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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27503: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (7): o ferimento do 2º srgt pqdt Henrique Galvão da Silva





Angola > Luanda > Junho de 1971 > 3º Pel / 1ª CCP / BCP 21 (1970/72) > Os bravos do pelotão


O Jaime é o promeira da fila de pé, a contar da direita para a esquerda. 

Em  18 de fevereiro de 1970,  embarcou no eroporto de Figo Maduro num avião Dakota da Força Aérea rumo a Angola para se apresentar no BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas) a fim de iniciar uma Comissão de Serviço que só terminaria em 1 de julho de 1972.

"(...) Nessa madrugada lisboeta embarcaram três alferes milicianos (eu, Rosinha e Vítor Marques) e um tenente da Academia Militar (Sousa).

"Na madrugada do dia 19 tínhamos à nossa espera no aeroporto de Luanda o Comandante do BCP 21, tenente coronel Rafael Durão que, logo ali, após as boas vindas, não deixou escapar uns reparos quanto ao atavio da farda n.º 1 que vestíamos e de indicar as Companhias onde seríamos integrados. De seguida perguntou quem era o alferes  Silva e, após me identificar disse: «Você foi destacado para a 1.ª CCP (1.ª Companhia do BCP 21) e prepare-se para embarcar para o Leste no próximo avião onde, em Ninda, está destacada a sua companhia'-

"Um avião Nord Atlas transportu-me de Luanda à cidade de Henrique Carvalho e daqui um avião DO aterrou, finalmente, na pista de areia do destacamento de Ninda. Foi-me atribuído o comando do 3.º Pelotão, rendendo o tenente Grão, onde participai na minha primeira operação de combate, denominada  “ Operação Alfange” e onde fomos transportados nos helicópteros das Forças Armadas da África do Sul.

"Foram 29 meses de muitas operações de combate no Norte e no Leste, de algumas lutas renhidas frente a frente com o IN  e , em cujas refregas, abatemos alguns deles, tendo também eles conseguido roubar a perna ao Soldado Santos e a vida ao soldado Ramos!

"Foram também bons momentos de amizade cimentados na provação das operações de combate e no convívio nas horas livres no Batalhão ou nos 'botecos' espalhados pela cidade de Luanda!"

Fonte: Jaime Bonifácio da Silva > Página pessoal do Facebook > 18 de fevereiro de 2018 (com a devida vénia...)  (Foto editada por LG)


Foto à direita: Jaime Bonifácio Marques da Silva, autor do livro "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), 235 pp.

Jaime Silva (ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, nº 643, desde 31/1/2014, tendo já cerca de 130 de referências, no nosso blogue; reside na Lourinhã, é professor de educação física, reformado, foi autarcaa em Fafe, com o pelouro de "Desporto e Cultura": residiu lá durante cerca de 4 décadas): 



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (7) > o ferimento do 2º srgt pqdt Henrique Galvão da Silva


por Jaime Silva



Eu não esqueci quando o 2.º sargento paraquedista Henrique Galvão da Silva foi ferido durante a Operação “Bútio Encarnado”, realizada entre 6 a 10 de agosto 1970.

O acidente ocorreu na região da serra Vamba, Norte de Angola, depois de aquele ter tropeçado numa armadilha. 

O acidente deu-se já ao final da tarde, e não houve hipótese de ser evacuado por helicóptero. O seu corpo ficou crivado com alguns estilhaços de granada. Por isso, teve que ser transportado numa maca improvisada feita com troncos de árvores.

Conseguiu sobreviver, passando a noite com morfina e com o apoio dos cobertores de todos os elementos do grupo de combate. No dia seguinte, ainda se tentou o resgate e evacuação através do guincho do Helicóptero, mas, dada a altura das árvores e a densidade da mata, não foi possível fazê-lo.

Restou-nos caminhar, até ao meio da tarde, em direção a uma fazenda de exploração de café e madeira, cujas coordenadas me foram indicadas, via rádio, pelo Comandante de Companhia.

Acontece que, a poucos quilómetros da chegada a essa fazenda, onde iríamos ser recuperados, deparámo-nos com uma clareira de árvores abatidas por colonos portugueses.

Este facto, em local em que a tropa sofria emboscadas dos guerrilheiros do MPLA ou FNLA e, ao mesmo tempo, civis madeireiros conseguiam aí chegar e derrubar árvores e transportar a madeira sem problemas, demonstra “o que se dizia por lá”, acerca da eventual colaboração entre colonos e guerrilheiros dos Movimentos de Libertação.


Fonte: excerto de Jaime Bonifácio Marques da Silva,  "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 87-88.
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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24749: Ataques ou flagelações com foguetões 122 mm: testemunhos (3): A guerra vista do CAOP1 (Canchungo/Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74) (António Graça de Abreu)


Lisboa > Museu Militar > O foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (ou ainda "jacto do povo", na gíria do PAIGC). Capturada em Cufar, em 1/1/1973.

Era uma arma de artilharia, de bater zona e não de tiro de precisão, com alcance máximo de 11.700 metros para 40º de elevação. Segundo um relatório do PAIGC a distância maior a que se efectuou tiro, teria sido contra Bolama, em 4 de Novembro de 1969, a 9.800 metros. 

O foguete dispunha de um perno (assinalado a vermelho) que, percorrendo o entalhe em espiral existente no tubo, imprimia uma rotação de baixa velocidade a fim de estabilizar a vôo. As alhetas só se abriam depois do foguete sair do tubo.  

Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2007). 
Todos os direitos reservados. [Edição e kegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abreu, António Graça de - "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007, pp. 104-105. (Capa do livro, reproduzida com a devida vénia).


BI militar, emitido em Teixeira Pinto, 
6 de agosto de 1972.



1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu publica-se uma série de excertos do seu Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp), com o descritor "foguetões 122 mm" (*),

Selecionámos as passagens em que há referências a ataques ou flagelações a aquartelamentos e destacamentos com foguetões 122 mm, enquanto ele esteve no CAOP1 (Canchungo ou Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Tudo somado, ao fim de quase dois anos de comissão foram muitas centenas de rebentamentos, vistos ou ouvidos,  com especial especial destaque para os que caíram no sul, na região de Tombali... 

O António  esteve em Cufar, no CAOP1, de junho de 1973 a abril de 1974.  Mais uma vez, com a devida vénia ao nosso camarada que nos autorizou a utilização do seu trabalho...

Tudo indica que junto à fronteira o PAIGC, no final da guerra (1973/74 (e contra aquartelamentos como Bedanda e Gadamael),  já utilizava viaturas com o sistema de  lançamento múltiplo (ou multitubo) de foguetes 122 mm: nas flagelações ou ataques, já não se limitavam a lançar dois ou três foguetes, mas dezenas, e durante uma ou duas horas. A CECA faz referência ao sistema de lançamento múltiplo de foguetes BX-10, mas não lhe chama Grad ou BM-21 Grad. (Há uma grande confusão com as várias versões deste sistema e as suas siglas...)
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Canchungo, 7 de Julho de 1972

(...) Recebi carta da minha mãe. Diz-me que foi ao Porto e que, por amor de mim, colocou um grande ramo de flores no altar de Santo Ildefonso, na igreja da praça da Batalha. Que o santo me proteja!

Mas não me parece viver em situação de grande perigo. Tenho muitos privilégios, não sou propriamente um operacional, não saio para o mato de G 3 em punho em busca do IN. Há apenas o problema dos bombardeamentos, flagelações ou de uma emboscada na estrada.

Quase há um ano que Canchungo não é atacada pelo PAIGC. A última vez, a 3 de Agosto de 1971, foi com foguetões 122 disparados a onze quilómetros de distância. 

Durante quatro minutos sobrevoaram o quartel, sibilando no ar e foram rebentar lá longe, na bolanha, nos arrozais a sul. Foi só susto, não houve mortos nem feridos, apenas um capitão, ao fugir, caiu numa vala e partiu uma perna.
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(...) Canchungo, 22 de Agosto de 1972

Existe um CAOP 2. Fica em Nova Lamego, terra dos homens de etnia fula, lá no leste, não muito longe da fronteira. É uma zona menos pacífica do que a nossa. Foram agora flagelados com foguetões 122

Não sei ainda o que são, nem o estrago que provocam. A semana passada, nos arredores de Nova Lamego, uma mina anti-carro fez ir pelos ares um camião Berliet, tendo provocado 19 feridos, alguns graves. Nova Lamego nem é do pior. 

Aqui a nordeste, o aquartelamento de Olossato foi bombardeado a semana passada durante hora e meia. Nós, em Canchungo, fomos atacados (?) durante um minuto. O ataque em Olossato veio de todas as direcções com um potencial de fogo de arrepiar. No entanto, não se deve abrir muito a boca nesta guerra, as nossas tropas só tiveram um ferido grave e três feridos ligeiros. Os abrigos e as valas para alguma coisa servem.
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(...) Canchungo, 27 de Janeiro de 1973

Mansoa é o nosso destino. Entre as três possibilidades, Bula, Bissorã e Mansoa, não sei qual é a melhor, é dos tais casos em que “venha o diabo e escolha.”

Pouco sei sobre Mansoa, o meu baluarte nos próximos catorze meses. Mas é a maior das três que nomeei atrás e tem uma vantagem, a sua proximidade de Bissau - uns 60 quilómetros, -   e o facto de existir uma estrada asfaltada onde se circula normalmente sem escolta. Para oeste, entre Mansoa e Bissau, o IN não actua. No entanto, a vila é menos pacífica do que Teixeira Pinto. Para norte, leste e sul já os guerrilheiros se movimentam entre a malha dos aquartelamentos portugueses e encontram-se bases IN não muito distantes. Não vou falar mais da sagrada e intocável Caboiana, agora vai ser o Morés, o Queré, o Choquemone, o Oio.

Mansoa tem a grande desvantagem de “embrulhar” em média uma vez por mês. Tanto quanto sei, fazem pontaria para o quartel e disparam os foguetões 122, os canhões sem recuo, a uma distância que varia entre os quatro e os dez quilómetros. 

Eles são maus artilheiros, não costumam acertar na tropa e pelo que tenho lido nos relatórios diários que historiam esta guerra, quem normalmente paga as favas nas flagelações a Mansoa é a população negra das tabancas. A tropa tem abrigos, os disparos IN acertam com mais facilidade nas casas da vila do que no quartel.
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(...) Mansoa, 12 de Março de 1973

Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.

Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.

Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. 

Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece.
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(...)  Mansoa, 19 de Março de 1973

Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPG, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas.

Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel.
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(...) Mansoa, 6 de Maio de 1973

Os militares do quartel de Bula, ainda na zona se acção do CAOP 1, estão a passar por dificuldades. A vila fica mais perto de Bissau do que de Mansoa, a norte, e é um lugar estrategicamente importante. Um grupo grande de guerrilheiros anda por lá a fazer estragos. Numa emboscada próxima da povoação, as NT tiveram sete mortos, quatro soldados brancos e três negros e bem podem agradecer a Deus. Eram só trinta e cinco soldados portugueses contra duzentos guerrilheiros, não foram todos dizimados por acaso.

Em seguida, Bula foi atacada com foguetões, sem consequências. O batalhão da terra é constituído por “periquitos” acabados de chegar de Portugal, inexperientes e medrosos. Os guerrilheiros sabem que eles são novos na Guiné e vá de atacar, atacar, atacar.

O meu coronel [paraquedista, Rafael Durão, comandante do CAOP1] foi hoje de urgência para Bula, às cinco da manhã, orientar as operações de contra-guerrilha, dar força aos militares de lá. Seguiu sozinho de jipe, por companhia apenas a sua espingarda Kalashnikov, em sessenta quilómetros de estrada. 

Se o itinerário não é muito perigoso porque atravessa zonas controladas pelas NT, não posso deixar de reconhecer a coragem deste homem, já com mais de dois anos de comissão na Guiné. Tenho tido os meus problemas com ele, sobretudo devido à minha incompetência como pequeno oficial do exército, mas reconheço-lhe uma enorme valentia e excepcionais qualidades de comando.

Ao meio-dia e meia hora, estava de regresso a Mansoa, de novo sozinho no jipe, depois das reuniões com os oficiais de Bula. Voltou célere porque para hoje estava marcado um almoço de despedida em sua honra, oferecido pelos oficiais e sargentos do CAOP1. Não me admira que amanhã parta outra vez para Bula, ou para qualquer outro lugar da Guiné onde se justifique a sua presença, o seu comando de operações. (...)
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Sistema ou rampa de lançamento monotubo de foguetões 122 mm. Arma, de origem soviética, capturada  em 1 de janeiro de 1973 em operação a partir de Cufar.  Tinha sido usada no ataque a Cufar a 23 dezembro de 1972, atingiu a pista de aviação, sem consequèncias de maior. Cortesia da página da CCAÇ 4740  (Cufar, 1972/74 > Fotografias de sempre. 


(...) Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações.

Ponto Um: Estou no sul da Guiné, rios, canais, bolanhas, florestas. Até Dezembro de 1972, isto era quase tudo território do PAIGC. Havia os aquartelamentos de Catió, Cufar e Bedanda bem defendidos onde a tropa portuguesa não punha muito o nariz de fora. 

Em Abril de 1972 estiveram por aqui observadores do Comité de Descolonização da ONU para conhecer as realidades das zonas libertadas pelos guerrilheiros. Vieram de Conacry, entraram pela zona de Guileje, chegaram até perto de Cufar, sempre a pé, abrigados pelas florestas. (...)

Há três meses, em Março [de 1973], Cufar foi atacada com uma dezena de foguetões 122. Só um caiu dentro do nosso arame farpado e, por incrível que pareça, bateu numa árvore, tombou para uma vala onde estavam quatro soldados e não rebentou. Só vendo se acredita, e eu vi. Os soldados penduraram na árvore o resto da fuselagem do foguetão, como um autêntico troféu de guerra. O local fica a trezentos metros da minha secretaria e esta tarde voltei lá para confirmar o que os meus olhos tinham visto, claramente visto. (...) 
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Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael.

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(...) Cufar, 20 de Julho de 1973

 A guerra acalmou, sossegou na nossa zona. Anda tudo admirado, mas isto tem uma explicação, é por causa da época das chuvas que conhece agora o seu auge. Chove todos os dias, as bolanhas, o mato enchem-se de água, é difícil caminhar quilómetros e quilómetros por trilhos na floresta, carregando às costas foguetões, morteiros, granadas, etc., para flagelar um aquartelamento. Num ataque em forma, o terreno precisa de estar firme para um bom apoio e eficiência das armas mais pesadas. No período das chuvas, a terra está mole, húmida, empapada em água. As saídas das granadas de morteiro, por exemplo, fazem com que o tubo de morteiro recue e se enterre no solo. Com as chuvas, os guerrilheiros aproveitam a menor actividade das NT para se reabastecerem, construir tabancas, trabalhar nos arrozais.

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(...) Cufar, 26 de Setembro de 1973


 O PAIGC declarou ontem  a independência. Por aqui nada mudou a não ser que agora, oficialmente, somos nós portugueses quem está a ocupar a pátria deles.

Temos um novo tenente-coronel no CAOP 1, com apenas cinco dias de Guiné. Andou pelo Estado-Maior e fez comissões em Angola e Moçambique, sempre nas delícias do ar condicionado. Está a estranhar as realidades deste abençoado lugar. Ontem até chamou Cafur a Cufar! 

No dia em que chegou, Bedanda esteve aí a “embrulhar” durante uma hora, com foguetões 122, mais de trinta, sem consequências. Meio assustado, o tenente-coronel perguntou-me: “Isto é sempre assim?” Eu respondi-lhe: “Não, meu tenente-coronel, isto costuma ser muito pior!”
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(...) Cufar, 8 de Novembro de 1973

 Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.

De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?

As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo.

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(...) Cufar, 11 de Novembro de 1973

 Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.

Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água.

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Guiné >Região de Tombali > Cufar> CAOP 1 > O António Graça de Abreu, de camuflado, à esquerda, no aeródromo de Cufar, com o alf mil Miguel Champalimaud.
 
Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comp'lementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


(...) Cufar, 14 de Novembro de 1973

Vieram os “jactos do povo”, como os guerrilheiros lhes chamam. Gostei, desta vez não apontaram aos vizinhos do lado, era connosco e, como costuma acontecer, tivemos sorte. Foram disparados oito foguetões 122 e só rebentaram três, a mais de quinhentos metros de Cufar.

Eram oito da noite, eu estava no gabinete do capitão a jogar xadrez com o Eiriz, o alferes das transmissões, quando ouvimos o silvo de um foguetão e um primeiro rebentamento. Saltámos rapidamente para a vala situada ao lado do edifício onde já havia gente abrigada, caímos uns por cima dos outros e ficámos quietinhos, à espera. Uns dez minutos depois, porque não havia mais foguetões, saímos da vala, não muito assustados. Foi um ataque pequeno, daqueles que só servem para criar insegurança e medo.

O médico, o Bastos, ficou por baixo de uma molhada de alferes e saiu da vala zangadíssimo, agastado com o Miguel Champalimaud (sobrinho do António Champalimaud, o “tio Patinhas” português). O rapaz caíra-lhe em cima e, com os foguetões a rebentar, o Miguel peidara-se, cagara-se como um rei por cima da cabeça do Bastos. Uma cena de antologia digna do Chaplin, do “Charlot nas Trincheiras da Guiné”. (...)

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(...) Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.


Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair. (...)
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(...) Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos.

Eram nove e um quarto da noite, eu estava na varanda do meu quarto a ouvir a BBC e senti o silvo, os rebentamentos próximos. Logo de seguida soaram as rajadas das nossas metralhadoras. Os foguetões IN caíram todos fora do perímetro de Cufar, felizmente. É o costume, são disparados de muito longe, a onze quilómetros de distância, os guerrilheiros têm má pontaria, os foguetões são difíceis de orientar, ou desorientam-se no ar, e por isso não costumam acertar. Mas assustam, assustam sempre.

Vim ter com os meus soldados. Havia uma certa excitação, ainda para cúmulo choveu esta tarde. As valas estavam cheias de água e lama, e uma vez mais havia soldados que saíam das valas cobertos de lama, borrados de medo.

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(...) Cufar, 9 de Dezembro de 1973

 Esta noite fui obrigado a ir dormir a cama alheia. Ao chegar ao quarto, deparei com uma majestosa invasão de formigas gigantes baga-baga, aquelas que ostentam umas tenazes afiadas e mordem como santolas. Haviam entrado por duas frinchas na parede grossa e começavam a fabricar o seu formigueiro exactamente sob o vão do colchão da minha cama. Não as contei, mas seriam cinco a dez mil formigas laboriosas e trabalhadoras que tinham tido o bom gosto de habitar o espaço onde durmo. Era tarde, quase meia-noite, estivera a jogar xadrez, limpei cinco alferes, começo a jogar bem. Depois, não havia insecticida à mão e, à paulada, não era fácil correr com aqueles milhares de monstros pequeninos. Por isso, peguei nos meus lençóis, na almofada e resolvi ir pedir asilo ao meu amigo alferes Neto, da 4740, que habita um quarto grande, com duas camas.

Às cinco menos dez da manhã, fomos acordados pelos pum, catrapum, pum, pum. Era Cobumba, os nossos vizinhos mais próximos. Mais um ataque filho da puta! Estava tudo a dormir e durante meia hora a cadência de fogo era impressionante. Se fosse connosco, lá teria eu de fugir em cuecas para a vala. Cobumba levou o tratamento do costume, foguetões, canhão sem recuo, RPG e morteiros. Também como é habitual, nem uma beliscadura nos duzentos homens que por lá padecem.

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Guiné >Região de Tombali > Cufar> CAOP 1 > O António Graça de Abreu, no aeródromo  de Cufar, em dezembro de 1973, posando junto a um heli, Alouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades dos arame farpado... Dezete meses depois do início da comissão, o António recebia finalmente o tão desejado quanto temido baptismo de fogo. Recorde-se que o António Graça de Abreu foi alf mil, CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74), e trabalhou diretamente com o cor prqt Rafael Durão, seu comandante (e em relação ao qual não esconde a sua admiração pelas suas qualidades como militar).

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comp'lementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


(...) Cufar, 21 de Janeiro de 1974 

Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e… Cufar. 

Eram dez da noite, sozinho no quarto, lia umas “Vidas Mundiais” antigas e ouvia uma cassete com o Concerto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo. Por cima da guitarra e dos violinos espanhóis gravei outra música, outro concerto, uma parte do ataque, rebentamentos, tiros, rajadas, mais rebentamentos, meti na fita a minha reacção onde se nota algum nervosismo e se ouvem demasiados palavrões. Assim:
(…)

Boum, boum, pum, catrapum, pum.
-Aí está, um ataque!... Caralho! Um ataque, foda-se!

Tá, tá, tá, tá, tá.
- Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...

Boum, boum…
- Tumba, um foguetão, caralho!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.

- Dá mais Manel! Estamos a levar no coco, estamos a “embrulhar”, caralho!

Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
- Espera aí um bocadinho!

Boum…
- Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
- Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!... Espera aí um bocadinho, João…

Boum, boum…
- Estou-me a vestir, é preciso é calma!

Boum, pum, pum…

- Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.

Boum, boum…
- Estamos a “embrulhar”, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…

Boum, boum…
- Tumba, tumba, tumba!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...

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(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

Regressei [de Bissau,] no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola “Portugal e o Futuro”? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do “Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal?
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(...) Cufar, 28 de Fevereiro de 1974

O nosso 1.º sargento Afonso informa-me que o tal alferes Saldanha nomeado para me render, já está em Bissau mas não virá para Cufar, foi colocado na secretaria do Batalhão de Comandos, no Cumeré, logo ali às portas da capital. Quer isto dizer que já estou substituído na província, o que vai acelerar a minha rendição definitiva. A partir de Bissau, o 1.º Afonso é impecável, interessa-se pela nossa vida, conhece todas as capelinhas de Bissau, trata dos nossos assuntos com extremo cuidado e rigor. É um diamante no CAOP1.

Mais uma história de guerra. D. Cecília Supico Pinto, a “generala Cilinha” do Movimento Nacional Feminino anda de visita à Guiné, a dar coragem e conforto moral aos briosos militares que defendem a integridade do império. 

No seu peregrinar por este sagrado solo pátrio desembarcou segunda-feira passada em Cacine, de helicóptero, às nove da manhã. Às onze o aquartelamento foi atacado com trinta e seis foguetões, uma flagelação que se prolongou por hora e meia. Só se registaram alguns estragos em tabancas, mas dizem-me que a Cilinha mostrou alguma coragem, aguentou-se muito bem, aninhada como toda a gente no fundo de uma vala.
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(...) Cufar, 12 de Março de 1974

Os guerrilheiros continuam a marcar pontos. Caboxanque tem sido massacrada. Ontem, flagelação às quatro e vinte da madrugada. Acordei sobressaltado. Caboxanque fica mesmo aqui em frente, a oito quilómetros em linha recta e, ao ouvirem-se os primeiros rebentamentos, não sabemos se é com os outros ou connosco. Estes nossos vizinhos estão a ser atacados todos os dias.

Bedanda, ontem, também esteve sob o fogo dos foguetões durante duas horas. Tiveram dois feridos, um deles gravíssimo, com um estilhaço na cabeça. Noite, escura desceram o rio até Cufar, depois, a cena habitual, iluminar a pista, esperar pelo Nordatlas, evacuar o rapaz para Bissau.

Não estamos livres, um destes dias de sermos também atacados. Todos pensamos nisso, todos pensamos que da próxima vez pode ser qualquer um de nós a levar com um estilhaço, a ser desfeito por um projéctil qualquer.

Ontem também tivemos um problema grave mas de outra natureza, um enorme incêndio. Se soprasse mais vento ardiam as tabancas todas dos negros. As casas são construídas com estacas e adobe, têm telhados de colmo, não chove desde Dezembro, está tudo ressequido e em três tempos o fogo avançou de tabanca em tabanca. Arderam seis.

Parece que o incêndio começou com o rebentamento de um fogareiro a petróleo. Teria sido fácil controlá-lo se não se tivesse pegado à tabanca do lado onde o pessoal das Fox, as viaturas blindadas, guarda o seu material e tem uma espécie de paiol. Ora com as tabancas a arder e com muitas granadas dentro de uma delas, foi um festival de rebentamentos e estilhaços projectados pelo ar. A maioria da população negra fugiu para longe, mesmo assim houve imensa sorte porque ninguém foi atingido. Mais desgraças para os pobres negros que ficaram sem casa.

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(...) Cufar, 3 de Abril de 1974 

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC.

Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPG, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar. 

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém.

Bedanda é uma povoação grande, a maior do sul da Guiné depois de Catió. Terá uns cinco mil habitantes e ontem já se falava em abandonar o aquartelamento. A população africana saiu da vila, ficando por próximo.

Bedanda levou com mais de sessenta foguetões e centenas e centenas de granadas de RPG, morteiro e canhão sem recuo. Foi medonho, há muita coisa destruída, mas tiveram sorte, contam-se apenas dois feridos, um furriel e um negro que levou um tiro nas costas. A tropa passou mais de doze horas metida nas valas.

Espera-se novo ataque a Bedanda. As NT já foram remuniciadas e há promessa de se enviarem mais militares para defender a terra. Os guerrilheiros também devem ter ido descansar e reabastecer-se.

Todas estas flagelações, apesar de serem destinadas aos vizinhos do lado, deixam marcas em todos nós. São horas, dias, meses a ouvir continuamente o atroar dos canhões da guerra. Eu ando um bocado desconexo, excitado, “apanhado”. Quase não tenho dormido, são as sensações finais, o cansaço, o desamor à mistura com o alvoroço do regresso a casa. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / Negrios e realces a amarelo: LG)
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Nota do editor:

sábado, 9 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972


Guiné > s/l > s/d > Tenente 'comando' graduado Abdulai Queta Jamanca. Cortesia do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (Reproduzido no livro, pág. 229)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xvx) O jogo do rato e do gato: de Cobiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972.


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV:

 O jogo do rato e do gato: da Caboiana a Madina do Boé 
abril de 1972 (pp. 228-232)


Saímos de Bissau em viaturas até ao Bachile, onde estava uma força à nossa espera, uma companhia de europeus[1], milícias e pessoal de artilharia. Era aí a porta de entrada para a mata da Cobiana. Ficámos no Bachile, até à noite chegar. Depois, iniciámos a caminhada.

O responsável pela operação[2] era o tenente Jamanca, que era o comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos, com o indicativo “Jacaré”, e contávamos ter no ar o coronel pára Rafael Durão, o comandante do CAOP1.

Andámos a noite toda, até que de madrugada achámos um caminho, cheio de pegadas. Emboscámo-nos e mantivemo-nos quietos até por volta das 13h00, quando fomos sobrevoados por uma avioneta.

Como de costume, quando entraram em contacto, pediram a nossa localização. Depois de verem a tela que tínhamos estendido, o coronel Durão disse-nos para seguirmos a trajectória da avioneta, para os lados de um local onde estavam referenciadas várias barracas. Fomos nessa direcção e, quando chegámos ao local, encontrámos muitas barracas, com o chão coberto de folhas secas, sinal de que tinha sido abandonada, talvez há duas ou três semanas.

Em contacto rádio, o Jamanca transmitiu que estávamos lá dentro e o coronel deu-nos a indicação para as queimarmos. Chegámos-lhe fogo, estava o coronel a dizer que via muito fumo e começámos a ouvir rebentamentos, uns atrás dos outros, vindos das barracas a arder. Eram detonações de balas e de granadas. Nunca viemos a saber se eram munições esquecidas ou guardadas. Era quase como se estivéssemos a ser atacados e afastámo-nos bem das barracas. 

Entretanto, o coronel Durão deu novas instruções, para seguirmos a trajectória da avioneta, em direcção a oeste, até junto ao rio, onde dizia que via movimento junto a uma das margens.

Era uma missão ingrata, tínhamos que voltar a passar pelas barracas a arder. A nossa posição estava denunciada e as probabilidades de cairmos numa emboscada eram grandes. O nosso coronel contactou o Jamanca, voltando a perguntar onde estávamos. A avioneta não saía da zona, deu uma volta bem larga e voltou a aparecer em cima da nossa posição.

Nós, de facto, não estávamos a caminhar na direcção que ele nos ordenara. Achávamos uma ideia um pouco suicida.

A pergunta era sempre a mesma, onde estão, do lado esquerdo ou do lado direito da asa da avioneta. E o tenente respondia, se estávamos à direita ou à esquerda.

O coronel desconfiou que o Jamanca não estava a dar as respostas certas e disse para não sairmos daquele local porque ia mandar vir caças para bombardear uma zona onde estava a ver muito pessoal fardado. E disse que nos ia mostrar o local exacto onde estava a ver o tal pessoal, para nós não sairmos dali, onde dizíamos que estávamos.

A avioneta deu uma grande volta e, de repente, mergulhou mesmo por cima do local onde estávamos. Logo a seguir comunicou ao Jamanca que era nesse local que os aviões, que vinham da base de Bissau, iam largara as bombas.

Muito rápido, o tenente disse:

– Não! Não! Não! Somos nós que estamos aqui!

–  Então, “Jacaré”, disse há pouco que a avioneta tinha passado por cima de vocês, bem longe daí! Como é que chegaram a esse local tão depressa?

O Jamanca não sabia o que responder, disse só que não lhe parecera conveniente voltar para trás e explicou os motivos. Nesse momento ainda se ouviam explosões de granadas e tiros e pelo ruído, algumas eram potentes, pareciam de morteiro e bazuca. O coronel Durão mandou-nos voltar ao local onde estivemos emboscados.

Depois, o alferes Tomás Camará, no local onde ficámos, disse qualquer coisa em voz alta. Um grupo do PAIGC, que estava a passar num carreiro um pouco longe na direcção da fumarada, deve ter ouvido a voz do Tomás, aproximou-se e detrás de um baga-baga dispararam contra nós alguns RPG. Mas o Tomás viu-os primeiro e gritou:

– Para o chão, já!

Quase meia dúzia de granadas de roquete bateram nas palmeiras, um pouco acima de nós. Durante alguns minutos ninguém levantou a cabeça. Todos os nossos oficiais foram atingidos. 

Pedido apoio aéreo, chegou um helicanhão a acompanhar os helis para as evacuações. A companhia ficou sem oficiais e eu, como sargento mais antigo, fiquei a comandá-la. A minha primeira medida foi mandar o pessoal preparar-se para sair dali.

Entretanto o coronel mandou-nos procurar um local perto de uma clareira, para no dia seguinte, sermos evacuados. Caminhámos das 18h00 até quase às 21, arranjámos um local que me pareceu bom, para passar a noite. No dia seguinte, fomos recuperados, sem qualquer dificuldade.

***

Tinha acabado de chegar uma informação de que o Amílcar Cabral, acompanhado de jornalistas, estava a visitar a zona do Boé, que o PAIGC reclamava área libertada.

E, rapidamente, encarregaram-nos de irmos até à zona de Madina do Boé[3], com o objectivo de perturbar ou impedir a tal visita.

De Bissau até Nova Lamego fomos de Nord-Atlas, depois em viaturas para Canjadude e daqui aqui até à zona de Madina do Boé fomos de helis, onde nos largaram em várias áreas. 

O meu grupo, juntamente com outros, foi largado em Dongol Nhamalé, onde permanecemos três dias, sem nada termos visto. Depois chegou outra informação a dizer que afinal Amílcar se tinha dirigido para sul.

Antes do meio-dia surgiram os Alouettes para nos levarem de volta a Canjadude. Estávamos com muita sede. Durante o dia a água fervia nos cantis, não a conseguíamos beber. Da avioneta disseram-nos que nos preparássemos para uma retirada rápida.

Quando os helis chegaram acompanhados por um helicanhão,  já estávamos prontos a embarcar e, em minutos, estávamos no ar a caminho de Canjadude. Por rádio deram-nos a informação para passarmos para as viaturas estacionadas na pista. A água era uma miragem, estávamos mortos de sede e alguns disseram que agora só íamos ter água no Gabu.

Chegados ao Gabu, entrámos directamente nos aviões que estavam na pista, à nossa espera. E agora, para onde vamos?

Levantámos voo e, pouco depois, vimos Bafatá, lá em baixo. Bafatá ficava a cerca de cinquenta quilómetros do Gabu. A sede incomodava-nos muito, para já não falar da fome que sentíamos. Vi a ponte do Saltinho, lá em baixo e depois começaram a baixar e aterrámos em Misside Quebo[4]. De cada um dos aviões saíram duas macas com soldados. Tinham desmaiado com a sede, agravada pelo calor dos aviões.
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Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: CCaç 16.

[2] Nota do editor: entre 28 Abril e 1Maio 1972.

[3] Nota do editor: 28 Março/08 Abril 1972.

[4] Aldeia Formosa, Misside Quebo em Fula.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)


João Seabra, hoje advogado;  foi alf mil, CCAV 8350 (1972/74). Tem apenas 15 referências no nosso blogue, para o qual entrou em 3/2/2009.


1. Carta ao Director do Público, enviada pelo João Seabra, advogado com escritório em Lisboa, ex-alf mil, CCAV 8350 (Guileje, 1972/73); não sabemos se chegou a ser publicada naquele jornal, nem quando. 

Ele facultou-nos uma cópia, que publicámos em 27/1/2009, sob o poste P3801 (*). Por ocasião da morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935 - Lisboa, 2022), justifica-se plenamente voltar a dar a conhecer, sobretudo para os mais novos, alguns dos acontecimentos de maio / junho de 1973, relatados na primeira pessoa do singular por aqueles que os viveram. No próximo ano comemoraremos os cinquenta anos da chamada batalha dos 3G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (**).

Escusado será lembrar as regras do nosso blogue: as opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, assinados, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o proprietário e editores do blogue e demais colaboradores permanentes. Mantemos o subtítulo original: "Cobarde num dia, herói no outro"... E quem o ler percebe que é um documento para a história, desassombrado,  frontal e corajoso.. 

Senhor Director,

Tendo lido as peças de Eduardo Dâmaso “A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos” e “Ninguém entregou a condecoração ao coronel”, publicadas no “Público de 26/6/2005”, achei conveniente pôr à sua disposição as tardias considerações que se seguem, às quais dará o destino que bem entender.

Fui alferes miliciano na CCav 8350, retirada de Guileje, em 22/5/73, por sensata decisão do comandante do então COP5, sr. major (coronel) Coutinho e Lima.

Nunca estive a bordo da “fragata Orion” (não seria uma LFG – lancha de fiscalização grande?), pela simples razão de que nunca me ausentei de Gadamael na sequência dos ataques dos dias 1/6/73 (uma quinta-feira) e seguintes.

Escreve-se numa das peças em causa: “os três ou quatro soldados que sobraram da tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva, ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem posto de rádio ...”.

Não foi assim. Para além de mim próprio, permaneceram no interior do destacamento, o alferes Luís Pinto dos Santos, comandante do pelotão de artilharia do Guileje e o alferes Rocha, comandante de um pelotão de canhões sem recuo 57 mm (e já vão três oficiais), e ainda, pelo menos, um furriel, e algumas (poucas) praças desta mesma unidade e da CCaç 4743 (a companhia originariamente de guarnição a Gadamael).

Além disso, encontravam-se em patrulha próxima do aquartedamento um pelotão da CCaç 4743 (com o seu alferes) e outro da CCav 8350 (alferes Reis).

Sou portanto uma das raras pessoas, que reúne em si a dupla qualidade de “cobarde” que, sob as ordens do major (coronel) Coutinho e Lima, retirou do Guileje,  e de pretenso “herói” de Gadamael. Nesta última condição fui louvado por despacho do General Comandante-Chefe de 28/8/73.

E não saímos de Gadamael por razões de decência básica (havia mortos e feridos que não podiam ser abandonados) e de elementar sensatez (uma retirada, devidamente comandada, é uma manobra militar, mas não consigo imaginar nada de tão perigoso como uma debandada).

Acontece que, na situação que se gerou em 1/6/73, só por comodidade de expressão se poderá falar em “tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva”.

Para o perceber, há que retroceder às peripécias que determinaram a retirada de Guileje, e às que se lhe seguiram.

Ao contrário de Guileje, Gadamael era uma posição sustentável, com poços de água potável muito próximos do perímetro exterior do aquartelamento, dotada de um cais acostável, acessível por via fluvial através de LDM, que na praia-mar navegavam sem dificuldades no braço do rio Cacine em cuja margem se situava.

Já Guileje era um destacamento absurdo, necessitando de organização de colunas escoltadas para reabastecimento de água a 3,4 Km, dependente, para o seu aprovisionamento, de complicadas colunas rodoviárias múltiplas, de e para Gadamael, com uma pontualidade que poderia servir de exemplo à CP, e que ficava completamente isolado na época das chuvas.

O inimigo (termo convencional pelo qual designarei a entidade que nos pretendia matar, estropiar ou capturar, e a quem, se tivéssemos oportunidade, faríamos outro tanto) conseguiu conjugar duas vastas operações, praticamente simultâneas, ao norte sobre Guidage e ao sul sobre Guileje.

A primeira dessas operações, quase esgotou a chamada reserva do Comando-Chefe, em tropas especiais.

Os meios utilizados pelo inimigo, tanto em artilharia como em infantaria, eram quantitativa e qualitativamente muito superiores aos das nossas guarnições de quadrícula.

A este propósito, tem interesse a leitura do artigo, publicado no Público, de 26/7/2004, pelo comandante Osvaldo Lopes da Silva do PAIGC, se bem que a desenvoltura com que este oficial transita da astronomia para a geografia e da geografia para a topografia, me sugira não ter sido ele o autor do plano de fogos na operação sobre Guileje.

Seja como for, dada a prioridade à defesa de Guidaje, Guileje foi isolado mediante a interdição dos seus acessos rodoviários a Gadamael e à água potável, através de emboscadas permanentes, por unidades de infantaria do inimigo, numerosas e dotadas de superior poder de fogo, minagem em profundidade dos itinerários, e sujeito a contínuo bombardeamento por todas as armas pesadas de que o inimigo dispunha.

Retirada a guarnição, e população, de Guileje, através de um itinerário ainda não reconhecido pelo inimigo, foi recebida em Gadamael, pelo então coronel (agora brigadeiro na reserva) Rafael Durão 
 [Comandante do CAOP 1, e não 3 (lapso do autor) ], com sede em Cufar). Esclarecido oficial, cuja primeira medida consistiu em promover uma formatura da CCav 8350, para ademoestar os respectivos oficiais, sargentos e praças, em bom vernáculo militar. O major Coutinho e Lima foi enviado para Bissau, onde permaneceu detido, pelo menos até ao 25/4/74.

Ainda hoje estou para perceber por que razão, confirmada a sua evacuação, o aquartelamento de Guileje não foi imediata e intensivamente bombardeado pela Força Aérea. Provavelmente havia quem acalentasse a fantasia de uma reocupação imediata. Certo é que o inimigo continuou a flagelar a posição após a nossa retirada, e só nela entrou dois a três dias depois (como diria Alves a C.ª: “ que coisa prudente é a prudência!”).

Dir-se-ia que, naquela conjuntura, se afigurava, pelo menos, bastante provável que o inimigo procurasse balancear, sobre Gadamael, os abundantes e sofisticados meios que tinha reunido para a operação de Guileje.

Nessa eventualidade – e sem prejuízo do indispensável patrulhamento em profundidade – eram necessárias providências urgentes.

Antes de mais – porque em Gadamael não havia obras ou abrigos adequados a uma guarnição entretanto duplicada – impunha-se a necessária actividade de organização do terreno, fortificando o destacamento, reforçando os espaldões de armas pesadas, abrindo trincheiras eficientes, enquadrando as subunidades, dotando-as de postos de combate defensivos bem determinados e interligados entre si e com o comando.

Em vez disso, o pessoal da CCav 8350 foi caoticamente disperso, em alojamentos de ocasião, pelos cerca de 40.000 m2 do aquartelamento, sem contacto com os seus oficiais e com o comando. Não se iniciaram quaisquer obras defensivas.

Por iniciativa de alguém que não consigo identificar, nas semanas anteriores operou-se uma radical alteração do material à disposição dos pelotões de artilharia de Guileje e Gadamael: as peças 114 mm (Guileje) e 105 mm (Gadamael), foram substituídas por obuses de 140 mm.

Ora, tanto as peças de artilharia de campanha como as próprias armas pesadas de infantaria, quando instaladas numa dada posição, necessitam de regulação do tiro, mediante a observação dos respectivos pontos de impacto, geralmente através de observação aérea, que já se sabia ser impraticável a partir do momento em que o inimigo passou a dispor de misseis solo-ar Strela-SA7.

As causas da desregulação são variadas, tendo a ver, designadamente, com choques sofridos pelas armas durante o serviço, com as condições meteorológicas, com insuficiências de cartografia, etc..

Os nossos obuses 140 mm (modelo 1943), tinham portanto a interessante função de fazer barulho e, nos casos em que abriam fogo de noite, de fornecer indicações de ajustamento do tiro do inimigo.

Nesta prometedora situação, o coronel Durão – certamente a benefício do brio e da disciplina – pôs de parte qualquer trabalho de organização defensiva, determinando um patrulhamento que se pretendia agressivo e que envolvia, em permanência, dois a quatro pelotões de entre as duas companhias.

De tal actividade resultaram dois contactos com pequenos grupos de reconhecimento do inimigo (os quais, por definição, evitam empenhar-se em combate), a quem foram capturadas três espingardas automáticas Kalashnikov.

No dia 31 de Maio de 1973 (uma quarta-feira), de manhã, o coronel Rafael Durão, retirou-se para Cufar, tendo chegado à lúcida conclusão que o inimigo, em consequência dos nossos “sucessos”, tinha retraído o seu dispositivo, sendo improvável um esforço sério da sua parte sobre Gadamael. Tratou-se evidentemente de uma bazófia só comparável com a sua idílica ignorância das intenções e do sistema de forças do inimigo.

Em sua substituição deixou o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva. Nesse mesmo dia, à tarde, iniciou o inimigo uma forte flagelação sobre Gadamael, utilizando, sobretudo, morteiros 120 mm, mas também foguetões Katyusha de 122 mm e peças de 130 mm, com uma qualidade de tiro surpreendente.

No dia 1 de Junho, o fogo da artilharia do inimigo intensificou-se qualitativa e quantitativamente e, entre as 10 e as 13 horas, uma área de 20.000 a 30.000 m2 do destacamento de Gadamael encaixou, seguramente, entre 350 e 400 impactos de morteiro 120 mm, provocando consideráveis baixas na guarnição.

Os dois capitães (comandantes, respectivamente, da CCaç 4743 e da CCav 8350), foram evacuados entre as 10,30 e as 11,00 horas, e não “ao princípio da tarde”.

Apercebendo-me de que se estava a gerar uma debandada, tentei impedi-la, pelas razões acima expostas, com resultados muito limitados.

O pessoal estava completamente entregue a si próprio e a falta de condições de comando era total: só conseguíamos transmitir ordens a quem nos passasse ao alcance da voz.

Dois dos três espaldões das peças de artilharia receberam granadas de morteiro 120 mm, que feriram, mataram ou dispersaram a totalidade das respectivas guarnições.

O pessoal que ia debandando dizia-me que o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva tinha dado ordens para se “sair do quartel”.

Dirigindo-me a uma das posições da artilharia, encontrei o alferes Luís Pinto dos Santos, que sobreviveu, com ferimentos ligeiros, e resolvemos ambos procurar o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, para lhe perguntar se tinha ordenado a evacuação do aquartelamento. Respondeu-nos que tal não era a sua intenção, tendo apenas recomendado ao pessoal que se deslocasse temporariamente “para fora do arame”, isto é, para o exterior do perímetro do destacamento, uma vez que o seu interior estava a ser intensamente batido pela artilharia inimiga.

Fizemos-lhe saber que tal “deslocação temporária” tinha degenerado em debanda incontrolável.

O alferes Pinto dos Santos, com a minha ajuda, conseguiu improvisar um mínimo de serventes (entre os quais o furriel de transmissões da CCav 8350) para activar um dos três obuses 140 mm, à cadência de um tiro de quarto de hora em quarto de hora.

Tudo visto, recolheram-se os mortos, evacuaram-se os feridos por via fluvial, e garantiu-se, com fogo esporádico de obus 140 mm, de morteiro de 81 mm e de canhão sem recuo de 57 mm, uma aparência de capacidade de reacção que dissuadisse um eventual reconhecimento em força por parte do inimigo (que aliás não se mostrou muito afoito).

Enfim: o trivial. As munições para as armas pesadas eram transportadas do paiol em uma viatura Berliet temerariamente conduzida por um cabo escriturário (Raposo) da CCaç 4743, o qual, na volta, também transportava feridos para locais de embarque.

Nesse mesmo dia 1 de Junho à tarde:

Reentraram no quartel os dois pelotões que estavam em patrulha exterior; desembarcaram, de helicóptero, dois oficiais de confiança do Comando-Chefe (capitães Caetano e Manuel Soares Monge) e o coronel Rafael Durão (pessoa dotada de coragem física em proporção inversa à do respectivo discernimento).

No dia 3 de Junho (Sábado), desembarcou a companhia 122 de paraquedistas (capitão Terras Marques), e no dia seguinte a 123 (capitão Cordeiro).

Uns dias mais tarde chegou a companhia de paraquedistas nº 121 (comandatada pelo então tenente, e hoje tenente-general, Hugo Borges), o que significa que foi deslocado para Gadamael um batalhão completo de paraquedistas (BCP 12).

Entre sexta-feira, dia 2/6/73 e o domingo seguinte, a presença do major Pessoa, do BCP 12, pôs termo ao efémero comando do capitão (coronel /dr.) Ferreira da Silva) no, assim chamado, COP5.

Um verdadeiro e próprio comando das forças de Gadamael foi estabelecido no domingo (4/6/73) na pessoa do tenente-coronel Araújo e Sá (comandante do BCP 12).

Nesse mesmo dia – por razões que, para mim, permanecem obscuras – o major Pessoa (era o 2º comandante do BCP12) retirou-se de Gadamael.

Apesar de não figurarem habitualmente como “heróis de batalha de Gadamael”, as operações das diversas companhias paraquedistas, em cerca de duas semanas, desarticularam o dispositivo inimigo, sofrendo baixas moderadas (uns 25 a 40 feridos, na maior parte ligeiros, com estilhaços de RPG 7).

Nunca será demais sublinhar a qualidade destas tropas de elite. Recordando os contactos que mantive com os seus oficiais (designadamente os capitães Terras Marques e Cordeiro), anoto, como curiosidade, que se mostravam extremamente críticos (no limiar do humor negro) em relação aos fundamentos e à condução da guerra, sendo a sua considerável eficiência, fruto exclusivo de um extraordinário brio profissional.

O corpo de tropas pára-quedistas – das melhores que se poderiam encontrar, inclusivé a nível da NATO – foi destroçado, como unidade combatente, em 1975. Ao que me consta o brigadeiro Rafael Durão e o major Pessoa tiveram, nessa meritória obra, a sua função, cada um do seu lado, respectivamente, no “11 de Março” e no “25 de Novembro”.

Não sei se o tenente-coronel Fabião tinha condecorações para atribuir. Recordo que o alferes Pinto dos Santos e eu próprio fomos ouvidos como testemunhas num processo de averiguações para atribuição de condecoração militar ao capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, pelo major (brigadeiro) Manuel Soares Monge, no quartel general do Comando-Chefe, em Bissau.

A nenhum de nós dois pareceu que fosse caso de condecorações a propósito do que se passou em Gadamael no dia 1 de Junho de 1973 (excepção feita ao cabo Raposo, atentos o seu posto e especialidade).

Recordo-me que, na altura, o então capitão Caetano me disse que tinha chegado a “fase dos baldes de plástico” (brinde comercial muito apreciado à época). Temíamos o aproveitamento de tal “fase” para transformar o capitão Ferreira da Silva numa espécie de contra-exemplo, em relação ao major Coutinho e Lima.

A serem atribuídas condecorações, deveriam elas ser, obviamente, atribuídas a oficiais, sargentos ou praças das tropas paraquedistas.

A partir da chegada do BCP 12, a CCav  8350 e a CCaç 4743 não tiveram qualquer actividade operacional de relevo.

Aliás nem poderiam ter, uma vez que não tinham treino, nem armamento, para se defrontar com a infantaria inimiga em reconhecimento avançado, do que foi feita a (desnecessária) demonstração no dia 4 de Junho, quando um pelotão da CCav 8350, reduzida a uma dúzia de elementos, caiu numa emboscada a menos de 1 km do aquartelamento, sofrendo quatro mortos (entre eles o respectivo alferes) e cinco feridos graves.

Será a este episódio que o dr. Ferreira da Silva, por equívoco, se quererá referir quando alude a “seis paraquedistas mortos no mesmo dia” (os cadáveres foram efectivamente recuperados por um pelotão de paraquedistas).

O objectivo desta pretensa patrulha era o de “descongestionar” o aquartelamento da sua, por assim dizer, densidade humana, face à eficiência do tiro da artilharia inimiga. Em suma: a CCav 8350 e a CCaç 4743 tinham passado a desempenhar a proverbial função de carne para canhão.

Note-se que a nossa tropa de quadrícula (companhias tipo caçadores), nem sequer estava dotada de uma metralhadora ligeira decente (a nossa inacreditável HK-21 encravava ao fim de cinco ou seis tiros).

As tropas especiais usavam as metralhadoras ligeiras MG 42 e, em considerável quantidade, equipamento capturado ao inimigo: metralhadoras ligeiras Degtyarev, lança granadas RPG 2 e RPG 7, espingardas automáticas Kalashnikov. Excelente material que, ainda hoje, está ao serviço, do Iraque ao Afeganistão, do Sudão à Libéria.

Tive a inspiração de selecionar, de entre os meus pertences, que carreguei de Guileje, um grande livro: Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert.

Quando saí de Gadamael, faz agora trinta e dois anos, tinha chegado a uma passagem célebre: “alors une faculté gênante se développa dans leur esprit, celle de percevoir la bêtise e de ne plus pouvoir la tol
érer.” [“então uma faculdade embaraçosa se desenvolveu em suas mentes, a de perceber a estupidez e não mais ser capaz de tolerá-la.” [tr. do editor LG ]

Dê a este enfadonho relato, Sr. Director, o destino que bem entender.

João Seabra

Antigo Alferes Miliciano da CCaV 8350 (1972/74)

P.S. - Porque, em certos aspectos factuais, confirma algo do acima relatado, junto segue extracto da minha folha de matrícula. 

[Revisão e fixação de texto / Negritos , para efeitos de publicação deste poste: LG]



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1969 > Álbum fotográfico do João Martins > Foto nº 135/199 > O temível obus 14... mais um elemento da guarnição africana do Pel Art ali destacado.

Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012).   Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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Nota de L.G.:

 (*) Vs. poste de 
27 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

)**) Último poste da série > 21 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...