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quinta-feira, 20 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26601: Historiografia da presença portuguesa em África (471): Bissau ao tempo de Leopoldina Ferreira ("Nha Bijagó") (1871-1959) (António Estácio, 1947-2022)


Planta da Praça de São José de Bissau. Desenho de Travassos Valdez. Fonte: "África Oocidental" (1864).








Planta da Praça de São José de Bissau. Desenho de Travassos Valdez. Fonte: "África Oocidental" (1864) (Detalhes). Tinha (tem) 4 baluartes: Bandeira, Puana (ou Poama),  Onça e Balança.


Guiné > Bissau > c. 1870 > A Rua de S. José, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluart da Bandeira. 

Após o 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois,  Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudou  em 21 janeiro  de 1975,  paa Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

 Fonte: António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).




Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado > c. 1960/70 > : Av da República (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau... Sob o arvoredo, do lado direito, a esplanada do Café Bento (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




António Estácio (Bissau,
Chão de Papel, 1947 -
Sintra, Algueirão  2022),
V Encontro Nacional
da Tabanca Grande, Monte Real,
 2010.
Foto: Luís Graça (2010)
1. Já na altura demos o devido destaque a esta publicação do nosso querido e saudoso camarada e amigo António Estácio (1947-2022): nascido em Bissau, fez o serviço militar em Angola, em 1970/72), foi engenheiro técnico agrícola, deixou saudades em Macau, escreveu diversos livros, vivia em Algueirão, Sintra, tinha duas filhas e seguramente netos. 

A propósito das mudanças de toponímia de Bissau logo no início de 1975 (*), fomos revisitar o livrinho "Nha Bijagó: respeitada personalidade da  sociedade guineense (1871-1959)" 
(edição de autor, 2011, 159 pp., il,).  (**)

Do prefácio, escrito por Eduardo Ferreira
respigamos entretanto os seguntes excertos (**):

(...) Ao ler este livro  não podemos 
deixar de pensar nas grandes figuras femininas, que foram as “sinharas” e que tanta 
influência tiveram na costa ocidental 
africana,  em particular  nos Rios da Guiné, 
entre  o século XVI e finais do século XIX. 

Essas mulheres que eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolvendo conflitos, realizando pactos com as autoridades locais, de modo a que as actividades comerciais decorressem sem delongas e fossem coroadas de êxito. 

A sua condição de crioula, dava à “sinhara” uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos,  nomeadamente os europeus. 

Ficaram famosas na Guiné algumas dessas “sinharas” como:

  • a Bibiana Vaz, 
  • a Aurélia Correia conhecida por “mamé Aurélia”, 
  • a Júlia Silva Cardoso também conhecida como “mamé Júlia” 
  • e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, 

entre muitas outras. 

Leopoldina Ferreira, vulgo “Nha Bijagó”, é em meu entender uma das últimas grandes “sinharas” da Guiné, pois o seu perfil enquadra-se na perfeição no papel desempenhado por essas influentes mulheres africanas, referenciadas por diversos autores como foi o caso de:

  •  André Álvares d’ Almada na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde” de 1594
  •  ou de George E. Brooks com “Eurafricans in Western Africa” publicado em 2004 
  • ou ainda Philip J. Havik com “Trade in the Guinea-Bissau Region: the role of african and luso-african women in the trade networks from early 16th to the mid 19th century” publicado em 1994, 
para apenas citar alguns.

(...) Um aspecto particularmente interessante nesta obra de A. J. Estácio, é a ligação cronológica que o mesmo faz, entre importantes acontecimentos políticos, administrativos e militares, que tiveram lugar na então Guiné Portuguesa, e as diversas fases etárias da biografada, ainda que esses factos não tenham qualquer ligação directa com a personagem tratada neste livro! 

O autor quis desse modo, dar-nos a conhecer alguns factos da história da então colónia/província da Guiné, que tiveram lugar entre 1870 e 1959, período que abarca a vida de “Nha Bijagó”  (...)

(...) Com esta publicação, António Júlio Estácio, revela-nos mais uma vez, o seu grande apego e dedicação às coisas e às gentes da terra que o viu nascer. (...)

Eduardo J. R. Fernandes, "Prefácio" (**)

[O Eduardo Fernandes foi amigo e condiscípulo do autor no Liceu Honório Barreto, em Bissau, e na alutra, em 2011, era comentador da RDP África].

Leopoldina Ferreira,
Nha Bijagó
(1871-1959)
2. Leopoldina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó"  (Bissau, 1871 - Bissau, 1959) e a cronologia da cidade de Bissau

Aproveitando a vasta e valiosa pesquisa historiográfica do António Estácio, uma homem de várias pátrias (Guiné-Bissau, Portugal, Angola, Macau...) vamos aqui recolher e sintetizar algumas datas marcantes do desenvolvimento urbano de Bissau, correspondente ao período em que viveu a "Nha Bijagó" (1871-1959), acrescentando mais algumas de outras fontes:


(i) Leopoldina Ferreira (Pontes, pelo primeiro casamento...) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871

(ii) era filha ("ilegítima", segundo a terminologia do  Código Civil em vigor na época, o de 1866) de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné);

(iii) morreu aos 87 anos, em 26 de maio de 1959;

(iv)  o nominho Nha Bijagó deve tê-lo recebido da mãe, Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau);

(v) pouco antes de ela nascer, em 1871, o 18º Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses Simpson Grant , proferiu a sentença referente à posse da ilha de Bolama, pertencente ao, então, distrito da Guiné, favorável a Portugal o que pôs termo ao conflito se arrastava com os ingleses;

(v) nessa altura Bissau era uma povoação encravada entre a fortaleza de S. José e um muro, com 4 metros de altura;

(vi) a igreja e o cemitério ficavam no interior da Amura;

(vii) de entre as poucas ruas e ruelas, extra-muros, a Rua de S. José era considerada como a artéria mais importante: a do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira; após o 5 de outubro de 1910, passou ser a Rua do Advento da República; depois, a Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência e a 21 janeiro  de 1975 a Rua Guerra Mendes; funcionaca como "passeio público" e tinha casas de sobrado

(viii) em 1872, tinha ela cerca de um ano "quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo" mas ainda eram "poucos os candeeiros";

(x) a 1877, foi criado o concelho de Bissau, sendo de 573 habitantes a população na área murada, composta por :

  • 391 nativos, 
  • 166 oriundos de Cabo Verde 
  • e, apenas, 16 europeus.

(xi)  em 1879, ainda a Nha Bijagó não tinha completado os oito anos, foi “a sede do Governo transferida para Bolama";

(xii) no dia 3 de agosto do mesmo ano, assinou-se o tratado de cessão a Portugal do território de Jufunco, ocupado pelos Felupes;

(xiii) pouco antes de Leopoldina completar os 12 anos de idade, 1883, foi publicado o decreto que dividiu a província da Guiné  em quatro circunscriçõess, criando-se assim os concelhos de Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. 

(xiv) tinha ela 14 anos quando Portugal e a França celebraram [ em Paris, em 1886] a convenção referente à delimitação das possessões dos 2 países na África Ocidental e que correspondem às atuais Repúblicas do Senegal, Guiné-Conacri e Guiné-Bissau;
.
(xv) as más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade da região, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné;

(xvi) tinha Nha Bijagó já 18 anos quando foi, então, lançada, em 1889,  a primeira pedra para a tão almejada ponte-cais; (foi designada  por ponte Correia e Lança, em homenagem a Joaquim da Graça Correia Lança  Governador da Guiné., de 1888 a 1890)

(xvii) ano e meio depois, em fevereiro de 1891, o chefe dos Serviços de Saúde defendia que a capital deveria regressar à ilha de Bissau, ainda que para local ligeiramente diferente, isto é, puxando-a para a zona de Bandim que se situava “em terreno suficientemente elevado e com vertentes para a praia arenosa.”, o que, em termos de drenagem e salubridade, era, indubitavelmente, vantajoso; 

(xviii) à beira de completar 22 anos, registaram-se, no interior da fortaleza, dois incidentes graves, em 1893:

  •  o incêndio da enfermaria militar  (13 de janeiro) (vd. planta, 3);
  •  uma explosão (em 9 de maio);

(xvix) a 7/12/1893, a vila sofreu um grande cerco, movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra;

(xx) em 1894, é demolida uma  parte do muro de 4 metros de altura que ia do Fortim Nozolini ao Baluarte da Balança (vd. planta, 11, 13), com o objetivo de se construir uma igreja católica;

(xxi)  por volta dos seus 25 anos, dada a elevada densidade populacional intramuros, o governador Pedro Inácio Gouveia autorizou “o aforamento de, terrenos no ilhéu do Rei”,  tendo, em 1900, ali, chegado a ser instalado um lazareto; 

(xxii) a implantação da República em Portugal levou à mudança do Governador e, em 1912/13, o primeiro-tenente Carlos de Almeida Pereira manda demolir o muro que constrangia a expansão urbana;


Guiné > Bissau > s/d > Av República (hoje Av Amílcar Cabral), com placa central guarnecida  com árvores, que nos anos 50 seria removida, dando lugar a uma ampla avenida, com duas faixas de laterais, arborizadas, destinadas a estacionamento e delas separadas por um passeio. Fonte: António Estácio (2011)
  

(xxiii) Com a República há mudanças na toponímia:

  • Rua de S. José > Rua do Advento da República
  • Rua do Baluarte da Bandeira > Rua Almirante Reis
  • Travessa Larga > Travessa do Dr. Miguel Bombarda
  • Travessa da Botica > Travessa 5 d’ Outubro
  • Travessa da Ferraria > Travessa Honório Barreto;

(xxiv) depois da "campanha de pacificação" do cap João Teixeira Pinto (1913/15),  Bissau é finalmente  objeto dum plano de urbanização que lhe permitiu crescer de forma disciplinada e segundo malha ortogonal bem definida;

(xxv) a autoria do plano é do tenente-coronel engenheiro José Guedes Viegas Quinhones de Matos Cabral que, no início da década de vinte, seria o director das Obras Públicas na Guiné;

(xxvi) para além do Mercado Municipal e do Cemitério, por detrás do Hospital, etc., procedeu-se ao aterro e à regularização do molhe da rua marginal (Rua Agostinho Coelho, numa evocação do primeiro governador da Guiné)  e à construção do edifício-sede da Alfândega;

(xxvii) ao completar Nha Bijagó os seus 62 anos, teve lugar, em 1933, a transferência da sede da comarca judicial da Guiné, que passou de Bolama para Bissau;

(xxviii) em 1934, procedeu-se ao lançamento da primeira pedra para a construção do monumento ao Esforço da Raça, da autoria do Arq Ponce de Castro; as pedras foram enviadas do Porto e o monumento foi inaugurado em 1941; o único monumento colonial que resistiu ao camartelo revolucionário;



Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura > Baluarte da Puana > c. 1900 > Tropas expedicionárias (Foto do domínio público. Coleção Jill Rosemary Dias, em Memórias de África e do Oriente > Cortesia der Wikimedia Coommons)


Fortaleza da Amura. Foto de Manuel Coelho (c. 1966/68)


(xxix) em 1936, a Associação Comercial e Industrial da Guiné cedeu ao Estado o terreno que lhe fora concedido, o qual se destinava à sua sede e ficava em frente ao  edifício do Banco Nacional Ultramarino, para no local se construir um grande edifício onde, a par do Tribunal, foram instalados os Serviços de Administração Civil, assim como os Serviços de Fazenda;

(xxx) em 1939 foi a Fortaleza de S. José, vulgo Amura, classificada como Monumento Nacional

(xxxi) em finais da década de 30 foi celebrado o contrato para a realização dos estudos de abastecimento de água, melhoramento que só se viria a concretizar  na segunda metade da década  de 40;

(xxxii) transferência da capital de Bolama para Bissau,  em 19 de dezembro de 1941;

(xxxiii) em 1945 toma posse o novo governador, Sarmeno Rodrigues. (***)

 (xxxiv) em meados dos anos 40:

  • efetua-se um novo projecto de urbanização;
  • mudam de nome  as vilas de Canchungo (Teixeira Pinto) e Gabú (Nova Lamego)
  • procede-se à construção do depósito de água no Alto de Intim
  • assim como do Palácio do Governador; 
  • constroem-se moradias no “Bairro Portugal”
  • surge o Bairro de Santa Luzia; 
  • deu-se início à edificação da Catedral, do Museu e Biblioteca, etc.
(xxxv) procedeu-se à colocação de estátuas como a do navegador Nuno Tristão, a de Teixeira Pinto, a do grande guineense Honório Pereira Barreto, etc.

(xxxvi) a Rua Honório Barreto foi, na Guiné, a primeira a ser asfaltada e reabriu em 6/4/1953;

(xxxvii)  de tudo isto e a muito mais Nha Bijagó foi contemporânea, como de:

  • a conclusão da nova ponte-cais, inaugurada em 18/5/1953 pelo Subsecretário de Estado Raul Ventura, 
  • a construção do aeroporto em Brá e à sua transferência para Bissalanca; 
  • a visita do Presidente da República Craveiro Lopes; 
  • a  inauguração do edifício situado na, então, Praça do Império, onde ficou a sede da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc. (****)

Fonte: Adapt. livre de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).

[Selecão / revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]



Nova ponte-cais (1953) e estátua de Diogo Gomes.
Postal ilustrado, edição Foto Serra.



Guiné > Bissau > s/d  > "Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")



Guiné > Bissau > s/d  > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Guiné- Bissau > Bissau > c.  2010 > Vista aérea do centro histórico: Av Amílcar Cabral (antiga Av da República, que partia da Praça do Império), ao fundo o cais do Pijiguiti (ou Pindgiguiti, como se escreve agora...), o porto de Bissau,  o ilhéu de Rei... Em primeiro plano, à esquerda, o edifício da administração civil da época colonial, hoje sede o ministério da Justiça.  O edifício a seguir, branco, no cruzamento da Av Amílcar Cabral com a Rua 19 de Setembro ea então o da  RTP África (antiga localização do Café Bento / 5ª Rep).



Guiné- Bissau > Bissau > c. 2010 > Vista aérea do centro histórico: Av Amílcar Cabral (antiga Av da República, que partia da Praça do Império). Em primeiro plano, a Catedral de Bissau.

Fotos:  © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
























_____________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de:




 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,~

Philip Havik já com o estatuto de reformado, prestou e está a prestar um relevantíssimo trabalho em prol da cultura portuguesa, e em diferentes domínios. Recordo o trabalho que ele fez com o António Estácio, de saudosa memória, sobre os chineses em Catió; este nosso confrade António Estácio que escreveu sobre Nha Carlota e Nha Bijagó, duas senhoras de grande peso da sociedade guineense, crioulas muito apreciadas e com grande poder comercial. Achei por bem publicar aqui algumas intervenções que ele deixou em trabalhos e dizer que quando quiser intervir no nosso blogue é só bater à porta, não precisa de pedir licença, aqui a Guiné é soberana, pelo amor que lhe dedicamos.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1)


Mário Beja Santos


Vamos a partir de hoje publicar um conjunto de trabalhos assinados por um distintíssimo investigador, há muito ligado a Portugal, com ênfase na medicina tropical e em estudos orientados para a Guiné colonial. 
Um pouco do seu currículo:

Philip J. Havik (doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Leiden, Países Baixos) foi investigador principal do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade NOVA de Lisboa. 

Trabalhou como investigador na Research School for African, Asian and Amerindian Studies (Universidade de Leiden, Países Baixos) e no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) em Lisboa. Ensinou antropologia colonial e pós-colonial na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa.

Foi Research Fellow no African Studies Centre (ASC) da Universidade de Leiden e investigador associado do Centro de Estudos de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Autor/coautor de mais de 80 publicações, incluídas dezenas de artigos em revistas e capítulos de livros.

O trabalho a que hoje vamos fazer referências intitula-se Matronas e Manonas: Parentesco e Poder Feminino nos Rios da Guiné (Século XVII)

Começa por sumariamente historiar a condição da mulher, o seu escasso poder de decisão fora do meio doméstico e como a partir da abertura do espaço atlântico e com a presença de africanas ativas em todo o tipo de serviços em cidades como Lisboa e Sevilha, verdadeiras bestas de carga, se deu uma barafunda de géneros que foi aproveitada por mulheres que souberam criar espaços de manobra ao nível do trabalho, da religião e em rituais de toda a ordem. Seja como for, o desempenho da mulher nas sociedades africanas foi relegado para dois domínios fundamentais: a reprodução e a força de trabalho. Daí a herança e a identidade do grupo passarem geralmente pela linha feminina.

Quando a África Subsariana entrou no imaginário Ocidental, o comércio de escravos já era bem conhecido, mediado exclusivamente por berberes e árabes no espaço do Mediterrâneo. Deu-se depois a interação afro-atlântica, as notícias deste continente começaram progressivamente a ocupar um lugar na realidade em que as lendas de monstros e feras do Mar Ignoto se transformaram em ouro, marfim e outras preciosidades. 

Escravas africanas inundaram cidades europeias, no continente africano as relações afro-atlânticas produziram povoações mercantis, assistiu-se, mesmo que superficialmente, à cristianização dos quadros das redes comerciais, falava-se em cristãos e gentios. Estes cristianizados, descendentes afro-atlânticos, nascidos nas capitanias ou presídios, elevaram a importância da mulher, que nos chamados rios do Guiné do Cabo Verde, que passou a ter um papel chave nestes ambientes comerciais, assimilando diferentes papéis como curandeiras e conselheiras e mães dos “filhos espúrios”. 

A mulher passou a ser a garantia de sobrevivência em terras alheias, era um mundo com repartição de tarefas que se veio a estruturar nas redes comerciais da Costa Ocidental Africana a partir do século XVI e até fins do século XIX; e, claro está, veio a ter fortes incidências no século XX em que a Nhá ou Sinhara substituía, como Mindjer Garandi, o comerciante, por qualquer razão ausente.

 Philip Havik estuda a figura de Bibiana Vaz de França, nascida em Cacheu, membro de um clã poderoso da localidade. Ela é assumidamente uma das poucas vozes femininas que se fazem ouvir no universo limitado da palavra escrita. Cacheu era então um centro importante da rede comercial atlântica do tráfico de escravos, povoação elevada a vila em 1605; foi fundada por tangomaos, ou seja, aqueles que negociavam por conta própria, em colisão frontal com a política do monarca. Cacheu era um pequeníssimo entreposto de onde saiam aproximadamente 3 mil escravos por ano.

Um bom número de comerciantes tinha ascendência sefardita e cabo-verdiana, daí a designação pejorativa de tangomaos. Quando, por decisão régia, se criaram companhias de comércio com pretensões monopolistas, como a Companhia de Cacheu e Rios de Guiné, em 1676, o meio local recebe-o muito mal, os moradores iniciais denunciar os desvios e a prepotência de notáveis nomeados por Lisboa. 

O clã dos Vaz de França e dos Gomes eram muito influentes em Cacheu, de modo que o casamento de Bibiana com Ambrósio Gomes, este com ascendência sefardita e africana, trouxe vantagens mútuas. Ambrósio ocupara o lugar de capitão-mor durante alguns anos, e com o fim do contrato da companhia, Bibiana, um seu irmão e sobrinhos, constituíram um forte núcleo local, era uma rede de negócios que se estendia do Rio Gâmbia até à Serra Leoa. Quando o conselho Ultramarino deliberou que Bibiana devia fazer partilhas, ela já havia colocado maior parte dos bens fora do alcance do novo capitão-mor. Atenda-se agora a estas observações de Philip Havik:

“O novo comandante da praça de Cacheu, seguindo à letra o antigo contrato da companhia, proibiu a vinda de embarcações estrangeiras. A revolta do povo não tardou: em 25 de março de 1684, prenderam o dito capitão à saída do hospital enviando-o para Farim, para uma casa de Bibiana, onde permaneceu por espaço de 14 meses. Bibiana encabeçou o movimento de revolta, ela, seguida pelo povo ‘cristão’, decidiram não mais admitir capitães do reino nem das ilhas de Cabo Verde, nem portugueses negociando com o gentio, mas só com moradores da praça. Foi um duro golpe para os interesses dos portugueses; os moradores de Cacheu fizeram muitas petições contra os efeitos nefastos resultando-se da criação da comissão da companhia majestática, e passar a negociar n mato, esquivando-se a pagar direitos aos cofres reais – na realidade os bolsos dos capitães-mores e da companhia. Cacheu não era mais do que um entreposto empobrecido, desprovido de contribuintes e fontes de receita, cuja administração se encontrava no meio hostil, assolado, judeus, crioulos e gentios.”

Deu-se a reação das autoridades em Lisboa, Bibiana, o irmão e outro cúmplice no levantamento foram presos da cadeia da Ribeira Grande. O ponto curioso da historiografia anda à volta do facto de só muito tarde se ter vindo a conhecer os tramites desta sublevação. Presa em Cabo Verde, doente e iletrada, enquanto as autoridades procuravam secretariar e apreender os bens de Bibiana e família, ela e o irmão receberam um perdão real, a Corte, ciente da situação catastrófica do comércio português na costa receava perder ainda mais influencia. Daí a reabilitação de Bibiana. 

Mas havia outros pontos a favor dela. Depois de reabilitada, em sinal de agradecimento, ofereceu-se para construir um forte em Bolor, local estrategicamente situado na entrada do rio Cacheu, deu como garantia a sua pessoa e todos os seus bens.

Em jeito de conclusão, o investigador recorda o mundo de intriga que acompanhou o caso Bibiana Vaz, mulher africana, cristã, viúva, comerciante, armadora/parente de linhagens da terra dos donos di chon, ela liderou uma revolta contra uma autoridade alheia.

Enfatize-se um outro ponto que o autor chama a atenção: “Apesar das múltiplas petições feitas pelos moradores de Cacheu contra os efeitos nefastos resultantes da criação da companhia e contra e prepotência dos capitães-mores que chamaram todo o comércio para sim, não houve, por parte da Metrópole nem das ilhas, intervenção alguma. A resistência dos moradores ficou patente no facto da maioria andar a negociar e a morar no mato, esquivando-se de pagar direitos aos cofres reais.”

Voltando a comentários de Philip Havik:

“O governador de Cabo Verde e os capitães-mores saem-se mal desta história, muitas vezes agindo com base em raciocínios mesquinhos e vingativos. Cúmplices da crise em que mergulhou o tráfico português ao longo dos anos, as autoridades de Lisboa e da Ribeira Grandes, tinham perdido todo o controlo sobre a situação. A fraqueza da posição portuguesa no comércio da Costa da Guiné não permitia mais que o perdão de Bibiana".

Este artigo vem publicado em:
https://www.academia.edu/42757187/Matronas_e_Mandonas_parentesco_e_poder_feminino_nos_rios_de_Guin%C3%A9_s%C3%A9culo_XVII_

Nha Bijagó (1871-1959)
Nha Carlota (1889-1970)
Arredores de Cacheu, ida à fonte, 1900
O Forte de Cacheu e a estátua de Diogo Gomes, mutilada
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Nota do editor

Último post da série de 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 23 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Nestas horas de releitura dos livros deste nosso bondoso confrade conjecturo o que teria sido bom para conhecer mais aprofundadamente a História da Guiné se o António Estácio, com o cabedal de relações humanas que possuía, tivesse andado pela Guiné a recolher história oral em diferentes dimensões, logo aquele Bissau da sua juventude que ele reteve com a máxima limpidez até que uma doença traiçoeira o foi enchendo de nevoeiro, leem-se estes livros das sinharas, e mesmo com algumas recusas justificadas por falta de lembrança, Estácio entrou na lembrança, nas recordações de mais de meio século atrás. Viremos um dia, portugueses e guineenses, a lastimar profundamente o desaproveitamento deste capital cultural e relacional que aos poucos se vai esvaindo, fazendo arder bibliotecas inteiras.

Um abraço do
Mário



Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó

Mário Beja Santos

António Estácio, entre os seus sonhos de investigação, não escondia o ardente desejo de tentar um levantamento das sinharas, aquelas matriarcas, habitualmente crioulas e casadas com europeus ou cabo-verdianos que tiveram um papel determinante nos Rios da Guiné, nomeadamente entre os séculos XVI a XIX. Neste texto dedicado a Nha Bijagó citará mesmo o nome de algumas: Bibiana Vaz, Aurélia Correia, Júlia Silva Cardoso e Rosa Carvalho Alvarenga, a mãe de Honório Pereira Barreto. Qual não foi a minha surpresa quando, aí por 2011, num desses encontros espúrios que tínhamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa me entregou o seu mais recente livro dedicado a Nha Bijagó. Perguntei-lhe se tinha ido à Guiné em segredo, já que nesta conversa introdutória me referia dezenas de entrevistas, que não, fizera praticamente dois livros de uma só assentada, em 2006 andara pela Guiné a bater por muitas portas, umas vezes para saber de Nha Carlota, outras vezes para saber de Nha Bijagó. Quem era esta matriarca, perguntei-lhe, tão dignas das suas preocupações. E falou-me de Leopoldina Ferreira, filha de uma nativa dos Bijagós e de um comerciante que se dedicava à compra e exportação de couros, de gado bovino e de crocodilo. Com calor, voltou a enquadrar o papel das sinharas, tão maltratadas pela historiografia. E deu-me conta que quanto à investigação da Nha Bijagó ele entendeu que era útil para o leitor fazer uma ligação cronológica entre acontecimentos políticos, administrativos e militares com significado contemporâneos da vida da Nha Bijagó. Se recorreu aos testemunhos, não descurou a árdua tarefa da pesquisa, como escreve no livro: “Desafio que me levou a consultar dezenas de livros, Boletins Oficiais, documentos. Tinha ela um ano quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo. Em 1879, a sede do Governo passa a ser Bolama, a primeira capital. Em 1886, em 12 de maio, assina-se a Convenção Luso-Francesa que define as fronteiras da colónia.”

Leopoldina casou com o cabo-verdiano José Ledo Pontes, teve casamentos subsequentes, filhas e netos. Ora, António Estácio conviveu com vários bisnetos da Nha Bijagó que lhe facultaram nesta investigação informações da maior utilidade. Mas voltando à contextualização de acontecimentos, Estácio socorre-se de uma interessante descrição de Bissau da época, saída da pena do Padre Marcelino Marques de Barros, publicada na Revista As Colónias Portuguesas, n.º 3, fevereiro de 1884, temos ali um quadro preciso desde o Forte de S. José até ao cais de Nasolini, e não se esconde a insalubridade em que se vivia em Bissau, o que justificará ao autor a seguinte observação: “As más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, quando Nha Bijagó entrava nos 15 anos, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné!”

Acresce os conflitos e os incidentes era moeda corrente em Bissau naquele tempo, uma situação de completa instabilidade que se prolongou até à I República.

O perfil económico de Nha Bijagó distinguia-se de Nha Carlota, Leopoldina era uma abastada proprietária imobiliária, não havia rua no Bissau Velho em que não tivesse uma casa. E começa o tropel das entrevistas para recolha dos testemunhos, logo avulta a disparidade de uma mulher de fé católica que escondia o seu lado animista. E conta-se a história de alguém que veio desabafar com a matriarca e esta propôs a realização de uma cerimónia gentílica a essa pessoa que sofrera uma série de desaires, foi-se comprar para a cerimónia aguardente sacarina, tabaco em folha e arroz, a cerimónia realizou-se em Prábis, no Irã de etnia Papel. Leopoldina era também um bom garfo, era de estatura média mas a puxar para o largo, trocava imensas receitas, descobriu-se um papel em que passou a alguém a receita de brindge (feito à base de carne de pato, galinha ou porco, temperado, cozido ou frito, servindo-se com mandioca ou batata cozida e o omnipresente arroz).

Dotada de forte personalidade, enérgica, não fugindo a atos de cólera, era de extrema solicitude e foi madrinha de meio mundo. E Estácio descreve o ritual da recolha das rendas, no final de cada mês, Leopoldina dirigia-se aos seus inquilinos e anunciava nha povo, djam bem! Sentava-se num banquinho e esperava solenemente que viessem ter com ela e lhe entregassem o montante correspondente à renda.

Dentre as suas pesquisas detectivescas, Estácio encontrou o que restava do local de residência de Nha Bijagó à entrada da estrada de Santa Luzia. Nha Bijagó está sepultada em campa rasa, com o número 189, no talhão n.º 5, do antigo cemitério. Aqui fica a tenra homenagem de Estácio a alguém que ele não conheceu na sua juventude de Bissau, mas ficou para a lenda. Triplov, encontrei na internet, faz publicação integral deste livro, aqui fica a referência:

Texto integral de “Nha Bijagó”. Respeitada Personalidade da Sociedade Guineense. (1871-1959), por António Estácio, edição do autor, 2011. Disponível em:
https://www.triplov.com/guinea_bissau/antonio_julio_estacio/nha_bijago/nha_bijago.pdf 

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau). Morreu aos 87 anos, em 26 de maio de 1959.
A Rua de S. José, em Bissau, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois, Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudou em 21 janeiro de 1975, Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23543: In Memoriam (449): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (2): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20320: Historiografia da presença portuguesa em África (184): O desenvovimento urbano de Bissau, no período em que viveu Leopodina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó" (1871-1959)


Guiné > Bissau > C. 1870 > A Rua de S. José, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois,  Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudoum  em 21 janeiro  de 1975,  Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

 Fonte: António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).




Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado > c. 1960/70 > : Av da República (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



António Estácio, V Encontro Nacional
da Tabanca Grande, Monte Real, 2010. Foto; 
1. Já na altura demos o devido destaque a esta publicação do nosso camarada e amigo António Estácio (n. 1947, em Bissau, fez o serviço militar em Angola, em 1970/72),  que representou vários anos de pesquisa, com recurso a várias técnicas (entrevistas, análise documental, observação participante, viagem a Bissau e Bolama em 2006, etc. , tudo a expensas do autor.)


E a propósito das mudanças de toponimia de Bissau, fomos revisitar o livrinho "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).  (**)

Do prefácio, escrito por Eduardo Ferreira, respigamos entretanto os seguntes excertos (*):

(...) Ao ler este livro  não podemos deixar de pensar nas grandes figuras femininas, que foram as “sinharas” e que tanta influência tiveram na costa ocidental africana, em particular nos Rios da Guiné, entre o século XVI e finais do século XIX. 

Essas mulheres que eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolvendo conflitos, realizando pactos com as autoridades locais, de modo a que as actividades comerciais decorressem sem delongas e fossem coroadas de êxito. A sua condição de crioula, dava à “sinhara” uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos,  nomeadamente os europeus. 

Ficaram famosas na Guiné algumas dessas “sinharas”, como a Bibiana Vaz, a Aurélia Correia conhecida por “mamé Aurélia”, a Júlia Silva Cardoso também conhecida como “mamé Júlia” e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, entre muitas outras. 

Leopoldina Ferreira, vulgo “Nha Bijagó”, é em meu entender uma das últimas grandes “sinharas” da Guiné, pois o seu perfil enquadra-se na perfeição no papel desempenhado por essas influentes mulheres africanas, referenciadas por diversos autores como foi o caso de André Álvares d’ Almada na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde” de 1594 ou de George E. Brooks com “Eurafricans in Western Africa” publicado em 2004 ou ainda Philip J. Havik com “Trade in the Guinea-Bissau Region: the role of african and luso-african women in the trade networks from early 16th to the mid 19th century” publicado em 1994, para apenas citar alguns.

(...) Um aspecto particularmente interessante nesta obra de A. J. Estácio, é a ligação cronológica que o mesmo faz, entre importantes acontecimentos políticos, administrativos e militares, que tiveram lugar na então Guiné Portuguesa, e as diversas fases etárias da biografada, ainda que esses factos não tenham qualquer ligação directa com a personagem tratada neste livro! 

O autor quis desse modo, dar-nos a conhecer alguns factos da história da então colónia/província da Guiné, que tiveram lugar entre 1870 e 1959, período que abarca a vida de “Nha Bijagó”  (...)

(...) Com esta publicação, António Júlio Estácio, revela-nos mais uma vez, o seu grande apego e dedicação às coisas e às gentes da terra que o viu nascer. (...)

Eduardo J. R. Fernandes, "Prefácio" (*)

[O Eduardo Fernandes, amigo e condiscípulo do autor no Liceu Honório Barreto, em Bissau, e na alt7ra, em 2011, comentador da RDP África].

Nha Bijagó (1871-1959)
Leopoldina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó"  (Bissau, 1871 - Bissau, 1959) e a cronologia da cidade de Bissau

Aproveitando a vasta e valiosa pesquisa historiográfica do António Estácio, uma homem de várias pátrias (Guiné-Bissau, Portugal, Angola, Mavau...= vamos aqui recolher e sintetizar algumas datas marcantes do desenvolvimento urbano de Bissau, correspondente ao período em que viveu a "Nha Bijagó"(com a devida vénia ao autor...)


(i) Leopoldina Ferreira (Pontes, pelo primeiro casamento...) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871. Era filha ("ilegítima", segundo a terminologia do Código Civil em vigor na época, o de 1866) de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) . Morreu aos 87 anos, em 26 de Maio de 1959. O nominho "Nha Bijagó" deve tê-lo recebido da mãe, Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau).
(ii) Pouco antes de ela nascer, em 1871, o 18º Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses Simpson Grant , proferiu a sentença referente à posse da ilha de Bolama, pertencente ao, então, distrito da Guiné, favorável a Portugal o que pôs termo ao conflito se arrastava com os ingleses.

(iii) Nessa altura Bissau era uma povoação encravada entre a fortaleza de S. José e um muro, com 4 metros de altura. A igreja e o cemitério ficavam no interior da Amura. De entre as poucas ruas e ruelas, extra-muros, a Rua de S. José era considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a Rua do Advento da República; depois, a Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência e a 21 janeiro  de 1975 a Rua Guerra Mendes.

(iv) Em 1872, tinha ela cerca de um ano "quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo. Eram, todavia, poucos os candeeiros"...

(v) A 1877, foi criado o Concelho de Bissau, sendo de 573 habitantes a população na área murada, composta por 391 nativos, 166 oriundos de Cabo Verde e, apenas, 16 europeus.

(vi) Em 1879, ainda a "Nha Bijagó" não tinha completado os oito anos, foi “a sede do Governo transferida para Bolama.” 

(vii) No dia 3 de agosto do mesmo ano, assinou-se o tratado de cessão a Portugal do território de Jufunco, ocupado pelos Felupes.

(viii) Pouco antes de Leopoldina completar os 12 anos de idade, foi publicado o decreto que dividiu a província da Guiné  em quatro circunscriçõess, criando-se assim os concelhos de Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. 

(ix) Tinha ela 14 anos quando Portugal e a França celebraram [, em Paris, em 1886,] a convenção referente à delimitação das possessões dos 2 países na África Ocidental e que correspondem às atuais Repúblicas do Senegal, Guiné-Conacri e Guiné-Bissau.
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(x) As más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade da região, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné.

(xi) Tinha “Nha Bijagó” já 18 anos quando foi, então, lançada, em 1889,  a primeira pedra para a tão almejada ponte-cais,( Foi designada  por ponte Correia e Lança, em homenagem a Joaquim da Graça Correia Lança  Governador da Guiné., de 1888 a 1890,)

(xii) Ano e meio depois, o chefe dos Serviços de Saúde defendia que a capital deveria regressar à ilha de Bissau, ainda que para local ligeiramente diferente, isto é, puxando-a para a zona de Bandim que se situava “em terreno suficientemente elevado e com vertentes para a praia arenosa.”, o que, em termos de drenagem e salubridade, era, indubitavelmente, vantajoso.

(xiii) À beira de completar 22 anos, registaram-se, no interior da fortaleza, dois incidentes graves, em 1893: o incênndio da da enfermaria militar e uma explosão;

(xiv) A 7/12/1893, a vila sofreu um grande cerco, movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra.

(xv) Em 1984, é demolida uma  parte do muro de 4 m. de altura que ia do Fortim Nozolini ao Baluarte da Balança, com o objetivo de se construir uma igreja católica.

(xvii) Por volta dos seus 25 anos, dada a elevada densidade populacional intramuros, o governador Pedro Inácio Gouveia autorizou “o aforamento de, terrenos no olhéu do Rei”m tendo, em 1900, ali, chegado a ser instalado um lazareto.

(xviii) A implantação da República em Portugal levou à mudança do Governador e, em 1912/13, o primeiro-tenente Carlos de Almeida Pereira manda demolir o muro que constrangia a expansão urbana.

Guiné > Bissau > s/d Av República (hoje Av Amílcar Cabral), com placa central guarnecia  com árvores, que nos anos 50 seria removida, dando lugar a uma ampla avenida, com duas faixas de laterais, arborizadas, destinadas a estacionamento e delas separadas por um passeio. Fonte: António Estácio (2011)
  

(xix) Com a República há mudanças na toponímia:

Rua de S. José > Rua do Advento da República
Rua do Baluarte da Bandeira > Rua Almirante Reis
Travessa Larga > Travessa do Dr. Bombarda
Travessa da Botica > Travessa 5 d’ Outubro
Travessa da Ferraria > Travessa Honório Barreto

(xx) Depois da "campanha de pacificação" do cap João Teixeira Pinto (1913/15),  Bissau é finalmente  objeto dum plano de urbanização que lhe permitiu crescer de forma disciplinada e segundo malha ortogonal bem definida. A autoria do plano é do tenente-coronel engenheiro José Guedes Viegas Quinhones de Matos Cabral que, no início da década de vinte, foi director das Obras Públicas na Guiné.

(xxi) Para além do Mercado Municipal e do Cemitério, por detrás do Hospital, etc., procedeu-se ao aterro e à regularização do molhe da rua marginal {, Rua Agostinho Coelho, numa evocação do primeiro governador da Guiné],  e à construção do edifício-sede da Alfândega.

(xxii) Ao completar 62 anos, teve lugar, em 1933, a transferência da sede da comarca judicial da Guiné, que passou de Bolama para Bissau.

(xxiii) Em 1934, procedeu-se ao lançamento da primeira pedra para a construção do monumento ao Esforço da Raça, da autoria do Arq Ponce de Castro. (. As pedras foram enviadas do Porto e o monumento foi inaugurado em 1941; o único monumento colonial que resistiu ao camartelo revolucionário.)

Fortaleza da Amura. Foto de Manuel Coelho (c. 1966/68)
(xxiv) Em 1936, a Associação Comercial e Industrial da Guiné cedeu ao Estado o terreno que lhe fora concedido, o qual se destinava à sua sede e ficava em frente ao  edifício do Banco Nacional Ultramarino, para no local se construir um grande edifício onde, a par do Tribunal, foram instalados os Serviços de Administração Civil, assim como os Serviços de Fazenda;

(xxv) Em 1939 foi a Fortaleza de S. José, vulgo Amura, classificada como Monumento Nacional.

(xxvi) Em finais da década de 30 foi celebrado o contrato para a realização dos estudos de abastecimento de água, melhoramento que só se viria a concretizar  na segunda metade da década  de 40.

(xxvii) Transferência da capital de Bolama para Bissau,  em 19 de Dezembro de 1941. Em 1945 tomna posse o novo governador, Sarmeno Rodrigues. (***)

 (xxviii) Em meados dos anos 40 efectua-se um novo projecto de urbanização, mudam de nome  as vilas de Canchungo (Teixeira Pinto) e Gabú (Nova Lamego), procede-se à construção do depósito de água no Alto de Intim, assim como do Palácio do Governador; constroem-se moradias no “Bairro Portugal” e surge o Bairro de Santa Luzia; Deu-se início à edificação da Catedral, do Museu e Biblioteca, etc.

Nova ponte-cais (1953) e estátua de Diogo Gomes.
Postal ilustrado, edição Foto Serra.
(xxix) Procedeu-se à colocação de estátuas como a do navegador Nuno Tristão, a de Teixeira Pinto, a do grande guineense Honório Pereira Barreto, etc.

(xxx) A Rua Honório Barreto foi, na Guiné, a primeira a ser asfaltada e reabriu em 6/4/1953.

(xxxi)  De tudo isto e a muito mais “Nha Bijagó” foi contemporânea, como da conclusão da nova ponte cais, inaugurada em 18/5/1953 pelo Subsecretário de Estado Raul Ventura, à construção do aeroporto em Brá e à sua transferência para Bissalanca; à visita do Presidente da República Craveiro Lopes; à inauguração do edifício situado na, então, Praça do Império, onde ficou a sede da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc. (****)

Fonte: Adapt. livre de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).

A aquisição do livro poderá ser feita diretamente com o autor, através de contacto telefónico:  fixo >  + 351 21 922 9058: telem > + 351  962 696 155.

[Selecão / revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8849: Notas de leitura (281): Nha Bijagó, de António Estácio. Prefácio de Eduardo J. R. Fernandes

Vd. também poste de 16 de setembro de  2011 > Guiné 63/74 - P8785: Notas de leitura (274): Nha Bijagó, de António Estácio (Mário Beja Santos)

(**) Vd. postes de:


4 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20311: Memória dos lugares (395): Roteiro de Bissau Velha: ruas antigas e ruas atuais, onde se localizavam algumas casas comerciais do nosso tempo: café Bento, Zé da Amura, Pintosinho, Pinto Grande / Henrique Carvalho, Taufik Saad, António Augusto Esteves, Farmácia Moderna...

(***) Vd. também > 18 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17877: Historiografia da presença portuguesa em África (98): Bissau, em 1947, ao tempo de Sarmento Rodrigues, revisitada por Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"

(****)  Último poste da série > 6 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1) (Mário Beja Santos)