Pesquisar neste blogue

terça-feira, 6 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26771: Notas de leitura (1795): "Um preto muito português", da luso-angolana e antiga "rapper" Telma Tvon (Lisboa, Quetzal, 2024)... Parte II (Luís Graça): Uma dedicatória que vale um poema: "Para os meus de sangue e coração. Para os meus de rua e coração".

 


Telma Tvon (aliás, Telma Marlise Escórcio da Silva):
estreia-ase na fição com "Um preto muito português"... Nascida em Luanda em 1980 (em plena guerra civil angolana, que vai de 1975 a 2002), imigra para Lisboa, em 1993 (com a irmã, sendo acolhida pela avó), frequenta o ensino secundário ao mesmo tempo que se integrava, desde os 16 anos, na cultura rap, do soul e do hip hop... Antiga rapper, faz a licenciatura em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e o mestrado em Serviço Social pelo ISCTE-IUL.(Cortesia da Quetzal Editores)



Capa do livro de Telma  Tvon, "Um Preto Muito Português".  Lisboa: Quetzal, 2024, 184 pp. (Série "Língua Comum") (c. 15 €)

O livro tem uma dedicatória que vale um poema: " Para os meus de sangue e coração. Para os meus de rua e coração"... E uma outra,  manuscrita, no exemplar que estou a ler, oferecido à Biblioteca Municipal da Lourinhã: "Obrigada por me acolher tão amavelmente. Beijos. Telma, Lourinhã, 15/05/24".


Sinopse: 

"Cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal e neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal. Também é bisneto de holandeses que mal conheceram Portugal e de africanos que muito ouviram falar de Portugal. 

Vive em Lisboa, mas não é considerado alfacinha. Terminou a licenciatura na faculdade e vai trabalhar num call center, com outros negros e brancos, pobres e ricos. Budjurra faz parte de uma minoria que, lentamente, vai sendo cada vez menos minoria. É um preto português, muito português, que, ao longo do livro e das aventuras que relata, levanta questões relativamente a temas como racismo, discriminação, estereótipos, igualdade e humanidade, mas também música, rap, identidade - numa Lisboa morena e colorida que é necessário conhecer

«Posso dizer, sem qualquer orgulho, que sou um homem estranho. Tão estranho como a minha alma. […] E assim como os anos e meses fluem no meu espírito bom e impotente, continuo apenas mais um preto muito português.» 

Com a sua rara humanidade, Budjurra mostra-nos como se vive por dentro da invisibilidade da comunidade africana, como se lida com as narrativas falsas que a envolvem, como se sobrevive aos preconceitos e ao esquecimento". (Fonte: Quetzal Editores)


1. Conheci a Telma Tvon,  na Lourinhã,  no festival literário da Lourinhã,  "Livros a Oeste", há já um ano, em 15/5/2024. E gostei da maneira como ela falou do seu livro de estreia ("Um Preto Muito Português"),  com  simplicidade, graça, humor, espontaneidade, frontalidade,  inteligência emocional, empatia, capacidade de comunicação... 

O livro já tinha sido publicado em 2017 sob a chancela da Chiado Books, numa edição infelizmente descuidada,   sem revisão de texto, com muitos erros e gralhas... O editor da Quetzal, Francisco José Viegas, em boa hora, deu-lhe outra vida e visibilidade, publicando o livro na série "Língua Comum", e com uma capa graficamente atraente.

 A autora, até então desconhecido (ou conhecida no mundo mais restrito dos "rappers"),  acabou por ser solicitada, mais recentemente, a falar do seu livro, a aparecer em festivais literários (como o da Lourinhã, "Livros a Oeste", 2024) e a dar entrevistas na imprensa escrita e digital, ou a ser objeto de tema de cronistas conceituados, como por exemplo Diogo Ramada Curto (Expresso).... Eis alguns links:

Facebook > Antena 1 > 30 de novembro de 2024 > Sou Pessoa Para Isso - Telma Tvon
 

Afinal, ela nasceu e viveu em Angola, até aos 13 anos  e tem a desenvoltura e a desinibição dos/das MC ou "rappers", e sobretudo da malta nada e criada em Luanda.  De resto, a dedicatória que consta do seu livro, diz muito: 

"Para os meus de sangue e coração. Para os meus de rua e coração". 

Mas vamos  continuar a falar deste seu primeiro livro (que nasceu de uma tentativa de criar uma letra para uma canção de rap), e onde ela de resto usa (e abusa...) do "calão" falado por estes jovens portugueses, afro-descendentes: contei até agora umas seis ou mais  dezenas de vocábulos e expressões idiomáticas, que vieram enriquecer o meu léxico (é evidente que um "glossário" no fim do livro dava jeito e era simpático para um "cota" como eu, mesmo que "tuga",  "bué fixe", e não propriamente um "pula de merda").

A Telma Tvon tem talento para a escrita e espero que não se fique por este seu primeiro romance, um  "Um Preto Muito Português",  livro de grande atualidade que aborda temas que estão na berra, hoje (para não dizer sempre..), como identidade, pertença, racismo, xenofobia,  discriminação,  minorias, e que fala  da experiência de ser luso-.africano em Portugal (e na Europa),  a exclusão / inclusão, a equidade, etc.  Temas, enfim, que a extrema-direita quer ver abolidos da agenda não só política e mediática como até científica... Mas dá-nos também da cultura "rap"... de que, afinal, também sabemos pouco.

Fiquemos para já com a última das 49 "entradas" do livro em que o "bom do Budjurra" (um "alter ego" da escritora ?)  depois de dar a volta ao bilhar grande (o mesmo é dizer, ao pequeno Portugal retangular onde nasceu)  interrogando-se sobre a sua origem e identidade, acaba por se convencer (e convencer-nos) que afinal é "apenas mais um preto muito português" (pp. 175/716) (**).

Eu confesso que achei o livro divertidíssimo, doce, de  fina ironia, com algumas "cenas" mais duras, feias, pícaras ou dramáticas:

  • o "arrastão em Carcavelos" (5. Tu agora chamas-te Arrastão, Budjurra, pp. 29-33);
  • o "call center" (9. No call center, licenciado, pp. 42-45);
  • a criança com Sida (17. Ela, ele e eu, o Budjurra, no nosso silêncio, pp. 72/73);
  • a morte do amigo (20. O teu amigo morreu, Budjurra, pp. 81/86);
  • a primeira viagem por Portugal: Serra da Estrela (31. O Budjurra a viajar, quem diria, pp.112/113);
  • os putos e os diferentes destinos (32. Entendendo-me, pp.114-118);
  • as ganzas (39. Budjurra, esse stonado, pp. 137/141);
  • pretos, voltem para a vossa terra (41. Os suspeitos do costume, pp.145/151);
  • a rapariga maquiavélica (47. Não estás a bater, Budjurra, pp. 167/171).

Li de um fòlego e, pondo-me na pele do Budjurra, revi(vi) algumas "cenas" em que também já fui "vítima de racismo ou preconceito", quer na Irlanda, quer nos Países Baixos, por exemplo no Aeroporto de Amesterdão-Schiphol: lembro-me de há 35 anos um gajo com 1,90 de altura, louro, de olhos azuis e gabardine bege,  me mandar apartar e me vasculhar o passaporte e bagagem, só por que não deve ter gostado do meu cabelo comprido, barba cerrada e tez morena... Não era a primeira vez que me confundiam com um palestiniano...E eu vinha já de um país "europeu", embora "periférico" (ainda não era a UE, ainda era a CCE, estamos a falar de 1990 ou 1991)..

Mas o mesmo acontece, infelizmente, noutros aeroportos da hoje União Europeia, de Lisboa a Budapeste... Ou por esse mundo fora, de Luanda a Washington, de Moscovo a Pequim. O racismo não tem cor nem pátria.



PS - O pai do Budjurra é da ilha de Santiago. A mãe é da ilha de Santão. Budjurra, Joáo Moreira Tavares, é o mais velhos dos 3 filhos. O Carlos é "calado mas tem bué de miúdas", a Sandra é uma "fala-barato"...Nasceram todos no "gueto" (talvez Cova da Moura, a décima ilha de Cabo Verde ?)...Mas os pais  decidiram que eles fossem, desde muito cedo, "viver nos prédios com uma tia da minha mãe"... "Os miúdos dfos prédios não queriam brincar connosco. Normal, nós éramos pretos"... Os outros múidos do "gueto", quando eles visitava,m os pais (que lá ficara,m a viver). "achavam bué fixe nós estarmos a viver nos prédiso0"...

Ela, a Sandra, "só namorava com rapazes brancos, só tinha amigas brancas, só ia lugares  onde ela tinha a certeza de que seria a única preta", e odiava falar em crioulo... "O meu irmão, assim  que se tornou adolescente, começou a detestar brancos" (pp. 12/13).

__________________________________

Notas do editor:


(*) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26487: Notas de leitura (1771A): "Um preto muito português", da luso-angolana e antiga "rapper" Telma Tvon (Lisboa, Quetzal, 2024)... Quem somos nós, "pretugueses" ? - Parte I (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 5 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26768: Notas de leitura (1794): Memórias Minhas, por Manuel Alegre; Publicações Dom Quixote, Março de 2024 (Mário Beja Santos)

Sem comentários: