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domingo, 25 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)


Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo).  Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.

Dos 81 alferes mortos no CTIG, entre 1963 e 1974, houve 1 por doença, 24 por  acidente e os restantes 56 em combate (*). No período em apreço (1963/67), dos 20 alferes mortos em combate, 4 pertenciam a companhias de guarnição normal: dois  da 4ª CCAÇ, um  da 3ª CCAÇ e outro da 1ª CCAÇ (que em 1967 irão dar origem à CCAÇ 6, CCAÇ 5 e CCAÇ 3, respetivamente).

Infografia: Jorge Araújo (2018) 






Guiné > Região de Tombali >  CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > 22 de fevereiro de 1967 > A caminho Catió... Regresso, em LDM,  da Op Sobreiro, em que perdeu a vida o alf mil Henriques, da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1966/67). As fotos parece ter sido tiradas ainda no rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã (este mais largo, entre 200 e 600 metros, pelas nossas contas grosseiras, de acordo com a carta de Bedanda, 1956, escala 1/50 mil).

Fotos do álbum de Benito Neves, ex-fur mil, da CCAV 1484.

Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta morte está dramaticamemte narrada  no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref),  "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Os familiares, vizinhos, colegas de escola, conterrâneos, amigos e antigos camaradas do Américo Luís Santos Henriques, natural de Valada, Seiça, Ourém, bem como os nossos leitores, têm direito a conhecer esta versão, que consta de uma fonte de difícil acesso: o livro está fora do mercado livreiro, foi impresso na Alemanha, e nem sequer consta na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos. O que é uma pena: é um documento de interesse para a historiografia da guerra colonial. 

O nosso infortunado camarada só está identificado pelo apelido Henriques. Nas memórias do cap Cristo (o único nome fictício que aparece no livvro, e que é um "alter ego" do cmdt da 4.ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967), o Henriques  veio substituir o Ribeiro, até então o melhor operacional dos alferes da companhia, juntamente com o Carvalho, todos eles, tal como os restantes graduados, de origem metropolitana e de rendição individual. (Descobrimos que o Ribeiro é o José Augusto Nogueira Ribeiro, nascido em Fafe, em 1940, e já falecido, em 2017: seguiu a carreira militar, chegando ao posto de cor inf quando se reformou; foi condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné e Moçambique; no CTIG, acabou a sua comissão na 4ª CCAÇ em 15 de maio de 1966, sendo então rendido pelo Henriques).

Antes da descrição da operação em que o Henriques é morto, por um tiro isolado (seguido de forte tiroteio em emboscada do IN nas proximidades da nascente do rio Ungauriuol), vale a pena reproduzir também um pequeno excerto da sua chegada em Bedanda, em data que não podemos precisar (presumivelmente em meados de 1966, já que  foi render o alf mil Ribeiro), e em que é praxado...


Excertos de "Morto em combate" 
(pp. 349-353)


Antecedentes: 

(...) Um dia chegou o alferes Henriques, o substituto do alferes Ribeiro. Bom moço mas
ainda muito cru
. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:

─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.

(...) Assim, nessa noite, o alferes Henriques passou todo o tempo num posto de vigia,
em cima duma árvore, com uma granada de mão sem cavilha apertada na sua mão. Teria de a lançar ao mínimo sinal de perigo, para acordar o capitão e os outros alferes.

Ele não sabia, mas a granada estava inerte pois tinha-lhe sido retirado o detonador e a
carga explosiva. Esta era uma das brincadeiras que faziam aos maçaricos que chegavam à companhia. O capitão, embora conivente, não se metia no assunto. 

Ao outro dia o Henriques estava contente porque se tinha mantido acordado toda a noite. Ele, que era um dorminhoco, não teve sono. Teve muito medo, segundo confessou, mas
aguentou. No dia seguinte contaram-lhe que tudo não tinha passado duma brincadeira.
Riu-se e achou piada. Actos destes faziam parte integrante da praxe no quartel. (pp. 184/185)

O confronto fatal

(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.

─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol 
 [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?

─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.

─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Cat
ió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.

(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.

─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol 
[afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?

─ Percebi, nosso capitão.

─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.

A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.

─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.

─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.

─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.

(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen 
 [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho   [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.

À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.

─ Como te sentes, Henriques?

─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.

─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.

─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.

─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?

─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.

─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.

Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.

Passado algum tempo o Henriques falou.

─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.

─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.

Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.

─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.

Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.

─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.

Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.

Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.

─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga  ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.

Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.

─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.

O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.

─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.

─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.

─ Aqui Cristo, terminado para todos.

─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.

─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.

Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.

O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:

─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.

─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.

─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.

─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.

─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.

O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.

─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.

─ Eu vou fazer isso,  embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.

─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa,  e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.

─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.

Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.

─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.

─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.

Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.

─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.

Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:

─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.

O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.

Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.

Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.

O comandante do sector disse ao capitão.

─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.

─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.

─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.

─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.

─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.

─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.

Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.

O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.

─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.

─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)

Emoção na hora da despedida, em julho de 1967:

Quando chegar a hora da despedida,  em meados de julho de 1967, o capitão Cristo, cmdt da 4.ª CCAC,  irá recordar com muita saudade, o Henriques (a par do Ribeiro, Cordeiro, Carvalho e Oliveira, os seus queridos alferes):

(...) O capitão estava emocionado porque não contava com este almoço de despedida. Quando falou no alferes Henriques, um dos mortos em combate, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, pois a morte do Henriques estava muito viva no seu coração.(...) (pág. 373)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos,  itálicos, parênteses retos e subtítulos: L.G.] (Com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda e dos rios Cumbijã, Ungauriuol (afluente do Cumbijã) e Lama (afluente do Ungauriuol)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


2. Sinopse da Op Sobreiro, 21fev1967

Realizada para localizar e destruir as instalações inimigas referenciadas na região compreendida entre o rio Lama e o rio Ungauriuol, sector S3 (Bedanda), efectuando uma batida que foi executada por forças da CCav 1484,  4ª CCaç e Pel Can s/r 1154. 

Foram localizados 2 núcleos de casas que constituíam o objectivo, que foi destruído. O lN sofreu 3 mortos, além de outras baixas prováveis. As NT sofreram 2 mortos (o alf mil Américo Luís Santos  Henriques, natural de Ourém,  e o sold Sambel Baldé, natural de Bafatá, ambos da 4ª CCAÇ),   2 feridos graves e 2 ligeiros.

Fonte: Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 34. (Com a devida vénia...).

PS - No livro supracotado, há um erro sistemático em relação ao nome do rio, que não é Ungarinol, mas sim Ungauriuol (carta de Bedanda, escala 1/50 mil). Erro que vamos corrigir nos postes anteriores em que há referências a este rio, afluente do Cumbijã.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)