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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
A importância da Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas é historicamente indiscutível, completa outra documentação fundamental, logo a Crónica de Zurara. Temos aqui o reportório das diferentes exposições e a chegada à Senegâmbia, com receções muito hostis; diz-se claramente que o Infante recebia um quarto de todo este comércio, de onde vinham ouro e escravos; põe-se ênfase nas exposições de Nuno Tristão e nas de Diogo Gomes e na sua viagem pelo rio Gâmbia; Diogo Gomes continuou nas navegações no reinado de D. Afonso V, refere que chegou às ilhas de Cabo Verde com António de Noli, assunto altamente controverso. Não se pode estudar o início da nossa presença na Senegâmbia sem dar a palavra a Diogo Gomes.

Um abraço do
Mário


Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5

Mário Beja Santos

Recapitulando o que aqui nos propomos fazer com a apresentação de alguns textos determinantes que nos trazem elucidação quanto ao modo como arrancou a nossa presença em meados do século XV e adiante numa região de contornos um tanto difusos entre o Cabo Verde continental e a Serra Leoa, pedimos auxílio àquele que terá sido o historiador melhor preparado sobre a expansão portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, retirámos um conjunto de parágrafos sobre este período quatrocentista, primeiro do seu livro A Expansão Quatrocentista Portuguesa, que está reeditado pelas publicações Dom Quixote, e estamos agora a selecionar outros parágrafos do conjunto de três volumes que o autor designou por Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, continuam a ser incontornáveis no estudo sobre os descobrimentos. Encetámos no texto anterior uma referência à Relação de Diogo Gomes, aborda-se o projeto Henriquino e a construção de uma fortaleza ou castelo em Arguim. Iniciava-se um trato comercial que se irá progressivamente estendendo pela costa ocidental africana. Vejamos o que o historiador escreve sobre estes acontecimentos:
“E a este castelo vinham os árabes da terra trazendo ouro puro em pó, e recebiam em troca trigo e mantas brancas e outras mercadorias que para ali mandou o Infante. E assim sempre até agora se faz o comércio, trazendo os negros o outro da terra de Tambucotu. E este castelo foi construído no ano de 1445.

De novo o Sr. Infante fez uma armada de quatro caravelas; capitães Gilianes de Villalobos cavaleiro, Lançarote, almoxarife de Lagos, e Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra e muitos outros de boas famílias. Os quais foram a Arguim e passaram além e tomaram ilhas.

E eu Diogo Gomes, almoxarife de Sintra, apoderei-me de 22 pessoas, que estavam escondidas e as trouxe ante mim como se fossem rezes, por meia légua, até aos navios. E tomámos nesse dia destes indígenas, homens de cor avermelhada, 600 e quase 50 e com estes voltámos a Portugal, a Lagos, onde estava o Sr. Infante que muito se alegrou connosco. Depois mandou o Sr. Infante, outra vez, Gonçalo Afonso de Sintra, voltou-se àquelas ilhas, batalhou-se com os Serracenos e as mulheres fugiam, e Gonçalo de Sintra perseguia-as pela água, e as mulheres tomaram lodo do mar e lançaram-lhe à cara, e o cegaram, de tal modo que ficou completamente cego. E voltaram os outros para a caravela, vindo para Portugal trazer as novas ao Sr. Infante, e trouxeram consigo mais de 60 nativos de um e outro sexo. E o Sr. Infante tinha sempre de todos os cativos que traziam uma quarta parte, e costumava dar-lhes tudo o que careciam. Foram mandadas novas caravelas. E navegando ainda mais viram uma terra cheia de árvores e palmeiras, e saltaram na terra firme. E toda aquela gente era preta. Mandaram os cristãos mercadorias que consigo haviam trazido para a terra firme, e ele receberam-nas e não quiseram falar.

E passando além acharam um rio grande que é chamado Cenega (Senegal) muito povoado e falaram os cristãos com essa gente pelos homens que consigo levavam, e trataram paz com eles, e fizeram comércio, e de aí traziam muitos pretos por compra. E assim desde então até agora, e cada dia mais, trazem pretos sem número daquele lugar.

E estas coisas, que aqui escrevemos se afirmam salvando o que diz o ilustríssimo Ptolomeu, que muita boa coisa escreveu sobre a divisão do mundo, que, porém, falhou nesta parte. Pois escreve e divide o mundo em três partes, uma povoada que era no meio do mundo, e a setentrional diz que não era povoada por causa do excessivo frio, e da parte equinocial do meio-dia também escreve não ser habitada pelo motivo do extremo calor. E tudo isto achámos no contrário, porque o polo ártico vimos habitado até além do prumo do polo, e a linha equinocial também habitada por pretos, onde é tanta a multidão de povos que custa acreditar. E aquela terra meridional está cheia de árvores e frutos; mas outras espécies de frutos, e as árvores são tão grossas e de tamanha altura que só vendo se pode crer.”

Descreve-se de seguidamente Diogo Gomes o filho adotivo do Infante D. Henrique, os privilégios recebidos do Papa e a continuação de novas expedições descendo a costa ocidental africana. Assim se descobriu um promontório a que se pôs o nome de Cabo Verde. “E neste lugar começa a linha equinocial, porque dias e noites aí sempre são iguais no inverno como no verão, e aquelas gentes são na maior parte negros. E as caravelas indo além de Cabo Verde, isto é, para o polo antártico, descobriram terra deserta.”

Os contactos não correram bem, morreram muitos cristãos envenenados por setas. Veio uma nova caravela armada, o capitão era Nuno Tristão, navegou diretamente a Cabo Verde, chegaram a uma terra de homens maus chamados Sereres, também muitos hostis. Continuaram a navegar até à terra dos Barbacins, de novo foram atacados com setas envenenadas. Diz Diogo Gomes que foi o primeiro cristão que fez a paz com eles.

Um certo nobre do reino da Suécia viera a Portugal e pediu ao Infante que o mandasse àquelas regiões. Deu-se um encontro muito feroz, só escaparam três rapazes que entraram no grande mar oceano e regressaram a Portugal, ajudados por um corsário que tripulou a caravela a partir do Cabo Espichel. É armada nova caravela e o capitão é Diogo Gomes, passaram o rio de S. Domingos, no Rio Grande de Geba viram Macareu, vieram os mouros da terra nas suas almadias e houve troca de mercadorias: panos de seda ou algodão, dentes de elefante, malagueta em grão. Regressaram a Cabo Verde, no caminho entraram no rio de Gâmbia, subiram o rio até Cantor, Diogo Gomes aproveitou para se informar sobre os povos da região. Temos aqui um precioso relato, tudo virá a ser descrito ao Sr. Infante. Diogo Gomes na sua Relação alude ao falecimento do Infante em 13 de novembro de 1460.

Dois anos depois, D. Afonso V armou uma grande caravela, Diogo Gomes foi nomeado capitão. Viajou até à terra dos Barbacins. “Com a ajuda de Deus, em doze dias cheguei a Barbacins e ali achei duas caravelas, a saber: uma, na qual ia Gonçalo Ferreira, familiar do Sr. Infante, que levava cavalos para ali. E na outra caravela era capitão e mercador o genovês António de Noli. Estes mercadores com as suas caravelas fizeram muito dano ao resgate dali: porque onde costumavam os mouros dar sete negros por um cavalo, a eles não davam mais de seis. Então eu convoquei os capitães, e da parte do Rei lhes dei sete negros por um cavalo, e dei depois um cavalo por catorze a quinze negros. E estando nós assim, veio uma caravela de Gâmbia com a nova de que um fuão (um sujeito qualquer) chamado de Prado, vinha com uma caravela cheia de riqueza. Armei logo a caravela de Gonçalo Ferreira e mandei-lhe da parte d’El Rei sob pena de perda da vida e de todos os seus bens para que fosse a Cabo Verde e ali esperasse aquela caravela. E assim fez, e nela encontrámos muito ouro.”

Na continuação do seu relato, Diogo Gomes refere que viajou para Portugal na companhia de António de Noli, viram ilhas do mar. “Chamámos Santiago à ilha, e até agora assim se chama. Havia ali grande pescaria. Em terra, porém, achámos muitas aves estranhas e rios de água doce. As aves esperavam-nos sem fugir, e assim as matávamos com paus.”

O relato subsequente não tem interesse quanto à nossa presença na Senegâmbia, centra-se nas ilhas Canárias, Porto Santo e Madeira, nos descobrimentos das ilhas dos Açores.

As notas de Vitorino Magalhães Godinho são de uma grande utilidade para a compreensão deste texto. O historiador refere a confusão de datas, mostra como claramente Diogo Gomes atribui ao Infante um pensamento económico; mostra igualmente as divergências entre o relato de Diogo Gomes e a crónica de Zurara; observa que entre 1448 e 1460 se explorou sistematicamente o litoral do Senegal à Serra Leoa, estabelecendo-se as bases de um comércio regular com a Guiné e da penetração civilizadora portuguesa; Godinho também recorda que as constantes referências a almadias de mouros e negros tornam muito plausível a hipótese posta por Jaime Cortesão da existência de um contínuo tráfego marítimo nas costas e rios da Guiné, o que explica a vigorosa resistência à concorrência comercial portuguesa.

Por último, levanta a questão do descobrimento do arquipélago de Cabo Verde, atribuído quer a Diogo Gomes, que a António de Noli, quer a Cadamosto. Na Relação a viagem de Diogo Gomes na companhia de de Noli é de 1462; ora a viagem no veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António de Noli, cuja viagem deve ser anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs erradamente ser o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica, e que Diogo Gomes acompanhasse António de Noli, não me parece de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o Rei não lhe concederia a capitania de Santiago.


(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 4 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27088: Notas de leitura (1826): "África No Feminino, As Mulheres Portuguesas e a A Guerra Colonial", por Margarida Calafate Ribeiro; Edições Afrontamento, 2007 (Mário Beja Santos)

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