforço adicional de 4.509. Para Angola, seguiram dois pequenos contingentes: 566 militares em 1917 e 746 em 1918.

A 11 de novembro de 1918, às 11 horas, soava o armistício e o fim das hostilidades. Mas, para os militares portugueses, o regresso à casa não começou de imediato. O esforço de guerra prolongar-se-ia, marcando profundamente a vida nacional e a memória de uma geração.

Portugal combateu em diferentes frentes durante a Grande Guerra - tendo mobilizado aproximadamente 105.000 militares para África e Europa - morrendo 8.787 e ficando feridos entre 5.000 a 16.000.


Entre 1914 e 1918, Loures viu centenas de seus filhos irem para as frentes da Primeira Guerra Mundial e para África - alguns não regressaram, outros voltaram mudados para sempre. Este artigo regista os nomes, as histórias e o legado desses lourenses, bem como os monumentos que perpetuam a sua memória.

Loures, vila às portas de Lisboa, conquistou o título de “concelho” em 26 de julho de 1886, guarda na memória coletiva páginas de coragem e sacrifícios que ecoam até hoje. Durante a Primeira Guerra Mundial, muitos lourenses deixaram as suas terras para combater em Angola, Moçambique e França. O mais velho, nascido em 1879, partiu com 38 anos; o mais novo, nascido em 1898, tinha apenas 20. No total, cerca de 304 homens do concelho foram mobilizados para diferentes frentes. Oito deles, após servirem em África, integraram o Corpo Expedicionário Português e seguiram para a Europa, elevando para “aproximadamente” 312 o número de lourenses envolvidos neste capítulo marcante da história nacional.

A cada nova partida, crescia a ansiedade entre famílias e amigos, à medida que se formavam sucessivos contingentes: em 1914, três partiram para Angola e cinco para Moçambique; em 1915, nove para Angola, quatro para Moçambique e um para serviço marítimo; em 1916, dez para Moçambique, dois para a Madeira e um para o mar; em 1917, 257 para França e dez para Moçambique; e em 1918, cinco para França e um para Moçambique. Quatro casos permaneceram sem registo documental.

As notícias que chegavam eram muitas vezes vagas e sombrias, trazendo o peso das batalhas, da doença e da dureza do conflito. Entre 1916 e 1919 tombaram em campanha 19 lourenses: 1916 - um em Angola e três em Moçambique; 1917 - um em Angola e três em Moçambique, como no ano anterior; 1918 - seis em França e três em Moçambique; 1919 - já após o fim da Grande Guerra, um em França e outro em Moçambique. A ausência de um corpo para velório e luto tornava a dor ainda mais profunda, deixando famílias presas entre a dúvida e a esperança. Apesar disso, também houve regressos, embora num ritmo lento, fosse por conclusão de missão, doença, acidente ou licença. Entre 1915 e 1919, centenas regressaram vindos de vários teatros de guerra, numa dolorosa reconciliação com a vida e com o lar, marcada pelos sacrifícios e pela falta dos que não regressaram.

Em 1915 regressaram três de Angola e cinco de Moçambique; em 1916, seis de Angola e um de Moçambique; em 1917, um de Angola, seis de França, um da Madeira, um da Marinha e dois de Moçambique; em 1918, 68 de França, um da Marinha e sete de Moçambique; e em 1919, 179 de França, um da Madeira e quatro de Moçambique. Existem ainda sete casos sem dados sobre o ano de regresso.

O luto, mais pesado pela ausência do militar e do próprio corpo, deixou uma ferida aberta na comunidade. Faltava um espaço físico onde, nos momentos de maior saudade, se pudesse homenagear os que partiram, “conversando com eles” mesmo no silêncio. Esta necessidade era ainda mais sentida por órfãos, viúvas e principalmente por quem perdeu um filho, pois permanece até hoje o mistério - e a dor - de a língua portuguesa não ter uma palavra que define “pais que perderam um filho”. Uma saudade imensa, um luto sem fim, que apenas o tempo e a memória proporcionam entrelaçar e transmitir às próximas gerações.

As comunicações às famílias, baseadas nas informações prestadas pelas subunidades combatentes, eram muitas vezes vagas e lacónicas - e a ausência do corpo levantava uma dúvida: entre tantos soldados com nomes idênticos, não teria ocorrido engano? Não estaria aquele filho, afinal, ainda a caminho de casa?

A partida para os diferentes Teatros de Operações, sobretudo para França, fez-se ao longo de quase dez meses; para África, foram efetuadas duas a três viagens por ano. Os regressos davam-se por missão cumprida, incapacidade física, convalescença ou licença. Este retorno, contudo, foi quase sempre lento e marcado pela incerteza, sobretudo porque o repatriamento dos homens que serviram na frente francesa se prolongou por todo o ano de 1919. O luto, assim, mantinha-se - pesado, prolongado e sem corpo a velar, fator fundamental para o ritual da despedida. E continuou a faltar um local de homenagem, onde os mais fragilizados poderiam render tributo, conversando com os ausentes no silêncio das recordações. Esta “terapia silenciosa” ainda hoje conforta órfãos, viúvas e aqueles que perderam os filhos em quem depositaram sonhos e futuro. Na realidade, não foram apenas os familiares, amigos ou vizinhos que sentiram a ausência de “algo” que não regressou no final do conflito. Também a sociedade civil, no seu conjunto, partilhou essa sensação de perda e a necessidade de preservar a memória coletiva. Foi nesse contexto que, a 30 de julho de 1919, a Junta Patriótica do Norte lançou uma proposta para a criação de “padrões” que, através dos tempos, evocavam os que combateram na Grande Guerra e apresentavam uma devida homenagem.

A designação “monumentos”, teve origem numa decisão do governo da época, inspirada nos marcos e padrões deixados pelos portugueses nas suas viagens pelo mundo. O primeiro monumento erguido em Portugal foi inaugurado em 24 de setembro de 1919, por iniciativa de combatentes naturais da freguesia das Cortes, no concelho de Leiria. Com o apoio da população local foi construído no ponto mais alto da freguesia - símbolo de honra, sacrifício e memória.

Na sua tese de doutoramento “Políticas da Memória da I Guerra Mundial em Portugal (1918-1933) - Entre a Experiência e o Mito”, a doutora Sílvia Correia classifica os monumentos da Grande Guerra em quatro tipologias: “Vitorioso”, “Patriótico”, “Cívico” e “Funerário”. Ao Monumento de Loures é atribuída a dupla classificação “Patriótico/Funerário”, refletindo a sua simbologia de heroísmo e luto. De acordo com o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), trata-se de um “monumento comemorativo da participação portuguesa na I Guerra Mundial, com um grupo escultórico representando uma cena de combate, com figuras de grande expressividade”.

Embora exista um processo administrativo contendo planta e alçados, não foi encontrada qualquer memória descritiva nem representação completa da escultura. Na ausência desses registos, a interpretação mais aceite é a de que a componente “patriótica” se manifesta na parte traseira do monumento, representando uma trincheira após uma incursão inimiga.
Frente do Monumento de Homenagem ao Combatente da Grande Guerra - Loures
Lateral direita do Monumento
Lateral esquerda do Monumento
Traseira do Monumento

A peça de artilharia de campanha de fabrico francês - calibre de 7,5 cm TR m/1904 fabricada pela Schneider Frères & Cie - operada por uma guarnição de seis militares:
comandante, apontadores e serventes, apresenta-se em posição de tiro horizontal, embora pareça bastante elevado devido à especificidade natural do terreno.  Na figurativa destacam-se duas esculturas humanas. Um dos militares, possivelmente um oficial tombado no terreno, segura na mão uma pistola de fabrico americano - provavelmente uma Savage 7,65 mm m/1915, fabricada pela Savage Arms Company, e distribuída como arma de defesa pessoal. Esta imagem simboliza o sacrifício máximo exigido a um combatente: “a entrega da vida pela Pátria”. O outro militar, em vigia junto da trincheira, empunha uma espingarda Lee-Enfield (SMLE) Mark III de 7,7 mm M/1917 de fabrico inglês. Essa representação evoca a firme determinação de cumprir a missão, mesmo ferido ou em perigo iminente, simbolizando a persistência em defender uma posição confiável. Toda a componente figurativa do monumento é realizada em betão armado.

Depois de se consultar as plantas conservadas no Arquivo Municipal de Loures, reforça-se a ideia de que o monumento foi concebido para representar a entrada simbólica de um espaço cenotáfio - um local construído em memória dos combatentes lourenses sepultados em vários cemitérios da Europa.
Vista Geral do monumento da Grande Guerra de Loures ladeado pelas lápides

O frontispício é formado por dois contrafortes dispostos em posição oblíqua às paredes laterais do monumento, que vão perdendo altura gradualmente, indicando uma descida abaixo do solo. Estes contrafortes de base retangular composta por grandes blocos graníticos, mantém a face interior vertical, terminando em forma quadrangular, com capitéis retos que sustentam, no topo, duas esferas armilares - símbolos universais da identidade portuguesa e da sua história.  Sob um arco de volta perfeito em mármore branco, destaca-se uma Cruz de Guerra, parcialmente suspensa ao centro, acompanhada da inscrição “Aos Mortos da Grande Guerra”. Este seria, originalmente, o acesso ao interior do monumento, que posteriormente seria fechado com pedras e sobreposta por uma moldura onde foram gravados os nomes dos militares naturais do concelho, de que se tinha conhecimento, que tombaram em combate.
Lápide Grande Guerra
Lápide Guerra Ultramar

Para a recolha dos nomes dos lourenses mortos na guerra, tanto em África como na Europa, foram oficiadas todas as juntas de freguesia do concelho através de uma circular datada de 6 de setembro de 1929, assinada pelo Capitão Francisco Marques Beato, combatente em França, então presidente da Câmara Municipal de Loures (32.º presidente, com mandato entre 12 de julho de 1926 e 6 de outubro de 1931).

Foi precisamente durante o seu mandato que se concretizou a inauguração do monumento. De acordo com o livro “In Memorian”, editado pela Câmara Municipal de Loures em novembro de 2016, na Parte II, assinado por Jorge Aniceto e Pedro Rocha, leia-se na página 94: “No dia 8 de Dezembro de 1929, dedicado a Nossa Senhora da Conceição (e às mães), foi finalmente inaugurado o Monumento aos Combatentes do Concelho de Loures mortos na Grande Guerra, o segundo a ser erigido no distrito de Lisboa. O autor do projeto foi Fernando Soares, um conhecido empresário da época. Embora simples, o monumento é expressivo.” 

No verso de um postal de época, editado pela própria Câmara Municipal de Loures e com fotografia do monumento, encontra-se o seguinte texto:
“O envolvimento português na Grande Guerra arregimentou quase 200 mil homens, oriundos de todo o território nacional, incluindo o concelho de Loures. Aqui, o recrutamento militar atingiu largas dezenas de jovens. Todos partiram, mas alguns não regressaram. Ao todo tombaram quase 10 mil no campo de batalha. O heroísmo destes homens foi alvo de uma sentida homenagem dos seus conterrâneos, abraçada por Francisco Marques Beato, presidente da autarquia, militar e combatente que, solicitando a colaboração das juntas de freguesia garantia a realização de uma angariação de fundos para a execução do projecto da autoria do construtor civil Fernando Soares e que estava orçamentado em 25 contos. Assim, a 8 de Dezembro de 1929, dia de Nossa Senhora da Conceição (correspondia, à época, ao dia da Mãe), numa cerimónia que contou com a presença de diversas entidades públicas, Oficiais do Exército, representantes dos combatentes de Arruda, Loures e Lisboa, e de muitos populares que fizeram questão de se associar a este tributo, inaugurou-se o Monumento aos Combatentes do Concelhio de Loures Mortos na Grande Guerra, localizando-se ainda hoje no centro da vila (elevada a cidade em 1990), em lugar de destaque no jardim da Praça da Liberdade, em frente aos Paços do Concelho.”


No dia 8 de dezembro de 1929, o vespertino “O Povo” destacou a inauguração do Monumento aos Combatentes de Loures na sua página 4. Nos dias seguintes, o acontecimento continuou a ser amplamente noticiado, com referências nos jornais “28 de Maio” (edição de 10 de dezembro, página 4), “ABC” (edição de 12 de dezembro, página 8) e “Notícias Ilustradas” (edição de 15 de dezembro, páginas 10 e 11), refletindo a importância nacional e o impacto local desta homenagem.

Durante o serviço militar, o reconhecimento pelos méritos e pelo sacrifício dos soldados chega, muitas vezes, em forma de medalhas e condecorações. Estas insígnias, distinguem atos de bravura, determinação e dedicação. Durante a Primeira Guerra Mundial, os militares de Loures, não foram esquecidos: cinco receberam a insígnia da “Ordem Militar da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito”, grau comendador; cinco foram distintos com a “Medalha Militar da Cruz de Guerra”, uma de terceira classe e quatro de quarta; um militar com a “Medalha Militar de Comportamento Exemplar” nos graus Cobre e Prata; 43 lourenses receberam “Medalhas militar Comemorativas das Campanhas”, com registo de serviço em Angola, Moçambique, França ou na Defesa do Campo Entrincheirado de Lisboa; A “Medalha Militar da Vitória” acordada pelos aliados após a vitória, foi igualmente entregue a 43 combatentes. Houve ainda espaço para distinções de um militar com a “Medalha de Dedicação da Cruz Vermelha Portuguesa, e dois com a Medalha de Conduta Distinta (Distinguished Conduct Medal) atribuída pelo Rei de Inglaterra, Eduardo VII, e ainda foram atribuídos mais vinte e um louvores individuais.

Em novembro de 1968, Loures voltou a ser palco de homenagem aos seus combatentes, no cinquentenário do Armistício da Primeira Guerra Mundial. Junto ao monumento, agora enriquecido com uma nova placa em bronze comemorativa dos 50 anos da paz, reuniram-se militares, autoridades e população, numa cerimónia presidida pelo autarca Joaquim Dias de Sousa Ribeiro. O gesto, público e simbólico, reforça o orgulho e o respeito da comunidade por aqueles que defendem a Pátria, assegurando que o legado dos que serviram permanece presente na vida cívica do concelho.

Décadas depois, este sentimento de memória e reconhecimento foi novamente colocado em destaque. Em 2014, sob a presidência de Bernardino Soares (mandatos de outubro de 2013 a outubro de 2021), o Município de Loures prestou homenagem aos seus combatentes da Grande Guerra. No dia 25 de julho, durante as comemorações do 128.º aniversário da elevação de Loures a concelho, foi anunciada a reabilitação do monumento, com destaque para a recuperação da escultura, limpeza de cantarias e detalhes em bronze, bem como a renovação da base, agora em mármore preto. Mais tarde, a 19 de outubro do mesmo ano, foi descerrada uma placa comemorativa do centenário da Grande Guerra, na presença de representantes da Câmara Municipal, da Direção Central da Liga dos Combatentes e do Regimento de Transportes. Esta homenagem foi acompanhada de investigação histórica detalhada, conduzida por uma equipa multidisciplinar, resultando na publicação da Parte III do livro “In Memoriam” e na identificação específica dos lourenses mobilizados para África e França.

O centenário do Armistício foi assinalado em 11 de novembro de 2018, com a inauguração de um Memorial desenvolvido para aqueles que, cem anos antes, tinham deixado tudo para trás e rumaram para os campos de batalha. A cerimónia decorreu sob chuva intensa, reunindo representantes das Forças Armadas, das Edilidades de Loures e Odivelas, além de combatentes inscritos no Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes.

Reconhecendo o interesse da população neste símbolo de memória coletiva, a Câmara Municipal de Loures aprovou, em reunião de 31 de agosto de 2022, a classificação do Monumento aos Mortos da Grande Guerra como Monumento de Interesse Municipal, destacando o seu significado histórico e afetivo para o concelho.

Em 2023, o desejo de perpetuar novas memórias levou à proposta de criar uma lápide dedicada aos lourenses tombados na Guerra Colonial. A ideia foi acolhida pelo presidente do município Ricardo Leão (mandato desde outubro de 2021) e, a partir de outubro desse ano, técnicos e investigadores iniciaram o levantamento dos dados e a validação dos nomes dos militares que perderam a vida nas campanhas de Angola, Guiné e Moçambique, com apoio do Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes e com consulta rigorosa aos registos oficiais. Assim, no dia 10 de outubro de 2024, foi inaugurado o Memorial aos Combatentes do Ultramar, dedicado aos lourenses que deram o melhor de si em África, frequentemente a custo da juventude e do futuro. A cerimónia reuniu familiares, entidades civis e militares, e incluiu o chamamento dos nomes dos tombados, deposição de flores e alocuções das entidades presentes.

Estas memórias foram mantidas e celebradas pelo Núcleo da Loures da Liga dos Combatentes, cuja presença se faz notar anualmente nomeadamente em datas marcantes como sejam nos dias 9 de abril e 11 de novembro, junto dos monumentos aos combatentes em Loures, e 2 de novembro, junto dos talhões de combatentes nos cemitérios de Caneças, Loures, Odivelas e Sacavém. Com o avanço dos anos e a chegada de novos conflitos, como a Segunda Guerra Mundial e o Ultramar, a tradição das homenagens continua integrando diferentes gerações de militares na mesma memória coletiva.

Com estes gestos, Loures reforça o seu compromisso com a preservação da memória e da História Militar portuguesa. O jardim central, com o Monumento e as lápides dedicadas aos seus combatentes, tornou-se um lugar de referência, perpetuando os nomes e o sacrifício dos lourenses que cumpriram, até ao último momento, o seu juramento à Pátria.

José da Silva Marcelino Martins
Combatente na Guiné (1968-1970)
Sócio Combatente n.º 80.393
Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes

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Nota do editor

Último post da série de 22 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27451: Efemérides (474): Foi há 55 anos a Op Mar Verde, a invasão anfíbia de Conacri... Uma das vítimas colaterais foi Mamadou Barry, "Petit Barry" (n. 1934), colaborador próximo de Sékou Touré, encarcerado 7 anos em duas das mais sinistras prisões do regime

domingo, 23 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27455: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (5): a mina A/P que ceifou a perna do soldado radiotelegrafista Santos, alentejano



1971, Norte de Angola, na zona de Nambuangongo, no final de uma operação e à espera do heli: o alf mil pqdt Jaime Silv, comandante do 3º Pel / 1ª CCP / BCP 21 (Angola, fev 70 / jul 72) com o Lopes dos Santos, na altura 2º  srgt pqdt, hoje capitão pqdt  na reforma  



Jaime Silva


Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (5) > a mina A/P que ceifou a perna do soldado radiotelegrafista Santos, alentejano

por Jaime Silva



Não esqueci o primeiro estropiado do meu Pelotão, o soldado radiotelegrafista Santos. Esta tragédia aconteceu durante uma operação, na zona de Santa Eulália, no norte de Angola. Ele pisou uma mina antipessoal, logo minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro.

Estou a ver o momento em que descemos a encosta do morro correndo. E, indo eu na frente, ao deparar com um trilho, ordenei que o grupo progredisse fora do mesmo, em virtude de ter detetado sinais evidentes de poder haver minas antipessoal dissimuladas. 

Minutos depois, há um rebentamento na curva do trilho, por onde eu e mais três paraquedistas tínhamos passado. Nessa altura, oiço o Santos a gritar:

– Eu vou morrer. Ai, minha mãe, eu vou morrer! 

Foi mesmo assim! Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada: a perna tinha desaparecido abaixo do joelho. O enfermeiro injetou-o logo com morfina, um camarada levou-o às costas, morro acima, mas enquanto eu contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, o que restava da tíbia e do perónio daquele meu camarada, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde. 

Vinte minutos depois, empurrãmos o Santos para dentro do heli e, lembro-me, de lhe gritar:

Aguenta, já te safaste!

O Santos, safou-se.

E, entre muitas outras coisas da sua vida, casou e tem duas filhas. Vive no Alentejo.

Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 84-86.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)

domingo, 16 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27430: (Ex)citações (440): Estar com o amok, passar-se dos carretos, perder as estribeiras, estar f*dido dos c*rnos, estar apanhado do clima ou cacimbado... serão expressões equivalentes?


ºSíndroma de Amok"... Ilustração criada,
para o blogue, pelo Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções do editor LG


1. Escreveu o nosso camarada Jaime Silva, numa nota de leitura sobre o livro "Amok", de Stefan Zeig (*):


(...) "Recordou-me o momento, em que, pela primeira vez, ouvi pronunciar a frase: "deu-lhe o amok". Foi em Ninda, leste de Angola – Terras do Cú de Judas. Em fevereiro de 1970, quando fui render o tenente paraquedista Grão, no comando do 3.º Pelotão da 1.ª CCP / BCP 21. A companhia estava em plena fase operacional e, segundo me fui apercebendo, cada um dos 4 pelotões tinham encontrado forte resistência na zona.

"Entretanto, nas conversas que ia travando com os meus novos camaradas de armas, ouvia-os pronunciar, regularmente, uma expressão que nunca tinha ouvido e desconhecia: 'deu-me o amok, assaltámos a base e demos cabo daquilo tudo'; ou, ainda, 'cuidado com o gajo porque ele hoje, está com o amok'; ou, ainda, 'ninguém pode falar contigo, vai-te curar, estás com o amok'.

"Com o tempo fui interiorizando o significado desse termo. Fui percebendo que se referia a alguém que se tinha 'passado dos carretos', 'não via nada à sua frente' ou que 'estava apanhado do clima'!... Foi neste contexto que fui assimilando o sentido do termo, de tal modo que, ao longo da vida, com alguma frequência e, em circunstâncias de menor ânimo, dizia para comigo: 'hoje, não estás bem!... Hoje, estás com o amok'!" (...) (**)


2. Pesquisa do editor LG + assistente de IA / ChatGPT, Gemini, Perplexity,  sobre o termo "amok" / "amoque".

Existe o termo amok (em francês e inglês). Amoque ou amouco, em português.

A síndroma de Amok é, em psiquiatria, uma perturbnação que consiste em uma súbita e espontânea explosão de raiva selvagem, que faz a pessoa afetada atacar e matar indiscriminadamente pessoas e animais que aparecem à sua frente, até que o sujeito se suicide ou seja morto,

A definição foi dada pelo psiquiatra norte-americano Joseph Westermeyer em 1972.

É ainda hoje udsada como sinónimo de "loucura assassina". Mas na aceção que lhe davam os paraquedistas em Angola, ao tempo do Jaime Silva (1970/72),  parece ser mais  sinónimo de, em linguagem de caserna:

  • "estar fodido dos cornos",
  • "passar-se dos carretos",
  • "perder as estribeiras",
  • "estar cacimbado", 
  • "estar apanhado do clima"
  • "estar à beira de um ataque de nervos"...
É uma condição piscológica que pode predispor à violência (física ou verbal). Ora, amok  é já a exteriorização da violência até então latente. 

O nome vem do malaio meng-âmok, que significa “atacar e matar com ira", "atacar furiosamente ou lançar-se sobre alguém num estado de raiva incontrolável".

O termo entrou nas línguas europeias através dos relatos de viajantes e colonizadores portugueses e, mais tarde, ingleses, que observaram este fenómeno no Sudeste Asiático, especialmente na Malásia e Indonésia.


(ii) Registos portugueses do séc. XVI

Os portugueses foram os primeiros europeus a testemunhar e a descrever este comportamento. Aparece em registos logo do início do séc. XVI.

Nos textos de cronistas como Tomé Pires, autor da Suma Oriental (1515), e Duarte Barbosa (1516), já se menciona o termo “amouco”. Eles descrevem guerreiros malaios que, após um insulto, humilhação ou perda da honra, “se lançavam ao combate sem razão aparente, matando quantos encontravam, até que fossem mortos”.

Eis uma descrição típica (em ortografia moderna):

“Há entre eles alguns que, tomados de raiva e desesperação, correm pelas ruas com a espada desembainhada, ferindo e matando quem encontram; a isto chamam amouco.” (Duarte Barbosa, 1516)

Aqui está um excerto adaptado da Suma Oriental de Tomé Pires (c. 1515), um dos primeiros registos europeus do termo “amouco”, como era grafado então. Este texto é considerado uma das fontes mais antigas sobre o fenómeno que viria a ser conhecido em inglês como amok:

“Há entre estes malaios alguns que, de súbito e sem razão conhecida, tomam uma fúria tamanha que, correndo pelas ruas com uma adaga na mão, matam quantos acham pelo caminho, até que os matem.

Dizem que, nesse tempo, não sentem dor nem razão, e que é o diabo que os toma. A este furor chamam amouco.” (Tomé Pires, Suma Oriental, c. 1515)

(iii) Contexto histórico:

Tomé Pires era um boticário (farmacêtico) e diplomata português que viveu em Malaca logo após a sua conquista (1511). O seu livro descreve em detalhe as gentes e costumes do Oriente. A referência ao “amouco” mostra como os portugueses foram os primeiros a documentar este comportamento que, séculos mais tarde, seria objeto de estudo da etnopsiquiatria.

Mais tarde, exploradores ingleses e holandeses adotaram o termo, passando a escrever “amok”. No século XIX, a palavra tornou-se conhecida na Europa através da literatura colonial e da medicina tropical.

(iv) Significado em etnopsiquiatria:

A síndroma do “amok” descreve um estado súbito e extremo de fúria homicida em que o indivíduo, geralmente homem, entra num transe violento e ataca indiscriminadamente pessoas à sua volta, frequentemente terminando com a sua própria morte (por suicídio ou pelas mãos de outros). Se for apanhado e desarmado, pode ter um ataque de choro e não se lembrar de nada...

Tradicionalmente, acreditava-se que este comportamento estava ligado a crenças culturais, questoes honra pessoal ou possessão demoníaca.

Os estudiosos modernos (como Linton, Benedict ou Yap) interpretam o amok como uma resposta culturalmente moldada ao stress social e psicológico, comum em sociedades onde a repressão das emoções e a importância da honra (caso do Japão, por exemplo) são grandes.

Os portugueses interpretaram o fenómeno em termos religiosos e morais (como “possessão demoníaca”), enquanto os estudiosos modernos o entendem como uma crise psicossocial aguda, associada a contextos de pressão cultural e perda de honra.

O conceito de amok evoluiu na medicina ocidental, desde os relatos coloniais até à sua inclusão no DSM-4

(v) Uso moderno na psiquiatria:

Na psiquiatria contemporânea, o termo é usado para descrever um comportamento impulsivo, súbito e violento, muitas vezes associado a perturbações psicóticas, depressivas ou dissociativas.

No DSM-4, o “amok” era classificado como uma síndrome culturalmente específica (culture-bound syndrome). No DSM-5 essa categoria desapareceu. (DSM-5 é a sigla de Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, Quinta Edição, publicada pela APA - Associação Americana de Psiquiatria).

(vi) Curiosidades linguísticas:

Em português antigo, “amoucar-se” chegou a ser usado figuradamente, com o sentido de enfurecer-se subitamente ou perder o controlo, embora hoje esteja praticamente em desuso.

A expressão inglesa “to run amok” (correr como um doido / descontrolar-se completamente) é hoje usada de forma figurada para descrever alguém que fica  fora de controlo.

(Pesquisa, condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritros: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd.. poste de 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27395: Notas de leitura (1859): "Amok", por Stefan Zweig; Lisboa: Relógio D'Água, 2022 (Jaime Bonifácio da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista)

(**) Último poste da série > 28 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27360: (Ex)citações (439): Ainda a propósito dos bravos de Contabane... "O maluco do Carlos Azeredo está a bombardear a Guiné-Conacry", dizia, em pânico, o QG... (Carlos Nery, ex-cap mil, CCAÇ 2382, 1968/70)

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27420: (In)citações (281): Praxes assassinas... para "maçarico", "periquito" ou "checa" se começar a habituar...


Angola > Moxico >Léua  > c. 1970 > O alf mil pqdt Jaime Siva com uma criança da aldeia.


Foto (e legenda): © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O episódio que o Jaime Silva partilha connosco (*),  é forte, tenso e revelador da dureza mas  também da profunda ambiguidade moral, que marcaram muitos momentos da guerra colonial, vividos por nós.  Nem todos, por outro lado, teriam coragem de o contar, em público, em livro. 

Há vários aspetos que vale a pena comentar, e que são comuns às experiências por que passámos no CTIG.

Recorde-se que o  Jaime Silva. de rendição individual, era comandante, "maçarico", de um pelotão da 1ª CCP/ BCP 21 (Angola, 1970/72). E que na Op Broca (c. 20-29 de maio de 1970), no norte de Angola, tem o seu "batismo de fogo". O seu pelotão já tinha experiêwncia operacional, e pôde contar com a dois bons graduados, o 1º cabo Onofre e srgt Mirra.

(i) O choque do “batismo de fogo”

O  Jaime Silva descreve algo comum entre jovens oficiais enviados para cenários de guerra: a passagem abrupta da formação teórica (neste caso, recebida na EPI, em Mafra, e depois em Tancos, no RCP) para a realidade pura e dura  da guerra de guerrilha e contraguerrilha (fosse em Angola, na Guiné ou em Moçambique),

O “maçarico” (em Angola), o " periquito" (na Guiné) ou o "checa" (em Moçambique) era confrontado de imediato com a imprevisibilidade do IN,   e a brutalidade do combate num terreno que lhe era desfavorável.  E isso marcava-o para sempre. O dia e o local do batismo de fogo.

(ii) O contraste entre comportamentos

A narrativa mostra três tipos de comportamento operacional num momento de grande tensão:

  • serenidade, a coragem e a experiência  do 1º cabo Onofre, que representa o militar que já tem traquejo  e sabe agir com sangue-frio:  

(...) "E 'vejo'.,  ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! " (...)
  • lucidez e a maturidade do sargento Mirra, que confirma o papel fundamental dos graduados na estabilidade dos pelotões:  

"(...) Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.! " (...)

(...) " Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto". (...)
  • e, por fim,  a conduta chocante do tenente miliciano, comandante de outro pelotão da 1ª CCP, cuja atitude ultrapassa qualquer ética militar,  revelando como, em cenários de guerra, alguns indivíduos cruzavam fronteiras morais sob o pretexto da “praxia” ou da necessidade de endurecer os mais novos, os "maçaricos", liquidando crua e friamente um prisioneiro indefeso:


 "(...)  Face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada”  no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.  Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu: – É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar." (...)

(iii) “Habituação": uma lógica perversa

A ideia de que um ato de extrema violência como aquele serviria como “lição” para um oficial recém-chegado, "maçraico", e logo ali "praxado".  mostra bem como a guerra pode distorcer valores, normalizar atrocidades e criar um ambiente em que o desprezo pela vida humana se disfarça do mais miserável militarismo.

(iv) A importância do testemunho

Ao relatar o episódio, o Jaime Silva não só expõe uma realidade dura da época, como também reafirma a importância de não "romantizar" a guerra dos paraquedistas, tropa de elite. Como ele diz, "na guerra não vale tudo".

O facto de ainda recordar esse momento (traumático),  demonstra que, para muitos de nós, a guerra colonial foi menos uma aventura turistico-militar e mais um conjunto de situações -limite (que deixaram  cicatrizes, nalguns casos, físicas, mas sobretudo morais, psicológicas e humanas).

É um relato que merece ser preservado e discutido, aqui no blogue, mas também nas academias militares, porque ajuda a compreender o que significou, realmente, para milhares de nós, jovens portugueses,  sermos enviados para África como "maçaricos", "periquitos" ou "checas"(**)


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”


Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS). Uma das caracte5rístcias distintivas é incluir uma baioneta, em forma de faca,  dobrável permanentemente anexada e um carregador fixo articulado. Como a SKS não tinha capacidade de tiro seletivo e seu carregador era limitado a dez tiros, tornou-se obsoleta nas Forças Armadas Soviéticas com a introdução da AK-47 na década de 1950. Na Guiné, era usada sobretudo pelas milícias do PAIGC.

Fonte: Cortesia de Wikipedia
Monumento aos combatentes
do Ultramar. Lourinhã. Pormenor.
Foto: LG (2025)



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”

por Jaime Silva

Não esqueci que o meu batismo de fogo aconteceu no decorrer da “Operação Broca”, realizada no Norte de Angola, na Mata Bala, entre 20 e 29 de maio de 1970.

Participaram nessa operação, em que esteve presente o general Luz Cunha, comandante da Região Militar Norte, várias companhias: 
  •  uma companhia do exército, sediada em Zalala,
  •  a 19ª companhia de comandos 
  • e 1ª e 2ª companhias de paraquedistas, sediadas em Luanda. 
O objetivo era destruir a Base COBA, da FNLA. Foi a minha primeira operação com a responsabilidade de comandar um grupo de combate, cujos soldados já tinham meses de experiência operacional no Norte e no Leste. 

Os dois sargentos tinham participado na guerra da Guiné e/ou de Moçambique e eu era um “maçarico” inexperiente, acabadinho de aterrar do “Puto” [#].


Jaime Silva, em 2013.
Foto LG
Na véspera, ainda em Luanda, tinha participado no briefing de preparação da operação, juntamente com os responsáveis das várias forças intervenientes.

 O que mais me impressionou, para além de uma parafernália de normas e indicações a seguir rigorosamente para o êxito da operação, foi, no final, o Oficial de Operações ter anunciado “as baixas previsíveis” nas nossas tropas:  3 a 4 mortos.

No contexto dessa operação, fomos transportados pelos helicópteros,  Alouette III. Após o assalto à base, sem oposição, ficámos na zona.

E “vejo”, ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! 

Depois de interrogar o guerrilheiro, este revelou o local onde os seus camaradas guardavam o material de guerra, provisões, material médico e escolar, etc.

O paiol encontrava-se dissimulado numa caverna no alto de um morro e, ainda, no sopé do mesmo. Seguimos um trilho indicado pelo guerrilheiro, mas fomos atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Nesse momento, pondo em prática os “ensinamentos” sobre “a arte de bem fazer a guerra” (que tinha recebido e treinado exaustivamente, primeiro em Mafra, na EPI, durante o COM e, depois, no RCP, em Tancos, durante o tirocínio após o curso de paraquedismo), dou ordens ao sargento Mirra, que já tinha experiência de cumprimento de uma comissão em Moçambique:

–  Mirra, envolva pela direita com a sua seção. Eu vou pelo centro com a segunda e vamos desalojá-los.

 –  Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto.

Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.!

 A Base até tinha uma escola com quadro preto pendurado numa árvore!

Nunca mais esqueci estes factos da minha primeira operação: 
primeiro, a lição de serenidade e coragem do Cabo Onofre, a sua lucidez e experiência naquela contexto;  depois, a do sargento Mirra;  por último, e inversamente, a atitude “sacana” do meu camarada, tenente miliciano, comandante do outro pelotão, que, face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” [## ] no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.

Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu:

 
– É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar.

O alferes maçarico era eu!

Foi assim! Um mundo surreal!



Notas de JS / LG:

[#] Puto, era a designação comum para referir Portugal (Continente), dada a sua dimensão reduzida em relação ao tamanho de Angola (e Moçambique).

[##] Saibrada, termo usado na gíria oral da guerra quando se uso o sabre (arma branca perfurante) para matar ou ferir o inimigo; o termo correto e que está grafado nos dicionários é "sabrada":

O uso do terno "saibrad"pode ser explicado por "contaminação (ou cruzamento Lexical)". Isto não é uma regra fonética, mas sim um lapsus linguae (lapso de língua) ou um ato falho. A contaminação ocorre quando o falante, ao tentar dizer uma palavra, a "contamina" inconscientemente com outra palavra que está semanticamente ou foneticamente próxima no seu cérebro. Neste caso, o falante queria dizer: "Sabrada" (o golpe de sabre). Mas o cérebro misturou com a palavra "Saibro" (o tipo de terra/cascalho, muito comum em campos de treino militar, "pistas de saibro", etc.).

A proximidade sonora (ambas começam com "Sa-") e a possível proximidade contextual (ambas as palavras existem no ambiente militar) levam o cérebro a fundir as duas, resultando em "Saibrada"


1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passámos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado. É sócio de várias associações de antigos combatentes, incluindo a AVECO - Associação de Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhá,  e a Associação de Pára-Quedistas da Ordem dos Grifos63,com sede em Vila Nova da Barquinha.

Este é o quarto poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois):


Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 84-86.

(Revisão / fixação de texto: LG)
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