terça-feira, 27 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 23 de Julho de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":

Caros camaradas Luís e Carlos.
Está a chegar o tempo de férias, nada como um alegre conto para desanuviar.

Com votos de muita saúde, abraça-vos o
Zé Teixeira


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UM DIA DE FESTA EM TEMPO DE GUERRA

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava acontecendo na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro”, apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava.  

Como era seu hábito ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. "Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!"

Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; "Alferes! alferes vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino."

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça.

 Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: "A festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?"

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa?  - questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele.  
Queremos que venhas à festa do Adulai -  disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma, alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso - disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! - vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. 

Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem, para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.

Em tempo de guerra, não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o Governador da Província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo. 

Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.

Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
 
O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
 
O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja. 

-O açougueiro segura,pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
 
A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.

Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu ultimo mééé´!.

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo, num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do korá, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. 

Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.

A Binta sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. Agredia o pilão com raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chavéu, são espalhadas no recinto.

 Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.

E foram partindo discretamente antes que o sol se escondesse para além da mata

A chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.

Sábado seria um novo dia.

Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19325: Estórias do Zé Teixeira (48): "Um Novo Natal" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

6 comentários:

Carlos Vinhal disse...

José Teixeira, por onde tens andado que nos privaste das tuas "Estórias" desde 2018?
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, estávamos com saudades deste "Maioral" que agora mal tem tempo para ser avô a 200 por cento... Estou na fisioterapia mas prometo ler o teu conto. São sempre saborosas e sábias as tuas histórias. Que deviam chegar às escolas da GB. LG

Anónimo disse...

Uma saudável “lufada” de ar fresco.
Uma feliz composição baseada em recordações genuínas.
O caráter do Homem-Bom que foi,é e sempre será, o Maioral José Teixeira.

Orgulho-me de o ter como Amigo.

Um abraço do J.Belo

José Teixeira disse...

Meus bons amigos Carlos, Luís e Zé Belo. Fico grato pelas vossas mensagens. Refletem amizade que nos une e o carinho com que me mimoseiam. Vou escrevendo por prazer para eu ler. Os “velhinhos” estão a ir-se desta para melhor, os”piras” tornaram-se com o andar do tempo em “velhinhos” e estão a ficar cansados de ler as minhas estórias. Haja saúde que é o que mais precisamos neste tempo em que o “nariz pinga e a gaita minha”. Fraternal abraço.
Zé Teixeira.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quem conhece o Zé Teixeira, facilmente descobre que este conto é muito "autobiográfica" e que o protagonista é um "alter ego" do autor... Ele tem uma rara sensibilidade sociocultural que decorre da promixidade, se não mesmo intimidade, que teve (e manteve) com os fulas do Forreá.

É um conto de antologia, dos melhores que já aqui publicamos de cunho etnográfico. Conheci o Cherno Rachide em Bambdinca. Mas apenas de vista. Foi lá em missão religiosa.



Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, conheci o Cherno Rachide em Bambadinca. em 10 de Janeiro de 1970

No meu diário escrevi alguns apontamentos, que hoje vejo não sõa inteiramente corretos como por exemplo o Cherno Rachid ser "a autoridade máxima do Islão na Guiné".

Dizia que era de etnia futa-fula, vivia em Aldeia Formosa [Quebo], "rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo."

Por outro lado, constatei o ascendente que ele exercia a população muçulmana da Guiné (ou pelo menos do setor L1, Bambadinca), conferindo "uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão)."

Na altura, com alguma ingenuidade (ou ignorância) acrescentei: "Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação." (O Amílcar Cabral se tivesse lido, agradecia...)

E mais escrevi:

(...) "Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!

Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.

Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!" (...)