sexta-feira, 30 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22416: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É muito estreita a ligação que se estabeleceu entre Paulo Guilherme e Gilles Jacquemain. Paulo tem neste seu amigo belga um confidente e um infatigável companheiro de trabalho. Gilles anunciou-lhe que iria fazer uma palestra a Lovaina-a-Nova e pede ajuda ao amigo português e este manda-lhe contributos sobre a alvorada e o desenvolvimento da sociedade de consumo. Só se voltarão a encontrar no outono, há agora um curtíssimo período de férias, um regresso para o final do ano letivo e Annette vem para Portugal passar o mês de agosto. Já é de supor que o regresso dela a Bruxelas a deixará numa grande infelicidade , sempre a ruminar qual a melhor solução para estarem mais próximos. Felizmente que ambos são realistas, ela sabe alguma coisa de rigoroso de como passa o mundo naquela primeira metade da primeira década do século XX, ele é professor e conta aos seus alunos que se entrou num tempo de hiper qualificação e hiper desqualificação, que o sistema educativo se revela incapaz de dar orientações eficazes para as escolhas profissionais, morreram os empregos para toda a vida, nunca no mercado do trabalho tudo foi tão contingente e aleatório. E Annette e Paulo têm os filhos nessas condições, daí a prudência com que gerem o seu arrebatado amor.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Gilles Jacquemain, como chegarei a Bruxelas em data posterior à tua conferência no curso promovido pelo professor Thierry Bourgoignie, em que te concederam duas horas para palestrares sobre os desafios deste nosso novo século para um consumo solidário e mobilizador da cidadania, como tu me pedes algumas sugestões de acordo com as aulas que eu dou, limito-me a alguns conceitos do passado e do presente, e falarei em voz alta contigo, meu incondicional companheiro destas lides europeias sobre o que se pode prever para os anos seguintes.

Eu começaria em primeiro lugar por referir os tópicos da alvorada da sociedade do consumo, a linha de montagem e organização científica, os pilares da economia de escala, a porta aberta à fluidez do consumo, à industrialização e aos serviços, tudo com o concurso de um novo paradigma energético que não existira nas sociedades agrícolas que lhe precederam, o petróleo e a eletricidade. Podes inclusivamente referir que este prenúncio da massificação foi acompanhado de novas formas reivindicativas no trabalho, foi graças à coesão sindical que não só melhoraram as condições de vida como surgiu a higiene e a segurança no trabalho. Não te esqueças de dizer que este processo não foi linear, teve grandes avanços, no caso europeu, na Europa do Norte, tu és um belga e podes dizer com orgulho que no início do século XX a Bélgica tinha a quinta mais importante economia do mundo. No meu país, a sociedade de consumo só se confirmou na década de 1960, decresceu de forma impressionante a população agrícola, multiplicaram-se as pequenas indústrias e alguma grande indústria, proliferaram os serviços, com o turismo à frente.

Em segundo lugar, eu teria o cuidado de interpretar os saltos tecnológicos, falaria na evolução da comunicação e dos transportes, o cabo submarino, o telégrafo, a rádio, a televisão, o radar, o telefone, a progressiva rapidez nos transportes. Não se pode esquecer a referência à expansão económica dos Estados Unidos, ás descobertas da química que revolucionaram a indústria dos medicamentos, os produtos de higiene, a cosmética, o nascimento dos detergentes.

Em terceiro lugar, a questão ideológica da sociedade de consumo. Perante uma Europa em ruínas, no termo da II Guerra Mundial, as potências ocidentais entenderam-se rapidamente que para combater quaisquer tentações totalitárias era indispensável um modelo de democracia pluripartidária acompanhado de uma sociedade de consumo, emprego para todos, bons serviços de saúde, a apologia do consumo para todos. Assim nasceu a complexidade do mercado com os seus contratos, compras por recibo, publicidade avassaladora, plásticos, liofilizados, supermercados, viaturas para todos os preços, desde a Velosolex e a Lambreta, carros utilitários até às viaturas luxuosas. Foi necessário encontrar novas formas de gestão urbana e também mudou o nosso modo de vida: a dimensão da casa, os artefactos da cozinha, a democratização dos eletrodomésticos. E os governos de qualquer cariz ideológico obrigaram-se a aperfeiçoar o sistema educativo.

Creio que já estás em condições de fazer uma súmula de todo este processo desencadeado por décadas de crescimento em que nasceu espontaneamente um novo grupo de pressão que iria ocupar um campo de atuação totalmente distinto, fazendo exigências sobre os direitos que assistiam aos consumidores. Enquanto o mercado se inundava de produtos e serviços, surgiram inquietações e protestos: eram as próprias organizações científicas que anunciavam a retirada de aditivos alimentares tóxicos. Um gravíssimo acidente com um medicamento (Talidomida) que atingiu profundamente as famílias dessa Europa próspera obrigou à organização de um controlo do medicamento que é tão severo ontem como hoje; e surgiram protestos com as práticas comerciais irregulares, publicidade enganosa e sobretudo esta nova situação de que o consumidor não dispunha de informação nem formação com conhecimento de causa. Acho que é o momento propício de falares da mensagem do presidente John Kennedy ao Congresso, em 15 de março de 1962, em que referiu que por definição todos nós somos consumidores, passávamos a ter direitos. E dos Estados Unidos este movimento associativo estendeu-se a diferentes países da Europa Ocidental, surgiram associações de consumidores, mas muitos outros grupos reivindicavam a defesa do consumidor: famílias, movimentos sindicais, ligas femininas, cooperativas, tanto as de consumo como as de habitação. Passaram a exigir legislação, a constituição de organismos estatais que apoiassem o consumidor. E durante décadas foi graças a esta riqueza social que se estabeleceu um dinâmico movimento associativo que hoje está em visível quebra.

O quinto aspeto que me parece importante relevar é que independentemente da legislação que veio dar uma maior limpidez ao mercado é de que a tecnologia manteve o seu caminho imparável e muito cedo se pôs a questão de intervir em prol do ambiente. Tudo começou com os rios inquinados por produtos químicos, oceanos de espuma, contaminações dos fertilizantes, poluição atmosférica, cheiros nauseabundos resultantes de indústrias mal controladas. Só mais tarde se levantarão as questões de aproximação entre os consumidores e os ambientalistas, na década de 1980 os consumidores são confrontados com as chuvas ácidas e sobretudo com os rasgões da camada de ozono, e apontava-se o dedo a bens de consumo. A ciência encontrou respostas, caso do conversor catalítico para o automóvel e a mudança de componentes químicos nos aerossóis. Mas a relação consumo-ambiente manteve-se e continua a manter-se muito dúbia, por culpa de ambas as partes.

O sexto aspeto em que eu julgo que deves pôr um ponto tónico é que a sociedade de consumo de massas passou de uma fase da industrialização para a economia dos serviços e daquilo que se chamava o consumo semicolectivo para o consumo individualizado. Não se pode omitir que a partir de meados da década de 1970 as Comunidades Europeias passam a dispor de uma política informal de defesa do consumidor, verifica-se que a ecologia não é moda passageira e a Comissão Europeia foi favorável a apoiar o aparecimento de produtos ditos ecológicos.

O mundo mudara, falava-se em globalização, aumentara a esperança de vida, já se falava abertamente no aumento explosivo das despesas com a saúde, em novos critérios para as pensões de reforma, entrara-se numa sociedade de consumo e comunicação. É aqui que é indispensável uma referência à chegada do digital, ao desenvolvimento de uma sociedade de espetáculo. Eu daria aqui alguma ênfase às políticas dos consumidores na União Europeia, desde 1975 até ao dobrar do século, não iludindo de que a política dos consumidores passara a estar praticamente confinada às realizações do mercado único europeu.

Meu querido amigo, estou absolutamente seguro de que só tens a ganhar em fazeres acompanhar a tua exposição de algumas imagens comentadas e dares exemplos de como o consumo, enquanto causa de interesse público, está a esmorecer, o definhamento associativo é flagrante, os cidadãos delegam a defesa dos seus interesses ao Estado, e nem sempre com razão. Acompanhei, como tu, a tentativa do comissário David Byrne para criar um programa financeiro e de ação conjunta de saúde/consumidores, era a sua área de intervenção, ele pretendeu potenciar ambas, de forma sinérgica. Podes referir na tua conferência a contestação que houve, os lóbis da saúde e dos consumidores sentiram-se ameaçados, foi um arraial de protestos tal que o comissário recuou e cada política ficou no seu quintal. É mais ou menos neste ponto que estamos, é possível lançar alguns elementos de previsão, surgiram entidades regulamentadoras nos serviços elétricos, na concorrência, na saúde, os mercados interpenetram-se e sentimos que há uma expansão da sociedade em rede. O consumidor é camaleónico, funcional, empreendedor, pragmático. De um dia para o outro morrem escritórios com as suas secretárias e estantes, são substituídos pelos ficheiros do computador, morreram os clubes de vídeo, é impossível prever o que será a indústria do entretenimento daqui até 2010, mas podes falar na desmaterialização da economia, na redução dos rendimentos das novas gerações que chegam ao trabalho. E julgo que estando tu a falar para uma assistência de universitários em Lovaina-a-Nova tens tudo a ganhar em exaltar a formação permanente, o apoio ao movimento associativo que dê provas de ser diligente e verdadeiramente ligado à cidadania no consumo. Voilá, aqui tens uma síntese, escolhi-te algumas imagens, tens muitas ao teu alcance para tornar a tua palestra altamente sugestiva. Ainda pensei em propor-te alguns elementos ligados à cultura de massas, mas penso que o que vais fazer a Lovaina-a-Nova não é a sede própria, como me referiste que irás falar a professores em Liège no outono, se acaso julgares oportuno dou-te umas dicas sobre a educação do consumidor e a cultura de massas, tenho vários ficheiros organizados.

Muito provavelmente não nos veremos em Bruxelas. Annette e eu teremos uns dias de férias, imagina tu, vamos visitar cemitérios e penso que passaremos uns dias em pleno sossego numa praia do Mar do Norte. Cada vez mais penso na solidão em que se encontra Annette e eu próprio, continuo sem resposta, só sei que a amo desmedidamente e que é preciso um controlo enorme para manter este profundo afeto dependente das minhas viagens a Bruxelas ou nas férias dela. Vou procurar sossegá-la, passará todo o mês de agosto em Portugal, ela sente-se muito feliz aqui, temos obviamente a consciência de que os assuntos dos nossos filhos são prioritários e não podemos tomar decisões que possam corroer o precário equilíbrio em que se encontram. E conto sempre com a tua sensatez, os teus bons conselhos mesmo sabendo que o futuro a Deus pertence. Bisous enormes, interminable amitié, Paulo.

(continua)

Linha de montagem, ontem e hoje
Organização científica de trabalho, Charlie Chaplin no filme Os Tempos Modernos
Uma Europa em ruínas, vai ser ressarcida pela sociedade de consumo
O triunfo do consumo e do indivíduo
A coesão sindical foi imprescindível na luta pelas melhores condições de vida
Anos 1980, está em marcha o mercado ecológico, do desenvolvimento sustentável e dos direitos dos animais
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

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