Queridos amigos,
Trata-se de uma exposição permanente a ver no Centro Cultural de Belém, mas apresentada como exposição permanente em permanente transformação, fala-se no Atlântico, sobretudo a partir dos meados do século XX, verdadeiramente um espaço de trânsitos e exílios. Um dos aspetos marcantes da exposição é pôr o confronto entre os artistas portugueses e os demais, gera no visitante uma tremenda inquietação, parece que foi deliberado dar saltos cronológicos, obrigar o visitante a ir atrás , à procura de amarras nesta deriva que mete pintura, escultura, desenho, instalação e artes gráficas, é um percurso em ciclorama, para não nos esquecermos que na arte estão plasmadas as transformações sociais, artísticas e tecnológicas. Exposição a não perder, prometo que não haverá deceções com a altíssima qualidade da apresentação destas belíssimas obras de arte.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (213):
Uma deriva no Atlântico, a flamejante, trepidante, contemporaneidade na Arte
Mário Beja Santos
Mais do que um espetáculo para os sentidos e um desfrute estético, a exposição Uma Deriva Atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo, tendo como curadora Núria Enguita, diretora artística do Museu da Arte Contemporânea e Centro de Arquitetura do Centro Cultural de Belém implicam o visitante a procurar permanentemente as ligações num tremendo caleidoscópico de obras de arte, apercebendo-se rapidamente que a cronologia dos movimentos artísticos de toda esta plástica é coisa inexistente. Aliás, como se pode ler na abertura da exposição, temos aqui um arco temporal de 1909 a 1977, há como que uma provocação ou um desafio, a exposição tende a desarrumar ideias feitas, pois dissocia as referências e as formas artísticas: “Segue uma cronologia inconstante, mostrando ligações e confrontos entre as margens europeia e americana para indicar possíveis relações e derivas por vezes esquecidas ou ausentes da história de arte. Enquanto remontagem da coleção permanente, Uma deriva atlântica apresenta uma seleção de artistas portugueses e internacionais, entre pintura, escultura, desenho, instalação e artes gráficas, assim se exprime a arte na história do mundo e se mostra a modernidade enquanto eclosão múltipla de importantes transformações sociais, artísticas e tecnológicas".
Há momentos em que nos sentimos numa sala de espelhos, entre Picasso e Amadeo de Souza-Cardoso, Lourdes Castro e Marcel Duchamp, Lucio Fontana e Ana Hatherly. Num total de 170 artistas, é um percurso que começa antes da Primeira Guerra Mundial e se estende até à descolonização da década de 1970. A exposição só foi possível com o concurso de várias coleções em depósito e com obras emprestadas. É, no mínimo, uma apreciação original entre o que de mais incendiário se produziu na Europa e na América do Norte, ficamos perplexos com esta viagem das ideias estéticas, os trânsitos e os exílios, as novas afinidades geopolíticas, tudo como tendo berçário aquela Paris de cubistas, expressionistas, futuristas. Importa não esquecer que Amadeo de Souza-Cardoso, antes da guerra, expôs em Chicago, conjuntamente com alguns dos nomes mais sonantes das artes plásticas do seu tempo. Sugiro ao leitor que não perca esta exposição.
Não há que enganar, é um mobile de Alexander Calder, conheci esta obra de arte quando a Coleção Berardo assentou arraiais no antigo Casino de Sintra, a partir daí não o perdi de vista.
Sem título (Ponte), de Amadeo Souza-Cardoso, c. 1914. Observo a José-Augusto França que o melhor do génio do pinto de Manhufe se situa entre 1916 e 1917, mas olhando esta ponte persente-se o gérmen cubista, que ele soube tratar de uma forma muito singular.
Composição (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento), por Piet Mondrian, 1923. Temos poucos quadros deste gigante da pintura mundial, quando procuro deliciar-me com a trajetória de Picasso, Matisse e Mondrian, o meu coração balança, é fascinante tudo o que este holandês produziu, cedo remexeu nas formas e abandonou o figurativismo, viveu entusiasmado com a associação entre a arte e a arquitetura e nos últimos anos da sua vida injetou na telas estes quadrados de código labiríntico.
Conchas flores, por Max Ernst, 1929. Sim, é um dos génios do surrealismo, mas pôde gabar-se de tudo ter procurado experimentar, desde a fulgência das cores até ao imprevisto das formas, obriga-nos a interrogar onde está a concha ou se esta não passa de um botão de flor naquele enigmático fundo de horizonte.
O poeta diverte-se, ou o poeta e a sua musa, por Mário Botas, 1978. Ainda bem que os organizadores da exposição se lembraram desta figura invulgar do surrealismo português, olho para estas figuras e só vejo tormento, Botas era médico e não tinha ilusões da doença devastadora que o liquidou. Para esta inolvidável exposição escolhi o Botas e esta sua forma de olhar a vida e do destino que lhe coube.
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Nota do editor
Último post da série de 13 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27013: Os nossos seres, saberes e lazeres (689): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (212): Um dia na rota da cereja, Fundão e Castelo Novo (Mário Beja Santos)