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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24529: Historiografia da presença portuguesa em África (379): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Depois da pernoita em Bafatá, Craveiro Lopes segue por via aérea até Farim, chega cedinho, tem um dia azafamado pela frente, é recebido com pompa e circunstância, assiste ao desfile dos povos de Farim, sobe a bordo do navio hidrográfico Mandovi, Pereira Crespo (futuro ministro da Marinha) expõe-lhe o que há de mais relevante na missão geo-hidrográfica que ele coordena, uma das maiores missões científicas alguma vez efetuada na Guiné, seguem-se curtas visitas a Binta, Barro e S. Domingos, e depois em caravana encaminham-se até Varela, janta e pernoita, o dia seguinte é para andar em fatos de banho mas que ninguém se atreva a tirar fotografias às figuras proeminentes da comitiva presidencial, os Felupes deram mote à festa, fizeram demonstração de lutas e até houve um concurso de lançamento de setas ao alvo. Então a comitiva parte para Teixeira Pinto, vão primeiro a Cacheu, segue-se a receção triunfal em Teixeira Pinto e o jornalista regista que houve almoçarada e tanto.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Seguirá para o Leste, de Gabu a Bafatá. Estamos agora a 10 de maio, o jornalista Rodrigues Matias aproveita para retomar alguns aspetos históricos e lendários, vai centrar-se em “Dindim Bancô”, e vai contar-nos que nos tempos da derrocada do Império Mandé, os quatro filhos de Djalibá partiram a correr mundo, viajaram para Sul, atravessaram as imensas brenhas do Firdu, acamparam um dia junto à margem de um grande rio sereno, então decidiram separar-se. O primeiro regressou à sua pátria, Giba, o segundo, continuou a sua cavalgada para além do rio e foi erguer morança junto do rio seguinte, onde veio a florescer a velha Geba, que Bafatá destronou; Mansoná, o terceiro, fez a sua morança num local que veio a ser Mansoa; o quarto, Cabi, avançou para Leste, fundou Gabu. Mas acabaram todos por ter saudades e regressaram à pátria se bem que tenham retornado muitas vezes, os seus encontros são sempre na margem do Cacheu. Giba foi sepultado no chão dos encontros. O mesmo aconteceu com Mansoná. E Cabi pediu às gentes do Gabu que o transportassem junto das sepulturas dos seus irmãos, seria aqui que queria ser enterrado – foi neste local que mais tarde nasceu a população de Farim. Chamaram-lhe os mandingas, em árabe “Dindim Bancó” – a terra das mais lindas raparigas. E o jornalista que acompanha Craveiro Lopes também recorda que em 1641 o Capitão-Mor Gonçalo Ayala fundou a povoação de Farim com cristãos trazidos de Geba.

Pois bem, Craveiro Lopes chegou às 8 horas da manhã a Farim, vindo de Bafatá. Recebeu uma salva à chegada do avião, com 21 tiros de uma bataria de caçadores mandigas envergando a vestimenta profissional e adornados de grande profusão de troféus de caça, tiros das históricas “longas” (as espingardas de carregar pela boca). O povo apinhou-se em volta do automóvel.

Sessão de boas-vindas com os discursos da praxe, desfile dos povos de Farim, subiram à tribuna os régulos da região, Craveiro Lopes condecorou e ofereceu como presentes cinturões militares com talabarte. Finda a cerimónia, tomou lugar a bordo do navio hidrográfico “Mandovi”, vai começar a descida do Cacheu. Então, o jornalista tem um jorro de inspiração:
“À passagem do Mandovi arrastam-se invisivelmente no mistério do tarrafe crocodilos sujos que se escondem no fundo das águas; e o pânico estonteia cabecitas matizadas de aves de todas as cores, que abandonam a segurança da penumbra do mangal para turbilhonarem no céu, como ébrios de luz, em cata de copas altas por entre as quais não ronquem jacarés a vapor, pintados de branco, sujando firmamento de fumo e levando por vezes no ventre quem se diverte a cuspir a morte, em balas de carabina de precisão. A fauna alada do mangal das margens do Cacheu não gosta, por princípio, de ouvir de perto o trabalhar das máquinas e o espadanar das hélices dos navios.”

Aqui e acolá há visitas, a Binta e a Barro, depois para-se em S. Domingos, aqui estão concentrados milhares de Felupes e Sossos, novamente sessão de boas-vindas e cumprimentos, entrega de medalhas, cinturão, retratos e bandeiras nacionais. A caravana presidencial ultrapassou Susana e chegou a Varela ao cair da tarde, para jantar e dormir.

Estamos agora a 11 de maio, impossível não descrever a praia branca de Varela, estância de turismo, o jornalista esmera-se: “Hoje, protegem-na dos ventos do interior e dos mosquitos dos charcos, milhões de casuarinas e de eucaliptos, que encharcam a terra de sombra deliciosa. Na frescura da mata, alvejam paredes brancas de vivendas novas, abrindo varandas de tijolo para os caminhos saibrados a areão vermelhento. Sobre uma falésia que domina o mar, ao cabo da praia, um restaurante modelar prolonga-se em esplanada de cómodas cadeiras de ferro, com guarda-sóis armados em lona multicolor a resguardar as mesas.”

A cidade francesa de Ziguinchor escolheu Varela para sua estância de mar. Numa região em que a África é lodo, Varela é um bordado de areia, onde só o tarrafe acompanha a fímbria dos canais, Varela erguei a sua floresta maravilhosa de casuarinas, frente ao azul glauco do mar. E na oportunidade refere as reservas da Guiné: a mata do Cantanhez, a lagoa de Cufada e Varela. Descre minuciosamente a lei da caça que saiu do punho de Sarmento Rodrigues.

Houve repouso todo o dia, os ilustres visitantes passearam-se na praia, banharam-se, bebericaram, divertiram-se. Mas nada de imagens. À noite, no largo fronteiro ao restaurante, os Felupes lutaram e fizeram concurso de lançamento de setas ao alvo. Mais uma vez Rodrigues Matias aproveita a oportunidade para descrever uma etnia, no caso vertente serão os Felupes e as informações que ele nos dá são retiradas do livro Babel Negra, de Landerset Simões.

Chega de vilegiatura, no dia 12, Craveiro Lopes parte por via aérea para Teixeira Pinto, é recebido com a comitiva pelo administrador da circunscrição de Cacheu. Raparigas europeias lançam flores, estão perfeitamente alinhados os alunos das escolas. Vai seguir-se a descrição da viagem para Cacheu e regresso a Teixeira Pinto, onde se segue um lauto almoço

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Visita do Presidente da República Francisco Craveiro Lopes a África. Craveiro Lopes, em primeiro plano, à direita, passa revista à guarda de honra, na Federação da Rodésia e Niassalândia, também conhecida como Federação Centro-Africana. Tratou-se de um território da coroa britânica, que abrangia a Rodésia do Sul, a Rodésia do Norte e a Niassalândia, extinto em 1963
O navio patrulha “Mandovi”
Rio Cacheu
Avenida principal de Canchungo (Teixeira Pinto) na atualidade
Farim na década de 1960
Pormenor da Fortaleza de Cacheu inserida no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora numa verdadeira maratona, depois de missa na capelinha de Catió, a comitiva parte a 8 de maio passando por Aldeia Formosa e paragem no Saltinho, a ponte que terá o seu nome só estará concluída em agosto do ano seguinte, é aguardada com grande expetativa para melhorar a situação de pessoas e mercadorias. Descerrada a placa alusiva à visita, segue-se pelo Xitole, Bambadinca e chega-se a Bafatá. A partir deste momento não vão parar as referências elogiosas ao trabalho de Sarmento Rodrigues, nem aqui nem no Gabu, aliás o ministro do Ultramar é padrinho do filho do régulo de Chanha, Madiu Embaló. E fico a saber que perto de Nova Lamego fica a gruta neolítica de Nhampassaré, nela se fala muito frugalmente no Google. Craveiro Lopes pernoita em Bafatá e agora segue para Farim, o jornalista mete-se ao caminho num jipe, irá conhecer a extensa e densa floresta do Oio e aproveita a circunstância para publicar largo texto sobre a etnia Mandinga retirado de um dos clássicos de António Carreira, "Mandingas da Guiné Portuguesa".

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Estamos agora a 8 de maio, o jornalista Rodrigues Matias vai-nos traçar o dia movimentado da comitiva presidencial. Craveiro Lopes assiste ao amanhecer a uma missa na capelita branca de Nossa Senhora de Fátima em Catió, e começam os encómios: “Deve esta simples missa de domingo ter valido no espírito da população nativa, por muitos eloquentes discursos e muita argumentação dos missionários católicos.” A viagem vai de Catió a Aldeia Formosa e Saltinho, diz-se que há muitas nativas com saias de seda e homens com chapéus de coco empenhando vergastas com retratos do Homem-Grande na ponta. Neste dia ir-se-á falar muito de alguém que marcou profundamente a Guiné, Sarmento Rodrigues. Diz o jornalista no Saltinho: “Por sobre os topos dos rochedos, com a água a escoar-se-lhe por baixo, através dos aquedutos, ao longo de centenas de metros, passa, desde o tempo do governador Sarmento Rodrigues, a estrada de cimento para Bafatá.”

Craveiro Lopes veio assistir ao trabalho da construção da ponte que terá o seu nome. Estará concluída em agosto de 1956, tem quatro vãos com o comprimento total de 144 metros. Esta infraestrutura permitirá mais rápida ligação com a parte Sul da província e, assim, mais facilmente a circunscrição de Bafatá poderá encaminhar os seus produtos para os portos fluviais da Guiné. Craveiro Lopes descerrou uma placa alusiva a esta visita, imagem que se publicou no texto anterior.

O destino seguinte é Bafatá, para lá chegar percorre-se Xitole, Bambadinca e atravessa-se a ponte sobre o Colufi. O jornalista observa que agora estamos à vista desarmada em terra de Fulas, é outra coisa: “Quem viaja pelo interior de África, cedo se habitua ao espetáculo comum do nativo normalmente vestido com muita deficiência e pouco asseio. Por isso, a estranheza o assalta, ao entrar na região dos Fulas. Tudo é diferente. Há um ar lavado e um aroma de civilização cobrindo tudo.” A cavalo ou a pé, avistam-se os régulos paramentados de guarnições de prata e ouro. O administrador, na sessão solene, agradece o foral concedido a Bafatá e prontamente tece elogios a Sarmento Rodrigues: “Há alguns anos tivemos um governador desta província que jamais podemos esquecer, por ter dedicado a Bafatá o maior carinho e amor, desenvolvendo-a, tanto cultural como economicamente. Deve-lhe Bafatá escolas, hospital, enfermeiros, pontes, estradas, fontes, água, parte do seu cais. Mas, acima de tudo, o carinho e a bondade com que a todos tratava, quer a civilizados que a indígenas. Ainda como governador desta província, idealizou a grande obra que V.ª Ex.ª vai inaugurar: a ponte Salazar.” E, de seguida, a ponte foi mesmo inaugurada. O jornalista aproveita para citar Fausto Duarte e como este estudioso se referiu às dificuldades sentidas nas investigações quanto à origem dos Fulas, e aproveita o relato para descrever aspetos etnológicos e etnográficos importantes quanto a esta etnia.

À noite, Craveiro Lopes assistiu a um torneio de luta envolvendo Fulas e Mandingas. O jornalista faz-nos uma bonita descrição: “Joelho em terra. Coreografia de mãos. Cabeça contra cabeça. Pega pelos antebraços. Salto de uma das mãos para as espáduas. Um molho de músculos espantosamente retesados. Bailados de pés, em cata de equilíbrio estável. Rodopios para a esquerda e para a direita. Um dos contendores levanta o outro do chão e, rapidamente, sem lhe dar tempo a que os pés se fixem de novo na areia, estende-o de costas em terra.”

Dorme-se em Bafatá e o jornalista aproveita para nos dar uns apontamentos históricos: “Filhos de Geba, conduzidos pelo Capitão-Mor Gonçalo Gamboa Ayala foram plantar de estaca a povoação de Farim. Tinha presídio com guarnição, ambulância, aquartelamentos, escola régia e fonte de água potável. Em 1907, é transferida a residência oficial de Geba para Bafatá e no ano seguinte juntaram-se ao presídio a ambulância e a escola régia e foi criada uma estação telégrafo-postal. Em 1912, era criada a circunscrição de Geba, com sede em Bafatá. Dois anos depois, ligada à margem esquerda do Colufi, por uma ponte, a povoação era vila. Geba morreu.”

Estamos agora a 9 de maio, Craveiro Lopes vai visitar o Gabu. A caravana segue logo de manhã para Nova Lamego. O jornalista dá-nos informações: “A circunscrição do Gabu foi criada em 1931, compreendendo 9 mil quilómetros dos territórios da parte Leste da Guiné. Foi sua sede, até 1948, a vila de Gabu Sara, agora batizada Nova Lamego, em homenagem à terra de naturalidade do homem que a fundou junto à povoação Fula de Sara e que lhe deu o primeiro nome de Vila Lamego – o Tenente A. Leopoldo.” É uma povoação essencialmente comercial. Ficamos a saber que a maioria da população indígena é islamizada, composta principalmente por Fulas-pretos e Fulas-forros, aparecendo, por ordem decrescente, os Mandingas e os Fula-Fulas. É após esta exposição que ele nos vai dar uma importante informação sobre o passado da Guiné: “Perto de Nova Lamego fica a gruta de Nhampassaré, estação neolítica de grande importância, descoberta recentemente pelo Dr. Amílcar Mateus, e onde forma encontradas centenas de objetos de pedra lascada, de pedra polida e cerâmica com gravuras incisas e estampadas em quartzo, quartzite e dolerito. É esta a primeira descoberta do género na Guiné.”

Haverá desfile dos povos da região. Antes, Craveiro Lopes entregou a cinco dos régulos presentes medalhas de prata e cinturões de prata com talabarte; a outros, medalhas de cobre, medalhas comemorativas, bandeiras e retratos. Haverá um cortejo apoteótico, uma série de bailados, não faltará música de todos os instrumentos. Craveiro Lopes visitou a fonte de Cabo Sara, mandada construir em 1945, na sequência da “política de água potável”, gizada por Sarmento Rodrigues. Ficamos a saber que o então ministro do Ultramar era padrinho de Manuel Maria Sarmento Rodrigues Embaló, este era filho do régulo Fula-forro de Chanha, Madiu Embaló.

A comitiva presidencial regressa de avião até Bafatá, o jornalista aproveita para conversar com um dos onze régulos do Gabu, Alarba Embaló, este não esconde uma admiração profunda por Sarmento Rodrigues, é um fervoroso adepto do desenvolvimento rural, quer mais tratores e mais escolas. Regressado a Bafatá, Craveiro Lopes não para, vai visitar os belos jardins do Parque das Águas, a enfermaria regional e a missão católica.

A comitiva presidencial jantou e pernoitou em Bafatá, partindo de manhã cedo para Farim. O jornalista foi de jipe, cerca de 80 quilómetros atravessando as florestas do Oio. Ele julga que tem todo o sentido, indo a comitiva em direção a Farim, onde predominam os Mandingas, fazer uma larga citação sobre esta etnia, elementos que ele vai buscar a um importante livro de António Carreira.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes durante a visita de Isabel II a Portugal, 1957
Ponte Craveiro Lopes, imagem do nosso blogue
Bafatá e a Ponte Salazar
Imagem antiga do mercado de Bafatá

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
O rei da festa deste texto é o jornalista-cronista que acompanhou Craveiro Lopes em maio de 1955 à Guiné, é a matéria do primeiro volume que aqui se trata, o segundo volume prende-se com a continuação da viagem para Cabo Verde. Inusitadamente, o jornalista Rodrigues Matias sai do registo encomiástico, deixa Craveiro Lopes no altar e saúda a natureza, o feitiço africano entrou-lhe nas veias, como aqui se procura exemplificar. E mesmo quando tem que engalanar o ilustre visitante, a sua prosa parece assombrada, estes dias que já leva na Guiné trouxeram feitiço, ora vejam como termina um verdadeiro vendaval de dança Nalu na receção de Catió: "Um Sol de fogo chameja sobre o terreiro. Os nativos bailam, suando como esponjas espremidas. A três metros de alto, as caraças de trapo e madeira pintada esfuminham-se num turbilhão de poeira e, de cinco em cinco segundos, um rugido de dezenas de milhares de vozes grita vivas a Craveiro Lopes e a Portugal." De Catió, Craveiro Lopes irá a Cufar, regressando a Catió para pernoitar.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É Governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda. Continuamos a acompanhar o relato do jornalista Rodrigues Matias, verificará agora o leitor que ele nos aparece manifestamente inspirado. A ilustre comitiva partiu para São João, tinha então população predominantemente Biafada, temos agora um estirão de 42 km até Fulacunda. Diz-nos que a região é a das mais ricas de caça e, toda a Guiné, abundam aqui os búfalos, as gazelas, as cabras de mato e até os leopardos.

A prosa do narrador esmalta-se:
“A clareira por onde rolam os automóveis, remendada a vermelhões de baga-baga, foi machadada no corpo denso da floresta hidrófila, que ao Sul do Geba avança desde o mar, ladeando lalas e pântanos, através do Forreá, até ao limite das paragens montanhosas do Boé.
Vê-se neve na Guiné. Parece, mas não é. O grande poilão que se ergue no meio da neve, abre, a 40 metros de altura, a sua copa imensa sobre a vegetação que o circunda. E da mancha verde-escura da sua ramaria cerrada sacudida pela brisa, desprendem-se e caem flocos brancos de sumaúma chiada, que cobrem tudo por debaixo, vestindo a terra de brancores de neve…
Ébrios ainda da luz da manhã, que acende fulgurações tremeluzentes, na orvalheira do capim, esvoaçam, às sacudidelas bandos de rolas esmeraldinas, um solitário noitibó rabilongo, a freirinha, e a face laranja, habitantes das clareiras abertas.”


Após esta exuberância inusitada, Craveiro Lopes desembarca e recebe cumprimentos do administrador de Fulacunda, os cipaios apresentam armas, descreve Fulacunda, este nome quer dizer lugar de Fulas, é a região da Guiné mais rica de espécies florestais, estranhamente não tem serrações. Veladamente, tece uma crítica: “Fulacunda ficou sempre um produto de reforma administrativa, com autoridade, mas sem alma que a faça crescer. Deram-lhe, em 1946, um campo de aterragem, um quartel para cipaios e uma fonte pública em lugar aprazível, decorada com um painel de azulejos. Traçaram-lhe, à ilharga, na mesma altura, uma espantosa reserva de caça. No entanto, Fulacunda continua como a descrevemos.” E ficamos a saber que a estrada de Fulacunda vai até Catió. Craveiro Lopes procede à condecoração de quatro régulos, o régulo de Fulacunda ofertou duas pequenas onças, destinadas ao Jardim Zoológico de Lisboa.

Seguiu-se o habitual desfile dos povos da região, apresentando-se em grande maioria os Biafadas de Fulacunda, de São João e do Cubisseco, os Fulas de Buba, os Balantas de Tite e os representantes de grupos menos numerosos. A viagem agora continua rumo a Catió, mas o autor aproveita para fazer uma descrição detalhadíssima dos Biafadas, com base no trabalho do administrador Octávio C. Gomes Barbosa, intitulado “Breve Notícia dos Carateres Étnicos dos Indígenas da Tribo Biafada” publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, N.º 2, 1946.

Já chegámos a Catió, é sede de circunscrição. E vamos aprender com o relato do nosso jornalista. Catió nasceu da teimosia de um comerciante, de nome Abel Gil de Matos, mas a história de Catió vem de mais longe, vem do século XIX e da China. O que se segue já mereceu escritos do nosso saudoso António Estácio e do investigador Philip Havik. Vamos aos factos. Dois chineses, acusados de crime de homicídio e jogo clandestino, depois de condenados vieram para aqui desterrados. E o autor esclarece que a Guiné continuava então a ser uma verdadeira terra de degredo, bom local para desterro de assassinos. Pois bem, os dois chineses dedicaram-se à pesca, adquiriram embarcações e ganharam intimidade com os nativos, tendo-lhes pedido informações de terras que pudessem cultivar. Terão assim obtido a revelação de que no continente, subindo um grande rio até a umas terras mal conhecidas se encontravam enormes extensões de boa terra inundada, onde era abundante a produção do arrozal. Começava assim a sua aventura, cultivaram e foram bem-sucedidos. Depois, correu fama entre os Balantas de algures, no Tombali, a terra era milagrosa e produzia ouro sobre a forma de arroz.

Bissau e Bolama pasmaram com a qualidade do arroz do Tombali, cabo-verdianos e europeus pediram concessões de terrenos. Instalou-se um posto administrativo em Sugá, mas um comerciante discordou do local e assim nasceu Catió, hoje povoado de primeira, tem estação radiotelegráfica, delegação de saúde, capela e escola missionária, bem como recinto de jogos. Ponto curioso é haver povoados na circunscrição com nomes de inconfundível sabor chinês, como é o caso de Com-Hane.

Baseando-se no relato do ex-governador Carvalho Viegas, de sua obra Guiné Portuguesa, o jornalista faz-nos uma descrição do povo Nalu, dado o facto da circunscrição de Catió ser o chão característico dos Nalus. O jornalista já pôs de parte os seus enleios de prosador esmerado, agora o que pesa é o estilo noticiário. “Ao desembarcar do automóvel presidencial no topo da artéria, uma espécie de loucura coletiva se apossou daquelas dezenas de milhares de pessoas, que irromperam em vivas e palmas.” Craveiro Lopes entregou o seu retrato encaixilhado aos quatro régulos da região.

Estamos perante um jornalista que gosta da etnologia e da etnografia, a descrição que se segue é a observação das danças Nalus, é uma escrita empolgada:
“Os marinheiros tinham assentado no terreno as suas marimbas, em bataria, e percutiam-nas elevadamente, conduzindo os pés dos bailarinos em paralelo á dança das baquetas saltitantes. Lembravam executantes de ‘mssau’ zavala, acompanhando a contracanto a narração de pecados de amor que atraíssem sobre a tabanca as iras das divindades.
E dois bailarinos de exceção, os campós, metidos em saiões de monstros encimados de caraças horrendas varriam o terreno em fúrias de rodopio estonteante. Uma das caraças, vagamente sugerindo cabeça de cavalo, com cabeças amarelas de tachas luzindo ao Sol e riscos de zarcão circundando os olhos por sobre uma bocarra de alvaiade e lama, erguiam-se a mais de 3 metros, gesticulando hieróglifos macabros de ameaça, de espanto, de ataque e de fuga, de raiva e de medo.
Era a grande máscara da dança Nalu, aterrorizando os espíritos maus que vagueiam pelos matos do Tombali, para que o pavor os confunda e os afaste do trilho dos passos do Homem Grande, em cuja honra pipilavam as marimbas da tribo e dançava em festa o povo das suas tabancas.
Depois, entrou em cena a formação dos grandes tambores Nalus, presos à cintura de mais bailarinos, cuja fila executa marcações de reta, de círculo, de arco e de triângulo. As macetas batem na pele de todos os bombos ao mesmo tempo, ao ritmo lento de um comando que ninguém sabe de onde vem, e que faz a todos os dançarinos avançar a perna direita, fletir o joelho esquerdo, executar um golpe de rins, jogar a cabeça para trás, avançar ou recuar um passo. Conjuntamente, corpos e tambores executam a pancada uníssona, coletiva, lenta como o desespero. Depois, a fila faz repentinamente meia-volta e gira em sentido oposto. O ritmo das macetas acelera. Os tambores agitam-se, a golpes de rins mais frequentes.
E o cavalão-caraça, montado sob o bailarino estrela que obedece às marimbas, entra de novo em cena, faz vénias aos tambores e manda-os a anunciar aos longes, por bolanhas e matagais, que o Homem Grande chegou à terra dos Nalus e traz consigo a paz e a alegria e a fertilidade dos arrozais de Catió.”


E digam-me lá se este jornalista não estava verdadeiramente inspirado, a gravar as suas emoções para uma literatura luso-guineense.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
General Craveiro Lopes
Diário da Manhã de 11 de maio, general Craveiro Lopes junto da estátua de Nuno Tristão, imagem do Museu da Presidência, com a devida vénia
Placa evocativa da visita de Craveiro Lopes durante a construção da ponte sob o Corubal, maio de 1955, imagem de Albano Costa, com a devida vénia
1.ª página do Diário Popular de 7 de maio de 1955
De Bolama para São João
De São João para Fulacunda

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Há momentos nesta viagem presidencial em que se pressente, que mesmo discretamente na retaguarda, é o ministro do Ultramar que regozija com o legado deixado em cerca de 3 anos de governação. Onde quer que chegue a comitiva presidencial, Sarmento Rodrigues é recebido com a maior cordialidade, tanto pelos agentes coloniais, empresários, administrativos, como pelas autoridades gentílicas e o povo que desassombradamente o saúda. O que se passou em Bissau é flagrante, está tudo marcado pela gestão de Sarmento Rodrigues, dos equipamentos de saúde à educação, às infraestruturas desportivas, às melhorias da ponte do cais de Pidjiquiti. A viagem a Bolama de certo modo deixa o jornalista consternado, fala nas populações em delírio, mas não esconde a dor e a melancolia que aquela cidade ao abandono provoca, houve manifesta incapacidade de gerir com equilíbrio a transferência da capital, Sarmento Rodrigues ainda tentou um acordo com os potentados económicos para estes se manterem firmes naquela região agrícola tão exuberante, mas os negócios foram-se transferindo para Bissau, inexoravelmente Bolama caiu no esquecimento, o que assombra quando o seu património era tão interessante.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o Dispensário do Mal de Hansen, percorreu três exposições que o jornalista (presume-se Rodrigues Matias, ele aparece como coordenador dos dois volumes a que aqui se faz referência do diário da viagem) classifica a primeira como consoladora, a segunda como banal (à primeira vista) e a terceira macabra. O ilustre visitante recebe uma lembrança, um bordado com as palavras “Seja bem-vindo”, trabalhado a linhas encarnadas sobre linho branco. Das três mulheres doentes que haviam bordado aquele pano, uma não tinha dedos nem mãos. O jornalista foi ao seu encontro e dá-nos um quadro comovente. Enquanto Craveiro Lopes se mantém no Dispensário, o jornalista visita a Cumura, povoação do posto de Prábis, escolhida em tempos pelo comandante Sarmento Rodrigues para local de isolamento dos leprosos contagiosos. E diz-nos o jornalista que ali vivem, num mundo reduzido em pouco, mais de duas centenas de infelizes de ambos os sexos.

Bor, onde Craveiro Lopes se dirigiu após a visita ao Dispensário, é um desconhecido éden da ilha de Bissau, a 6 km da cidade. Ali foi criado um Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida, a cargo das Missões Católicas. A designação foi mudada para Asilo de Infância Desvalida de Bor. O ilustre visitante distribui a cada criança um pacote de rebuçados. Craveiro Lopes foi inesperadamente visitar o posto de Prábis. No caminho passou sob um maravilhoso túnel de cajueiros, e diz-nos o jornalista que se tratava de um pormenor que iria ter ocasião de apreciar largamente pelo interior: milhões de cajueiros plantados ao longo de todas as estradas da Guiné.

Findo o programa da manhã, vamos ao da tarde. Craveiro Lopes comparece ao grande festival militar, escolar e desportivo no Estádio de Bissau. Ao centro do campo de futebol formavam a tropa, a mocidade portuguesa, uma companhia de caçadores indígenas, 60 filiados do Centro de Milícias; atrás deste contingente, estão centenas de alunos das escolas oficiais e missionárias, 200 atletas dos clubes desportivos e uma coluna de tropa de segunda linha. Depois do desfile, realizou-se a final de um torneio de futebol entre o Sport Lisboa e Bissau (o Benfica local) e o Clube Futebol Os Balantas (o Belenenses local), ganhou o primeiro. Seguidamente, foram agraciados clubes desportivos e 17 chefes indígenas do concelho de Bissau. Craveiro Lopes sai do estádio em apoteose.

É nesta circunstância que o jornalista aproveita para descrever o concelho de Bissau lembrando que da sua população de 30 mil habitantes, há 22 mil da etnia Papel e 5 mil da etnia Balanta. A 6 de maio, a ilustre comitiva parte para Bolama no aviso Bartolomeu Dias, sem, porém, o jornalista nos ter descrito ao pormenor a nova ponte do cais do Pidjiquiti. Ele trata Bolama como a capital que foi, a visita presidencial é um tanto apresentada como uma romagem de saudade, um misto de peregrinação e desagravo. Faz-se a história da ocupação da primeira capital da Guiné e subitamente surge-nos uma referência a Silva Gouveia, o homem que criou um potentado económico na Guiné: “Silva Gouveia, que chegara à Guiné tão moço como pobre, dedicava-se à pesca; depois abrira padaria e casa de comidas para as praças da guarnição, na rua Marquês d’Ávila; em seguida, arranjara-se a construir edifícios de pedra e cal e requerera licença para lançar um muro-cais em frente da sua maior instalação. Era o colosso a desferir o voo para o grande triunfo que o esperava.”

Há laivos de melancolia nas descrições que se seguem. Bissau, em crise de crescimento repentino, comprava, para cobrir mais casas, as telhas que os proprietários bolamenses arrancavam das suas moradias abandonadas. Mas o jornalista está ali para pintar a cena em cores triunfais, temos a população em massa a acompanhar a viagem de Craveiro Lopes até aos Paços do Concelho, este o edifício da mais elevada categoria arquitetónica. Seguem-se os discursos do presidente da autarquia e do representante do comércio local – todos sonham com o revigoramento de Bolama. No final da sessão, foi lida a portaria que concede escudo de armas e bandeira própria à cidade de Bolama, Craveiro Lopes entregou nas mãos do presidente de autarquia a bandeira já com brasão, entre os calorosos aplausos de toda a assistência.

Segue-se um curioso desfile regional de gentes congregadas no largo Teixeira Pinto, não vai faltar dança frenética. Depois ficamos a saber que no concelho de Bolama não predominam em número os Bijagós, mas sim os Mancanhas. Por entre os dançarinos, um velho exótico passeava despreocupadamente um crocodilo pela arreata de um cordel de juta, o bicho arrastado pela trela dava sinais evidentes de um aborrecimento quase mortal.

Depois do almoço, um trepidante programa de visitas: ao quarte da Companhia Indígena de Engenhos; ao Hospital Regional de Bolama; à Missão Católica e à Igreja de S. José. E vem um encómio do jornalista: “Deixou esta visita ao sr. general Craveiro Lopes a impressão de que a cidade de Bolama se não resigna à condição de vencida pelo facto de ter deixado de ser a capital.”

Segue-se a visita à propriedade Gã Moriá, da firma Silva Gouveia, Craveiro Lopes é recebido pelo administrador D. Diogo de Melo. A Câmara de Bolama ofereceu um Porto de Honra no salão de festas da sede dos Bombeiros Voluntários, a que estiveram presentes todas as autoridades e “a melhor sociedade de Bolama”. À noite, da varanda do Palácio, Craveiro Lopes assistiu às danças Bijagós. O jornalista esmera-se a descrever tais danças, diz que é quase um teatro, logo na intenção do bailado, o bailarino, ajudado pelo corpo de baile que o acompanha, descreve as fases do seu envolvimento com a mulher pretendida, vê-se que esteve atento e que sentiu a densidade daquele processo cultural e artístico.

A 7 de maio, a ilustre comitiva reembarca de regresso às terras do continente. Antes, o jornalista refere que se avista o plano de água em que desciam as grandes aeronaves das primeiras travessias, pista maravilhosa de 6 km de comprimento e 1,8 de largura, no braço de mar chamado Gã Pessoa. Fala-se do desastre aéreo que vitimou os aviadores italianos. Estamos agora a caminho de Fulacunda.


Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Retrato oficial de Craveiro Lopes no Museu da Presidência, pintura de Eduardo Malta
Dispensário do Mal de Hansen, Guiné Portuguesa
Imagem de uma reportagem da RTP na Guiné no tempo do governador Peixoto Correia
Paços do Concelho de Bolama, já em adiantado estado de ruína
Igreja de S. José, Bolama
Uma das mais admiráveis fotografias de Bolama, publicada no livro "Bijagós: Património Arquitetónico", pelos arquitectos Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e o fotógrafo Francisco Nogueira; Edições Tinta-da-China, 2016

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Craveiro Lopes foi o primeiro Presidente da República a visitar a Guiné, percorrerá nesse ano e no ano seguinte as parcelas africanas do nosso Império. Estamos no ano em que António Júlio Castro Fernandes, antigo ministro da Economia, administrador do BNU e figura grada do regime produzirá um documento que é uma radiografia do Estado da Guiné, advertindo nas entrelinhas os riscos e ameaças que andam no ar, e que ganharão corpo 3 anos depois, com a independência da Guiné-Conacri. Se me decidi a fazer o relatório desta viagem é porque ele permite ver com nitidez a obra do Comandante Sarmento Rodrigues, a Guiné ainda é um fim do mundo mas ganhou corpo administrativo, assomou uma componente cultural. O jornalista que acompanhou a viagem do General Craveiro Lopes dirá que naquele Porto de Honra oferecido pelas atividades económicas, a mesa primava por cristais e pratas e cravos vermelhos. Enquanto isto é dito, Castro Fernandes no seu documento deixa escrito preto no branco que toda aquela classe de gentes dos negócios primava pela mediocridade, havia que gerar um impulso regenerativo, antes que fosse tarde.

Um abraço do
Mário


O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do Presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Seja como for, quando começar a guerra, a Força Aérea Portuguesa irá investir mundos e fundos para tornar aquele aeroporto digno desse nome.

De Bissalanca até à Sé foi o carro presidencial escoltado por 40 cavaleiros Fulas e Mandingas. Haverá uma cerimónia no Alto do Crim, o presidente da edilidade entrega-lhe a chave da cidade, entre muitas ovações. A comitiva chega à Sé, são todos recebidos pelo Prefeito-Apostólico, D. Martinho da Silva Carvalhosa, haverá Te Deum. Segue-se uma sessão de boas-vindas nos Paços dos Concelho, que culmina com o discurso do Governador Melo e Alvim. Terminada a cerimónia, o Chefe de Estado segue para o Palácio acompanhado por uma multidão. Ali há um jantar oficial e depois vão para a varanda ver estralejar foguetes, vão aparecendo pela Praça do Império cavaleiros, gente curiosa.

Estamos já a 3 de maio, Craveiro Lopes vai prestar homenagem a Nuno Tristão, uma escultura de bronze da autoria de António Duarte, vai descerrar uma placa de bronze, é a primeira de uma longa série, discursa, fala da História da Guiné, da sua descoberta, muitas palmas. E daqui segue para a fortaleza de S. José de Bissau, no tempo do Governador Sarmento Rodrigues houve aqui muitas obras, reconstruiu-se o baluarte de Puana, repararam-se as muralhas e os parapeitos. Faz uma visita ciceronada pelo Comandante-Militar, Coronel Neves e Castro. Descerra-se nova lápide comemorativa. Na parada, ergue-se o monumento aos Heróis da Ocupação, realizado sobre projeto do topógrafo Raúl Lomelino. E a ilustre comitiva parte para nova inauguração, a nova Escola Paroquial das Missões Católicas D. Berta Craveiro Lopes, esta descerra uma placa de mármore e procede-se a uma visita às quatro salas de aula da escola, prontas para acolherem 400 alunos.

No cumprimento das suas obrigações, Craveiro Lopes regressa ao Palácio para receber o Governador da Gâmbia. O jornalista aproveita para dizer que o Alto-Comissário da África Ocidental Francesa fora recebido na véspera, no aeroporto, tal como o enviado especial do Presidente da República do Líbano (a colónia libanesa tem peso económico e financeiro na Guiné). Ao princípio da tarde realiza-se a visita ao Hospital Central de Bissau, a comitiva oficial é recebida pelo Diretor, Dr. Rui Roncon. É aqui que o jornalista não se contém nos epitalâmios e no endeusamento presidencial: “A alegria de ver o Presidente morfiniza a tortura dos achaques”.

À noite, nos jardins do Palácio, Melo e Alvim ofereceu um “Pôr-do-Sol”, que reuniu “a melhor sociedade da província” e a totalidade das individualidades nacionais e estrangeiras presentes da capital.
“Deram a nota elegante da festa as senhoras da sociedade local, que capricharam em apresentar-se com modelos do melhor corte, alguns diretamente recebidos dos costureiros parisienses.”

Estamos chegados a 4 de maio, Craveiro Lopes vai inaugurar a estátua de Teixeira Pinto, no Alto do Crim, obra do escultor Euclides Vaz, que representou o pacificador da Guiné fardado, segurando a pistola na mão direita caída ao longo do corpo. Há discurso do Comandante Militar e Craveiro Lopes descerra lápide. E partem todos para o Bloco Industrial da Sociedade Comercial Ultramarina, Craveiro Lopes é recebido pelo principal dirigente da empresa, António Júlio de Castro Fernandes, antigo ministro, figura política grada do regime, Administrador do BNU (nesse ano, produzirá um documento de indiscutível importância cujas páginas essenciais estão transcritas no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné"). Segue-se visita à fábrica de descasque de arroz, outra de óleos vegetais, segue a itinerância pela central elétrica privativa e por uma fábrica de sabões. Não há detença, daqui ruma-se para a Escola Primária Dr. Oliveira Salazar. Mais uma lápide descerrada. A seguir, teve lugar a inauguração do Lar Santa Isabel, destinado aos sem lar.

Estamos já na parte da tarde, realiza-se uma sessão cultural no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. O Comandante Teixeira da Mota irá proferir uma conferência de dezenas de páginas, elenca a obra feita por esta entidade, refere os trabalhos de Fausto Duarte e Alexandre Barbosa, entre outros. Não deixa de relevar a colaboração da Missão Geoidrográfica da Guiné. No final, foi oferecia a Craveiro Lopes uma medalha artística de bronze da autoria de Anjos Teixeira, mandada fazer exclusivamente para comemorar esta visita. O Presidente visita o “incipiente” Museu da Guiné. Continua a não fazer pausas, as atividades económicas da Guiné oferecem ao Presidente e comitiva um Porto de Honra e o jornalista refere a atmosfera aprimorada da mesa, “semeada de cristais, pratas e cravos vermelhos”.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o “Dispensário do Mal de Hansen”. Está à sua espera o Dr. Rui Roncon e o médico leprólogo Mário Veiga. Será um dia muito movimentado, como iremos ver.

General Craveiro Lopes e a Sr.ª D. Berta, 1952
Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Ponte Craveiro Lopes sobre o Corubal
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I


1. Por cortesia de autor, pela grande amizade que ele nutre pelo editor do nosso blogue (e vice-versa), e pela paixão que o nosso blogue tem demonstrado pela epopeia da pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), transcrevemos, em três postes,  o capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”), pp. 83-107, do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015) (*)

O autor, ilhavense, filho de marinheiro, evoca e descreve com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário ...

Como já escrevemos em poste anterior, "um simples olhar de relance pelo índice do livro, de 164 pp., permite advinhar quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na rua suspensa dos olhos"...

Já tínhamos prometido aqui publicar aqui, no todo ou em parte, com a devida autorização do autor, o relato da sua viagem de seis meses na safra do bacalhau, nas costas da Terra Nova e da Groenlândia, quando ainda adolescente, aos 17 anos, e como estágio final do curso da Escola Profissional de Pesca, em Pedrouços, Lisboa, é chamado para embarcar e fazer "A Viagem" (*)...

É uma experiência que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo como pela descoberta e reforço da camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores)..

A vida deu, entretanto,  outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados... Aluno brilhante, acabou por ganhar uma bolsa de estudo, ficar em Lisboa e poder aceder à universidade, sendo hoje um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa, e ainda em atividade; tem obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).

O livro está fora do mercado livreiro, tratando-se de edição de autor. Mas, contra reembolso, pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.


2. A Rua Suspensa dos Olhos > 7. A viagem “O Mar por Tradição”, de Ábio de Lápara (2015) > Parte I (pp. 83-91)


Naquele tempo, eu já sabia que nem tudo eram rosas neste mundo.  (**)

Os dois anos anteriores tinham-me imposto um crescimento veloz, na passagem do mundo do brincar para o do trabalho; na perda dos amigos, porque ao abandonar o liceu perdi a maioria deles; no novo convívio com os mais velhos, companheiros de trabalho, e na enorme mudança dos conversares, agora afastado do ambiente estudantil. 

Dois anos depois, completados os dezasseis, eu iria partir novamente. Atingida a idade da diáspora entre os cúmplices companheiros de então, foi um tempo de despedidas! Por um lado, entre os que, chamados pelos pais, seguiam para outros continentes, impondo-me segunda perda de companheiros, por outro, eu, que ia partir também, consciente de que ninguém me chamara e portanto no outro extremo, à chegada, ninguém me esperaria. 

Quando isso aconteceu, na minha mala pouca coisa levava. Entre duas mudas de roupa, um sabonete perfumado que a mãe lá pusera seria o cheiro mais próximo de casa e a única réstia de carinho materno durante longos tempos. 

Levava comigo também uma paixão adolescente, subjacente na permanência do pensar, que dava suporte ao sofrido dia a dia, como um bálsamo! 

Era um amor feito de lembranças e palavras suspensas no desejo de as dizer sem conseguir. Conversas prontas, feitas de perguntas e respostas, ocupando todo o espaço livre entre os afazeres, correndo como um filme de imagens nítidas do objecto ausente, de impossível contacto, como só acontece nos sonhos. Imagens feitas de fugazes momentos junto dela, de olhares comprometidos, pedaços de gestos e sussurros vindos do Jardim e de outros cantos da minha vila. 

Lisboa para mim não era novidade. Por ali vivera entre os doze e os catorze anos. Os “eléctricos” e as anacrónicas carroças desse tempo, puxadas por mulas e machos, calçados no ferrador do Altinho, eram-me familiares, bem como os escuros guindastes dos cais e os navios que na infância frequentara com os meus pais. 

Esses conhecimentos minoraram algumas difculdades práticas mas não o desatino interior de alguém que, habituado a dispor de um nome e da liberdade de gerir o seu dia a dia no trabalho, passou num ápice, a ser designado por um número. Nunca tinha sido aluno interno e embora no liceu tivesse um número na turma, continuava a ser conhecido pelo meu nome. Era uma sensação esquisita, a que levei algum tempo a adaptar-me. 

 Como o castigo era algo que não almejava, tratei de compreender o funcionamento daquela realidade: a Escola ProfIssional de Pesca. Prudente, resolvi vestir a alma de cinzento e clareá-la só nos momentos de folga, evitando demasiada visibilidade. Tentei recuperar dois ou três antigos companheiros de liceu residentes em Lisboa para sair ao fim de semana, mas,  fardado de pescador, verifiquei que estavam pouco interessados na companhia. Paciência… aprendi que o preconceito molda com frequência a alma humana. 


Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto 
de 2008 > Um amigo comum,  do nosso 
editor e do nosso camarada Jorge Picado, 
o arquitecto José António Boia Paradela 
(pseudónimo literário, Ábio de Lápara). 
Foto de LG..
Botas de cabedal atanado, umas calças e um boné de burel castanho sombrio, áspero como palha, e uma camisa de xadrez em tons avermelhados, eram o ferrete com que o regime (#) marcava os filhos dos pescadores que quisessem seguir as pegadas dos pais. Porém, nem os nossos pais se vestiam assim! Talvez algum nazareno mais antigo, durante o trabalho, mas em terra usavam fato, camisa e gravata ou colarinho desabotoado como era hábito no tempo. 

Assim, resolvi passar a ser o Sessenta, de modo muito assumido, e fazer novos amigos. Mas não me perguntem os nomes deles. Eram o Trinta e Três, da Ericeira, o Cem, da  Gafanha, o Onze,  da Nazaré, o Vinte Cinco, de Ílhavo…e por aí fora! E o Sessenta passou a ser um dos meus números mágicos!

Éramos cem alunos procedentes de várias localidades costeiras, ente os quais dois cabo-verdianos que não aguentaram as saudades da ilha. Entristeceram de tal  
modo durante as duas ou três semanas iniciais que tiveram de regressar à procedência. Claro que não foram só as saudades, mas também as notórias diferenças culturais, na capital de um império à qual a negritude colonial, naquele tempo, quase não tinha acesso. Porém, mais do que isso, foi sobretudo a incapacidade de um bafiento paternalismo institucional para verter a dose de ternura necessária em tal situação. Dois entre cem, crioulos em caldo de portugas, liberdade da praia posta em prisão guardada por quatro cabos da marinha! Ao fim de alguns dias, foram-se.

A verdade é que nos restantes noventa e oito, as condições adversas da nova situação geraram cumplicidades e solidariedades inesquecíveis, que ficaram para a vida como faróis colocados ao longo da costa, para esconjurar o mal no meio da procela. Se essa lição não fosse aprendida tornava-se difícil, mais tarde, o entendimento mútuo e até a comunicação com a linguagem exclusiva do olhar em momentos cruciais de necessária entreajuda a bordo. Ali fiz, pois, aprendizagens várias: As do convívio institucional, da solidariedade, do jogo do desenrasca e também, da perda da inocência!

Inesquecíveis foram as travessias do rio metafórico da minha aldeia, em grupo, aos fins de semana, na visita às esconsas escadas das ruas da Bela Vista e do Ferragial, na área portuária, onde para muitos de nós, recém chegados da província, a iniciação sexual tinha uma aura de magia negra: Subir a escada escura com a respiração suspensa… e não só pelo cheiro da urina na escuridão dos degraus (urinar após o acto, evitava as maleitas blenorrágicas, dizia-se), pulsação aumentada, bater à porta, esperar a sua abertura, com parcimónia, por uma senhora de prazo esgotado…

Depois, o jogo do olhar escolhendo a parceira de entre as que se sentavam em volta na prática de alguns aperitivos, aceitando moedas de pequeno valor colocadas por mãos, ora hesitantes ora atrevidas, na comissura dos seios generosamente expostos pelos decotes… Para os de educação católica, onde se instilara o medo do fogo eterno, restava ainda um sentimento de pecado…

Duros tempos! Ainda hoje me lembro do hálito bafiento do prior da igreja de S. Paulo a quem, ajoelhado, algumas vezes confessei esses “pecados”! E saía perdoado, cheio de alívio até à próxima oportunidade, que a carne é fraca… Poderia desenvolver mais o tema desta instituição corporativa da panóplia instrumental de um tal [Henrique] Tenreiro de má fama, mas confesso que ela faz parte do meu universo privado que não me apraz recordar, embora este sentimento se tenha desenvolvido mais tarde, quando a consciência social e política despertou.

Na verdade eu não pagava nada. Tinha comida, cama e roupa lavada. E formação profissional… Era uma benesse do Estado Novo, que devíamos aceitar agradecidos. Num país com nove milhões de pessoas, noventa podiam anualmente ascender a aprendizes de pescador de bacalhau! Uma honra portanto!…

Mas não descurei a teoria e aprendi que o bacalhau era um teleósteo, na sua classificação científica. Fiz um saco para o pão e um cinto para as calças em arte de marinheiro. Aprendi a escamar e amanhar peixe, a remar e navegar à vela no Tejo até ao Ponto Final, um tasco da outra margem, onde por vezes se descansava um pouco antes do regresso. Ali se bebia um copo quando para isso havia dinheiro, para empurrar o quarto de “pão de segunda” da merenda que a instituição fornecia.

Porém o balanço final resultou muito positivo em termos humanos. Foi uma experiência longa, num microcosmos com personagens interessantes, cada uma a seu modo, das quais algumas ainda moram comigo: Duas Eugénias, uma digna do céu, outra, talvez do purgatório; um director ausente, apenas presente na missa dominical rezada pelo Capelão do Gil Eanes, que, dizia-se, escondia whisky sob o altar para traficar em St. Jonh’s; um senhor contabilista, todo vestido de um luto negro pela morte de uma jovem filha, que se movimentava por ali indiferente à rapaziada, como se fôssemos galinhas de um qualquer aviário; um mestre de redes, excelente pessoa, que de noite, contava-se, para assustar os alunos, teria encarnado na lendária Princesa que habitara aquela mansão e dera o nome ao Largo fronteiro. Envergando um lençol sobre a cabeça, percorria o corredor junto das camaratas, até que um dia apareceu com uma equimose no sobrolho provocada por um aluno mais afoito que,
definitivamente, desmascarou o farsante.

As disciplinas teóricas eram ministradas por alguns professores, normalmente dos quadros da Marinha de Guerra, que faziam daquilo um complemento pecuniário. E, finalmente, quatro monitores, qual deles o mais bizarro, cabos de marinha, que se revezavam na condução dos alunos com métodos de manutenção da ordem por vezes achibantados, embora a esta distância me pareçam criaturas simpáticas e complacentes, com direito ao minha admiração.

De um deles se dizia ter sido gaseado na Grande Guerra, pela saliência esbugalhada do olhar. Outro, tomava da pinga, que lhe abrilhantava os olhos… Outro ainda, mulherengo de saltar o muro, impunha-se pela corpulência e vozeirão militar; e o de menor estatura, fazia-se respeitar pelo cacete escondido sob a farda, onde o alcache e o boné de marinheiro justo à minúscula cabeça lhe conferiam um ar de miniatura. Quando alguma quezília surgia, usava aquele argumento sobre nós sem curar de ouvir o preço da restumenga!

As tardes passadas no rio, remando ou velejando, eram normalmente divertidas, escapando um pouco ao rigor da disciplina na Escola. Os monitores abrandavam a exigência disciplinar e aproveitavam para prevaricar um pouco também, saltando na outra margem para beber uns copos,  ou para confraternizar com os colegas da velha fragata das Índias, “D. Fernando II e Glória”.

A fragata Dom Fernando II e Glória, ancorada em Ponta
Delgada, Açores, em 1878, na sua última viagem da carreira
da Índia. Encomendada em 1821, foi lançada à água
em 1841. Veleiro, em madeira, tinha 50 bocas de fogo.
Na sua vida útil, faz cem mil mil marítimas, o equivalente
a cinco voltas ao mundo. Está hoje fundeada em Almada, e
funciona como museu.
Fonte: Museu da Marinha, Lisboa.
Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikimedia Cmmons.
Fundeada no meio do Tejo, nesse tempo, era albergue de crianças desprotegidas. Ali atracávamos estabelecendo convívio fraterno, uma vez que alguns dos colegas da nossa instituição eram de lá oriundos. Por isso os designávamos por “fragatas”.

Mas se o nosso comportamento, durante o périplo ribeirinho se tornasse menos contido, logo surgia o devido castigo:
Safa lanches!– ordenava o cabo monitor em frente da saída de esgotos do Caneiro de Alcântara. Fundeados no local, obrigava-nos a comer o magro quarto de pão com torresmo, cercados pelo fétido líquido.

Cumprida que fosse a via sacra ao longo de cerca de ano e meio, havia que pagar o vinagre e o fel, e ainda a coroa de espinhos: embarcar na frota da pesca do 
bacalhau, em navio de pesca à linha, 
onde seriam descontadas as despesas 
que a Escola tinha efectuado connosco, algumas delas impostas pela própria instituição, tais como a aquisição de roupa, normalmente de fraca qualidade, para “A Viagem”.

Assim a aparente benesse do Estado Novo era agora descontada ao longo dos dois ou três primeiros anos de faina obrigatória na pesca do Bacalhau. Como naquele tempo, tudo era decidido na ausência dos interessados, fui colocado numa vetusta glória da frota, o “Gazela Primeiro”, um pequeno navio de três mastros armado em lugre-patacho, isto é, com velas redondas no mastro de vante e velas latinas nos dois restantes [vd. fotop aqui].

Fui ver o barco. Fiquei desolado. O aspecto era miserável, talvez porque ainda não tivesse sido arrumado e limpo para a nova campanha, mas o beliche que me estaria destinado era atravessado por um dos mastros! Por ter sido bom aluno, (nesse aspecto tinha nítida vantagem sobre os colegas por ter um nível de estudos um pouco mais avançado) foi-me prometido um regresso aos estudos por uma instituição ecuménica cuja direcção promovia algumas bolsas de estudo para filhos de pescadores que, naquela Escola, tivessem revelado capacidades para poderem vir a ser oficiais da marinha mercante.

Nessa medida, pareceu-me que embarcar no “Gazela”, era embarcar no passado, e eu tinha só dezassete anos e toda uma promessa de vida à minha frente. Alegando essas razões, pedi para ser “matriculado” num navio de pesca à linha que tinha sido construído recentemente. Aceite o pedido, fui colocado na tripulação do Lousado”, assim se chamava o navio [vd. foto aqui].

Acabado o curso, cumpria-se mais uma vez, o caminho inquestionável do mar por tradição, que atirava para o Atlântico Norte um naco de juventude, amputando-lhe definitivamente as hipóteses de desenvolvimento humano a que deviam ter direito. E isso apenas a troco de um vencimento regular, embora reduzido, mas que não tinha paralelo nos outros moldes de pesca do país, sujeitos às vicissitudes do clima e de um sistema corporativo claustrofóbico onde a miséria era maior.

Corria o ano de 1955 [e não 1954, como escreve o autor, (LG)], longe ainda dos tempos da emigração maciça e da guerra colonial.

(Continua)

[Fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para efeitos deste poste: LG]
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Nota do autor:

(#) O regime do Estado Novo alimentava-se de populismos, inventava tipicismos, louvava a pobreza franciscana, transpunha a glória da pátria para fora do presente: a glória passada, para o século XVI, a glória futura, para o Além, nas asas da concordata. Exactamente ao contrário do seu inspirador nazismo, que destinava o povo a incarnar uma raça superior e mandava costurar as fardas mais elegantes do planeta! Uma ligeira diferença entre Braunau e Santa Comba Dão!… Ambos os resultados foram repugnantes, mas os métodos mais macios, como sabemos, perduraram mais tempo…)
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Notas do editor