sábado, 31 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > Diz o Joaquim Costa: "Oj encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo."... Mas segundo o Luís Graça, esta história  terá acabado mal... Foto acima: um típico pratod e chanfana, cortesia da RTP.




A Joana e o Tigre (1973). Foto:
cortesia de Joaquim Costa


1. Já temos pelo menos  dois textos, em resposta ao nosso desafio,  lançado no poste anterior desta série, "Passatempos de verão" (*)


Fábula 1: 
"Não se pode servir dois senhores 
ao mesmo tempo"

por Luís Graça



Sou a cabra Joana de Nhacobá. Minha terra fica no sul da Guiné-Bissau, na região de Tombali, dizia minha dona.

Já não cheguei a conhecer a Guiné-Bissau. Sou do tempo dos “tugas”. Tive um amigo, o Tigre do Cumbijã, um cão rafeiro,  que pertencia aos “tugas”. Mas ele era tão guineense quanto eu.

A minha história é triste. Fui apanhada pelos “tugas” quando bombardearam com aviões e atacaram por terra a minha querida tabanca, Nhacobá. Fui levada para Cumbijã, como prisioneira.  Não me trataram mal, a princípio. Mas, no fim, acabei morta e cortada aos pedaços num alguidar, coberto de vinho do Cartaxo (, não havia vinho do Dão, dizia o malvado do cozinheiro.)

Se bem percebi pelas conversas que marcaram os últimos minutos da minha vida, queriam fazer, comigo, um prato “tuga”, horrível, a que chamavam “chanfana”, da cor do alcatrão. Uns desgraçados de uns milícias aproveitaram a minha linda pele para fazer um ou mais jambés.

Não fui morta à moda dos fulas, degolada. Deram-me um tiro de pistola Walther, 9 mm de aço. Fechei os olhos. Não quis ver a cara do carrasco. Não sei se era branco ou negro. No quartel havia milícias.  Estava nervosos, e com pressa.

A minha história é triste mas também tem um lado exaltante e até heróico. Dizem que eu vim de um tabanca mais a norte, ainda no quarto crescente da lua da guerra. No início da luta, o Cabra Matcho Nhô Vieira chegou lá e disse: “Partido manda pessoal procurar abrigo nas matas do Cantanhez que tem árvore grande. Se não, vem avião ‘tuga’ e lança bomba e mata povo”. 

Eu era pequenina, ainda de leite. Mas minha dona trouxe-me ao colo para a nova morança.  Só me lembro de Nhacobá onde cresci e por onde passava coluna grande do Partido com armas e bianda. Manga de canseira.

Um dia dei leite para Cabra Matcho Nhô Vieira que estava com febres. Ele ficou muito agradecido e deu ordem: “Ninguém faz mal à cabra Joana. É uma grande combatente da liberdade da Pátria”. 

Todas as vezes que ele passava em Nhacobá (, raramente cá ficava,) ia-me visitar à minha morança e fazer uma festinha… Não sei se “tugas” sabiam desta história. Não deviam saber, se soubessem mandavam logo  lá o Marcolino da Mata para me apanhar à mão. O Marcolno também era um cabra matcho, dizia o povo de Nhacobá.  Odiava o Nhô Vieira, eram irmãos  da mesma tribo mas rivais. 

Um dia quiseram apanhar Cabra Matcho Nhô Vieira, mas em vez dele apanharam capitão cubano. Foi coisa dos paraquedistas de que tínhamos muito medo. Até que um dia manga de tropa cercou a tabanca, houve mortos e feridos, minha dona não conseguiu mais segurar-me. E um tal “tuga” Djoquim Costa me prendeu com corda grossa e me trouxe para Cumbijã. Vim  o caminho todo a dar marradas, até ficar exausta.   Chorei, nesse dia.  Cabra Matcho Nhô Vieira estava mais abaixo, na batalha do Guiledje, não me pôde defender nem salvar.

Fiquei no quartel dos “tugas”, em Cumbijã, mais de um ano. E confesso (, que os camaradas aqui não me ouvem!): fui lá feliz e diverti-me. Eu e o meu amigo, o cão rafeiro Tigre do Cumbijã. Só queríamos mesmo era brincadeira. E fazer estragos na horta dos "tugas".  Davam-me de comer mas eu também trabalhava. Dava leite aos doentes e limpava os chão do quartel: apanhava tudo o que fosse comestível,  de trapos a papel.

Um dia quis saltar o arame farpado para ir até à bolanha, desentorpecer as pernas, mas fiquei lá presa, no arame.  O cão rafeiro Tigre do Cumbijã foi a correr, a ladrar, chamar o “tuga” Djoquim Costa, que era o meu novo dono. Lá me safou. Levou-me à enfermaria. Furriel enfermeiro, manga de bom pessoal, cuidou de mim.

Acho que quase todos os "tugas" gostavam de mim. Até o general Caco Baldé foi ver a cabra do Cabra Matcho.  Mas havia alguns que andavam sempre a rosnar: "A fome é negra"...Nunca cheguei a saber qual era a cor da fome: se era negra para os brancos, ou branca para os negros.  Para mim, era de todas as cores. Eu sou cabra, não sou burrra...

Mas chegou a véspera do fatídico dia de entrega do quartel de Cumbijã aos camaradas do Partido. A data estava aprazada para 7 de agosto de 1974. 

Os “tugas” sabiam que o Cabra Matcho Nhô Vieira estava farto de procurar por todo o lado a sua cabra favorita. Que era eu. Com medo de alguma surpresa desagradável, ou contratempo de última hora, os “tugas” deram-me a sentença de morte. Não sei quem foi. E para mostraram que eram imparciais e justos como o  rei Salomão, ¥¥  mandaram matar também o pobre do meu amigo cão. A mim comeram-me, de chanfana. Ao Tigre do Cumbijã fizeram-lhe um funeral com honras militares e tudo. 

Quando chegaram os camaradas do Partido, para a entrega do quartel, perguntaram por mim. Os “tugas” responderam, cinicamente, que eu não fazia parte do inventário. E que por azar tinha saltado o arame farpado e pisado uma mina. O que era mentira. Eu era endiabrada mas não era suicida. 

Entregaram apenas um embrulho com os meus ossinhos, todos pretos. Sei, já no céu dos animais, que  o "tuga" Djoquim Costa, bom pessoal,  chorou por mim,  e que o Cabra Matcho Nhô Vieira também teve um grande desgosto. Como se tivesse perdido uma das suas mulheres. 

Em minha  homenagem, o Partido mandou-me inumar no Panteão Nacional, lá em Bissau, debaixo de um grande poilão, com uma placa a dizer o seguinte: “Aqui jaz a cabra Joana de Nhacobá, grande combatente da liberdade da Pátria”.

Moral da história,: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo.  Um dos dois fica mal servido".

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22419: Os nossos seres, saberes e lazeres (462): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fotogramos e adiamos, muitas vezes esquecemos, até àquele momento em que recebemos um severo aviso que pululam imagens a mais, então lá vamos lestos a preparar a limpeza. E quando tudo se espalha pelo ecrã do computador, rugimos de fúria, como foi possível ter tido tais deslumbramentos e tais omissões? E destarte aqui se têm preparado itinerâncias que metem culpabilização por ter omitido, esquecido ou negligenciado material captado para partilhar. Foi o que aconteceu, no caso concreto de hoje, com a visita, ainda decorriam as obras, nos passadiços da Ribeira de Quelhas, no Coentral Grande, Castanheira de Pera, em tempos idos, antes da coluna e das artroses se negarem à empreitada, aqui se subiu e desceu a contemplar este maravilhamento natural; e porque se visita a Feira da Ladra com uma certa regularidade nos alvores das manhãs de sábado, há um outro maravilhamento que nos acicata, olhar de frente o enfiamento entre a cidade e o Tejo, com Santa Apolónia pelo meio, aposta-se mais nestas imagens de inverno puro, este equívoco entre Lisboa noturna e o esplendoroso amanhecer, entre bruma e uma ficcionada camada de gordura; e visitara-se uma exposição sobre as moranças da Guiné e restaram imagens de outros lados do Museu de História Natural e da Ciência, até mesmo uma fotografia com sorrisos muito afetuosos; e guardara-se um remanescente de imagens de uma inesquecível exposição em Tomar. Avivam-se as saudades e partilha-se com os outros o que dessas saudades ficou, num estado de imensa cordialidade.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9)

Mário Beja Santos

Parte-se para um evento, leva-se a devida carga de curiosidade, casos há em que previamente se estuda o que se vai ver, é regular a vontade de partilhar o que se olhou e viu, aquilo que ganhou sentido e merece alguma cogitação. Será porventura o caso destas imagens em que houve, digo-o sinceramente, a determinação de as pôr em ordem e mostrá-las aqui, o diabo tece-as, entrepõem-se outros misteres, perde-se o rumo ao que se guarda na câmara, e acontece o dia em que se abre no ecrã do computador este caleidoscópio, sente-se inicialmente um amargo de boca, ora, mais vale tarde do que nunca, toca de cerzir ajuntamentos de imagens.

Visitei cheio de curiosidade as obras em fase de conclusão dos passadiços da Ribeira de Quelhas. Por aqui passei a partir de 1995, fiz o fim do ano a conhecer as aldeias serranas da Serra da Lousã, alguém me disse que devia ir ao Alto do Trevim e descer aos Coentrais, se tivesse gosto em ver um esplendor natural bem singular. O que aconteceu, ao tempo ainda a coluna vertebral me permitia, com calçado apropriado, calcorrear por fragas e empenas e desfrutar as cascatas cheias de água, um murmúrio quase genesíaco. E quando soube que íamos ter passadiços, logo ali fui espevitado pela curiosidade, isto salvo erro à volta de maio de 2020, vivíamos o primeiro aceso da pandemia. O concelho de Castanheira de Pera apostava numa oferta de lazer e turismo, e assim se decidira um passadiço de madeira, 1200 metros na margem direita da Ribeira das Quelhas, bem próximo do Coentral Grande. As obras tinham-se iniciado em dezembro de 2019 e chegaram a bom porto. Com muita alegria, encontrei no blogue Vagamundos, um texto de apresentação que com a devida vénia se reproduz:
“Ribeira das Quelhas, com as suas magníficas cascatas e lagoas, é uma das maiores maravilhas naturais da Serra da Lousã. Até há bem pouco tempo, para conseguir desvendar os seus segredos, era imperativo fazer um dos trilhos mais exigentes da Serra da Lousã, com um pouco de escalada à mistura, ou então seguir o curso da ribeira através da prática do canyoning. Mas temos boas notícias para si: no verão de 2020 nasceram os Passadiços da Ribeira das Quelhas, tornando muito mais acessível a visita a um dos locais mais belos e selvagens da Serra da Lousã.
A Ribeira das Quelhas nasce na Nascente dos Seixinhos, numa das vertentes da Serra da Lousã, conhecida pelo nome de Santo António da Neve, nome que recebeu por ser o lugar onde outrora haviam poços de neve, que serviam para armazenar a neve do inverno e conservá-la até ao verão, à imagem do que se fazia na Fábrica do Gelo do Montejunto. Posteriormente o gelo era levado para a Corte portuguesa em Lisboa, para que se pudessem refrescar durante os quentes verões lisboetas (sim, nessa altura já gostavam de comer sorvetes e beber um whisky “on the rocks”).
Desde a sua nascente, todo o percurso da Ribeira das Quelhas é feito por entre quelhas rochosas e penhascos de xisto e granito, resultando em idílicas cascatas, cada uma com o seu poço de água cristalina, que convida a inesquecíveis mergulhos nos dias quentes de verão. O enquadramento paisagístico é simplesmente brutal!”
.


Sempre que me é possível, visito aos sábados ao amanhecer a Feira da Ladra, sonho em dar um pontapé e saltar uma pepita de ouro, o universo do bricabraque é extensível, vou sempre preparado para trazer os alfobres cheios ou vazios, só compro a gosto. Chegar ao amanhecer à Rua do Vale de Santo António, em pleno inverno, permite este espetáculo, é a noite iluminada, o Tejo ao fundo, o dia a clarear, com mais um quarto de hora aquele céu vai incendiar-se, será dia promissor, mas quem aqui tomou a fotografia ruma apressado à procura de pepitas, diademas sobre a forma de livros e toda aquela casta de traquitana que me adoça a existência, gostos não se discutem, o mais importante de tudo é sentirmos intimidade com esta pele que inventamos para decorar as nossas casas, para já não falar dos livros que são trampolins para a liberdade de espírito.
Fora visitar no Museu Nacional de História Natural e da Ciência uma exposição sobre as moranças da Guiné, era inevitável andar por ali a cirandar, foi o que aconteceu, entrei numa sala de aula do século XIX (aqui funcionou a Faculdade de Ciências, e aqui o incêndio devastador, em 1978, nos fez perder património de alto calibre). Contíguo à sala de aula, cujo teto me impressionou, funcionou uma zona laboratorial, só tenho pena da falta de luminosidade, e mais adiante captei um tema religioso, como, à saída da exposição, achei imensa graça a um desses temas de feira onde ainda hoje se podem tirar fotografias à la minuta e resolvi registar duas princesas sorridentes, a petiza estava bem feliz, exigira ver dinossauros e saía satisfeita.
Algures, entre novembro e dezembro de 2020, visitei a exposição Os Sítios da Pedra, no Complexo da Levada, em Tomar. Tudo me fascinou, considerei um achado a articulação perfeita encontrada por organizadores e artistas para pôr em diálogo o Nabão, uma construção multisecular, um aparato industrial, a pedra, a cantaria, o fascínio da escultura. Por ali cirandei para encontrar um móbil de todos estes sítios da pedra, naquele preciso lugar, com um curso de água a correr em permanência, um preciso lugar de origem templária e que marcou o fulgor da industrialização tomarense. Senti que aquela exposição era uma original sala de conversa de diferentes tempos, de diferentes misteres, operando silêncios mágicos, talvez uma brilhante homenagem a quem lava a pedra, desde a calçada à escultura artística. Muitos meses depois, deparei-me com estas imagens a que não dera destino e não hesitei em plantá-las aqui, saudando quem arquitetou esta bela exposição, mais a mais guardo Tomar no coração.

Ainda não é ponto final para as itinerâncias de onde respiguei estas imagens avulsas, vamos de seguida para o Jardim Botânico, foi visita distinta daquela que se fez ao Museu de História Natural e da Ciência, precisava de luz clamorosa para toda aquela riqueza vegetal, e vão ver como fui muito bem compensado.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22400: Os nossos seres, saberes e lazeres (461): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22418: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Hamburgo, Alemanha Federal, 1967




Hamburgo > 1967 > O António Graça de Abreu e a sua namorada alemã
 


Hamburgo >  Ao centro, a imponente Rauthaus, a câmara municipal



 
Hamburgo >  O famoso Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles tocaram, em 1962,  antes de se tornarem famosos 



Hamburgo, > Jardim frente à janela do quarto

[ Texto e fotos recebidos em 16/7/2021] 
 

1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.


Hamburgo, Alemanha, 1967


A cidade de Hamburgo, nos meus dezanove anos, por causa da menina do Elba, loira e linda.

Bramfeld, a rua Steilshooperstrasse, o Stadtpark, encaminhar os meus passos. O senhor Balk, meu potencial sogro, nascido em Danzig, actual Polónia. Havia sido, então há vinte cinco anos atrás, soldado de Hitler, marchando, consumindo-se, combatendo na campanha da Rússia. Regressou vivo, sobreviveu à guerra. Falava pouco, saía de casa ao fim da tarde para, com amigos, se encharcar em schnapps, as aguardentes tedescas. Mas, com a minha quase sogra de Berlim, fez esta filha de olho azul e cabelos de ouro, doce e perfeita, meia de alabastro, meia de marfim, que me acompanhava e tomava conta de mim.

O Alstersee dividido em dois lagos, quantas vezes atravessado no frio do Inverno, à noite, com neve caindo devagar, no silêncio das águas geladas… Logo ali ao lado, levantava-se a imponência do rendilhado do poder na Rathaus, o palácio do município onde ainda havia judeus gerindo, governando.

Hamburgo, cidade hanseática, o rio Elba, o trato, o comércio, o saber fazer, o porto unido a todos os recantos do mundo.

Nesse tempo era a serena loucura, quase um ano na organizada e disciplinada Germânia, estudando alemão, trabalhando doze horas por dia numa espécie de restaurante, um Selbstbedienung encaixado na Hauptbanhof, a estação central dos caminhos de ferro.

Aos fins de semana, com a menina de Hamburgo, íamos dançar, unindo corpos e bocas no recato de uma discoteca romântica por detrás da Jungfernstieg, a rua central, ou, em alternativa, íamos pular, saltar com a batida das bandas de ocasião no Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles, recentemente, antes da fama, haviam tocado.

Recordo a visita à cidade de um decadente e obsoleto Xá da Pérsia. Grandes manifestações contra a sua presença, eu, entre estudantes alemães e muitos jovens iranianos a estudar em escolas de Hamburgo e Berlim, e os gritos "morte ao xá!".

Nos protestos, em Berlim, então sitiada entre Leste e Oeste, tiros da polícia e um jovem alemão assassinado [  em 2 de junho de 1967 ], de nome Benno Ohnesorg . (Vd. Wipedia:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Benno_Ohnesorg). Perfazia vinte anos, tal como eu. Os estudantes iranianos iriam em breve regressar a Teerão. Depois do ódio ao xá, reverenciariam o Aiatolah Khomeini. 

 No pequenino quarto alugado na pensão de Frau Hamm, um amor bonito para enfeitar os dias. Inge Balk e António, um infindável abraço luso-alemão. No Verão, a janela aberta para o respirar do jardim situado em frente, Planten un Blomen, plantas e flores.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra


Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

Foto (e legenda): © JOaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. A foto da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, da autoria do Carlos Machado, é um espanto!... Um "instantâneo" muito feliz!...

Dá para os "miúdos da escola" (aqui ou na Guiné-Bissau) escreverem uma fábula sobre a "estupidez da guerra" ou qualquer coisa parecida... (O que é que será mais parecido com a "estupidez da guerra" ?  A guerra e a estupidez.).

Ou então dá, também, para os nossos leitores escreverem uma história para os seus  netos, partindo das suas memórias já muito esbatidas daquela terra, que era outrora era verde e vermelha, e estava a ferro e fogo... 

Leitores de Portugual, leitores da Guiné-Bissau, ou outros, que a "estupidez da guerra" é de todos os tempos e lugares... Fica aqui o desafio, retomando uma série, já antiga,  do nosso blogue, "Passatempos de Verão", ams inactiva desde 2017 (**).

A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada  pelo  PAIGC,  no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores.

Foi levada, a Joana,  para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos. 

Enfim, mais uma pequena história que não cabe na grande História com H. Ou será que cabe (ou devia caber) ?... Talvez um dia os senhores historiadores se lembrem de juntar, aos homens, as cabras e os cães, que os acompanhavam na paz e na guerra. Tal como os vírus, bactérias, parasitas, protozoários, fungos e bacilos que os dizimavam, aos homens e aos seus animais domésticos.

O Valdemar Queiroz comentou (**): 

"A cabra Joana e o cão Tigre,,, Até dava uma fábula, 'tá bem, mas atenção que as crianças são curiosas e poderiam atirar com: a Joana ao ataque e o Tigre encolhido. Ou os habituais reparos: mais uma a deitar abaixo a nossa tropa (um tigre) a encolher-se a um ataque no IN (uma cabra)." (...)

O nosso editor Luís Graça, mauzinho, também deu a sua dica (**): 

"Aposto que a cabra Joana acabou no prato dos Tigres do Cumbijã. Chanfana, de cabra velha. Mesmo nascida depois da guerra,  no final, em 1974,  já devia ser dura que nem um corno. Se assim foi, e o Joaquim confirmará, a pobre Joana terá sido um dos últimos despojos do império. Como a malta não comia cão (a menos que houvesse algum macaense na CCav 8351), o resultado só pode ter sido Tigre 1, Joana 0. Mas pode haver outras narrativas"...

E são essas narrativas, de preferência sob a forma de "fábulas", 
bem humoradas, mais ou menos infantis, politicamente incorretas, que esperamos da parte dos/as nossos/as leitores/as... 

Para já o poste não tem numeração (, será o P00000, volante, de modo a aparecer todos os dias em destaque na página de rosto do blogue). Queremos assim dar oportunidade (e visibilidade) aos nossos leitores para que os seus  talentos literários (incluindo a sua imaginação e sentido de humor) se manifestem, este fim de semana, de preferência sem quaisquer entraves nem  censuras...

Toda a gente já leu ou ouviu uma fábula do grego Esopo ou do francês La Fontaine... Fábula (latim fabula, -ae, conversa, lenda, conto, narrativa) tem várias aceções ou significados. Por exemplo: 1. [Literatura] Composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção.

Fonte: "fábula", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/f%C3%A1bula [consultado em 29-07-2021].



Mandem os vossos textos (, curtos, dois ou três  parágrafos, meia página A4) para os endereços dos nossos editores que estão de serviço neste final de julho / princípio de agosto do ano da (des)graça de 2021:

(i) Luís Graça (Lourinhã):

luis.graca.prof@gmail.com

(ii) Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos):

carlos.vinhal@gmail.com


2. Operação Balanço Final, Região de Tombali, Nhacobá, Sector S2, 17 a 23Mai1973


Com a finalidade de ocupar Nhacobá, S2, em que intervieram forças das CCaç 3399, 3ªC/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431, quando se deslocavam no itinerário Cumbijã-Nhacobá, tiveram 2 contactos com o inimigo de que resultaram 7 mortos para este e 1 morto, 5 feridos graves e 9 ligeiros para as NT. 

Foram apreendidas ao inimigo 1 esp autom "Simonov", 3 esp autom "Kalashnikov", 1 esp "Mauser", l LGFog "RPG-7" e 1 gran de LPFog  "RPG-7", além de material diverso.

Três dias depois pelas 09H50 as nossas forças foram emboscadas por um grupo IN na região próxima de Guileje. As NT sofreram 1 morto, 1 ferido grave e 2 ligeiros. O inimigo sofreu baixas prováveis.


Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015), pág. 304

Guiné 61/74 - P22416: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É muito estreita a ligação que se estabeleceu entre Paulo Guilherme e Gilles Jacquemain. Paulo tem neste seu amigo belga um confidente e um infatigável companheiro de trabalho. Gilles anunciou-lhe que iria fazer uma palestra a Lovaina-a-Nova e pede ajuda ao amigo português e este manda-lhe contributos sobre a alvorada e o desenvolvimento da sociedade de consumo. Só se voltarão a encontrar no outono, há agora um curtíssimo período de férias, um regresso para o final do ano letivo e Annette vem para Portugal passar o mês de agosto. Já é de supor que o regresso dela a Bruxelas a deixará numa grande infelicidade , sempre a ruminar qual a melhor solução para estarem mais próximos. Felizmente que ambos são realistas, ela sabe alguma coisa de rigoroso de como passa o mundo naquela primeira metade da primeira década do século XX, ele é professor e conta aos seus alunos que se entrou num tempo de hiper qualificação e hiper desqualificação, que o sistema educativo se revela incapaz de dar orientações eficazes para as escolhas profissionais, morreram os empregos para toda a vida, nunca no mercado do trabalho tudo foi tão contingente e aleatório. E Annette e Paulo têm os filhos nessas condições, daí a prudência com que gerem o seu arrebatado amor.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Gilles Jacquemain, como chegarei a Bruxelas em data posterior à tua conferência no curso promovido pelo professor Thierry Bourgoignie, em que te concederam duas horas para palestrares sobre os desafios deste nosso novo século para um consumo solidário e mobilizador da cidadania, como tu me pedes algumas sugestões de acordo com as aulas que eu dou, limito-me a alguns conceitos do passado e do presente, e falarei em voz alta contigo, meu incondicional companheiro destas lides europeias sobre o que se pode prever para os anos seguintes.

Eu começaria em primeiro lugar por referir os tópicos da alvorada da sociedade do consumo, a linha de montagem e organização científica, os pilares da economia de escala, a porta aberta à fluidez do consumo, à industrialização e aos serviços, tudo com o concurso de um novo paradigma energético que não existira nas sociedades agrícolas que lhe precederam, o petróleo e a eletricidade. Podes inclusivamente referir que este prenúncio da massificação foi acompanhado de novas formas reivindicativas no trabalho, foi graças à coesão sindical que não só melhoraram as condições de vida como surgiu a higiene e a segurança no trabalho. Não te esqueças de dizer que este processo não foi linear, teve grandes avanços, no caso europeu, na Europa do Norte, tu és um belga e podes dizer com orgulho que no início do século XX a Bélgica tinha a quinta mais importante economia do mundo. No meu país, a sociedade de consumo só se confirmou na década de 1960, decresceu de forma impressionante a população agrícola, multiplicaram-se as pequenas indústrias e alguma grande indústria, proliferaram os serviços, com o turismo à frente.

Em segundo lugar, eu teria o cuidado de interpretar os saltos tecnológicos, falaria na evolução da comunicação e dos transportes, o cabo submarino, o telégrafo, a rádio, a televisão, o radar, o telefone, a progressiva rapidez nos transportes. Não se pode esquecer a referência à expansão económica dos Estados Unidos, ás descobertas da química que revolucionaram a indústria dos medicamentos, os produtos de higiene, a cosmética, o nascimento dos detergentes.

Em terceiro lugar, a questão ideológica da sociedade de consumo. Perante uma Europa em ruínas, no termo da II Guerra Mundial, as potências ocidentais entenderam-se rapidamente que para combater quaisquer tentações totalitárias era indispensável um modelo de democracia pluripartidária acompanhado de uma sociedade de consumo, emprego para todos, bons serviços de saúde, a apologia do consumo para todos. Assim nasceu a complexidade do mercado com os seus contratos, compras por recibo, publicidade avassaladora, plásticos, liofilizados, supermercados, viaturas para todos os preços, desde a Velosolex e a Lambreta, carros utilitários até às viaturas luxuosas. Foi necessário encontrar novas formas de gestão urbana e também mudou o nosso modo de vida: a dimensão da casa, os artefactos da cozinha, a democratização dos eletrodomésticos. E os governos de qualquer cariz ideológico obrigaram-se a aperfeiçoar o sistema educativo.

Creio que já estás em condições de fazer uma súmula de todo este processo desencadeado por décadas de crescimento em que nasceu espontaneamente um novo grupo de pressão que iria ocupar um campo de atuação totalmente distinto, fazendo exigências sobre os direitos que assistiam aos consumidores. Enquanto o mercado se inundava de produtos e serviços, surgiram inquietações e protestos: eram as próprias organizações científicas que anunciavam a retirada de aditivos alimentares tóxicos. Um gravíssimo acidente com um medicamento (Talidomida) que atingiu profundamente as famílias dessa Europa próspera obrigou à organização de um controlo do medicamento que é tão severo ontem como hoje; e surgiram protestos com as práticas comerciais irregulares, publicidade enganosa e sobretudo esta nova situação de que o consumidor não dispunha de informação nem formação com conhecimento de causa. Acho que é o momento propício de falares da mensagem do presidente John Kennedy ao Congresso, em 15 de março de 1962, em que referiu que por definição todos nós somos consumidores, passávamos a ter direitos. E dos Estados Unidos este movimento associativo estendeu-se a diferentes países da Europa Ocidental, surgiram associações de consumidores, mas muitos outros grupos reivindicavam a defesa do consumidor: famílias, movimentos sindicais, ligas femininas, cooperativas, tanto as de consumo como as de habitação. Passaram a exigir legislação, a constituição de organismos estatais que apoiassem o consumidor. E durante décadas foi graças a esta riqueza social que se estabeleceu um dinâmico movimento associativo que hoje está em visível quebra.

O quinto aspeto que me parece importante relevar é que independentemente da legislação que veio dar uma maior limpidez ao mercado é de que a tecnologia manteve o seu caminho imparável e muito cedo se pôs a questão de intervir em prol do ambiente. Tudo começou com os rios inquinados por produtos químicos, oceanos de espuma, contaminações dos fertilizantes, poluição atmosférica, cheiros nauseabundos resultantes de indústrias mal controladas. Só mais tarde se levantarão as questões de aproximação entre os consumidores e os ambientalistas, na década de 1980 os consumidores são confrontados com as chuvas ácidas e sobretudo com os rasgões da camada de ozono, e apontava-se o dedo a bens de consumo. A ciência encontrou respostas, caso do conversor catalítico para o automóvel e a mudança de componentes químicos nos aerossóis. Mas a relação consumo-ambiente manteve-se e continua a manter-se muito dúbia, por culpa de ambas as partes.

O sexto aspeto em que eu julgo que deves pôr um ponto tónico é que a sociedade de consumo de massas passou de uma fase da industrialização para a economia dos serviços e daquilo que se chamava o consumo semicolectivo para o consumo individualizado. Não se pode omitir que a partir de meados da década de 1970 as Comunidades Europeias passam a dispor de uma política informal de defesa do consumidor, verifica-se que a ecologia não é moda passageira e a Comissão Europeia foi favorável a apoiar o aparecimento de produtos ditos ecológicos.

O mundo mudara, falava-se em globalização, aumentara a esperança de vida, já se falava abertamente no aumento explosivo das despesas com a saúde, em novos critérios para as pensões de reforma, entrara-se numa sociedade de consumo e comunicação. É aqui que é indispensável uma referência à chegada do digital, ao desenvolvimento de uma sociedade de espetáculo. Eu daria aqui alguma ênfase às políticas dos consumidores na União Europeia, desde 1975 até ao dobrar do século, não iludindo de que a política dos consumidores passara a estar praticamente confinada às realizações do mercado único europeu.

Meu querido amigo, estou absolutamente seguro de que só tens a ganhar em fazeres acompanhar a tua exposição de algumas imagens comentadas e dares exemplos de como o consumo, enquanto causa de interesse público, está a esmorecer, o definhamento associativo é flagrante, os cidadãos delegam a defesa dos seus interesses ao Estado, e nem sempre com razão. Acompanhei, como tu, a tentativa do comissário David Byrne para criar um programa financeiro e de ação conjunta de saúde/consumidores, era a sua área de intervenção, ele pretendeu potenciar ambas, de forma sinérgica. Podes referir na tua conferência a contestação que houve, os lóbis da saúde e dos consumidores sentiram-se ameaçados, foi um arraial de protestos tal que o comissário recuou e cada política ficou no seu quintal. É mais ou menos neste ponto que estamos, é possível lançar alguns elementos de previsão, surgiram entidades regulamentadoras nos serviços elétricos, na concorrência, na saúde, os mercados interpenetram-se e sentimos que há uma expansão da sociedade em rede. O consumidor é camaleónico, funcional, empreendedor, pragmático. De um dia para o outro morrem escritórios com as suas secretárias e estantes, são substituídos pelos ficheiros do computador, morreram os clubes de vídeo, é impossível prever o que será a indústria do entretenimento daqui até 2010, mas podes falar na desmaterialização da economia, na redução dos rendimentos das novas gerações que chegam ao trabalho. E julgo que estando tu a falar para uma assistência de universitários em Lovaina-a-Nova tens tudo a ganhar em exaltar a formação permanente, o apoio ao movimento associativo que dê provas de ser diligente e verdadeiramente ligado à cidadania no consumo. Voilá, aqui tens uma síntese, escolhi-te algumas imagens, tens muitas ao teu alcance para tornar a tua palestra altamente sugestiva. Ainda pensei em propor-te alguns elementos ligados à cultura de massas, mas penso que o que vais fazer a Lovaina-a-Nova não é a sede própria, como me referiste que irás falar a professores em Liège no outono, se acaso julgares oportuno dou-te umas dicas sobre a educação do consumidor e a cultura de massas, tenho vários ficheiros organizados.

Muito provavelmente não nos veremos em Bruxelas. Annette e eu teremos uns dias de férias, imagina tu, vamos visitar cemitérios e penso que passaremos uns dias em pleno sossego numa praia do Mar do Norte. Cada vez mais penso na solidão em que se encontra Annette e eu próprio, continuo sem resposta, só sei que a amo desmedidamente e que é preciso um controlo enorme para manter este profundo afeto dependente das minhas viagens a Bruxelas ou nas férias dela. Vou procurar sossegá-la, passará todo o mês de agosto em Portugal, ela sente-se muito feliz aqui, temos obviamente a consciência de que os assuntos dos nossos filhos são prioritários e não podemos tomar decisões que possam corroer o precário equilíbrio em que se encontram. E conto sempre com a tua sensatez, os teus bons conselhos mesmo sabendo que o futuro a Deus pertence. Bisous enormes, interminable amitié, Paulo.

(continua)

Linha de montagem, ontem e hoje
Organização científica de trabalho, Charlie Chaplin no filme Os Tempos Modernos
Uma Europa em ruínas, vai ser ressarcida pela sociedade de consumo
O triunfo do consumo e do indivíduo
A coesão sindical foi imprescindível na luta pelas melhores condições de vida
Anos 1980, está em marcha o mercado ecológico, do desenvolvimento sustentável e dos direitos dos animais
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22415: Parabéns a você (1981): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico da CCS/BCAÇ 2930 e CCAÇ 6 (Catió e Bedanda, 1970/72); Júlio Costa Abreu, ex-1.º Cabo Comando do Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66) e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Caçador Paraquedista da CCP 121/BCP 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22385: Parabéns a você (1980): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732 (Buba e Mansabá, 1970/72)

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22414: Agenda cultural (777): "Os Roncos de Farim", um livro da autoria do nosso camarada Carlos Silva, a ser lançado brevemente


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) com data de 27 de Julho de 2021:

Na sequência dos posts 12199 e 19731[*] sobre os "Roncos de Farim" publicados no Blogue, da publicação da minha Brochura sobre o grupo da qual circulam cópias por aí e pela publicação dum "capítulo" pelo nosso confrade e amigo Mário Beja Santos no seu livro "História(S) da Guiné Portuguesa" págs 216 a 219, bem como, Jorge Monteiro Alves, no seu livro "No mato ninguém morre em versão John Wayne - Guiné, O Vietname português", págs 57 a 65, pelo que, decidi publicar o livro sobre este não menos famoso grupo e que brevemente estará disponível.

Abraço
Carlos Silva

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Notas do editor:

[*] - Vd. postes de:
25 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12199: Notas de leitura (528): "Os Roncos de Farim - 1966-1972", por Carlos Silva (Mário Beja Santos)
[...]
Carlos Silva colige o historial mês a mês, sucesso a sucesso, vão-se averbando os louvores, de oficial a soldados, Ribeiro e os seus homens aparecem associados a outras forças. Em Outubro de 1967, depois da operação “Caju”, em que participaram “Os Roncos”, escreveu-se: “Foram três dias e três noites consecutivas em que as tropas estiveram constantemente em ação, batendo uma extensa zona, com a chuva a cair ininterruptamente, cumpriu-se a missão, apesar do sacrifício ter sido enorme”. Cherno Sissé e Malã Indjai foram agraciados com a Cruz de Guerra de 4ª Classe. Os louvores não param. Em Outubro desse ano a CCAÇ 1585 foi transferida para Quinhamel, o alferes Ribeiro deixou “Os Roncos”, foi rendido pelo alferes Morais Sarmento da CART 1691, que passou a comandar o pelotão. Em Dezembro, irá ter lugar a batalha de Cumbamori, tratou-se da operação “Chibata”, havia notícias da presença de Luís Cabral nesta localidade e base inimiga. Deslocaram-se três destacamentos. Assaltou-se Cumbamori, Luís Cabral teve tempo de fugir, infligiram-se muitas baixas, fizeram-se 5 prisioneiros e capturou-se material, caíram no dever 4 soldados dos “Roncos” e houve 17 feridos. Sobre esses acontecimentos Luís Cabral irá escrever o que viveu em “Crónica da Libertação”, págs. 315 a 230, fora a primeira vez em que ele estava presente num encontro entre as forças do PAIGC e as tropas portuguesas.
[...]
e
30 DE ABRIL DE 2019 > Guiné 61/74 - P19731: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (4): "Os Roncos de Farim: 1966-1972", uma nota de leitura da brochura compilada pelo Carlos Silva

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22391: Agenda cultural (776): RTP Play, "A Herança de Aristides", documentário francês de 52 mm, que passou na RTP1, em 19 de julho, no aniversário do nascimento do "Consul de Bordéus", Aristides de Sousa Mendes (1885 -1954) + exposição na Fortaleza de Peniche, a decorrer até ao fim de outubro: "Candelabro ASM. Aristides de Sousa Mendes: o exílio pela vida"

Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

 



Foto nº 1
  > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã  > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanco final,  com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre” > Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

 


Foto nº 2 > Encontro anual dos Tigres do Cumbijã > À esquerda o nosso querido Furriel Enfermeiro, que no dia mais negro da companhia teve a coragem, o sangue frio e competência na estabilização do nosso camarada alferes com um ferimento muito grave na garganta. Neste dia negro para além do ferido muito grave sofremos o segundo morto em combate e vários feridos ligeiros.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros. 
É engenheiro técnico reformado. Há dias, a 15 do corrente, 
 escreveu-nos o seguinte: 

(...) "Reconfortado pela café oferecido pelo régulo 
da Tabanca dos Melros, que rasgou os ares da Guiné no seu T6, o Gil Moutinho, 
com direito a visita guiada ao magnífico museu (que não paguei,
já que apresentei o meu cartão de antigo combatente) 
e pela agradável conversa com os catedráticos e velhinhos do blogue
o Carvalho de Mampatá e o Ferreira da Silva.
Uma tabanca a 10 minutos a pé da minha casa 
e que ainda não a tinha visitado enquanto tal. Sem desculpa!" (...)


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)


Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago 
(Op Balanço Final)

 

Ao terceiro dia da Operação Balanço Final, dois grupos de combate da companhia saem de Cumbijã com destino a Nhacobá para render os outros dois grupos de combate que aí pernoitaram.

Percorridos uns quilómetros, numa zona de vegetação densa, somos emboscados por um grande grupo de guerrilheiros que nos surpreende com um forte poder de fogo de armas ligeiras, RPG e morteiro. Dada a surpresa e a configuração do terreno demoramos algum tempo a reagir.

Depois da surpresa lá conseguimos rechaçar o ataque, fazendo estragos ao IN, mas com consequências dramáticas para nós: um soldado morto, um Alferes ferido com muita gravidade e alguns feridos ligeiros. 

Depois de acionado o pedido de ajuda à aviação, bem como o pedido de um possível helicóptero para evacuação urgente do alferes gravemente ferido, era indescritível o sentimento em cada um de nós, obviamente de medo no primeiro momento, mas depois de raiva com a vontade de irmos atrás de quem provocou todo aquele horror, num sentimento primário de vingança (compreensível).

Depois de cumprida a evacuação dos nossos camaradas; pois que a preocupação maior era dar segurança ao extraordinário trabalho do furriel enfermeiro e à sua equipa nos primeiros socorros aos feridos bem como assegurar a operação de evacuação; caímos em nós e ninguém conteve compulsivamente as lágrimas.

O nosso camarada alferes, evacuado para o Hospital de Bissau, foi passado pouco tempo, dada a gravidade dos ferimentos, evacuado para Lisboa.

Depois da bem sucedida, complexa e arriscada operação de assalto a Nhacobá, esta emboscada foi um dos confrontos mais duros e de maior dramatismo para a companhia. O IN queria mostrar que a ocupação definitiva da sua antiga base não era assunto encerrado.

As flagelações constantes ao destacamento bem como os ataques ao arame eram momentos de grande aflição, mas o controlo da situação era quase absoluto já que nos viamos uns aos outros e nos sentimos todos juntos a enfrentar a situação. Num contacto no mato, só vemos o camarada que está à nossa frente e o que está atrás de nós. Disparamos por instinto, de onde ouvimos os disparos do IN, mas sem ter a certeza da configuração e disposição no terreno das nossas forças, correndo sérios riscos de fogo amigo. 

A mobilidade do grupo IN que conhece bem a zona e se pode movimentar e dispersar reagrupando-se facilmente num outro local, são fatores que os colocam em situação de grande desvantagem já que a nossa movimentação tem de ser sempre organizada e em grupo sem nunca perder de vista o camarada da frente e o de trás. Quem se perder dificilmente alcançará o destacamento.

Este foi, para mim, o momento mais difícil dos dois anos passados na Guiné. Pelas perdas que nos apertava o coração e nos enchia os olhos de lágrimas, mas também pelo que nos dava a conhecer do que seria o futuro próximo, instalados na antiga base do PAIGC, sem o mínimo de condições de segurança e habitabilidade.

Sentíamos que, o que nos era exigido, depois da ocupação do Cumbijã e o assalto a Nhacobá, para além de injusto (dado tudo o que já tínhamos sofrido), era algo de desumano.

Este foi também o momento de viragem, onde passamos, inexplicavelmente, a relativizar perdas, onde todos perdemos um pouco de nós (tal como éramos) e passamos a ser outros sem deixarmos de ser nós próprios. Confuso, mas foi assim mesmo…

Passamos a esquecer o dia de ontem rapidamente (em defesa da nossa saúde mental); a viver o presente intensamente (não deixando de viver a nossa juventude, mesmo naquelas condições, em convívio com um grupo de amigos que as contingências da guerra nos unia ao ponto de o sofrimento ou alegria de um ser o sofrimento e a alegria do grupo) e a não pensar muito com o amanhã (aprendemos com o tempo a não sofrer por antecipação). 

Lendo tudo o que outros disseram sobre nós (alguns excertos aqui publicados) é claramente percetível o que acabo de afirmar.

Dou comigo, hoje, passados todos estes anos, a ter dificuldade em reconstruir a fita do tempo. Questiono-me muitas vezes se tudo o que a minha memória guardou é verdade ou ficção. Se tudo o que a minha memória me diz é realidade ou sonho.

Não faz parte destas minhas memórias (nunca o faria) transformar os confrontos da CCav 8351 com os guerrilheiros do PAIGC como se de um jogo de futebol se tratasse,  contabilizando os mortos e feridos de um lado e do outro. Contudo, não deixa de ser perturbador o que está vertido em documentos oficiais do exército, bem como em relatos de outros camaradas, transcritos nestas memórias no capítulo: “O que outros disseram de nós”

Uma das imagens que várias vezes me ocorrem à memória, e me continuam a perturbar, é a visão de dois guerrilheiros mortos, já despojados dos seus haveres e “roncos” por milícias africanos, deixados na mata no primeiro dia da operação “Balanço Final”. 

Arrepia-me a indiferença como o fizemos e como permitimos a profanação dos seus cadáveres despojados até das suas fardas. Não concebo, nem aceito, este desprezo pela vida humana. Tinha uma réstia de esperança que tal não passava de um sonho, tudo era fruto da minha imaginação. Infelizmente tal não se confirmou. Fui confrontado com a realidade pura e dura ao ver, duas fotografias, tiradas por um colega de uma outra companhia que participou na operação, com a imagem dos dois guerrilheiros mortos no momento em que passavamos por eles já despojados, pelas nossas milícias, dos seus haveres e “roncos”. Por mais que tente contextualizar, esta imagem continua a ser muito dolorosa e perturbadora…

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Últimos cinco postes anteriores da série;

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22350: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XII: A primeira noite em Nhacobá (Op Balanço Final)

23 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo

7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

26 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22225: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX: O primeiro murro no estômago

1 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22412: Historiografia da presença portuguesa em África (273): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala Algarve


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É bem curioso este período das últimas atas das sessões da Sociedade de Geografia. Por um lado prossegue a exaltação ao culto dos heróis, os do passado e os do presente, há sessões para Vasco da Gama, a Pedro Álvares Cabral, para Capelo e Ivens, para Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro; afloram os interesses económicos e financeiros das duas colónias mais prósperas, os temas de Portugal continental vão-se diluindo. Até ao momento ainda não encontrei nenhum dado que explique o fim destas atas, é incontestável que o seu motor assentava na pessoa de Luciano Cordeiro (1844-1900), é bem provável que ninguém se abalançou, depois da sua morte no final de 1900, ao trabalho desta escrita. Vale a pena ver agora a bibliografia que permite outros olhares sobre o pensamento destes homens ao longo do quarto de século em que se afirmou o III Império Português, que tanto ficou a dever ao entusiasmo que reinava na vida da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10)

Mário Beja Santos

A sessão solene de 5 de maio de 1900, comemorativa do Centenário do Brasil, na presença do monarca, vai revelar-nos autores empolgados, rendidos ao romantismo e ao naturalismo, veja-se o tom declamatório do Visconde de Almeida d’Eça:
“Portugal, terra de pequeno âmbito mas de natureza variadíssima nos aspetos, desde os píncaros alcantilados do marão e da estrela até às planícies de leves ondulações do Alentejo, desde a selvática torrente do precipite Douro até à mansidão do Lima, à poesia do Mondego, e à importância do Tejo majestoso, desde as costas de penedia negra da Roca e de Sagres, até aos brancos areais do Cabo de Santa Maria; terra de risonha vegetação, onde a giesta e a esteva vicejam nas alturas, o tomilho e a manjerona florescem nas encostas, rosas e madressilvas se enredouçam nos balseiros, papoilas e lírios atapetam os vales; onde nas asas da brisa primaveril das montanhas vai ao mar se arrastam eflúvios acres de pinheiros, aroma penetrante da flor dos carvalhos, perfume delicado das amendoeiras; onde ao murmúrio cristalino das fontes e ribeiros se misturam, suave harmonia, em manhãs de maio trilos namorados de toutinegras, em noites de luar de agosto endeixas magoadas de rouxinóis; terra cujos filhos são os sóbrios minhotos e transmontanos, tão industriosos e ativos, ou destemidos beirões que resistiram a Roma e expulsaram as águias de Napoleão, os afanosos alentejanos que da Lezíria e da Charneca tiram produtiva messe, os aventureiros estremenhos e algarvios que foram a Ceuta e foram a Malaca, terra que produziu Luís de Camões, o Épico, e Nuno Álvares Pereira, o guerreiro santo; terra que gerou o Infante Navegador, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque; terra que deu o ser a Pedro Álvares Cabral; bendita sejas tu, minha santa Pátria, bendita sejas tu, terra de Portugal”.
E, mais adiante, sem nenhuma perda de tirada apoteótica, aristocrata fala-nos do Brasil e tece considerações sobre colonização, convém ouvi-lo:
“Colonizar não é invadir regiões já habitadas e civilizadas para lhes tomar conta das fontes de receita, para lhes aurir o produto dos esforços do trabalho já orientado; não é entrar à viva força num país, exterminar-lhe os habitantes e substituir-se por completo ao primitivo dono; não é junto dos governantes assentar conselheiros astutos que fazem derivar em prol de quem lá os manda todo o caudal da riqueza indígena. Isso é conquistar, isso é administrar, isso pode ser glorioso, isso tem a sua explicação natural nas leis da História; mas isso não é colonizar.

Colonizar é receber das mãos do criador uma região nova, onde a natureza é tudo e a civilização nada, onde as florestas são virgens de machado, e as campinas nunca sentiram a charrua, onde as feras dominam triunfantes e os animais domésticos nem se conhecem, onde os habitantes são singelos, mas são ignorantes e são cruéis; e depois, com o esforço próprio, com a tenacidade no trabalho, com muita fazenda gasta de princípio, e com muita vida perdida na luta, desbravar a floresta, cultivar a campina, guiar as águas da torrente, exterminar as feras, fundas povoados, amansar o indígena bravio, ligar-se com ele, dar origem a novas raças que das raças cruzadas conservem qualidades, fazer uma nação nova onde a antiga se continue.

Foi assim que Portugal colonizou o Brasil, e fê-lo, não o esqueçamos, dispondo de tão poucos homens e tendo, durante mais de um século, de sustentar lutas sangrentas para expulsar estranhos cobiçosos. Pois bem, com tais contratempos e em período que para a grandeza da obra se pode dizer pequeno, em menos de 250 anos, Portugal tinha feito do Brasil e com o Brasil uma colónia modelo, tão rica, tão fluorescente e tão cheia de vida própria, que ao cabo daquele tempo, quando a Corte e o Governo se transladaram de Lisboa ao Rio de Janeiro, o fruto estava sazonado e a independência de facto começou então".


Como caminhamos para o termo destas reflexões, naturalmente inconclusivas, há um aspeto que importa esclarecer. Se ao princípio tudo parecia correr na maior das harmonias, era pequeno e relativamente coeso o grupo fundador, o crescimento de sócios e a expansão de interesses trouxe desavenças e questiúnculas, e a partir de certa altura elas são mesmo referidas nestas atas de sessões. A título de exemplo, veja-se que em 7 de fevereiro de 1898 regista-se qualquer coisa como um conflito paroquial, atenda-se ao registado na ata:
“O Sr. Palermo de Faria expõe que o discurso do Sr. Moreira de Almeida só lhe dera a impressão de que sua excelência o que quer é que outros trabalhem para ele ter o gosto de criticar sem trabalhar. Que estava já, e a Sociedade, muito edificado e de há muito acerca deste cómodo papel representado pelo Sr. Moreira de Almeida e pelos seus amigos, que sempre estão prontos realmente mas é para criticar e contrariar as direções e os que têm levantado a Sociedade à altura em que ela se acha. Agora não quer também sua excelência que os sócios tenham os passatempos que lhes proporciona a maior largueza da casa e por isso o aluguer do primeiro pavimento, que foi uma das mais difíceis conquistas da Comissão do Centenário para a conveniente instalação da Sociedade e do Museu”.

A expansão e consolidação da presença portuguesa em África faz crescer o interesse pelos negócios, e por isso se discutem as indústrias coloniais, se deviam ser protegidas, qual a liberdade dos industriais para construir grandes empresas de caráter monopolista, quais os benefícios pautais na importação dos géneros coloniais. Alfredo da Silva, já um conceituado industrial, intervém nestas sessões. Os debates são calorosos, até porque há uma corrente que se reconhece dentro da Sociedade para que ela atue como entidade científica, não deve entrar em discussões como qualquer associação de classe. Já tinha aparecido e fora aprovada uma moção em que se pede à Direção que se mantenha absolutamente estranha a qualquer resposta que ultrapasse a sua missão. Já vimos antes que um outro grupo pretendia discutir os assuntos económicos. Enquanto isto se passa, e com a maior das naturalidades, um sócio bastante ativo, figura intelectual proeminente, Zófimo Consiglieri Pedroso, muda a agulha da discussão e fala numa capela colateral da parte da Igreja do Convento da Graça, em Santarém, é ali que se acha sepultado em campa rasa, e como ele diz ao desamparo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, ele põe na mesa a seguinte proposta:
“Proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa envide todos os seus esforços junto dos poderes constituídos para que os restos mortais de Pedro Álvares Cabral sejam transladados da capela de S. João Baptista da Igreja do Convento da Graça de Santarém, para a Basílica de Santa Maria de Belém, onde jazem já os do descobridor do caminho marítimo para a Índia e do inimitável cantor das suas glórias”.

Registe-se ainda que há um extremo cuidado em todas as sessões em referir passamentos, alguém se encarrega de um elogio, quase sempre muito tocante, ou então há votos de pesar, registo aqui em dezembro de 1899 aquele que se refere ao falecimento de Câmara Pestana.

A ocupação de Angola e Moçambique leva à nova existência para tomadas de posição sobre companhias majestáticas, benefícios na implantação de novos empreendimentos, vimos como Luciano Cordeiro era porta-voz da contestação das empresas majestáticas. Mas no virar do século a economia e as finanças voltam a ocupar o centro da atenção dos debates e a produção de documentos. Anoto uma comunicação em que o seu autor diz:
“Entende esta sociedade que não deve haver regime proibitivo para as indústrias no Ultramar, mas sim de proteção para agricultura colonial, para as indústrias extrativas e para aquelas que, sendo de natureza privativa das colónias, não sejam similares das existentes na metrópole (…) Na tributação a decretar para as indústrias que pretendam estabelecer-se com perigo para as indústrias similares no continente está o natural regulador que deve adotar-se, pois nem se ataca na sua base o princípio de liberdade de indústria, nem se deixam a descoberto as indústrias da metrópole”. E discreteia sobre a proteção a dispensar às indústrias, o diferencial pautal, misturando sugestões sobre as missões religiosas que devem constituir elementos de estações civilizadoras, e propondo ainda reformas no sistema da administração colonial.

Chegámos ao termo das atas, a última data de 14 de maio de 1900, já se fala na realização do Congresso Colonial e o padre Inverno, missionário na província de Angola profere uma comunicação intitulada “Missão no Sul de Angola”. Continua-se a insistir que é necessário formar os quadros administrativos, recorde-se que já em 1878 a Sociedade de Geografia pedira a criação da Escola Colonial, virá a ser criada em 1906, funcionará nas instalações da Sociedade de Geografia, será mais tarde transformada na Escola Superior Colonial, designação que conhecerá mudanças, Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e depois do 25 de Abril, com âmbito muito diferente, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

Iremos concluir com alguns comentários à bibliografia que permita aos interessados dar um outro desenvolvimento ao estudo deste período e ao pensamento imperial que na Sociedade de Geografia deu engrenagem, em múltiplos domínios, ao III Império Português.

(continua)

Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, quadro de Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22392: Historiografia da presença portuguesa em África (272): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22411: Tabanca da Diáspora Lusófona (16): Entrevista, à agência Lusa, do João Crisóstomo que iniciou a sua luta por causas sociais na casa da 5ª Avenida, em Nova Iorque, de Jacqueline Kennedy Onassis, de quem foi mordomo. (A antiga primeira-dama dos EUA detestava rosas vermelhas e faria hoje 92 anos, se fosse viva.)


Nova Iorque > V Avenida > Edifício 1040 > Foi aqui, num apartamento deste edifício, um T-14,   que viveu e morreu Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), de quem o nosso camarada João Crisóstomo foi mordomo interno, de 1975 a 1979. 

Créditos fotográficos: Henrique Mano (2020) (reproduzidos aqui com a devida vénia...)


1. Mensagem do nosso camarada da diáspora, João Crisóstomo (Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):
 
Date: sábado, 24/07/2021 à(s) 22:50
Subject: entrevista à Lusa

 
Meus caros Luís Graca e  Rui Chamusco:

Como a data de nascimento da  antiga primeira  dama   Jacqueline Kennedy Onassis  se aproxima (nasceu a 28 de julho 1929,  em Southampton,  uma pequena cidade bem perto de onde moro), os "media" não deixam de a lembrar.  

E o facto de eu ter trabalhado para ela é motivo para me  procurarem.  Não tenho qualquer mérito por isso, sucedeu-me a mim,. podia ter sucedido a qualquer outro.

O que segue é assunto mais que batido, mas … que hei-de fazer, a culpa também não é minha.  Como vocês são os meus "manos"  em  todas as ocasiões, aqui está o que saiu hoje  na Lusa. (*)

Um abraço
João

2. Peça da agência imformativa LUSA:


LUSA > 24/07/2021 08:26 > Entrevista: João Crisóstomo iniciou ativismo em casa da família Kennedy em Nova Iorque (C/ áudio e vídeo)
 
Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt *** (O conteúdo completo só está só disponível  para subscritores)


Elena Lentza, da agência Lusa 
 
Nova Iorque, 24 jul 2021 (Lusa) – O trabalho em casa da antiga primeira-dama norte-americana e filhos de John Kennedy, Presidente dos Estados Unidos entre 1961 e 1963, ajudou o antigo mordomo português João Crisóstomo a juntar atenção internacional para várias causas.

A preservação das gravuras rupestres de Foz Côa, salvas de uma barragem em projeto de construção, o reconhecimento dos feitos do diplomata português Aristides de Sousa Mendes e a autodeterminação de Timor-Leste foram das causas mais defendidas por João Crisóstomo, que fez sempre todos os esforços que podia a partir de Nova Iorque, começando pelo escritório do filho do antigo Presidente norte-americano.

"Eu digo que John [Kennedy júnior] foi o meu primeiro 'sponsor', o meu primeiro ajudante", disse, com um sorriso, João Crisóstomo, em entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque.

A mãe de John Kennedy Jr. e ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy Onassis, contratou João Crisóstomo em 1975 para 'tratar' da casa na 5.ª Avenida de Nova Iorque, quando o português "nem sequer sabia o que era um mordomo e não tinha experiência nenhuma" e estava nos Estados Unidos há apenas três meses.

Foi por recomendação de um amigo comum, que Jackie, como era conhecida, teve confiança: "Eu conheço o João e pela experiência que ele tem de hotelaria, ele vai ser o melhor mordomo que a senhora pode ter", disse o amigo que trouxe a sugestão, segundo contou João Crisóstomo à Lusa.

João Crisóstomo naturalizou-se norte-americano com ajuda de Jacqueline Kennedy e como despenseiro ou "encarregado da casa" durante três anos, teve duas colegas, sendo todos tratados "com carinho" enquanto serviam a família, num apartamento de 15 quartos.

Numa característica que sempre partilhou com a antiga primeira família norte-americana, também o português gosta de organizar encontros ou eventos. Para além das causas a que se dedica feramente, Crisóstomo gosta de conservar as amizades que, reclama: "são o melhor que a vida nos pode dar".

Mantendo sempre a "distância" devida, como "servente apenas", nos anos em que foi mordomo da família e nas ocasiões posteriores em que nunca recusou dar apoio a Jacqueline Onassis para a organização de encontros para a alta sociedade ou jantares, João Crisóstomo fez muitos contactos com pessoas influentes e conheceu pessoas que o poderiam ajudar nas causas de ativismo a que posteriormente se dedicou.

A paragem da construção da barragem em Foz Côa, para proteção das gravuras rupestres foi um dos exemplos e a primeira grande causa a que João Crisóstomo se dedicou, em 1995, depois de ler um artigo no The New York Times, que também foi lido por John Kennedy Junior, o filho da antiga fotógrafa e editora.

Quando o português se decidiu a fazer alguma coisa para a preservação do sítio arqueológico, John Kennedy Jr. ofereceu o seu escritório para que Crisóstomo pudesse telefonar, mandar fax e de uma maneira geral manter os contactos que entendesse necessários.

"Eu ia para lá de noite, para o escritório do John, na casa da Jacqueline, e era de lá que eu contactava, mandava 'faxes' para toda parte do mundo", explicou o antigo gerente de um hotel em Rio de Janeiro.

"A primeira pessoa que me ajudou [no ativismo] foi ele, porque me facilitou a contactar. Daí eu mandava cartas para toda a parte do mundo, jornais no Canadá, nos Estados Unidos e tudo mais" e daí se gerou a pressão internacional sobre Portugal para que se parasse a construção da barragem.

"Entre os muitos que eu contactei, foram as pessoas que eu conhecia e que tinham sido hóspedes da 'missus' Kennedy Onassis (…) Todos eles me diziam que sim", descreveu João Crisóstomo.

Uma "excelente senhora", "diplomata fantástica" e "muito inteligente", que o recebeu com um "sorriso" e o deixou ficar "à vontade", foi assim que João Crisóstomo recordou uma "primeira-dama extraordinária".

Mulher do Presidente dos EUA, John F. Kennedy, que lhe morreu no colo, assassinado quando faziam campanha para um segundo mandato e, mais tarde, casado com o magnata milionário grego Aristotle Onassis, Jacqueline Kennedy Onassis "era realmente a primeira-dama não dos Estados Unidos, [mas] a primeira-dama mundial, sem dúvida nenhuma", considerou o antigo mordomo à agência Lusa.

A família Kennedy Onassis eram das únicas pessoas que sabiam o segundo nome de João Crisóstomo e o chamavam de Francisco, para que não houvesse confusão do "John" que era chamado lá em casa – se era o filho de Jacqueline e do Presidente ou se era o português.

Elogiando a força e o "bom coração" da antiga patroa, João Crisóstomo lembra-se de um recado especial de Jackie: "Francisco, se alguma vez alguém enviar rosas vermelhas para mim, não mas dês, não quero vê-las. Rosas vermelhas lembram-me da morte do Presidente Kennedy". Eram as mesmas flores que levava no dia trágico de 22 de novembro de 1963, quando o marido foi assassinado.

Depois de três anos, o mordomo e a antiga primeira-dama nunca tinham perdido o contacto e qualquer "raminho de flores" que João Crisóstomo enviava nos aniversários era sempre agradecido com cartas e postais escritos à mão por Jacqueline Kennedy Onassis, que, para o antigo mordomo, mostravam "uma sensibilidade tremenda".

EYL // ELLusa

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Nota do editor: