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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A despeito de todos os encómios à Revolução Nacional, que aqui aparece como motor de progresso e vozes se levantam a dizer que até 1926 estava tudo uma pasmaceira (mentira rotunda), ficam aqui dados ilustrativos de que Ricardo Vaz Monteiro preparou muitíssimo bem o terreno para o safanão e o grande impulso organizativo que será o timbre da governação de Sarmento Rodrigues, será este o fecho de abóbada de um quadro de identidade que fará da colónia a base da Nação em que hoje se fundamenta a República da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2)

Mário Beja Santos

Trata-se de uma descoberta de algum modo surpreendente, edição de 1943, bem ilustrado logo à entrada com as figuras proeminentes do Estado Novo, com o Governador Ricardo Vaz Monteiro todo medalhado, um prefácio de aplauso pelas coisas boas que a era de Salazar trouxe à Guiné e agradecimentos do Governador a Gaspar de Oliveira, o Vice-presidente em exercício da União Nacional da Guiné. A obra estrutura-se sob a forma de textos explicativos que procuram ressaltar o então recente desenvolvimento da colónia, vimos no texto anterior as intervenções de: Dr. António Francisco Borja Santos, Chefe dos Serviços da Administração Civil a pronunciar-se sobre a organização administrativa da Guiné; o Padre António Joaquim Dias Dinis, já nosso conhecido da história das missões católicas na Guiné, Pré-Perfeito Apostólico da Guiné, que aborda as missões católicas, uma vez mais; o Serviço Médico-Sanitário apresentado pelo Dr. Fernando de Montalvão e Silva, Chefe dos Serviços de Saúde; Armando de Morais e Castro, Inspetor dos Serviços da Fazenda, deixa um relance sobre a Guiné moderna; Ricardo Costa, Diretor dos Serviços de Alfândega, tece comentários sobre o Estado Novo na administração financeira; Caetano de Sá, Chefe de Repartição dos Serviços Aduaneiros, dá-nos o quadro da nacionalização do comércio na Guiné; e o Eng.º. José Pereira Zagallo, Diretor dos Serviços de Obras Públicas, deixa-nos uma sinopse do Serviço das Obras Pública. Abordam-se agora as outras intervenções, a saber: o Serviço dos Correios e Telégrafos, pelo seu Chefe de Serviços, Joaquim Alfama Godinho; os Serviços da Marinha, pelo Primeiro Tenente Francisco Marques dos Santos; as atividades industriais e transportes, pelo 2.º Tenente Viriato Augusto Tadeu; o aeroporto terrestre, pelo Capitão Pedro Pinto Cardoso.

Alfama Godinho faz o elogio da modernização dos Serviços Telégrafo-Postais, houvera notáveis progresso nas telecomunicações, estava tudo antiquado, fez-se uma substituição praticamente integral. Firmou-se com a Companhia Telefunken um contrato que assentava nas seguintes caraterísticas: estação de onda média e onda curta em Bissau, estação de onda média em Bolama, estação de onda curta em Bubaque. As estações de onda curta, as de Bissau e de Bubaque executavam o serviço costeiro e a de Bolama fazia o mesmo serviço e ainda os de navegação aérea e radiogoniométrico. Por via terrestre, estabelecera-se as comunicações telegráficas entre a Guiné e a colónia francesa do Senegal, montou-se a linha S. Domingos – Ziguinchor. Igualmente fora estabelecido o serviço telefónico urbano em Bissau e em Bolama. E registaram-se melhorias nas centrais telefónicas. Observa que uma das consequências imediatas das montagens das novas estações da TSF da Guiné fora a inauguração de carreiras aéreas para o transporte de correspondências postais, a que se seguiu a chegada da Pan-American Airways Company com transporte de passageiros e de malas de correio.

O Primeiro Tenente Marques dos Santos refere-se aos Serviços de Marinha informando que antes da Revolução Nacional a Capitania dos Portos vivia num abandono criminoso, era patente a organização deficiente dos serviços de pilotagem, confiados a indígenas analfabetos. A partir de 1929, os seis faróis a petróleo foram substituídos por faróis automáticos. Construíra-se recentemente uma rede de faróis, eram agora 20, alguns de três boias luminosas, duas boias de prismas e de um grande número de boias cegas. Fora importado da Holanda o rebocador Bissau e estavam definidas as competências da Capitania dos Portos: administração das pontes e cais acostáveis; fiscalização marítima, hidrografia e oceanografia; carreiras dos vapores do Estado; instrução profissional do pessoal indígena. Havia igualmente uma superintendência no porto de Bissau, nas delegações marítimas de Bolama, Cacheu e Bubaque e nas subdelegações de Farim e Bafatá.

Coube ao Segundo Tenente Viriato Tadeu apresentar as atividades industriais e os transportes. Referiu as oficinas navais, situadas em Bolama, datavam de 1905, toda a sua atividade estava ligada à história da Guiné durante o período da ocupação - assistência e reparação dos navios de guerra e outros. Desde de 1926 que estas oficinas também serviam a marinha privada da colónia. Agora as oficinas navais eram uma base de recursos para o aeroporto de Bolama e respetivas empresas aéreas. Em 1941 havia 462 viaturas ligeiras e pesadas em circulação. Estando-se no auge da guerra, o oficial exprime a opinião sobre o aproveitamento de todos os recursos, dizendo: “As possibilidades mecânicas de gasogénio, com produtos florestais, são já evidentes e os seus resultados práticos absolutamente confirmados, pelo que a possibilidade de aliviar a economia da Guiné e dos encargos de importação de combustível líquido será forçosamente de ser encarada”. Falando da preparação indígena, dirá: “De modo a resultarem frutos produtivos para o indígena e para a colónia prevê-se a organização de uma Escola de Artes e Ofícios, em Bolama, que terá por centros de aplicação prática as oficinas navais e a Imprensa Nacional”.

Competiu ao Capitão Pedro Pinto Cardoso exprimir-se sobre o aeroporto terrestre. Esclareceu que o aeroporto tem uma pista de 4 quilómetros, poderá ser utilizado para aviões comerciais, mesmo em voo noturno. Havia na Guiné um avião DH Leopard, tinha diferentes obrigações: correio, transporte urgente, incluindo socorros médicos; e treino de pessoal navegante. O aeroporto tem sido utilizado pelos hidroaviões da Pan American Airways, quadrimotores Boeing. Havia campos de aviação para avionetas em Bolama, Bissau, Bafatá, Gabu, Mansoa, Cacheu, Canchungo e ilha das Galinhas.

A última comunicação, dedicada à assistência agrícola e zootécnica, coube ao Regente Agrícola Joaquim Graça do Espírito Santo. Esta assistência surgiu em 1927, com a criação das Repartições Técnicas da Agricultura e da Veterinária, nesse mesmo ano surgiu a Estação Zootécnica João Belo, em Bissau. A sede da Repartição dos Serviços Agrícolas e Florestais estava no Campo Experimental de Bor. E mostrava-se muito confiante, como escreveu: “A criação de campos experimentais de culturas e a distribuição de plantas e alfaias agrícolas, conjugada com a ação dos técnicos como agentes difusores das moções racionais do amanho do solo e aliados à cooperação franca das autoridades administrativas têm contribuído de modo sensível para o progresso das produções indígenas”.

É este o quadro que nos fica da evolução da Guiné no início da década de 1940, a surpresa está em que o antecessor de Sarmento Rodrigues lançou vias de progresso que em muito contribuíram para a evolução fenomenal que ocorreu posteriormente, e aqui vemos como Sarmento Rodrigues inaugurou muita obra de Vaz Monteiro tal como Raimundo Serrão irá inaugurar muitíssima obra encetada por Sarmento Rodrigues. É uma das ironias da política.
Major Ricardo Vaz Monteiro (Governador da Guiné, 1941-1945)
Bissau em 1950, imagem da Agência-Geral das Colónias
Edifício dos Correios 1950, imagem de um trabalho sobre a Arquitetura da Guiné no período colonial
Estação meteorológica de Bissau em 1952, imagem retirada do trabalho anterior
O rebocador Bissau, anos 1940
Um Clipper da Pan American, igual aos que amaravam e partiam de Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23757: Historiografia da presença portuguesa em África (341): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23757: Historiografia da presença portuguesa em África (341): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
É obra que desconhecia totalmente, um dado curioso é que não consta da principal bibliografia da Guiné. Está profusamente ilustrado e contribui para desmontar o mito de que a renovação de Bissau fora obra de Sarmento Rodrigues e a sua equipa. As áreas habitacionais que ainda hoje estão de pé foram as casas para funcionários, e grande parte do Bissau Velho teve um enorme impulso no tempo de Ricardo Vaz Monteiro, o antecessor de Sarmento Rodrigues. É evidente que são textos apologéticos, há mesmo quem quase santifique o homem providencial que pusera ordem e autoridade na nação. Vale a pena os historiadores verem estas imagens da transformação de Bissau, era o desafio que se punha à capital. E há consenso nos louvores ao aeroporto marítimo e terrestre de Bolama, desconhecia-se naquele exato momento que em breve o hidroavião iria ser completamente ultrapassado e que estas zonas de amaragem deixariam de ter qualquer importância.

Um abraço do
Mário



A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (1)

Mário Beja Santos

Trata-se de uma descoberta de algum modo surpreendente, edição de 1943, bem ilustrado logo à entrada com as figuras proeminentes do Estado Novo, com o Governador Ricardo Vaz Monteiro todo medalhado, um prefácio de aplauso pelas coisas boas que a era de Salazar trouxe à Guiné e agradecimentos do Governador a Gaspar de Oliveira, o Vice-Presidente em exercício da União Nacional da Guiné. Apresenta-se sob a forma de textos explicativos que procuram ressaltar o recente desenvolvimento da colónia, o Dr. António Francisco Borja Santos, Chefe dos Serviços da Administração Civil pronuncia-se sobre a organização administrativa da Guiné; o Padre António Joaquim Dias Dinis, já nosso conhecido, Pré-Perfeito Apostólico da Guiné aborda as missões católicas; o Serviço Médico-Sanitário apresentado pelo Dr. Fernando de Montalvão e Silva, Chefe dos Serviços de Saúde; Armando de Morais e Castro, Inspetor dos Serviços da Fazenda, deixa o seu olhar sobre a Guiné moderna; Ricardo Costa, Diretor dos Serviços de Alfândega tece comentários sobre o Estado Novo na administração financeira; Caetano de Sá, Chefe de Repartição dos Serviços Aduaneiros dá-nos o quadro da nacionalização do comércio na Guiné; o Eng.º José Pereira Zagallo, Director dos Serviços de Obras Públicas deixa-nos uma sinopse do Serviço das Obras Públicas… haverá outras intervenções, ficarão para próximo texto.

Não vão faltar apreciações laudatórias, logo o Dr. António Borja Santos: “Conheço a Guiné há dois anos apenas, mas pelo que tenho lido e ouvido no tocante à história da sua governação anterior à Revolução Nacional de 26, ela não era mais do que o reflexo da desorganização social, económica e financeira da Mãe Pátria. Com o advento da Revolução surge o grande Homem que Deus tinha reservado para o momento próprio. A Guiné é o reflexo de uma Mãe Pátria redimida”. E deixa um esboço sobre o plano de construções a executar, a reparação de estradas e pontes, a construção e reparação de edifícios nomeadamente em Cacheu, Mansoa, Bafatá, Farim, Buba, Gabu, Bolama, Bissau e Bijagós. O nosso já conhecido Padre Dias Dinis é um missionário com longo traquejo na Guiné, virá mais tarde revelar-se historiador. Recorda que a Santa Sé entregou aos missionários franciscanos, em 1941, a Prefeitura Apostólica para restauro. Os primeiros missionários franciscanos de Portugal Novo vieram em 1932, segue-se, no ano seguinte, as quatros irmãs franciscanas hospitaleiras portuguesas. Nesse mesmo ano é criada a Missão de Santo António de Bula. Enaltece o Asilo da Infância Desvalida, em Bor, e lembra que a creche acolhe os recém-nascidos, órfãos de mãe, e também aqueles que, por hábito e por crendice, o indígena repudia e condena a morte – o gémeos e os defeituosos.

O responsável pelo Serviço Médico-Sanitário refere os efetivos: 11 médicos, 40 enfermeiros, 11 enfermeiros auxiliares. Houvera aperfeiçoamentos nos hospitais de Bolama e Bissau; o grosso do orçamento para a saúde era canalizado para assistência medicamentosa gratuita. Morais e Castro, falando da Guiné moderna, entusiasma-se: “Em alguns dos pontos do interior da ilha de Bissau, embora sem altitude, há belezas tropicais iguais ou semelhantes às da Alta Zambézia”. Esse entusiasmo continua na escrita a falar dos desenvolvimentos operados em Bissau, Mansoa, Bissorã, Canchungo, Bafatá. Regista obras no porto de Bissau, a construção da ponte de Ensalmá, as casas dos funcionários, os edifícios hospitalares, a instalação de raios-X, os promissores aeroportos terrestres e marítimos de Bolama. Prosseguia a construção do Palácio do Governo e apoiava-se a missão católica portuguesa dos Felupes. Caetano de Sá intervêm sobre a nacionalização do comércio da Guiné: “A situação geográfica da Guiné impõe regime fiscal de importação com taxas inferiores às que vigoram nos territórios circunvizinhos. Tentou-se a nacionalização económica da Guiné sem êxito nos anos imediatos a 1892, pelo meio de largas concessões a explorações agrícolas, comerciais e industriais. Tentou-se em 1894 transferir para uma companhia a constituir por Mateus Augusto Ribeiro de Sampaio e Conde de Vale Flor direitos de soberania sobre todos os terrenos incultos e desocupados da Guiné, cuja administração a companhia devia assumir – só que a companhia não vingou. É verdade que a Guiné foi, por muitos anos, um feudo comercial das casas francesas e alemãs, em grande parte pela relutância ou receio dos capitais portugueses se empregarem na Guiné, considerada durante décadas como colónia de degredo ou cemitério de europeus. Surgiu então o arrojado empreendedor António da Silva Gouveia”. Refere-se à diminuição de encargos sobre as exportações, o que concorreu para o aumento da produção. E termina dizendo que a nacionalização do comércio e transportes se tinha iniciado em 1928 e continuava em ritmo progressivo.

Temos por último as obras públicas e o Eng.º José Pereira Zagallo tece considerações: “Um dos principais elementos para se avaliar do progresso e estado de civilização reside no desenvolvimento das obras públicas e na modernização da construção civil. De facto, podia uma colónia estar muito desenvolvida sob o ponto de vista social, agrícola, etc., mas se tivesse como edifícios construções primitivas habitadas por brancos, daria uma triste ideia do seu nível de vida e por certo diria que era somente terra de pretos”. Um ponto curioso era ele e outros autores acreditarem na época na importância do aeroporto de Bolama, é tempo em que os Clipper em viagem para a América do Sul faziam amaragem na baía de Bolama, mas foi tempo de pouca dura, dentro de em breve haverá um salto tecnológico na aviação e com o Super Constellation, o hidroavião teve os seus dias contados, a importância de Bolama desapareceu.

(continua)

Igreja e residência paroquial de Bolama em vias de conclusão em 1930
Fachada da Igreja de São José em 2017
Bissau 1915
Rua Dr. Oliveira Salazar no Bissau Velho anos 1960
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23755: Historiografia da presença portuguesa em África (341): Centena e meia de referências bibliográficas sobre a Guiné-Bissau, da autoria de missionários, portugueses, italianos, guineenses e outros (Fr João Vicente, ofm)

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23724: Notas de leitura (1508): Algumas (breves) notas sobre missionação (V) - Conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 17 de Outubro de 2022:

Caros Camaradas,
Ainda mais este texto.
Obrigado.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - V

Paulo Salgado

Mandou-me o nosso camarada do Blogue, Mário Beja Santos, por especial deferência, a História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema, padre franciscano, dado à estampa em 1982 pela a Editorial Franciscana, Braga.

No essencial, este valioso documento refere, com detalhe, o Encontro (expressão de que gosto – já usada por Bartolomé de las Casas) entre dois mundos: um, o invasor, o conquistador pela espada e pela fé, outro, o invadido, o conquistado pela espada e pela fé. E como se manifestou a presença dos missionários na costa da Guiné (no sentido amplo: vai para além do Bojador até ao Cabo Não).
Está referido, entre muitas outras peripécias, o seguinte:
"que por aqui andaram em 1584 uns frades carmelitas descalços, tendo sido uma falhada tentativa de fixar uma missão carmelita na Guiné. Frei Cipriano, carmelita, escreveu de Cacheu ao bispo de Cabo Verde acerca da visita de um rei de Caió, D. Bernardo, juntamente com 300 súbitos, a pedir o batismo e uma igreja no seu reino. André Álvares de Almada, refere no seu Tratado a pessoa de João Pinto, padre preto, natural da Guiné, evangelizando em região hoje pertencente ao Senegal. Almada fala dos negros Jalofos “que começam no rio Senegal”: “Esta nação dos Jalofos é mais dificultosa em receber a fé de Jesus Cristo Nosso Senhor que todas as outras nações dos negros da Guiné, porque quase todos seguem a seita de Mafoma. E ano de 1589 foi um clérigo preto por nome João Pinto àquele reino para os fazer cristãos e não fez fruto algum neles, e por isso se foi para outras nações".

Exactamente por ter tomado conhecimento deste frei Cipriano, sabendo ou imaginando o que os frades penaram num mundo tão desconhecido, ficcionei uma crónica que consta do meu livro “Guiné-Crónicas de Guerra e Amor”.

No entanto, por certo que, se tiver tempo, o Mário Beja Santos se pronunciará sobre esta magnífica obra que incide sobre a missionação no período compreendido entre os séculos XV e XX.

Como anteriormente referi, conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau, autor do livro que está a ser distribuído às comunidades com título italiano “Sono Allora Africano” (Agora sou Africano), publicada pela Associozione Rete Guinea Bissau onlus.
A obra é uma coletânea de cartas de Dom Settimio escritas a partir de Bissau à sua família, desde que veio a esta terra 1943 até partir para o Pai, em 1999.

Para os bispos de Bafatá e Bissau, num texto de apresentação da obra, Settimio é o autentico "homem garandi", o ancião em plenitude por conquistar o coração de todo o povo da Guiné-Bissau, com o seu génio simples de comunicar o Evangelho. (in "Igreja Católica na Guiné-Bissau").


D. Settimio Artur Ferrazzeta, primeiro Bispo da Guiné-Bissau

Aqui fica a minha singela homenagem, pois dele ouvi palavras de um verdadeiro missionário.

Paulo Salgado

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Nota do editor

Poste anterior de 18 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23716: Notas de leitura (1507): Algumas (breves) notas sobre missionação (IV) - Fundo Documental do Prof. Santos Júnior, localizado no Centro de Memória de Torre de Moncorvo (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23716: Notas de leitura (1507): Algumas (breves) notas sobre missionação (IV) - Fundo Documental do Prof. Santos Júnior, localizado no Centro de Memória de Torre de Moncorvo (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 14 de Outubro de 2022:

Meus caros camaradas,
Temos de nos entreter com algo que fale de aspectos que, de alguma forma, nos dizem qualquer coisa.
Junto mais um texto, pedindo desculpa se estou a enfadar.

Um abraço, camaradas.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - IV

Paulo Salgado

O meu contributo de hoje sobre este assunto continua influenciado pelas palavras amigas do Mário Beja Santos. Fez-me ele reflectir, repito, sobre o tema missionação – sobretudo os trabalhos que frades e padres, de várias ordens, sofreram até aos limites da sua resistência física, psicológica e moral. Mas, antes, permiti-me, caros leitores deste blogue, um parêntesis: acaba de ser apresentado o livro "A Rua do Eclipse" do Mário Beja Santos, do qual me deu notícia o meu Amigo e conterrâneo Tenente-general Alípio Tomé Pinto, que me relatou este evento e com o qual ficou entusiasmado, quer com os conteúdos do texto e forma de abordagem do autor, quer pelo contributo de um dos apresentadores – Amadu Dafé – um jovem guineense. Este autor, Amadu Dafé, tem uma obra – que ainda não li – mas vou adquirir: "Ussu de Bissau", cujo tema é de uma grande actualidade e que marca um momento histórico grave no âmbito daquela região africana. Encontros fica para depois, noutra crónica.

Bom, volto ao que me propus. Os missionários portugueses e espanhóis, católicos (não me refiro aqui aos missionários de outras nações cristãs) andaram ao longo dos séculos, e andam actualmente, por todas as partes do Mundo. Percorreram todo o Império Português (se Império houve!), por mares, ilhas e continentes em condições de sofrimento: penúria, febres, no meio de guerras, enfrentado a ganância e a cobiça. Morreram em condições dramáticas, pregando, ensinado a língua, transportando consigo a fé em que acreditavam. A grande maioria deles acreditando que à sua fé deveriam juntar os interesses de el-rei, da Coroa, da Pátria (conceito mais tardio). Alguns, uma minoria, seduzidos pela luxúria e pela riqueza, entraram em deboches iníquos, tendo sido devidamente criticados e castigados pelos superiores.

Há dezenas de relatos dignos da grandeza do Homem: de coragem, de abnegação. A leitura de diversas obras – falo especialmente de algumas que constituem o Fundo Documental do Prof. Santos Júnior (insigne médico, antropólogo e ornitólogo, natural de Barcelos e casado em Torre de Moncorvo – com várias andanças por África), localizado na Biblioteca desta Vila – deram-me uma visão alargada, necessariamente incompleta, do que foi a actividade destes missionários bandeirantes.
Igualmente, algumas pesquisas que estou fazendo, bem como dicas do ilustre e ilustrado camarada do Blogue, Mário Beja Santos.

Há um missionário oriundo da cidade de Bragança, de seu nome Carlos Joaquim Gonçalves dos Santos (foto à direita), e outros, designadamente de um tal Padre Manuel Sá , de Peredo dos Castelhanos, portanto ambos do meu distrito que tanto penaram.

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 29 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Último poste da série de 17 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23715: Notas de leitura (1506): "Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494", por Augusto Carias, Adelino Domingues, Aníbal Justiniano; edição de autor, Amares, Julho de 2012 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2022:

Caros camaradas,
Por me parecer oportuno, face ao desafio do Mário Beja Santos - que me "empurrou" - fez ele bem - para este tema, aqui vai a terceira parte. Outros andarão bem melhor nesta matéria: historiadores, antropólogos, padres...
Fica este registo.

Saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação – III

Paulo Salgado

Vejo-me compelido, por imperativo histórico, a trazer junto de vós, camaradas que me ledes neste Blogue, sério e participativo, uma reflexão que se deve ao Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa».[1] Mas, antes, não posso deixar de relembrar que «a bula Acquum Reputamos, de Paulo III, conhecida como a "magna carta" do padroado real português, para além dos conteúdos habituais das bulas precedentes concedidas a Portugal, reflecte uma realidade político-religiosa ligeiramente diferente da que se viveu em décadas anteriores».[2] Este documento papal favorecia e privilegiava a missionação portuguesa, concedendo a possibilidade de evangelização, mas igualmente a responsabilidade de zelar materialmente pela manutenção das igrejas fundadas ou a fundar. Também conferia a sede episcopal de Goa. Refira-se que o padroado português sofreu ao longos dos séculos diversos episódios, em especial os relativos ao surgimento de outras igrejas cristãs apoiadas por países não católicos e que fundaram as suas missões, algumas com relevo notável e que se mantêm hoje em actividade. Igualmente, são de mencionar os diversos acordos efectuados e reajustados ao longo do século XIX e mesmo no século XX da parte da Igreja e dos reis de Portugal.

Na missionação utilizava-se o termos “infiéis”. Ainda que não concorde com esta designação (infiéis, porque não pertenciam ao Cristianismo… designação que surge afastada, como defende o Papa Francisco), que surge abundantemente em vários textos desde o século X (ou antes) e por aí adiante, mesmo por Francisco Xavier e outros célebres missionários, tem de fazer-se o seu registo.

Transcrevo, pois:
«A missionação portuguesa desenvolve-se ao longo dos séculos, em torno da obra dos prelados diocesanos e das ordens religiosas que se vão fixando nos territórios de missão: franciscanos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas, ursulinas, merecendo uma menção especial os religiosos da regra de Santo Agostinho, cuja acção foi importante na interpelação dos governantes para que agissem, e fizessem agir os súbditos, como cristãos».

E acrescenta:
«Com S. Francisco Xavier, o "Apóstolo das índias", abre-se uma era nova na missionação do Oriente. Para além dos 30.000 baptismos que lhe são atribuídos, de uma acção constante em Cochim, Malaca, Molucas e Cantão, deve-se-lhe uma atitude diferente em relação a povos e culturas, de forma que não se hesita em reconhecer que, com S. Francisco Xavier, começa a missionação moderna. Japão, China e Indochina recebem também missionários portugueses, e, não obstante o sucesso da presença de S. Francisco Xavier no Japão, a missionação aqui acaba por sofrer inclemências terríveis do poder político, de que é símbolo o martírio de Nagasáqui. Mas, significativa é esta exclamação de S. Francisco Xavier, em carta escrita do Ceilão: "Bendito seja Deus, porque tornou tão florescente o nome de Cristo entre esta multidão de infiéis!".
Despedida de Xavier na corte do rei D. João III
In: https://devocaofrancsicoxavier.blogspot.com/p/iconografia-gravuras.html

À missionação no Brasil está imperecivelmente ligado o nome do Padre Manuel da Nóbrega, fundador da Província do Brasil e da cidade de São Paulo, o primeiro jesuíta do Brasil e da América, como o designou o Padre Serafim Leite. Nóbrega teve tal actuação, como exímio religioso e verdadeiro homem de Deus, na concertação com governantes, em defesa de autóctones, que o historiador Robert Southey não hesitou em chamar-lhe "o maior político do Brasil". Contudo, a sua figura grada brilha mais como parte dessa tríade de construtores de missão no Brasil: Nóbrega / Anchieta / Vieira».
Padre jesuíta no Brasil Colonial

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Notas:

[1] - Janus 1999-2000, Missionação portuguesa. In https://www.janusonline.pt/arquivo/1999_2000/1999_2000
[2] - David Sampaio Barbosa - Padroado Português: privilégio ou serviço (séc. XIX)?

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Nota do editor:

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 24 de Setembro de 2022:

Meus caros Camaradas,
Dando cumprimento ao que havia referido, abaixo um segundo texto sobre este assunto.

Uma saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - II

Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia

Dou continuidade à minha breve referência sobre a missionação, tema que, por certo, outros trabalharão melhor, mas tentarei cumprir o que me propus no texto anterior.

Vale a pena este testemunho prévio para nos apercebermos da necessidade de o Reino enviar frades para a evangelização - a dimensão religiosa, nem sempre bem conseguida, mas preocupada com a palavra de Jesus. De resto, todos sabemos que uma das intenções, um dos objectivos dos descobrimentos era a pregação, a evangelização. Nas naus portuguesas e espanholas seguiam sempre “missionários”. Quem não se lembra dos nossos capelães, já não para evangelizar, mas para “dar força espiritual” às NT - assim era entendido pelos mandantes?

Repare-se, caros leitores, que existia (e existe) a preocupação de respeitar a hierarquia da Igreja - neste caso da parte de Loyola.

Mais uma nota: quem assina esta carta é o braço direito, admirador e seguidor indefectível de Inácio de Loyola, Pedro Fabro, que sempre procurou seguir o pensamento do Padre Superior da Companhia de Jesus - os jesuítas.

Finalmente, o próximo texto incidirá sobre um dos grandes missionários - Francisco de Xavier, e não Francisco Xavier; na verdade, ele era natural da localidade da região de Navarra - Xavier.


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A DIOGO DE GOUVEIA[1]

Roma, 23 de Novembro de 1538[2]

(Ep. I, 132-134 – original latino)

IHS. A graça e a paz de Jesus Cristo N. S. estejam com todos!

Há poucos dias chegou o vosso mensageiro com carta para nós[3]. Por ela soubemos notícias vossas e vimos quão boa lembrança guardais de nós, bem como o zelo que vos faz sedento da salvação das almas dispersas por vossa Índia, onde as messes já lourejam[4]. Oxalá pudéssemos satisfazer a vós e às nossas almas que sentem o vosso zelo. Mas existem alguns obstáculos que impedem corresponder não só aos vossos desejos, mas também aos de muitos outros.

Compreendereis isto pelo que vou dizer-vos. Todos quantos estamos reunidos nesta Companhia estamos oferecidos ao Sumo Pontífice, pois é o senhor de toda a messe de Cristo[5]. Por esta oblação lhe prometemos estar prontos para tudo quanto dispuser de nós em Cristo. Assim, se ele nos enviar aonde nos convidais, iremos alegremente. A causa desta nossa resolução, que nos sujeita ao seu juízo e vontade, foi entender ter ele maior conhecimento daquilo que convém ao cristianismo universal.

Não faltaram alguns que há algum tempo se esforçaram para que nos enviassem a esses índios que os espanhóis conquistam diariamente para o seu imperador. Para isso veio interceder em favor dessa causa, principalmente, certo bispo espanhol e o embaixador do imperador[6]. Mas persuadiram-se que a vontade do Sumo Pontífice era que não saíssemos daqui, pois é abundante a messe em Roma[7].

A distância do país não nos espanta, nem o trabalho de aprender línguas. Faça-se somente o que mais agrada a Cristo. Rogai, pois, por nós para que nos faça ministros seus no Verbo da Vida. Porque, embora «não sejamos por nós mesmos capazes de pensar algo como se fosse nosso», pomos a nossa esperança na abundância d’Ele e nas suas riquezas (2 Cor 3,5).

De nós e das nossas coisas tereis notícias completas por cartas escritas ao nosso particular amigo e irmão em Cristo, Diogo de Cáceres, espanhol, que vo-las mostrará[8]. Ali vereis quantas tribulações por Cristo passámos em Roma até agora e como delas por fim saí­mos ilesos[9]. Tão pouco faltam em Roma muitos a quem é odiosa a luz eclesial de verdade e de vida.

Sede, pois, vigilantes e esforçai-vos tanto em edificar o povo cristão com o exemplo de vida, como trabalhastes até agora em defesa da fé e doutrina da Igreja[10]. Porque, como podemos crer que nosso bom Deus conservará em nós a verdade da santa fé, se fugimos da sua bondade? É para temer que a causa principal dos erros de doutrina provenha de erros de vida. Se estes não forem corrigidos, não se extirparão aqueles. Pondo fim a esta carta, resta-nos pedir que vos digneis recomen­dar-nos aos nossos respeitadíssimos Mestres Bartolomeu, De Cornibus, Picard, Adam, Wankob, Laurency, Benoit a todos os mais que gostaram de chamar-se nossos mestres e nós seus discípulos e filhos em Cristo Jesus. N’Ele vos saudamos a vós.

Desta cidade de Roma, dia 23 de Novembro de 1538.

Vosso no Senhor, Pedro Fabro e mais Companheiros e Irmãos.
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Notas:

1 - Diogo de Gouveia (1471-1557), teólogo português de rígida ortodoxia cató­lica, contrário mesmo a Erasmo, foi reitor da Universidade de Paris (1500-1501), obteve de D. João III a concessão de bolsas para estudantes nacionais, transfor­mando Santa Bárbara num colégio português da Sorbona, do qual foi principal, durante longos anos. Mal informado sobre os primeiros discípulos de Inácio em Paris, esteve para castigar o Santo publicamente, como sedutor da juventude. Após a defesa de Inácio, reconheceu a sua inocência e pediu perdão de seu erro perante professores e alunos, reunidos para o projectado castigo. Agora, por sua iniciativa e por comissão do rei, escreve aos Companheiros, convidando-os para a missão da Índia (Fontes Narr. 139; Autob. 78).

2 - Um ano antes (Novembro de 1537), Inácio, com Fabro e Laínez, dirigia-se a Roma e, pouco antes de lá chegar, tivera a célebre visão de La Storta, que con­firmava o título desses sacerdotes «amigos no Senhor», Companhia de Jesus, e lhe dava o seu significado profundo (Autob. 96). Como diz Ribadeneira sobre esta carta: «Escreveu a nosso Padre se teriam por bem irem todos ou parte dos Compa­nheiros a pregar o Evangelho às Índias Orientais». Responde Fabro em nome dos demais, dizendo-lhe que estavam às ordens do Sumo Pontífice, o qual prefere que por então trabalhem em Roma (Iparr. BAC 668).

3 - D. Pedro Mascarenhas, novo procurador de Portugal em Roma, junto do Papa. Tratou com Inácio e Companheiros sobre a ida de alguns deles para missio­nar na Índia, a pedido de D. João III. Mais tarde, como Vice-Rei da Índia, apoiará os missionários jesuítas.

4 - Em Goa já havia um bom grupo de cristãos e até um colégio fundado para jovens indianos, chamado de Santa Fé, além da cristandade antiga de S. Tomé e outros núcleos.

5 - Em Maio de 1538, já estabelecidos em Roma, por não terem podido ir à Ter­ra Santa, exercitavam-se em ministérios em favor da cidade de Roma. Levantou-se grave perseguição contra eles movida por Landívar, despedido da Companhia, e por outros espanhóis influentes na Cúria Romana. A defesa de Inácio é levada até à sentença final, que lhes restituiu a fama e os ministérios, muito frutuosos junto do povo (Autob. 98). Pouco antes de escrita esta carta, passado mais de um ano sem navio para Jerusalém, os Companheiros ofereceram-se ao Papa, de acordo com o voto de Montmartre (Autob. 85).

6 - João Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, era o embaixador de Carlos V em Roma. «Certo bispo espanhol» é talvez o antigo discípulo de Inácio em Barcelona, João de Arteaga, bispo de Chiapas no México, que oferecera o seu bispado a Inácio ou a algum dos Companheiros, e acabou por morrer na sua dio­cese (1541), ao beber veneno por engano (Autob. 80).

7 - Palavras do Papa, segundo Bobadilha: «Porquê esse tão grande desejo de ir a Jerusalém? Autêntica Jerusalém é Itália, se desejais trabalhar na Igreja de Deus» (Fontes Narr. III, 327).

8 - Diogo de Cáceres, em Paris, determinara seguir a Inácio. Em 1539, chegou a Roma e interveio na reunião dos primeiros Companheiros. No mesmo ano, voltou a Paris e ordenou-se sacerdote, mas em 1541 abandonou a Companhia (Iparr. BAC 669).

9 - Cf. supra, nota 5.

10 - Diogo de Gouveia opusera-se com toda a força ao primeiro aparecimento do luteranismo na Sorbona. Alguns aderentes à heresia tiveram então de fugir de Paris.

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Notas do editor:

Poste anterior de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 3 de Setembro de 2022:

Caros Camaradas,
Atrevo-me a caminhar por matérias de que não faziam parte das minhas preocupações literárias - a Missionação. O que farei é, somente, trazer alguns breves apontamentos.

Uma saudação amiga, Camaradas.
Ver abaixo:
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação – I

Paulo Salgado

Fui espicaçado, e bem, pelo Mário Beja Santos, um excelente crítico e historiador atento, ao observar-me, recentemente, ser incompreensível não abordar eu, nas minhas narrativas mais recentes1, aspectos da missionação. Estas minhas narrativas debruçam-se, no essencial, sobre aqueles que não fazem parte das elites e que não constam dos compêndios ou das obras laudatórias e encomiásticas, ou seja, do povo que demandou o Império, se Império houve.

E tendo eu conhecido pessoalmente alguns frades franciscanos que ainda residiam na Guiné-Bissau aquando da minha estada neste País, em 1990-92, em actividade de cooperação, vinte anos depois da minha ida à guerra, tive de meter mãos à obra e ir em busca do que fartamente se produziu sobre a presença dos missionários. É uma faceta humana incontornável.

Eis-me, pois, chegado, à Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio, (Agência – Geral do Ultramar. Lisboa – MCMLXV). O meu objectivo é focar aqui, neste espaço bloguista, aberto a tantas e variadas manifestações memorialistas, alguns breves esquiços sobre a presença de missionários nos territórios d’além-mar, no século XVII, pois é deste período de tempo que trata abundantemente esta compilação.
(No entanto, sei bem que o Beja Santos nos conforta com belas páginas sobre diversos temas, incluindo a referência a actividades missionárias de franciscanos - ver no blogue).

Ora, pretendi referir-me, obrigatoriamente, a um grande estudioso que dedicou uma vida de mais de quarenta anos a um trabalho notável – a abordagem a este tema tão importante da nossa História: o Padre António Brásio. Para minha leitura prévia, e, assim, trazer breves notas para conhecimento de eventuais interessados, é bom relembrar que não sou historiador, mas um curioso escritor/narrador, servi-me do texto do Padre David Sampaio Barbosa2. Aponta-nos este estudioso o caminho da imensa obra de António Brásio. Claro que António Brásio cultivava um enorme respeito pelas culturas tradicionais africanas, ainda que eivado pela corrente política que as décadas de quarenta, cinquenta e sessenta, força ideológica do estado Novo, fossem de feição ideológica marcante na defesa do Império. Admitiu sempre António Brásio que a nossa presença secular histórica houvera sido fundamental para os homens africanos e para a defesa da civilização. Segundo David Sampaio Barbosa, Brásio «acreditou, anos seguidos, na justeza da causa de Portugal e na linearidade duma presença que acreditava benéfica para as populações nativas».

Possivelmente, António Brásio, já nos meados da década de sessenta, sentiu que se aproximava o fim da posição universalista defendida pelo Estado Novo, e que o pulsar da História se converteria, a breve trecho, em mudanças que o processo histórico universal impunha e impõe.

A quantos competirá abalançarem-se a prosseguir o que se contém nesta obra, um manancial para os historiadores interessados na História da Missionação e, a fortiori, pela História de Portugal? A mim, que procuro bases para as minhas narrativas ficcionais, ainda que baseadas em factos e personagens históricas, tão-só me interessam algumas passagens que envolvem encontros e desencontros, problemas e sucessos, de alguns missionários, e como eles, alguns soldados e marinheiros. Delas trarei duas notas, proximamente3.

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Notas:
1 - Que agora me escuso de referir por conveniência própria.
2 - Pe. António Brásio, A Paixão pela História Missionária David Sampaio Barbosa. Missão Espiritana, Vol. 13, n.º 13. Artigo 5.º 2008.
3 - Aliás, no meu livro Guiné – Crónicas de Guerra e Amor abordei as dificuldades que os frades capuchinhos enfrentaram ao logo da costa; no caso, ainda que ficcionalmente, mas atento às vicissitudes da missionação, uma crónica desse livro sobre um frade na região de Cacheu: “Frei Cipriano”.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23592: Notas de leitura (1490): Damião de Góis (Alenquer, 1502- Alenquer, 1574): um humanista europeu... Curiosamente, entre os seus ensaios, encontra-se um estudo sobre o povo Lapão (Samiska Folket) e o seu modo de vida.(José Belo, Suécia)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23596: Historiografia da presença portuguesa em África (333): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui findam as impressões do Padre António Joaquim Dias, desta feita elencam-se as suas referências à alimentação da população guineense e faz-se menção da comunicação por ele proferida nas Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, obviamente que aproveitou o material que já transcrevemos do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir de 1942, descobre-se agora que ele também assina Dias Dinis, convirá agora juntarmos as intervenções da mesma pessoa, mais adiante se fará recensão do trabalho que ele publicou na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É a singularidade de um olhar de um missionário que comprovadamente se afeiçoou às duras tarefas de criar escolas, igrejas, residências, passando alguns anos sem auferir um rendimento, contando com o compadecimento de quem podia dar para eles poderem estar ao serviço de Deus.

Um abraço do
Mário


Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.

Chegou a hora de nos despedirmos deste missionário tão observador, primeiro ele vai dizer-nos o que viu sobre a alimentação da população guineense e depois faz-se uma síntese do seu trabalho sobre as missões católicas da Guiné Portuguesa. Deixaremos para outro texto o seu trabalho publicado na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1943, intitulado As Missões Católicas na Evolução Político-Social da Guiné Portuguesa.

O arroz constitui a base da alimentação destes povos. Cultivam-no desde tempos imemoriais, provavelmente trata-se de uma importação do Oriente. Os pântanos são inundados pelas grossas e abundantes chuvas, que os fertilizam carreando para eles o húmus das terras enxutas. Os Balantas são os maiores agricultores, semeiam sempre o arroz em terras enxutas. Depois transplantam-no para os pântanos, onde mercê do intenso calor ele se desenvolve rapidamente. O arroz é descascado no pilão e crivam-no em cestos indígenas de folhas de palmeira. Os indígenas cultivam duas variedades de milho-painço a que chamam milhinho. E os Mandingas semeiam milho junto das próprias palhotas. Come-se o arroz acompanhado de algum peixe e por vezes carne de animais domésticos ou da vária caça. Ao peixe e à carne, por vezes temperado com ervas e legumes, dá-se o nome de mafé. Comem acocorados, levam a mão à cabaça e formam uma bola que dirigem diretamente para a boca. Lavam os dentes com o indicador da mão direita. Entra em função, depois desta lavagem, o volumoso palito, pequeno troço de pau branco e macio, que vai escovando a dentadura.

O Padre Dias refere igualmente outras fontes alimentares, como a criação de gado, o cultivo do Fundo, a mandioca, a batata-doce, os inhames e o amendoim, bem como algumas variedades de feijão. E recorda-nos o papel da cola e os frutos como a laranjeira, a tangerineira, a toranjeira, o abacaxi, a anona, o coco, o tamarindo e a papaia, bem como a malagueta. As fontes de pescado que destaca são o caranguejo (cáquere) e a ostra. Refere por último a aguardente de cana-sacarina e o vinho de palma, dizendo deste último que é o suco branco extraído do fruto da palmeira do coconote. E aqui acabam as impressões sobre a Guiné.

O Padre Dias foi convidado a apresentar uma comunicação no Congresso Comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Guiné e não se fez rogado, cingiu-se à revivescência da vida missionária da Guiné a partir de 1931 com os missionários franciscanos que tinham sido desviados de Moçambique. Durante muitos anos, um único sacerdote foi todo o clero da colónia, o Padre José Pinheiro ainda estava vivo após mais de 30 anos ao serviço da Guiné. Reiterando nesta comunicação o que já escrevera em diferentes números do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira recorda que os Franciscanos se estabeleceram na vila de Cacheu, lançaram as bases da Missão Central de Bula, em chão de Brames ou Mancanhas, viviam à mingua, em acomodações de barro, montou-se a Residência Missionária de Bula com a respetiva capela-escola. Em 1933 apareceram quatro Irmãs Hospitaleiras Portuguesas, nasceram as escolas de Có, do Churo e Cacanda, a assistência religiosa à vila de Farim, a abertura do asilo de infância desvalida de Bor, a escola do Pelundo. Em 1941 O Arauto, jornal mensal da missão de Bolama, e o único da colónia, é o meio de propagação no trabalho missionário. A situação tem vindo gradualmente a melhorar, há oito missionários, 29 professores indígenas assalariados, um seminário menor, uma creche, uma maternidade, 32 escolas diurnas e 3 noturnas, um colégio de ensino secundário, uma tipografia. Dá-nos conta do movimento religioso, da assistência em enfermagem, onde inclui o serviço das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, o Hospital e Maternidade de Bissau, o asilo e a creche de Bor, na manhã de 25 de maio de 1946.

No termo da sua comunicação agradece ao ex-governador da colónia, major Ricardo Vaz Monteiro o seu estímulo para a construção de igrejas na sede de cada circunscrição administrativa.

Um ponto curioso é que no Boletim da Agência Geral das Colónias diz-se que esta comunicação foi apresentada pelo Padre Dias Dinis, cabe agora ir à procura dos trabalhos que este assinou e juntar-lhes aqueles que são meramente assinados pelo Padre António Joaquim Dias.

Balantas, na construção de uma palhota
Guiné - Mulheres mandingas junto do poço. (Dentro já ficam prontas as tulhas para o arroz).
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 31 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23594: Historiografia da presença portuguesa em África (332): Região de Tombali, "chão balanta"? [Cherno Baldé, n. circa 1960 / Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)]

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Sabemos que o Padre António Joaquim Dias regressou muito combalido dos seus oito anos e meio de missionação na Guiné, e depois lançou-se ao trabalho, vamos ter as suas impressões no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira desde 1942 a 1945. Irá ainda publicar um resumo histórico das missões católicas na Guiné, a pretexto das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Infelizmente, depois perdemos-lhe o rasto. Terá seguramente trazido consigo os seus cadernos onde guardou inúmeras referências que lhe serviram para estruturar os artigos que ia publicando, desta feita sobre a organização social e política indígena, a vida familiar, a transmissão de bens, as indumentárias e os adornos, não esqueceu as tatuagens, os penteados que ele classifica de exóticos, até os anéis e anilhas de latão no cabelo, tranças com conchas e moedas, os amuletos em bolsas de couro ou prata lavrada, não deixando de sublinhar que na Guiné era melhor falar em práticas islamizadas do que islamismo, o poder do animismo era muito forte e os religiosos da religião muçulmana tinham a prudência de não serem severos para que o seu proselitismo não levasse ao abandono das práticas religiosas convencionais.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.

O Padre Dias vai-nos dando todas as suas impressões, agora detém-se na organização política e social das etnias, refere que o território está dividido em regulados, assistidos os régulos pelo conselho de anciãos, o poder e ação destes régulos ficaram reduzidos pela Reforma Administrativa Ultramarina, não deixando de referir que vão longe os tempos em que havia de lhes pagar anualmente direitos de suserania. Em termos hierárquicos temos a seguir os chefes de povoação ou de tabanca e que são escolhidos ou confirmados pelas autoridades portuguesas. Os crimes e pleitos entre naturais, julgados e punidos ou dirimidos antigamente pelos chefes e régulos sobem hoje à apreciação, resolução e punição pelas autoridades administrativas. E comenta seguidamente o que distingue morança de tabanca, conceito que consideramos inadequado, mas é o do missionário. Para ele, morança é o conjunto de casas pertencente à mesma família e pode dar o aspeto de grande povoação, principalmente na etnia Brame ou Mancanha. A tabanca é propriamente o aglomerado urbano de várias famílias reunidas em aldeia, embora as palhotas não estejam dispostas em arruamentos e as moranças encontram-se mais ou menos isoladas umas das outras e rodeadas a cada passo de estacaria ou cercado privativo. E dá-se ao trabalho de nos descrever os materiais com que se constroem as moranças, explica a natureza das coberturas e oferece-nos uma curiosidade: “Merece referência especial a palhota dos Balantas. De paredes de barro, amassado com palha de arroz, consta dois pisos sobrepostos. Num e noutro, há divisões que se podem destinar a quartos, armazéns de víveres, currais, etc. Nestes edifícios, as tulhas ou bembas, reservadas aos víveres, são colocadas dentro de casa antes de levantadas as paredes, porque atingem por vezes grande porte e jamais caberiam pelas portas”.

Segue-se uma descrição da organização familiar dos indígenas da Guiné, começa por sublinhar o comando das pessoas de mais idade como elemento predominante, ao lado do papel desempenhado pelos avós e pais. E chama a atenção para o valor económico que reside nos instrumentos de trabalho, nos braços que aram a terra, que lançam a semente, o conjunto de tarefas até à recolha aos celeiros. Quanto ao casamento, diz-nos que geralmente o futuro genro tem de prestar ao sogro serviços vários no amanho das terras. E lança o seu olhar sobre o comportamento que classifica de cruel ou desumano: “Os guineenses rejeitam os gémeos e os defeituosos que antes dos 3 ou 4 anos expõem na selva à voracidade das feras ou afogam nos rios e pântanos. A mesma sorte cabe frequentemente às crianças cujas mães faleçam de parto e ainda às que, por crendice, forem classificadas de feiticeiras. Entre os Manjacos, não pode o indivíduo, criança ou adulto, estar doente mais de 8 a 10 dias. Sucede o mesmo entre os Brames. Aqueles matam-no fazendo ingerir água a ferver; estes abrem-lhe as veias das fontes com uma faca, ou, mais vulgarmente, utilizando vidro de garrafa. Em 1934, surpreendi em Bula uma velhota que terminava esta última operação a um neto, perdido aliás para uma infeção grave de um maxilar”.

Informa-nos igualmente que as missões católicas mantinham e dirigiam um asilo de crianças do sexo feminino em Bor, a sete quilómetros para nordeste de Bissau, a que fora apensada uma secção de creche destinada precisamente a salvar a vida das crianças órfãs e das repudiadas pelos pais. Mais adiante dá-nos uma explicação sobre a transmissão dos bens: “É muito raro o indígena da nossa Guiné dispor dos seus bens em forma testamentária perante as autoridades gentílicas ou europeias. Por uma parte, as usanças tradicionais inibem-no de aliená-los à própria família; e, por outra, ele sabe que serão atribuídos infalivelmente quem pertençam por direito consuetudinário da etnia, fiscalizado pelo régulo. Os filhos não são os herdeiros, nem dos bens nem dos cargos paternos. Refiro-me aos bens de vínculo, ao património da família, recebido dos antepassados que devem transitar para os sucessores certos e legais. Ao herdeiro incumbe fazer a despesa dos funerais ou o Choro pelo falecido. A sonoridade e duração deles depende da fortuna do morto ou dos recursos do herdeiro”.

Dentro da sua observação cabe também o traje e os adornos do indígena. Fala já em processos de aculturação, menciona o contato das etnias autóctones com os islâmicos ou islamizados do Sudão, da Mauritânia e de outras regiões africanas que os levou ao conhecimento dos tecidos e ao aproveitamento do algodão. Lembra que segundo Zurara, os primeiros portugueses que aqui arribaram encontraram árvores de algodão e que os tecidos e peças de roupa eram tidos em grande apreço nas trocas com os portugueses. E elenca essas peças: calção, saias, tangas, chapéus, lenços, cofiós, entre outros. Também está atento a pormenores bizarros e não perde ocasião de os comentar, como é o caso deste: Estava eu a pesquisar neste boletim mensal mais textos do Padre Dias quando me apareceu a notícia de que no dia 8 de dezembro de 1950 tinha sido solenemente sagrada a nova Igreja de Bissau a que chamamos catedral. Dias antes chegara o bispo sagrante, prelado de Cabo Verde, recebido como hóspede de honra da Guiné. Na primeira parte das cerimónias estiveram presentes Monsenhor Ribeiro de Magalhães, franciscano e Prefeito Apostólico, Monsenhor Próspero Dodds, Prefeito Apostólico de Ziguinchor, autoridades civis e militares, missionários e povo. A 8 foi completada a sagração, na presença do governador Raimundo Serrão. “As ruas apareceram à noite ricamente iluminadas, foi queimado vistoso fogo de artifício e potentes holofotes faziam realçar, no negrume da noite calma, a brancura da fachada do novo templo”. No dia 11 teve lugar uma luzida sessão solene comemorativa da celebração.

(continua)

A velha Igreja de Amura
A nova Igreja de Bissau
Assistem à Sagração os Revmos. Srs. Prefeitos Apostólicos da Guiné e de Ziguinchor
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23566: Notas de leitura (1482): Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É evidente que me senti atraído por este número da revista dirigida por Adriano Nogueira, o que João Tendeiro escreveu sobre a Guiné é relevante, ele procede a um esforço Hercúlio para sinalizar uma literatura escrita por colonos brancos e cabo-verdianos. O livro que maior circulação tinha, durante gerações, era a "Mariasinha em África", de Fernanda de Castro, recomposto de edição em edição, até se tornar politicamente correto, deixando o autóctone ser tratado como um bom selvagem. A figura principal deste período terá sido Fausto Duarte. Mas o que fundamentalmente me atraiu nesta revista, e não escondo a minha grande surpresa, foi encontrar uma referência minuciosa ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne entre 19 e 22 de setembro de 1956, onde esteve seguramente Mário Pinto de Andrade e ainda maior surpresa encontrar na íntegra a mensagem de Sékou Touré ao congresso seguinte que se realizou em Roma, uma arma assentada ao colonialismo português. Como foi possível publicar este libelo acusatório numa revista do regime, não deixa de nos assombrar. Por tal razão, em próxima oportunidade, iremos referir o que Sékou Touré mandou na sua mensagem, certamente saída do punho de um intelectual do seu círculo privado.

Um abraço do
Mário



Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Estudos Ultramarinos era a publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tinha como diretor Adriano Moreira. No seu n.º 3, de 1959, publica-se um artigo de João Tendeiro intitulado “Aspetos Marginais da Literatura na Guiné Portuguesa”. Recorde-se que Leopoldo Amado é autor de um excelente trabalho sobre a literatura do período colonial na Guiné (https://vdocuments.site/literatura-colonial-guineense.html).

O quem nos sugere João Tendeiro? Maior clareza não pode haver: “A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos. É o caso dos romances e contos de Fausto Duarte e de vários contos esporádicos de Alexandre Barbosa, F. Rodrigues Barragão e outros, publicados no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa". Mário Pinto de Andrade, se quis inserir, na sua "Antologia da Poesia Negra", uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano, Terêncio Casimiro Anahory Silva”. Segundo o censo de 1950, frente à Guiné Portuguesa, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e escrito por 1153. João Tendeiro procura explicações edulcoradas para justificar este buraco negro, como numa colónia portuguesa não havia literatura portuguesa escrita por autóctones: “Um dos fatores primordiais da ausência de uma expressão escrita nos meios nativos consiste nas possibilidades reduzidas de que estes dispõem para alcançar um nível intelectual compatível com a sua realização, segundo os padrões universais da arte literária. António Carreira procede a uma outra apreciação, dizendo que as comunidades africanas possuem na vertente da educação uma estrutura muito sua, todo o fio da educação utiliza a transmissão por via oral”. Os europeus, escreve ele, ao contatar intensamente com estas comunidades com o objetivo de as orientar, educar e instruir, têm de enfrentar os inevitáveis problemas inerentes ao choque de culturas diferentes. "A grande massa nativa continua ainda a reger-se pelo regime jurídico aplicável à situação legal de indígena”. Também se faz o reconhecimento de que o islamismo se fazia acompanhar da difusão da escrita árabe. Viriato Tadeu, no volume "Contos do Caramô", bem como os contos publicados por António Carreira, Amadeu Nogueira, A. Cunha Taborda e A. Gomes Pereira no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa" fazem-se ressaltar a literatura oral, os provérbios e as poesias declamadas de diferentes etnias guineenses.

Vê-se que João Tendeiro leu atentamente todos os números publicados do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. E dá o crioulo como língua veicular pouco suscetível de atrair os guineenses para usá-la literariamente, fazendo o seguinte comentário: “O crioulo enferma de todas as caraterísticas das linguagens faladas e sem grafia independente. Quer dizer: quando transposto para a escrita fica subordinado ao idioma escrito da região. Não existe uma correspondência entre o crioulo e a ortografia portuguesa”. E vai mais longe: “Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, sejam os das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português”. E contextualiza o uso do crioulo pelas camadas civilizadas e assimiladas: “Na Guiné, com exceção de alguns núcleos de origem, ascendência ou influência cabo-verdiana, localizados particularmente em Cacheu, Bolama, Bissau e Geba, o crioulo desempenha apenas o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos”. E procede a uma sentença quanto aos limites do crioulo: “Do ponto de vista da escrita, é tão estéril como o são as línguas nativas sem representação figurativa dos fonemas”.

E traça comparações com Cabo Verde:
“Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné reveste apenas o aspeto secundário de língua aprendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante ao dos idiomas utilizados nas relações internacionais entre os povos civilizados”. E o seu acervo de considerações dirige-se a questões relacionadas com a pacificação de Teixeira Pinto: “De todos os povos nativos, a tribo Papel foi a que durante mais tempo se opôs à preponderância dos brancos na Guiné. Os Papéis conseguiram durante anos e anos manter em cheque as forças empenhadas em subjugá-los. Porém, em 1915, as colunas comandadas por Teixeira Pinto irromperam pelas regiões de Safim e do Biombo e impuseram-lhes uma derrota decisiva. A queda, após esta derrota, pode dizer-se que foi vertical. A tribo altiva de outrora deu lugar a uma gente fraca e sem vontade”.

Mudando de agulha, João Tendeiro volta-se para a educação. “Nos termos do Acordo Missionário e do Estatuto Missionário, o ensino dos indígenas é feito na Guiné pelas missões católicas, em escolas de ensino primário rudimentar, cabendo ao Estado a educação dos elementos civilizados. Com a criação, em 1949, do Colégio-Liceu de Bissau, aumentaram as possibilidades de educação dos portugueses residentes na Guiné. Trata-se, no entanto, de uma iniciativa recente e cujos frutos, pelo menos no campo da literatura, ainda não surgiram, se bem que vários estudantes guineenses frequentem universidades na metrópole. Simultaneamente, deu-se mais um passo para a ascensão dos indígenas à cidadania, uma vez que nos termos de legislação de 1946 se consideram como cidadãos portugueses, para todos os efeitos, os indivíduos de raça negra, ou dela descendentes, que possuam, como habilitações literárias mínimas, o 1º ciclo dos liceus ou estudos equivalentes”.

Para além deste trabalho missionário, o autor não deixa de evidenciar a importância do ensino corânico. E cita Teixeira da Mota que refere que em 1951-1952 havia na Guiné 436 escolas corânicas para cerca de 45 escolas das missões católicas, estas com 1044 alunos. Obviamente que o ensino era feito em árabe, com as contingências do uso das línguas locais. Fosse como fosse, os islamizados da Guiné nutriam grande respeito pelos missionários:
“Não têm qualquer hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas, ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência”.

E tudo vai culminar com uma nota picante, a aflorar o mito imperial:
“O problema do ensino dos nativos apresenta-se na Guiné Portuguesa revestido de duas tendências antagónicas. Numa, que representa o ponto de vista tradicionalista fundamentado na noção de superioridade europeia, as populações nativas devem ser educadas num regime de segregação completa dos civilizados; se se trata de mestiços, instáveis por complexo constitucional, na sua recente interfusão de sangues díspares – em que um transmite as hereditárias aquisições multiseculares dos brancos e o outro o primitivo intonso e rude dos negros; se se trata desses mesmos negros, de índole comunitária, estrutura mental pré-lógica, vida imemorial estagnada ou em regresso, marcada por signos e estigmas de diversas estirpes, divergentes da do civilizado branco. A segunda, encaradas pelos defensores do primeiro ponto de vista como própria de idealistas sem o sentido das diferenças psicofisiológicas e sociais entre pretos, mestiços e brancos, proclama um programa em bases semelhantes para o europeu e para o nativo, a quem o ensino rudimentar e elementar colocou em condições de frequentar as mesmas escolas que os brancos”.

Seriam estas as duas tendências. Mas Sarmento Rodrigues impôs a língua portuguesa para todos, sem discriminação.

Ficamos a saber que não havia literatura portuguesa escrita por guineenses e que o ensino dera um verdadeiro salto na segunda metade da década de 1940, irá gradualmente crescer o número daquele que irão falar fluentemente português. E como se vê hoje, os escritores da Guiné-Bissau exprimem-se sem rebuço na língua portuguesa e no seu crioulo.


Mariasinha em África, ilustração de Sarah Affonso
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde