Queridos amigos,
Havia que completar o quadro da visita à casa que o maestro e compositor Filipe de Sousa sonhou pôr de pé durante tantos anos, para ela transferiu belíssimas obras de arte, uma opulenta biblioteca, a decoração continua a ser assombrosa, tudo se conjuga bem desde o património dos séculos XVIII e XIX até à arte contemporânea, é um diálogo perfeito neste ponto de Alcainça onde eu não vinha há mais de vinte anos, sempre com uma ranchada de amigos do Filipe, aqui se repetia o espírito da tertúlia que ele instituíra em pleno Chiado, na tal Mandíbula d'Aço, de saudosa memória. Na viagem de regresso dei comigo a pensar quais as funcionalidades que se podem dar às casas-museu, para elas se manterem vivas, mas bem conservadas, sem serem alvo de danos e depredações, mas concomitantemente receberem em residência artistas e cientistas de diversa ordem. Uma casa-museu pode ser um bom bico de obra, em segurança e conservação, e até com poucos visitantes. É um daqueles problemas, perdoe-se-me a presunção, para a qual não tenho resposta satisfatória.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (215):
Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 2
Mário Beja Santos
Na suposição de que o leitor não andou aqui pelo blogue no passado sábado, uma curta explicação. Foi graças a um grande amigo, Carlos Miguel de Araújo, que recebi um dia um convite do maestro e compositor Filipe de Sousa para ir almoçar à Mandibula d’Aço, a única tertúlia que naqueles anos 1990 funcionava no Chiado. Filipe de Sousa herdara de um tio uma empresa altamente prestigiada, a Casa Souza, na Rua Garrett, em frente ao estabelecimento, num 4.º andar, funcionavam os escritórios, o refeitório dos trabalhadores e criara-se um espaço de sala de jantar onde o proprietário acolhia amigos, era esta a Mandibula d’Aço. Assim se foi constituindo a nossa amizade, guardo recordações inesquecíveis de alguns desses almoços com escritores, compositores, intérpretes do bel canto, entre outros. Um dia em 1994, fomos em romagem até Alcainça, seguia-se pela velha estrada em direção a Mafra, havia um desvio e dava-se com duas entradas, uma era a casa do gravador David Almeida, a outra o Casal de S. Bernardo, a casa do Filipe, que ele mandara construir de raiz, assombrou-me a decoração. O Filipe de Sousa faleceu em 2006, não voltei a Alcainça. O meu professor de ginástica de manutenção vive em S. Pedro da Cadeira, concelho de Mafra, todos os anos organiza um almoço para três turmas, um grupo dos seus alunos, onde me incluo, prepara uma pequena viagem cultural, antes de atacarmos o bacalhau, o pato e a doçaria. Este ano ninguém sugeria um itinerário, lembrei-me de contactar a Fundação Jorge Álvares, a quem o Filipe de Sousa ofereceu o seu património, deu-se a visita e foi muito tocante para mim encontrar a governanta da casa, D. Maria do Rosário, que conheci nesses anos 1990 e 2000 a trabalhar na Mandibula d’Aço.
O que aqui se mostra são imagens complementares às que se publicaram no passado sábado, a Fundação mantém o espírito da casa, no início da visita entreguei à D. Maria do Rosário a fotografia em que estou com Carlos Miguel de Araújo e Filipe de Sousa. Vamos então continuar a visita.
Filipe de Sousa, Carlos Miguel de Araújo e eu, havia sempre novidades no património do Filipe e ele gostava de partilhar impressões com os seus amigos. Era um homem profundamente generoso, recordo que depois de um almoço na Mandibula d’Aço, ele fez questão de me deixar na Praça do Saldanha, onde eu trabalhava, antes de irmos engravatara-se, fiz-lhe um comentário de elogio à gravata, "pois se gosta muito, é sua”.
Aqui me demorei para desfrutar desta singeleza, a harmonia das formas de um requintado armário sobrepujado por arte oriental e um fundo de arte contemporânea.
Lembranças dos clássicos na sala de jantar, recordei instantaneamente aquela terrina Vista Alegre, fiquei com a sensação que estivera aqui na véspera.
Fez-se agora uma pausa, a Maria do Rosário abriu as portas viradas para o jardim, veio mostrar-nos os seus trabalhos de jardinagem e como se aplica a fundo a tratar o melhor possível os hectares da propriedade. Já não me recordo do nome que tinha esta escultura, parece ser a de um santo, a envolvente vegetal do Casal de S. Bernardo é muito repousante.
Outra excecional gravura de David Almeida. O David Almeida foi testamenteiro do Filipe, era uma admiração recíproca, não surpreende ver imensas obras deste gravador que para mim foi o mais importante da segunda metade do século XX, depois de Bartolomeu Cid dos Santos.
Uma tapeçaria de Cruzeiro Seixas. Sempre que visitei Alcainça passava uns bons minutos em êxtase diante desta beleza.
Trata-se de uma serigrafia de um dos mais geniais artistas de todo o século XX, Francis Bacon, o que me empolga é como este prodigioso artista de origem irlandesa torce e retorce as formas permitindo-nos, contudo, percecionar o conteúdo reformulado. Estive vaivém para deitar fora esta imagem, apareço descaradamente a tirar a fotografia, mas não tenho outra do Francis Bacon em casa do Filipe de Sousa, e a obra é de tirar o chapéu.
O piano do maestro e compositor, e sempre estantes de livros
Beneficiei da generosidade do Filipe quando se passou do vinil para o CD, uma vez combinámos ir à Gulbenkian ir ouvir um intérprete de génio ao piano, então o jovem Evgeny Kissin, no final do concerto o Filipe disse-me que ia pôr em casa pois havia ali um saco muito pesado para mim. À porta de casa entregou-me um saco com uns bons quilos de boa música clássica, mas eu também me estava a despedir do vinil… A coleção do Filipe em CDs era de nos deixar de boca aberta, desde o barroco ao dodecafonismo serial não faltava nada, o que se vê é uma pálida amostra.Fiquei petrificado, não me lembrava absolutamente nada desta tapeçaria do Carlos Botelho, nada destas formas tinha a ver com aquela cidade poliédrica que foi construído ao longo de décadas, em que o Terreiro do Paço anda de paredes meias com a Igreja de S. Miguel de Alfama, e aqui parece que o grande pintor pretendeu mostrar-nos que sabia ir muito mais longe do que aquela arte figurativa com que marcou presença na sua contemporaneidade.
Mais um recanto com bela decoração e uma associação primorosa entre a pintura, a escultura e ornamento.
Os jardins mantêm-se primorosamente tratados, é D. Maria do Rosário quem responde pela jardinagem.
É a despedida, já estamos todos a caminho do carro, voltei atrás, imaginei que estas esculturas me estavam a dizer adeus, agradecendo a visita, toda esta construção idealizada pelo Filipe de Sousa, um sonho que ele concretizou, aqui está mantido e tive o privilégio de aqui regressar cerca de vinte anos depois.
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Notas do editor:
Vd. post da 26 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27056: Os nossos seres, saberes e lazeres (691): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (214): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 1 (Mário Beja Santos)
Último post da série de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27077: Os nossos seres, saberes e lazeres (693): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Visita de um delegação militar portuguesa, chefiada pelo general da FAP., Conceição e Silva (1933-2021)
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