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sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24839: Notas de leitura (1632): "No Limiar da Guerra", por José Manuel Barroca da Cunha; RARO, Tomar, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Já sabemos que aquele ano de 1961 foi caracterizado por muita ação subversiva, por um lado Rafael Barbosa ia encaminhando centenas de jovens para Conacri e daí para a formação militar, eram distribuídos panfletos, agiam vários grupos políticos, rivais ferozes do PAIGC. Um deles, constituído por Manjacos residentes no Senegal, orientados por François Mendy, provocará alguma turbulência em São Domingos, Suzana e Varela, e mais tarde juntos dos madeireiros da região Norte, foi tempestade de pouca dura. Mas é verdade temos inventariados documentos que abonam as hostilidades a partir do 2º semestre de 1962, na região Sul, que entra numa verdadeira efervescência, não havia de facto um romance como este, descrito por alguém que desembarcou do navio Alfredo da Silva no cais do Pidjiquiti em 19 de fevereiro de 1961. O autor assegura que esta história é muito real, é um ribatejano que se radicou na região tomarense, figura muito estimada pela sua dedicação às atividades desportivas, a um verdadeiro benevolato. Bom seria que Barroca da Cunha, que parece estar cheio de genica, entrasse na nossa tabanca grande e nos contasse tudo quanto viveu entre 1961 e 1963.

Um abraço do
Mário



Um tomarense de coração que chegou à Guiné no limiar da guerra

Mário Beja Santos

Barroca da Cunha é natural da Praia do Ribatejo mas vive há décadas em Santa Cita. Segundo o autor, o livro baseia-se em factos reais, chegou a bordo do navio Alfredo da Silva a Bissau em 19 de fevereiro de 1961, ano já de grande efervescência subversiva, o núcleo do PAIGC coordenado por Rafael Barbosa já está a recrutar muitos jovens que vão para Conacri ou já partiram para a formação revolucionária armada, nesse mesmo ano grupos de etnia Manjaca procurarão atacar a povoação de São Domingos, com pouco sucesso, e vandalizarão em Suzana e Varela, manter-se-ão ativos a aterrorizar na fronteira norte, nada tinham a ver com o PAIGC. Barroca da Cunha encontra no cais do Porto de Bissau um amigo de longa data, ele é natural da Guiné, é o grande homenageado neste livro.

Tudo começa no Colégio Nun’Álvares de Tomar, fazem amizade Simão Galhardo, alentejano do Crato, ligado a uma família de grandes proprietários, com António Jorge Barbosa Gonçalves, o Tojó, natural da Guiné. Temos aqui a narrativa de dois jovens nascidos à volta de 1940 a viver em internamento, iremos saber as razões por que a família de Simão lhe impôs tal castigo, houve para ali uma série de aventuras amorosas com a empregada Rosinda que vivia com o Joaquim Pinoia enquanto este fazia a tropa num quartel do norte, o Simão tem tal castigo que nem aos fins-de-semana pode ir a casa, ora a sua amizade com o Tojó agradou à família, este agora é visita regular ao Crato, temos a descrição dos bailes e festas como era prática do tempo, aqueles dois amigos quase inseparáveis andam sempre na folia. O pai de Tojó é um colono um tanto diferentes dos outros, trata os seus trabalhadores indígenas com muita dignidade, os outros colonos não gostam de tais liberalidades.

Estes jovens de 20 anos vão parar à Guiné, Simão não quer cunhas dos pais junto dos governantes, Tojó tem saudades dos pais e da irmã, vamos ver o seu enquadramento na vida militar de Bissau, há muito marasmo, desconhecimento da dura guerra que se avizinha, o armamento é mais do que antiquado, ambos fazem amizades, Simão vive na mesma casa com Trigo Vargas, um franzino que enjoou durante toda a viagem, dá gosto ler estes frescos de alguém que reteve conversas possíveis entre jovens, sempre prontos para o bailarico, é nisto que entram em cena dois agentes da PIDE que têm como missão aperceber-se se junto daquela tropa branca há comunistas a trabalhar junto do descontentamento ou a aliciar outros jovens. Aparece também uma médica de família goesa, a delegada de saúde, uma trintona amadurecida, que se atira a Simão Galhardo, a relação não faiscou. A trama do romance traz para o tempo presente gente do passado, Rosinda casou com um dos PIDES, o agente Saraiva, Rosinda tenta reatar a relação com Simão, este nega-se a infidelidades, Rosinda promete vingança, Joaquim Pinoia tem o seu negócio, sente-se feliz com a mulher e filhos. O chefe dos PIDES alerta os seus agentes para a importância dos cabo-verdianos, é gente com maiores conhecimentos académicos, estão nos lugares do topo, cuidado com eles, é preciso muita vigilância.

Simão dá-se bem com o major Frutuoso, o seu chefe, natural de Alpalhão, é o seu ajudante, têm que preparar informações sobre o que se está a passar na Guiné. Os amigos encontram-se com muita regularidade, há inclusivamente um comissário daquele navio que trouxe Simão que quando vem até Bissau é uma gostosa companhia, as reuniões entre PIDES prosseguem, há festas para aqui e para ali, os agentes confessam ao chefe local da polícia política que aqueles militares é tudo gente inocente, falam unicamente de garotas, bailes e de fugazes encontros, o chefe exige persistência, há perigos que se avizinham. E abruptamente tudo se altera, lá no grupo há quem fale que houve baladas, está presente um agente da PIDE, Trigo Vargas será detido e bem maltratado, surpreendentemente irá fugir para o Senegal e acompanhado. No norte da Província alguém foi degolado, há deserções, desapareceram armas. Simão veio de férias, o seu amigo Tojó informa-o do que se está a passar com Trigo Vargas, Simão será interrogado pela PIDE, é uma dimensão interessantíssima deste livro os interrogatórios a que ele vai ser sujeito, fala-se em livros e revistas proibidos, música do Zeca Afonso, Simão completamente siderado com os aspetos disparatados das perguntas, iremos a saber que Rosinda também mete o seu veneno e iremos ser surpreendidos quando aparecer o nome do chefe.

A agitação no Norte, aquelas deserções e o cabo degolado levam a que se mande um pelotão para a fronteira com o Senegal, o major, Simão e Tojó viajam para ter conhecimento do que ali se passa, vão no jipe, haverá para ali uma perseguição, um militar impreparado pega numa pistola-metralhadora FBP e acidentalmente atinge Tojó, Simão esforça-se por o manter vivo e vêm à procura de ajuda no hospital de Bissau, nesse tempo o hospital militar ainda está em construção. Se a viagem para cima não fora fácil, o regresso foi pior, só havia alcatroado até Mansoa, a picada sofria as consequências da época das chuvas, foi o cabo dos trabalhos, Tojó morrerá no hospital, Simão revela-se inconsolável.

Caminhamos para o termo do romance, temos as exéquias de Tojó na Sé Catedral, um mar de gente acompanha-o até ao cemitério, negros simples prestam-lhe a sua homenagem, nas melhores vestimentas de cores aguerridas, compareceu o Governador, o Chefe de Estado-Maior, o Presidente da Câmara de Bissau, o Gerente do BNU. No regresso o major Frutuoso conversa com Simão: “De uma vez por todas, é necessário que se alerte de forma firme quem toma decisões. O aviso está feito, já houve mortes, os indicadores de todas as guerras. Esta última ainda não se apresentou muito a sério, mas não tarda a guerra, ela chegará. É preciso organização, preparação. Que todos se consensualizem que é preciso ação, é preciso atuar.” E deixa no ar que a única maneira de honrar Tojó seria a de evitar que muitas mais se deem. Que a morte do Tojó não tenha sido em vão. É este o surpreendente teor do romance de Barroca da Cunha, um tomarense de coração que assistiu ao limiar da guerra da Guiné.
Barroca da Cunha a assinar o seu livro No Limiar da Guerra, em 31 de março passado, na Secção Regional de Tomar do Sindicato dos Bancários
A Associação Cultural e Recreativa de Santa Cita atribuiu o nome de Barroca da Cunha ao Pavilhão Polivalente
Lançamento do livro No Limiar da Guerra, na Informação da Associação dos Pupilos do Exército
O arquiteto Schiappa Campos a mostrar a Felupes o catálogo de fotografias A Família do Homem. O registo data do seu trabalho na Guiné entre 1956 e 1960. Imagem doada pelo autor ao Instituto de Investigação Científica Tropical em 2014 e apresentada na exposição “Moranças - habitações tradicionais da Guiné Bissau”, que decorreu no Museu Nacional de História Natural e da Ciência
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se inegavelmente de uma surpresa, pelo assombro como desvela a intimidade, por descrições duríssimas, é muito difícil não acreditar que tudo isto que ali se escreve não vem da experiência vivida. Sabe-se que Rui de Azevedo Teixeira combateu em Angola, é doutor em Literatura Portuguesa, ensinou em universidades europeias e africanas e no seu currículo há obras de grande importância como A Guerra Colonial e o Romance Português: Agonia e Catarse ou O Fim do Império e a Novelística Feminina e também A Guerra de Angola: 1961-1974. Não custa crer que o autor entendeu que este legado de crueza e terror é importante para que as novas gerações recebam agora o que nos aconteceu há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário



O terror puro e duro para iluminar a noite interior

Mário Beja Santos

Rui de Azevedo Teixeira nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim. Combateu em Angola. É doutorado em Literatura Portuguesa e ensinou em universidades europeias e africanas. Organizou os congressos internacionais sobre a Guerra Colonial (Instituto de Defesa Nacional, 2000) e a Guerra do Ultramar (Fórum Cultural do Seixal, 2001). Sobre o conteúdo do livro, Rui de Azevedo Teixeira deixa no ar: “Será Vila Velha do Mar a Póvoa ficcionada? E qual é a aldeia? E as personagens da vila e da aldeia, transfigurados pela ficção, serão alguns dos professores e estudantes do Liceu do fim dos anos 60 ou princípios de 70? São reconhecíveis? O jogo literário de quem é quem puxa pelas memórias saudosas dos leitores”, explica.

É um romance singular no amplo contexto da literatura da guerra colonial este "O Elogio da Dureza", Gradiva Publicações, 2021. Paira a sombra da autobiografia, o rasgar da intimidade de alguém que descobre que é filho ilegítimo de pai incógnito. Sabemos que na juventude muito leu, autores de diferentes proveniências e que cedo começou a escrever um diário incerto, mau aluno até chegar ao fim do Liceu, aí desabrochou; os estudos em Coimbra não o mobilizaram, Paulo de Trava Lobo Ferreira oferece-se como voluntário, lega-nos páginas manuscritas onde fala do padrasto, gente com quem se relacionou, as obras que leu. Salta no tempo, já regressou da guerra em Angola, onde viveu o último capítulo.

“Vivia entre dois tempos e dois espaços, entre o recentíssimo passado angolano e o presente português. Um tempo misturado em que a componente angolana dominava. Mesmo com as obsessivas leituras, mesmo com o processo revolucionário em curso, ainda assim eram as recordações de Angola que mais lhe ocupavam a cabeça. Pensou até em voltar lá como mercenário, numa empresa de um almirante comunista, para lutar pelo MPLA. Um mercenário marxista leninista?! Baralhado, largou a ideia, substituindo-a por outra, por uma vida também dedicada à violência”.

Os problemas familiares acentuam-se, reencontra-se com gente dos Comandos, convém não esquecer que estamos perante um oficial Comando, com prestação assinalável na contraguerrilha. E de novo regressamos a Luanda, salto diacrónico, Paulo está a chegar à guerra, fala-nos do violentíssimo curso de Comandos, provas brutais, tudo minuciosamente contado para se perceber como se cria um militar disciplinado, uma máquina de combate. Nos momentos de ócio, desce até à cidade de Luanda, anota o seu fervilhar:
“Circulavam miúdas e miúdos pretos com olhos brilhantes como refletores e sorrisos imensos. A estragar a alegria do quadro, os pretos descalços e os pretos de calções e os pretos de roupa rota e os pretos servis e os pretos com medo. Mas havia também um ou outro preto bem vestido e integrado no sistema colonial. E tropa e mais tropa. Soldados da pacaça em grupos de três e quatro, sem aprumo, com mal ajangadas fardas número dois e até com camisas de camuflado. E, de vez em quando, passavam os raros e orgulhosos Comandos de farda número dois, com cinturão, crachá ao peito e dístico no ombro esquerdo, calças e camisa de manga curta bem passadas e as mãos atrás das costas”.

Fala-se de comezainas, de sexo, caminhamos para a vida operacional, já temos os Comandos formados. Volta-se inopinadamente ao processo revolucionário, sabe-se que Paulo detesta os comunistas e esquerdistas e dentro deste processo diacrónico voltamos ao Paulo operacional, e aqui o autor esmera-se, a partir do Luso entramos diretamente na Operação Empurra Tudo, vamos assistir a homicídios com faca, escalpes, chegou a hora do puro horror: “Meteu então a faca na barriga do velho e fê-la girar lá dentro como o corno do motor numa colhida. O velho gritou. Paulo e Ferro viraram-se e ainda o viram a ser degolado. O meio bóer deu um pontapé no cadáver fresco do velho, antes de se dirigir para a bicicleta. Enlouquecido de violência, esfaqueou o selim, os pneus e até o farol. Paulo viu, então, junto a uma árvore, sentado, imóvel, uma mulher com um bebé que mamava regaladamente. Ambos miraculosamente ilesos. Paulo ordenou a Ferro que acabasse com os feridos graves. Antes da saída do quartel, tinha visto o furriel a raspar a ponta das balas no chão de cimento à entrada da secretaria. Em segundos, três tiros. As balas atravessaram as cabeças aos trambolhões e saíram levando pedaços de cada uma. Miolos à mostra”.

A operação prossegue, dão-se mais tiros de misericórdia a moribundos, descobrimos que há uma ética: “Os Comandos não abandonavam inimigos feridos. Deixados vivos, ficariam a morrer aos poucos, gritando de dor, antes de serem comidos e passados a esqueleto e a fezes de animais”. Havia, pois, tiros de misericórdia. Entre as operações Paulo leva uma rica vida com a amante e a criada da amante, tudo isto na zona militar leste. Ficamos a saber que nas dez operações dos primeiros quatro meses o corpo de combate de Paulo e os vinte e cinco mortos confirmados. Por vezes as coisas correm para o torto, mas mata-se muito mais do que se sofre. Mas Paulo está a mudar. “Paulo começava a dividir-se, a cindir-se mesmo, entre o idealismo imperial e a justiça histórica. Amava criticamente a História de Portugal e o Império, mas os angolanos já eram crescidos, tinham todo o direito a sair de casa. Todo o direito a serem independentes”. Do Leste irá partir para outro local, o Mayombe, mas, entretanto, damos outro salto diacrónico, voltamos ao processo revolucionário em curso, virá o 25 de novembro, Paulo volta aos estudos, torna-se bacharel, percorrerá vários lugares a dar aulas.

"O Mayombe, floresta equatorial ainda mais impenetrável do que as florestas tropicais, era o absoluto oposto à que agora parecia a Paulo a simpática savana”. Numa operação descobre-se um depósito de armamento, Paulo não sentiu orgulho, apenas sorte, e depois vem o grande combate, o inimigo atacava, eram da FLEC. “Chamou a atenção de Paulo um carregador furado e um cadáver de barriga para baixo. Pegou no carregador e foi tirando as balas. Encontrou o que procurava – a bala furada por uma bala dos Comandos. A bala da G3 acertara em cheio fazendo um buraco perfeito no cartucho da bala de Kalashnikov. Paulo guardou a bala furada, passou a ser o seu talismã”.

Veio o 25 de Abril, o bacharel irá fazer mais estudos, o professor Paulo Lobo tem destino universitário. De novo saltamos para o fim da guerra, quando ele se encontrava especificamente em pré-desagregação, regressa à pátria. Toda esta noite interior parece chegar à irradiação da luz, conhece o amor, dá-se a doce domesticação de Paulo, é já assistente estagiário do porto e acaba por descobrir, graças à mulher, que era filho de sangue do capitão Antero Gomes Ferreira. Não fica contente com aqueles pais que nunca se interessaram pelo seu sofrimento. E decidiu nunca mais voltar a falar com os pais. É uma irradiação de luz feita de trevas. Romance singular, está comprovado, percebe-se este elogio da dureza, é memória que não se apaga, talvez por isso a catarse da escrita, de indiscutível qualidade.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24523: Notas de leitura (1602): "Aldeia Mágica", por Alexandre Faria; Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Generosidade não falta a quem escreve esta obra, é entranhado o seu profundo afeto por Bolama, dela mantém gratas recordações e até colabora com a ONG Pró-Bolama. É generoso e didático, para quem se embrenha nesta viagem e nesta utopia teremos súmulas históricas: Cascais, a presença portuguesa em Marrocos, a Mauritânia, a Gâmbia, o Senegal, a Guiné antes da presença portuguesa e depois, os reinos e a cultura Bijagó, as lutas pela independência, dirão que é uma cultura de almanaque, mas para quem pela primeira vez percorre estes itinerários, vai encontrando algumas chaves explicativas e melhor se acompanha um autor devotado a uma causa, é bem patente o seu estado de rendição às gentes e à natureza. E não se ensaia a falar na verdade desse miserando tráfico de drogas que põe a Guiné-Bissau como um Estado internacionalmente desrespeitado, com uma classe política corrupta e insensível à ânsia de desenvolvimento humano que todo o povo reclama.

Um abraço do
Mário



Homenagem a Bolama, uma elegia utópica e a maldita cocaína

Mário Beja Santos

Aldeia Mágica, por Alexandre Faria, Poética Edições, 2019, ilustrações de Ricardo Braz, é um romance de afetos, prenhe de informação sobre diferentes lugares, desde Cascais a lugares guineenses e ao seu passado. O seu autor, que é advogado e presidente do Estoril Praia, de há muito tem uma relação enamorada com Bolama, decidiu brindar essa ternura acumulada com um romance, uma utopia e a denúncia da maldição que persegue a Guiné-Bissau, imiscuída numa rota de drogas, que é um segredo de polichinelo.

Teresa e Daniel constituíam um casal muito feliz, bem posicionado na vida, vivem em Cascais, onde o autor foi autarca durante 20 anos e aproveita a circunstância para dela nos falar e dar uma súmula histórica. Daniel é surpreendido pela notícia da gravidez de Teresa e num instante a devastação de um acidente rodoviário põe termo a esse quadro de harmonia, houvera um violento embate, o condutor responsável desaparecera, a vida de Daniel é um túnel de pesadelo. Bem instalado na sua profissão de consultor, negoceia a sua saída, colocou a casa à venda.

E começa uma viagem sem rumo, procura alívio descobrindo novos horizontes. Segue de Faro para Sevilha, depois de se despedir dos sogros, adquiriu bilhete para Tanger, nova abordagem histórica do relacionamento de Portugal com Marrocos, sente-se atraído pelo deserto, como se tivesse sentido um chamamento espiritual, encaminha-se para o Sara, entra na Mauritânia, lançou-se na autoestrada que o irá conduzir a Nouakchott, abre-se a porta para o Senegal, mas antes teremos mais informação sobre a História da Mauritânia. Atravessou o Parte Natural Diawling perto da fronteira do Senegal e daqui segue para Dacar. Num caminho encontra um cão, será o seu companheiro a partir de agora, chama-lhe Dacar, passa pela Gâmbia e como sempre faz com uma nova localidade dá-nos um resumo dessa antiga colónia britânica. E entra na Guiné-Bissau a partir de São Domingos. E viaja até Bissau.

Instala-se no Hotel Azalai 24 de Setembro, no dia seguinte ruma para Mansoa, sente-se atraído pelo Parque Natural das Lagoas de Cufada, janta em Fulacunda, na mesa ao lado dois pescadores conversam e criticam a atividade devastadora do estaleiro da cooperação japonesa. Metem conversa com Daniel e sugerem-lhe a ida a Bolama. Alexandre Faria tudo descreve com simplicidade, não esconde o fascínio que aquela natureza lhe provoca: “O caminho de Fulacunda até ao final da zona continental empolgou-o pela beleza que exibia, vendo com frequência as entradas de água que se aproximavam da estrada, que permanecia envolta na vegetação autóctone e selvagem, vibrante, parecendo surpreendida pela passagem de uma viatura por ali. Por vezes, a lama adensava-se e a força-motriz do carro era posta à prova”.

Tem agora a ilha em frente, avança, sente-se intrigado com aqueles edifícios com vários séculos de história, degradados há muito, entrega a um certo Emílio a encomenda que lhe fora dada por um daqueles marinheiros com quem conversara, segue-se uma descrição de Bolama, com um claro elogio aos seus recursos naturais e estrondosa beleza. Começa a explorar a ilha, quer compreendê-la, entender os motivos pelo fascínio que ela exerce sobre ele. E começa a nascer a utopia, a organização de uma aldeia feita de cooperação e de entendimento, de justa repartição dos recursos e dos proventos, vão sendo ouvidos anciãos, atraídos os jovens com capacidade organizativa, Daniel vai a Bissau e temos novo aporte histórico, por razões desconhecidas atribui a Bissau o papel de capital em 1836 e 1915, o que é rigorosamente uma falsidade, mas romance é romance, segue-se uma descrição do passado da Guiné do século XII em diante, regressa a Bolama com os jovens João e Vasco definem a localização dos principais edifícios da aldeia para a qual já existe população aderente entusiasta.

Encurtando razões, como quando nos encaminhamos para o melhor dos mundos possíveis, naquele lugar mágico chega um grupo de colombianos, no entretanto o leitor recebeu lauta informação sobre os reinos e a cultura Bijagó. A ameaça desenha-se no horizonte, os colombianos fazem uma proposta, bem sinistra: exigem silêncio total sobre o comércio de drogas que passa ali ao lado e darão apoios como contrapartida, os dinheiros de Daniel caminham para a extinção. Há decisões horríveis para tomar nessa aldeia onde já se alcançou a harmonia social, as crianças vão à escola e os pescadores e agricultores vivem as doçuras de uma economia comunalista. Um comerciante libanês, Saad, que presta ajuda à construção da Aldeia Mágica, pede a Daniel que leve Mateus, uma antiga criança-guerreiro, muito traumatizada.

E Alexandre Faria detalha o negócio da droga:
“A Guiné-Bissau funcionava como uma espécie de entreposto entre a América do Sul e a Europa. As dispersas ilhas dos Bijagós, muitas delas desabitadas, aliadas à falta de meios da polícia marítima guineense, criavam a tempestade perfeita. Pelas informações que circulavam pela capital, cada grama de cocaína podia render cerca de 20€ a um jovem guineense, metade do valor que eventualmente ganhava num mês inteiro de trabalho. Este montante podia aumentar se fosse derretida para a versão cristalizada de crack, mas a principal intenção residia no trampolim da América do Sul para o mundo. Chegada por via aérea até à Guiné-Bissau, cada pequeno avião clandestino transportava cerca de 500 a 600 quilos de droga por carga que pousavam onde podiam. Existindo alguns relatos sobre a presença de elementos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, FARC, os quilos de droga eram posteriormente dissimulados nas arcas frigoríficas e transportados para a capital, prontos para a viagem intercontinental”.

Daniel e os anciãos e os jovens colaboradores vivem este trágico dilema. Quando parecem prontos para capitular, Daniel janta com Pablo, o interlocutor colombiano, é aí que ele sabe quem foi o responsável pela morte de Teresa, e num ímpeto executa o cobarde condutor que fugiu às suas responsabilidades. Vai seguir-se a defesa da aldeia, os colombianos não irão deixar de responder. O autor dá-nos uma resposta bem imaginativa para a resistência guineense, aquela gente desarmada que enfrenta com engenho e arte os bem equipados colombianos, haverá refregas, os traficantes serão forçados a recuar temporariamente, o autor aproveita a circunstância para nos dar uns parágrafos sobre a história da luta armada para justificar certamente a resiliência daqueles velhos que passaram tantos anos a combater de um lado e do outro, aquela resistência a um autêntico exercício de guerrilha que lembra o passado que precedeu a independência da Guiné-Bissau.

Há bastante lucidez nesta gente da Aldeia Mágica, leva consigo um protocolo que todos respeitam, a Carta da Aldeia, os painéis solares e os depósitos de água mais pequenos, tudo é transportado num êxodo, vão-se esconder junto a Buba. Daniel pertence imparavelmente a este projeto, acompanha com satisfação estes guineenses ansiosos de paz e de harmonia e que acreditam piamente na utopia da Aldeia Mágica.

Romance de ternura, como se vê, e onde não se esconde como a Guiné tem todos os requisitos de um Estado-pária, mas onde ainda é possível sonhar que as crianças viverão num futuro melhor.

Monumento dedicado aos pilotos italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama, em janeiro de 1931, uma bela fotografia de Francisco Nogueira que deu a capa do livro Bijagós: Património Arquitetónico, Edições Tinta-da-China, 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JULHO DE 2023 > AGuiné 61/74 - P24512: Notas de leitura (1601): "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina; Âncora Editora, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Socorro-me habitualmente da ajuda que me dá a Biblioteca da Liga dos Combatentes, é neste território que encontro obras, de modo geral edições de autor, de antigos combatentes que aqui deixam os seus trabalhos. Foi aqui que conheci este livro de Nelson Cerveira[1], furriel-enfermeiro do BCAV 8320/73, terá sido o último batalhão que abandonou a Guiné. Nelson Cerveira foi depois para Angola onde geriu um hotel no Kwanza Norte, aqui terá encontrado matéria para escrever 3 livros relatando acontecimentos que tiveram a ver com a guerra civil de Angola. Forjou este romance cuja figura central um furriel ferido em combate, tem uma escrita singularíssima, uma narrativa onde não faltam elementos naturalistas e neorromânticos e grandes tiradas declamatórias.

Um abraço do
Mário



Os enfermeiros também tombam em combate

Mário Beja Santos

O título da obra é "Para Além do Amor", o autor é Nelson Cerveira [foto à direita], edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia, 2022. A singularidade da trama assenta na deliberada decisão do escritor em rebuscar uma prosa com laivos de naturalismo, neorromantismo, é uma prosa inflada de afirmações declamatórias e afirmações sentimentais que se inscrevem em atmosferas de dramatização, muitas lágrimas, muitos soluços, até se chegar à redenção que a obra propicia.

Estamos em maio de 1947, na região da Bairrada, em noite de tempestade, os donos da casa ouvem gemidos no celeiro, o agricultor nada vira coisa semelhante, uma moça de 16 anos, que era conhecida por Zeza, e que por ali deambulava por aldeias vizinhas, sem ninguém saber qual a sua origem, acabara de dar à luz. Depois somos introduzidos na história de Zeza, recuamos a 1930, mais uma história trágica, no parto morre a mãe, salva-se a criança que passou a ser criada pelos avós com o nome de Maria Cristina. O casal que recebe a criança que Zeza dera à luz, e que tinha recentemente perdido um filho, aceita criar esta bênção que lhe cai do céu.

Há um lavrador de nome Alfredo que vai trabalhar para uma das quintas mais ricas da região, fica encarregado pelo patrão de cuidar do filho, de nome Tomé, o menino tem 4 anos, irá formar-se em Direito. Alfredo virá ser caseiro da quinta, depois morre o patrão, o filho vende a propriedade. Amélia, a mulher de Alfredo tem um filho que morre apenas com 2 semanas. É nesta altura que nasce o filho de Zeza, em homenagem ao benfeitor, o casal põe-lhe o nome de Tomé. Anos depois os pais adotivos contam a história, mostram-lhe a fotografia de Zeza.

Tomé revela-se um jovem prudente, assenta praça em outubro de 1968 nas Caldas da Rainha, tirará a especialidade de enfermeiro, as aulas decorrem no anexo do Hospital Militar da Estrela. Finda a especialidade, ele e o seu amigo Jorge foram colocados no Hospital Militar de Coimbra, alugam um quarto numa casa no largo da Sé Velha. Vai começar o enfeitiçamento por uma jovem aluna de Medicina, isto em 1969, no reboliço dos acontecimentos estudantis. Tomé era amigo de Laura, esta amiga Aurora, o deslumbramento de Tomé, de todos o autor nos dá a descrição, Aurora está bem impressionada com Tomé, o seu aspeto resplandecente, o olhar aceso, as belas cores, o belo sorriso, estão os três em amena cavaqueira numa esplanada e aparecesse João, vamos ter aqui um discurso incomum, João possuía o dom especial de se encontrar à vontade em toda a parte e não faz mais nada, tem para ali uma larga tirada sobre a tirania colonialista, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, lembra aos presentes que a hora que estavam a viver era uma hora sombria e diz o autor que aquele jovem era apologista que o governo salazarista cairia quando a lava escandecente no seio da liberdade irrompesse as ideias libertadoras defendidas pelo comunismo. As discussões multiplicam-se, passa-se para a religião, duvida-se da imortalidade da alma, seguem-se os problemas da civilização, aqui começam as críticas ao comunismo, o Tomé mete-se na conversa, temos páginas e páginas sobre o cristianismo e as lutas acesas do protestantismo. As grandes tiradas declamatórias irão prosseguir, Tomé irá contar a Aurora o que andam a fazer os Movimentos de Libertação, e depois declara-se, Tomé é retribuído, andam enleados. Chegou a hora da mobilização, Tomé irá apresentar-se no Hospital Militar de Bissau, a despedida é dolorosa.

Em 21 de fevereiro de 1970, o furriel-enfermeiro Tomé apresenta-se no Hospital Militar, o espetáculo a que assiste nos corredores constrange-o. Irá ser colocado em Bissorã, escreve uma longa carta à sua amiga Laura. Aurora irá conhecer os pais de Alfredo na companhia de Laura e, entretanto, vamos saber um pouco da história desse ano durante a guerra, nova carta de Tomé para Laura, foi colocado em Guileje, conta-lhe como a guerra é duríssima. Tomé já está em Bafatá, em 26 de junho de 1971 um grupo do PAIGC penetra na cidade, faz diferentes estragos, provoca mortos e feridos. A partir desta data os familiares de Tomé deixaram de receber cartas.

Entramos num ciclo dramático, Tomé fora ferido, um tiro alojara-se na coluna quando socorria um ferido na parada, ficara paralisado, a partir de então, as suas pernas seriam duas rodas de cadeira. Laura visita-o no Hospital Militar da Estrela, Tomé desabafa: “Mais difícil do que viver uma grande paixão é falar dela. Mas tão difícil quanto falar dela é resistir a falar dela.” Dá a entender à amiga que é um cadáver da cintura para baixo, Aurora merece encontrar alguém que lhe possa dar tudo aquilo que ele a partir de agora não pode.

É evidente que este ciclo dramático vai torcer-se e retorcer-se até nos trazer uma outra imagem sobre o amor, haverá revelações conducentes à sublimação daquele amor, de tal modo que o desfecho tem filamentos de uma apoteose, assim:
“Não é por acaso que te encontras junto de mim, meu anjo secreto. Desde aquele dia que te vi naquele uniforme de capa e batina. Como uma sombra, saíste daquela praça no teu uniforme de estudante e eu, que nada sabia de ti, com toda a força do fundo do meu ser, respondia ao teu apelo, compreendi que essa jovem tão frágil estava carregada de toda a feminilidade do mundo e que bastaria tocar-te com um dedo para saltar dentro de mim uma faísca capaz de iluminar para sempre o meu caminho, o meu destino, o meu futuro… e que se não morresse fulminado ficaria preso por um desejo, magnetizado para toda a vida. Deus abençoa algumas pessoas com casamentos felizes e filhos saudáveis. Mas também abençoa outras pessoas com a força e resignação para aceitarem uma vida sem casamentos felizes nem filhos saudáveis. Ajuda-as quando esses sonhos não se concretizam, mostrando-lhes que após o fracasso de uma vida sonhada e não concretizada não têm que ficar com o espaço vazio, com um buraco nas suas vidas, onde antes estava o sonho. Existem outros sonhos a serem sonhados.”

A revelação do que aproxima Aurora a Tomé faz deste um homem feliz na contingência das suas limitações. O autor afirma ter-se socorrido de ideias e conceitos que recolheu dos livros "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievski, "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak e "Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro.

Despede-se, assim: “Se desejarem entrar em contacto com o autor para comentar esta obra ou prestar qualquer esclarecimento sobre qualquer outro livro da sua autoria, escreva para nelcerveira@gmail.com. O autor terá o maior gosto em esclarecer qualquer leitor que lhe dirija as suas dúvidas”.


BCAV 8320/73 - Guiné, Junho a Outubro de 1974 - O Nelson Cerveira foi Furriel Miliciano Enfermeiro da CCS
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 5 DE JUNHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10002: Tabanca Grande (343): Nelson Henriques Cerveira, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAV 8320/73 (Bissorã e Bissau, 1974)

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23724: Notas de leitura (1508): Algumas (breves) notas sobre missionação (V) - Conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23701: Lembrete (42): Amanhã, dia 13 de Outubro, pelas 17h00, apresentação do livro "Rua do Eclipse", de Mário Beja Santos, a levar a efeito no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de São Luís, em Lisboa




A todos aqueles que puderem dar-me companhia nesse dia e àquela hora:

Estava previsto este lançamento para 15 de setembro, por razões muito ponderosas a que não me devo furtar, houve que alterar a data, tive a compreensão da Comissão Portuguesa de História Militar, a data foi alterada para 13 de outubro, pelas 17 horas. Terei uma satisfação enorme em falar-vos desta paixão luso-belga onde se irá imiscuir, por indiscutíveis razões do coração e dos rotores da memória, acontecimentos de uma guerra que ocorreu nalguns lugarejos da então província da Guiné, e só uma imaginação descabelada é que pode encontrar pilares de consistência entre uma guerrilha e contra-guerrilha que as novas gerações praticamente ignoram e o encontro de dois cinquentões que se entregam à mais arrebatada epistolografia. Se esta temática de algum modo vos acicata a curiosidade e a minha companhia não seja de desmerecer, prometo não defraudar-vos sobre esta história que começou num breve encontro, corria o ano 1999.

Com a muita cordialidade,
Mário para muitos (ou Mário Beja Santos para todos)

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Em Bruxelas, um breve encontro entre cinquentões, temos paixão e guerra na Guiné

Apresentamo-nos, há aperto de mão, ela chama-se, percebi bem, Annette Cantinaux. E desabridamente pergunto-lhe se podemos almoçar juntos, ocorreu-me, imagine-se, a ideia de um romance, trata-se e alguém que combateu na guerra da Guiné, que ama uma belga, os dois não podem por enquanto, por razões profissionais, viver juntos, telefonam e escrevem muito, ele procura todas as oportunidades para regressar a Bruxelas, para estar junto da mulher amada, ela é intérprete profissional, vive em Bruxelas, na Rua do Eclipse.
Annette Cantinaux, vejo-lhe bem na face, está arrelampada com o pedido que lhe faço, mas acede, iremos almoçar juntos e falar-lhe-ei do que me está a passar pela cabeça, este estranhíssimo rompante de alguém que tem tanto que fazer e que recua 30 anos, até ao tropel de uma guerra. Pasmo-me com a resposta dela: “Parece que me reservou um papel que me assenta bem, na vida real, sou uma mulher divorciada, com filhos a singrar na vida, até me posso de dar ao luxo de me embeiçar por um português, vamos vivendo juntos à experiência e no entretanto damos um ao outro elementos para o seu romance”.
Assim começa uma espiral de palavras cruzadas, de encontros em Bruxelas e em Lisboa, ela às vezes sente-se uma anti-Penélope, vai coligindo e montando uma trama à volta de uma estranhíssima história que tem a ver com uma guerra de guerrilhas que ela totalmente desconhecia, junta as peças, telefonam-se, ele envia-lhe montanhas de correio, até o correio eletrónico é fervente, e ela dirá, sempre radiante que aquele título de romance, Rua do Eclipse, que começou num inesperado encontro, é o galvanizador das suas vidas, como aconteceu.


Mário Beja Santos
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Nota do editor

Vd. poste da série de 4 de Outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23668: Agenda Cultural (813): Convite para a apresentação do livro "Rua do Eclipse", de Mário Beja Santos, a levar a efeito no próximo dia 4 de Outubro de 2022, pelas 17h00, no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo São Luís, 11, em Lisboa


Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23372: Lembrete (41): 37º Encontro Nacional do Pessoal do BENG 447, Brá, Bissau, sábado, 25 de junho, Restaurante O Paraíso do Coto, Caldas da Rainha: há autocarros a partir do Porto e de Lisboa

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23690: Notas de leitura (1504): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Arouca é um bom confecionador de literatura de passatempo, não falta nem drama com ciúme, militares estropeados, heróis da guerra, desgraçados morais, sinais evidentes de que o Estado Novo caminha para a sua perdição. A questão de fundo é a inverosimilhança, não é preciso ser antigo combatente para imaginar um furriel em Guileje, que recebe a visita de figuras gradas do Movimento Nacional Feminino, na comitiva vem a mulher que é o enlevo do seu coração, desencadeia-se uma tempestade de fogo, e aquele furriel, que gosta de tirar fotografias insólitas à Robert Capa, escapa-se para o mato com a mulher apaixonada atrás, capta imagens extraordinárias de gente estorricada pelo bombardeamento aéreo; inverosímeis são também as passeatas de ski aquático em Gadamael. Tudo bem apimentado com bebedeiras de estrondo, ambientes luxuosos, muita roupa de marca, carros que custam fortunas, e um final feliz depois de um longo labirinto de equívocos. Pode-se dizer que é a televisão que vem até à literatura, e não o inverso.

Um abraço do
Mário


Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (2)

Mário Beja Santos

Na década de 1980, Manuel Arouca [foto à direita] ganhou notoriedade com um bestseller intitulado "Filhos da Costa do Sol". Podemos considerá-lo romancista, argumentista e guionista. O seu romance "Deixei o meu Coração em África", Oficina do Livro, 2005 (trata-se da 2.ª edição, que serve de base para esta apreciação) tem como protagonista o Furriel Rodrigo, menino de boas famílias que se entrosam com outras boas famílias, numa circulação entre Lisboa, Sintra, Estoril e Cascais, famílias com muitos negócios, com enorme apreço pelo Estado Novo, a geração de Rodrigo vê emergir sinais de inconformismo com a ordem estabelecida. Há muito álcool, sexo, estranhas sinas do destino que provoca casamentos equívocos, condenados a caírem na água, mas com bodas da maior popa e circunstância, com caçadas e a alta sociedade possidente a marcar presença.

O Furriel Rodrigo Pereira dos Santos vai para Guileje e mais tarde para Gadamael. Manuel Arouca nasceu em Porto Amélia, a presença de Moçambique no romance é uma quase inevitabilidade. Rodrigo é amigo de um jovem banqueiro, Ricardo, com muitos interesses em alguns pontos da colónia; como é amigo de Chico, um ilustre advogado, que depois de Isabel, a grande paixão de Rodrigo, se ter divorciado de Armando, um canalha da pior espécie, com ela vive e convive.

É bom que o leitor atine que há uma senhora africana que é atropelada por Isabel, no Estoril, em 1989, larga um bom maço de papéis que Isabel recolhe, são as memórias de Rodrigo, como solução de trama não deixa de ser um bom “chapéu velho” para que a narrativa tenha seguimento, mesmo com saltos cronológicos, vê-se perfeitamente que o autor domina a técnica do folhetim e conhece bem os condimentos do melodrama. Ricardo foi para a guerra, em Lourenço Marques é recebido com estadão, jantar no Grémio Civil, onde se traja habitualmente a rigor, mas naquela noite é tudo à desportiva, com camisas Lacoste ou Fred Perry, vestidos em linho, sedas naturais, chiffons e organzas. Não faltou nenhum barão das Finanças, Ricardo sente-se atraído por Guida, uma beleza espetacular, viajam de avioneta, são cenas dignas do filme África Minha, frequentam clubes, é tudo um forrobodó, no Sul de Moçambique ninguém fala em guerra, é um dado remoto lá muito em cima. Seguem para Nacala, a seguir entra no palco da guerra, perto de Vila Cabral, não irão faltar caçadas e encontro com Jorge Jardim. Voltamos a Guileje, os ataques sucedem-se, as colunas de reabastecimento são um inferno, não falta também um ataque de abelhas, Rodrigo escreve ao pai a dizer que não há solução militar para aquela guerra, é preciso que os apoiantes do Estado Novo suportem a tese de Spínola, é imperativo uma reconciliação de todos os guineenses, mesmo sabendo-se que o regime rejeita categoricamente conversações com os “terroristas”. O pai de Rodrigo almoça com um ministro de Salazar no Grémio Literário, uma conversação cheia de asperezas, o ministro tem que sair à pressa, fora avisado que o seu nome estava ligado ao escândalo dos Ballet Rose. O Capitão Ivo Ferreira, um amigo de coração de Rodrigo em Guileje, recebe ordens para abandonar Guileje, é vítima da política de Spínola, todos os cabo-verdianos têm que abandonar lugares de comando. Abreviando, um dos amigos de Rodrigo é traído pela mulher que anda com um escroque, quando Rodrigo for a Lisboa para casar desanca-o de tal modo que o energúmeno será hospitalizado; outro amigo terá a sua paixão africana, há casório religioso e civil, uma mina leva-lhe as pernas. Não esquecer, tal como nas telenovelas, Rodrigo gosta de Isabel que casará com Armando, Rodrigo com Leonor, dinheiro para ali não falta, tudo com estadão e bebedeiras.

Regressado do casamento agridoce, Rodrigo é transferido de Guileje para Gadamael. Se toda esta África é já uma arte escritural sempre à superfície, se todo o absurdo da descrição daquele ataque a Guileje em que o Furriel Rodrigo no meio de uma tempestade de fogo corre para a mata acompanhado de Isabel para fotografar as imagens de um ataque aéreo ao grupo guerrilheiro, agora o absurdo fala mais alto, o Furriel Rodrigo irá ter conversações com uma figura de proa do PAIGC, fará ski aquático, com um zebro dotado de um motor potente, Armando, mais onzeneiro do que nunca, manda missivas ao ministro de Salazar, em tom ciclotímico, umas vezes é a euforia da captura do capitão cubano Pedro Peralta, no decurso da Operação Jove, no ano seguinte revelará a profunda deceção por Spínola, por causa do massacre de vários oficiais, em 20 de abril de 1970. Como é próprio de gente fina, Spínola há de visitar o quartel de Rodrigo, trata-o por tu, irá comer chabéu de peixe feito à base de tainhas acompanhado com água das pedras. Há para ali umas lambuzadelas de etnografia e etnologia, casamentos, choros, fanados. E o fim da comissão de Rodrigo é em Bissau, Armando teve à beira de levar um bom par de tabefes, com muito espanto Rodrigo vê marchar os comandos africanos, o comandante é o Capitão Baga, irmão-gémeo de Sima, o chefe guerrilheiro com quem Rodrigo teve conversas sigilosas, claro está.

A guerra acabou, Rodrigo comparece no casamento de Isabel, pouco antes da cerimónia têm uma conversa acalorada, é um arrebatado dueto de amor, com mais poesia só o que Shakespeare pôs nas bocas de Romeu e Julieta. A descrição dos ambientes é sempre de fausto, de grandeza, naquela declaração de amor Rodrigo preparava-se para lhe levantar o vestido, a mãe de Isabel entrou e não se apercebeu daquele furor. Entramos na reta final, a africana recuperou a consciência, chama-se Páscoa, andou nas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, tem um magnetismo muito especial, Rodrigo tinha desaparecido com o pretexto que estava canceroso, deu à costa, Páscoa foi a fiel portadora do documento que Rodrigo foi laboriosamente escrevendo no arvoredo guineense. Numa atmosfera de ópera, dá-se o reencontro entre Isabel e Rodrigo. Rodrigo descobre que é pai do filho de Isabel. Necessariamente que toda esta saga termina em bem, à custa de outros corações destroçados: “Isabel e Rodrigo abraçam-se. Ela encosta-lhe a cabeça no peito. As palavras são completamente desnecessárias. Sentem-se um ao outro como nunca na vida se tinham sentido”.

É esta a síntese de um melodrama que começa em 1968 e desabrocha em 1989, pelo caminho andou-se pelo Sul da Guiné, houve um rol de intrigas, casais trocados, e depois do 25 de Abril aquela besta do Armando andou na trafulhice, depois de ter calcorreado vários partidos. Fica por esclarecer se Manuel Arouca não vai voltar a pôr Rodrigo Pereira dos Santos de novo na Guiné, já que ele ali deixou o coração.
Imagem de uma coluna entre Aldeia Formosa e Buba, retirada do blogue Guiné 1968/69, referente à BCAÇ 2834, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23682: Notas de leitura (1503): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23682: Notas de leitura (1503): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Arouca, moçambicano de Porto Amélia, que diz ter tido uma adolescência rebelde, e que descreve cenas moçambicanas neste seu romance, procurou criar uma fantasia digna de um melodrama e ficcionou um palco dos mais duros que se possa imaginar para pôr o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, um menino fino, dado à boa libertinagem, e que no meio daquele arrebol de afetos se mantém fiel à Isabel, noiva de um bom sacana, que na Manutenção Militar de Bissau tudo faz para denegrir Rodrigo que anda em Guileje a tirar fotografias espantosas de peito feito, quase indiferente aos morteiros 120. 

Se algo de muito bizarro se procurasse na literatura da guerra colonial passa pela inacreditável viagem de uma dama grada do Movimento Nacional Feminino até Guileje e de uma fuga de Rodrigo com Isabel pelo meio das matas para assistir a um bombardeamento de Fiats, no meio do delírio até uma cobra venenosa foge de Isabel, como se esta tivesse dotada de poderes sobrenaturais. Assim concebeu Manuel Arouca o amor em tempos de guerra, veremos para a semana que o melodrama até tem ingredientes para acabar bem.

Um abraço do
Mário



Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (1)

Mário Beja Santos

Manuel Arouca [foto à direita] é nome conhecido não só da literatura de entretenimento como autor de argumentos de telenovelas e séries televisivas e mesmo argumentos de cinema. A recensão desta obra justifica-se porque o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, foi furriel em Guileje, estamos em 1968 e 1969, o primeiro período da sua comissão. Chancelado por uma arquitetura muito comum à chamada literatura de aeroporto, não falta na obra a tentativa de caraterização da atmosfera da vida das classes altas da linha da Costa do Sol, de Sintra e Lisboa, há para ali bastante volúpia, sexo e desejo de aventuras. Para o leitor mais interessado sobre os aspetos capitais da trama, avança-se com o que vem escrito na badana da capa:

“Isabel recebe um manuscrito em condições inesperadas e misteriosas. O seu autor, Rodrigo, desaparecido há seis anos e dado como morto, relata as experiências e as vivências, os factos e as emoções, os encontros e os desencontros que marcaram a sua vida. O leitor é levado numa viagem que, por um lado, o transporta aos loucos anos 60 na alta sociedade lisboeta; e, por outro, à sedução de África. Se encontramos a guerra de guerrilha, difícil e intensa, deparamo-nos também com o glamour de uma vida aventureira, célebre pelos safaris, helicópteros e pela ousadia do quotidiano das fazendas. Uma história que reflete tanto os avatares da guerra como as encruzilhadas do amor de uma sociedade representativa de um Portugal esquecido por alguns e inesquecível para muitos”.

Tudo começa no Estoril, Isabel atropela uma africana que era portadora de uma boa resma de papel A4, a sinistrada é hospitalizada e Isabel vai ler todos aqueles papéis que trazem o nome de Rodrigo, trata-se de um relato autobiográfico em que Isabel está no seu pódio de afetos. Este Rodrigo, que levou uma adolescência em libertinagem, tinha como referência modelar o seu tio Rodrigo, herói da I Guerra Mundial, condecorado pelo Presidente dos Estados Unidos. A narrativa está toda intercalada entre vários tempos e ambientes, Rodrigo já está em Castelo Branco, a Guiné à vista, regressamos ao ambiente familiar, às festas em Cascais, fala-se mesmo muito naquele conjunto de festas emblemáticas coincidentes com a morte política de Salazar, tudo portanto em 1968, Rodrigo é doido por sexo e duas jovens, mesmo em hesitação emocional, têm papel preponderante no seu coração, Leonor e Isabel. 

Tudo se passa em atmosferas seletas, há ministros de Salazar e senhoras muito ativas no Movimento Nacional Feminino. Numa lubricidade bem temperada, Rodrigo quer ir às de facto com Leonor, esta troca-lhe as voltas. E Rodrigo parte para a Guiné, no Uíge, vai-nos apresentando outros participantes. Cita-se Fernando Pessoa, ficamos a saber alguma coisa de quem é o Bastos, nascido em Moscavide, que foi preparado para a vida por uma prostituta profissional, a Fernandinha, e Jaime, nascido em Penacova, licenciado em Direito, fez a recruta em Mafra e conseguiu a extraordinária proeza de ser despromovido por inépcia, manda o bom senso que já estamos no inacreditável.

Entrámos em plena intriga romanesca, o rival de Rodrigo chama-se Armando, é oficial da Manutenção Militar em Bissau, um bajulador de primeira, escrevia ao ministro de Salazar e pai de Isabel cartas contando coisas sobre Amílcar Cabral que vêm em centenas de livros e faz uma apologia do General Spínola, assim:

“O General Spínola não transpira, o que é um fenómeno com este clima. É um homem extremamente metódico. Toma o pequeno-almoço cedo, come sobretudo fruta, especialmente papaias. Não bebe café, bebe sempre um copo de água morna a seguir à refeição porque ajuda à digestão. De seguida, visita as unidades. Ao meio-dia, impreterivelmente, está de volta ao Palácio do Governador. À uma hora, almoça. Uma refeição sóbria, até porque tem problemas de rins”.

 E por adiante, até chegarmos ao polo da admiração: 

"O General Spínola, e isso é unânime entre os oficiais que com ele contactam mais diretamente, inverteu a filosofia da guerra implantada por Schulz, posicionava as tropas num sistema clássico de quadrícula e corria atrás dos acontecimentos. Éramos arrastados pelas atividades do inimigo. Spínola traz um conceito novo, e cria uma estratégia própria, a de ter iniciativa. Não há dúvidas de que com Spínola temos uma nova Guiné. Até no que concerne aos transportes das tropas que chegam da metrópole e são, depois, enviadas para os respetivos quartéis. No tempo do General Schulz, eram na maior parte das vezes enviadas em lanchas pelos braços do mar, sem qualquer proteção, alvo fácil de ataques que poderiam facilmente derivar numa tragédia de grandes proporções. O Comando-Chefe classifica esta forma de colocar as tropas no seu destino de total irresponsabilidade”.

Se até este momento a narrativa é de uma piroseira minimamente cuidada, chegámos ao descaro de quem não estudou e atira umas bojardas apimentadas de santificação.

Estamos agora em casa de Isabel, que lê embevecidamente o manuscrito, ela está na companhia de Chico, presume-se que é o marido, há lá uma criança com seis anos que fala só e constantemente com a mãe. Rodrigo conta a viagem para Cacine numa LDG, aqui houve separação de tropas, seguiram para Gadamael Porto, e no dia seguinte, às revoadas, eram largados de avioneta em Guileje. O Comandante da Companhia é o Capitão Ivo Ferreira, cabo-verdiano altamente patriota, leva o obus até perto da fronteira e larga umas boas ameixas em bases onde se acantonam gente do PAIGC. Rodrigo fotografa tudo, o capitão açambarca o material fotográfico, dá-o como confiscado. O médico, o Dr. Branco, é um alcoólico incorrigível. Guileje é flagelada com morteiros 120, Rodrigo, impávido e sereno, tira fotografias a esmo no meio da algazarra. Começam as baixas, morreu o Santos, alguém que esperava o fim da comissão para entrar num seminário. As cartas de Rodrigo para Isabel são incandescentes, não faltam saudades e pedidos de companhia.

Estamos agora em janeiro de 1969, os amigos e a família chique de Cascais e arredores encontram-se, a guerra colonial é coisa que não existe nas suas vidas. Mas algo de extraordinário vai acontecer, a mulher do ministro de Salazar, uma alta graduada do Movimento Nacional Feminino, vai a Bissau levar uma oferta de vulto, faz-se acompanhar de Isabel. Quem vai a Bissau também vai a Guileje, as senhoras são recebidas com pompa e circunstância, no meio da receção calorosa estoira um foguetório, a gente do PAIGC não perdia oportunidade de indispor as visitantes. Decorre a flagelação informal e desta vez Rodrigo sai do quartel na companhia de Isabel, embrenham-se na mata, vai tirar fotografias ao ataque aéreo, saiu de Bissalanca uma parelha de Fiats G-91 que destroem a força atacante, fica tudo esturricado. Um dos amigos de Rodrigo naquele grupo de alta sociedade era Ricardo, filho de um dos milionários moçambicanos, um jovem que só vestia no Pestana e Brito, está numa Companhia de Comandos que parte para Moçambique. Vamos assistir à descrição da vida da gente fina em Lourenço Marques e até a um encontro com Jorge Jardim. Armando, em Bissau, destila mentiras e informa o ministro de Salazar que a guerra na Guiné estava praticamente ganha.

“As visitas do General Spínola aos nossos aquartelamentos são momentos épicos. Nas tabancas próximas, antes das visitas, estas são aliciadas com ofertas, como aguardente de cana e folhas de tabaco. Depois, as bases inimigas que se encontram mais próximas das nossas posições são bombardeadas impiedosamente. No seio dos terroristas instala-se o medo e a discórdia. Já não falta muito para que eles icem a bandeira branca, implorando tréguas, pois dificilmente aguentarão por muito mais tempo a nossa pressão e a das próprias populações da Guiné”.

(continua)
Carlos Santos, da Companhia de Cavalaria 8350 ‘Os Piratas de Guileje’. Imagem retirada do jornal Correio da Manhã, com a devida vénia

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23665: Notas de leitura (1502): "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier; Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23668: Agenda Cultural (813): Convite para a apresentação do livro "Rua do Eclipse", de Mário Beja Santos, a levar a efeito no próximo dia 13 de Outubro de 2022, pelas 17h00, no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo São Luís, 11, em Lisboa




A todos aqueles que puderem dar-me companhia nesse dia e àquela hora:

Estava previsto este lançamento para 15 de setembro, por razões muito ponderosas a que não me devo furtar, houve que alterar a data, tive a compreensão da Comissão Portuguesa de História Militar, a data foi alterada para 13 de outubro, pelas 17 horas. Terei uma satisfação enorme em falar-vos desta paixão luso-belga onde se irá imiscuir, por indiscutíveis razões do coração e dos rotores da memória, acontecimentos de uma guerra que ocorreu nalguns lugarejos da então província da Guiné, e só uma imaginação descabelada é que pode encontrar pilares de consistência entre uma guerrilha e contra-guerrilha que as novas gerações praticamente ignoram e o encontro de dois cinquentões que se entregam à mais arrebatada epistolografia. Se esta temática de algum modo vos acicata a curiosidade e a minha companhia não seja de desmerecer, prometo não defraudar-vos sobre esta história que começou num breve encontro, corria o ano 1999.

Com a muita cordialidade,
Mário para muitos (ou Mário Beja Santos para todos)

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Em Bruxelas, um breve encontro entre cinquentões, temos paixão e guerra na Guiné

Apresentamo-nos, há aperto de mão, ela chama-se, percebi bem, Annette Cantinaux. E desabridamente pergunto-lhe se podemos almoçar juntos, ocorreu-me, imagine-se, a ideia de um romance, trata-se e alguém que combateu na guerra da Guiné, que ama uma belga, os dois não podem por enquanto, por razões profissionais, viver juntos, telefonam e escrevem muito, ele procura todas as oportunidades para regressar a Bruxelas, para estar junto da mulher amada, ela é intérprete profissional, vive em Bruxelas, na Rua do Eclipse.
Annette Cantinaux, vejo-lhe bem na face, está arrelampada com o pedido que lhe faço, mas acede, iremos almoçar juntos e falar-lhe-ei do que me está a passar pela cabeça, este estranhíssimo rompante de alguém que tem tanto que fazer e que recua 30 anos, até ao tropel de uma guerra. Pasmo-me com a resposta dela: “Parece que me reservou um papel que me assenta bem, na vida real, sou uma mulher divorciada, com filhos a singrar na vida, até me posso de dar ao luxo de me embeiçar por um português, vamos vivendo juntos à experiência e no entretanto damos um ao outro elementos para o seu romance”.
Assim começa uma espiral de palavras cruzadas, de encontros em Bruxelas e em Lisboa, ela às vezes sente-se uma anti-Penélope, vai coligindo e montando uma trama à volta de uma estranhíssima história que tem a ver com uma guerra de guerrilhas que ela totalmente desconhecia, junta as peças, telefonam-se, ele envia-lhe montanhas de correio, até o correio eletrónico é fervente, e ela dirá, sempre radiante que aquele título de romance, Rua do Eclipse, que começou num inesperado encontro, é o galvanizador das suas vidas, como aconteceu.


Mário Beja Santos

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DETALHES DO PRODUTO

Rua do Eclipse
de Mário Beja Santos
ISBN 9789897557743
Edição/Reimpressão 07-2022
Editor: Edições Humus
Dimensões: 143 x 210 x 26 mm
Páginas: 416

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23657: Agenda Cultural (812): "CONTOS DO SER E NÃO SER", livro da autoria de Adão Cruz (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887), posto ontem, dia 29 de Setembro, à venda