sábado, 28 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2993: Tabanca Grande (77): António Azevedo Rodrigues, ex-1.º Cabo do Agrupamento 2957 (Bafatá, 1968/70)


António Azevedo Rodrigues
ex-1.º Cabo
Comando de Agrupamento 2957
Bafatá, 1968/70



1. Em 27 de Maio de 2008, recebemos uma mensagem de António Rodrigues, mais um camarada que se quer juntar a nós.

Amigos e Camaradas,
Boa noite e os meus respeitosos cumprimentos.
Esta é a minha primeira mensagem que vos escrevo e como é a primeira vez espero ser bem sucedido.

Estive em Bafatá-Guiné, desde Outubro de 1968 a Abril de 1970 e como até esta data ainda não tive o prazer de encontrar nenhum camarada do meu tempo, nessa missão, e como já se passaram 40 anos, ou melhor, faz este ano os 40 anos da nossa partida para a Guiné, gostaria de encontrar os meus e outros camaradas de armas desse tempo, pois convivi com o pessoal do Agrupamento 2957.

Como estava na parte de Operações e Informaçoes, privei de perto com o Gen Spinola, Cap/Gen Almeida Bruno, Maj Carlos Saraiva/Lamego, Cor Teixeira da Silva e o meu grande amigo Cor/General Hélio Felgas.
Com ele tive a felicidade de no ano passado ter uma conversa ao telefone e hoje lembrei-me dele, mas como não sei da sua saúde, até tenho receio de voltar a ligar e já não o encontrar.

Gostava de poder fazer parte desta tertúlia, pois só agora disporei de algum tempo e gostava de falar convosco, se isso me for permitido, pois também tenho algumas boas/más recordações da Guiné, como por exemplo a Operação Lança Afiada (1), que foi por mim escrita e reescrita não sei quantas vezes, mas isso fica para mais tarde.

Vi o Spinola a chorar em Bafatá com a barba por cortar de cinco dias e o Hélio Felgas abraçado ao Teixeira da Silva, também a chorar.

E foi assim há 40, não 39 anos, como o tempo passa... até já...

Estas fotos são do 1.º Cabo Rodrigues e do António Rodrigues 40 anos depois...

Pertenci ao COM AGRUP 2957, Bafatá-Guiné 1968/1970.

Estou a viver, como sempre, em Vila Nova de Famalicão e gostava de deixar o meu contacto, pois estou reformado e estou sempre disponível, até mesmo para os e-mails que possam aparecer, já que aprendi a lidar com estas coisas novas, por isso o meu contacto é: (...)

Antonio Azevedo Rodrigues

2. Em 3 de Junho foi enviada a seguinte mensagem ao nosso camarada

Caro António Rodrigues
Bem-vindo à nossa Tabanca Grande.

Queria pedir-te o favor de enviares outra fotografia antiga, pois a que mandaste não se aproveita para publicação. Se não tiveres nenhuma em tamanho tipo passe, manda-me uma normal onde estejas bem visível que eu transformo-a em tipo passe.
Tenho a tua apresentação presa pela falta dessa foto.

Recebe um abraço dos Editores do Blogue, Luís Graça, Virgínio Briote e de mim
Carlos Vinhal

3. Caro António Rodrigues

Como nunca mais deste notícias, nem mandaste a foto fardado, estás a ser apresentado à Tertúlia só à civil.

Pelo que dizes no teu mail, estavas bem relacionado.

Infelizmente, como certamente já viste no nosso Blogue, o General Hélio Felgas (2) já nos deixou.

Não te esqueças da foto que te pedi e já agora ficamos à espera das tuas estórias, já que terás muito que contar, do que viste e viveste nos bastidores da guerra.
CV
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Notas de CV:

(1) Vd. postes relacionados com a Operação Lança Afiada de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça)

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)


(2) Vd. postes relacionados com a morte do General Hélio Felgas de 24 de Junho de 2008

Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

Guiné 63/74 - P2981: Hélio Felgas, com Spínola, em Bambadinca (Jaime Machado)

e ainda do dia 25 de Junho de 2008

Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

Guiné 63/74 - P2985: Homenagem ao meu professor da Academia Militar, Hélio Felgas (António Costa, Cadete aluno nº 11/650, Curso ART 1964/67)

Guiné 63/74 - P2992: História de vida (11): Como eu, Eng Agrónomo, me safei de uma eventual guerra química (Jorge Picado)




Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné, 1970/72



1. O nosso camarada Jorge Picado, ex-Cap Mil, que entre 1970 e 1972 palmilhou, como tantos de nós ao longo da guerra colonial, terras da Guiné, vem trazer uma nova visão desta mesma guerra, pelo prisma de um Técnico Superior de Agronomia, como é o caso dele.

Curioso será se entre a tertúlia houver alguém capaz de responder às suas interrogações, abrir um novo campo de discussão, neste caso, guerra biológica. Existiu? Não existiu? Houve tentativa de implementação?

Fica o relato do Jorge Picado.


Foto: © Albano Costa (2008). Direitos reservados.


2. SONHO
Por Jorge Picado

Depois de ler tantos argumentos explanados sobre "A Guerra estava ou não Militarmente Perdida?" veio-me à lembrança uma dúvida sobre uma suposição que fiz muito tardiamente acerca dumas recordações que nunca se me apagaram da memória. Por isso resolvi apresentar essa minha estória, que é verídica. Se julgarem que não tem interesse publicá-la, não faz mal.

SERÁ QUE O “SONHO” DE FICAR EM BISSAU ME PODERIA TER TORNADO COLABORADOR DUMA GUERRA CRIMINOSA?

Vou contar uma estória passada comigo que, se tivesse tido concretização, ter-me-ia causado graves danos, pelo menos de ordem psicológica. Poderão julgar inverídicos os factos que vou narrar, mas não são inventados, nem tão pouco sonhados. Sonho houve de facto, mas foi o de supor que podia inverter o destino da mobilização e cumpri-la em Bissau e, também como todos os sonhos, foi de curta duração.

Possivelmente nem o colega e amigo – ainda vivo, alentejano de gema e que desde Outubro de 1954 percorreu as mesmas salas de aula no velhinho ISA (Instituto Superior de Agronomia), passando pelos gabinetes e laboratórios do desaparecido Laboratório de Fitofarmacologia em que fomos companheiros de caminho, até eu abandonar esse percurso em 1963 e instalar-me nos Serviços Regionais de Agricultura – que me fez sonhar, se ler este relato, talvez não se recorde.
Mas eu lembro-me muito bem do sucedido, tão grande foi a esperança que ele fez nascer em mim, de evitar o percurso para o mato e instalar-me, pensava eu, confortavelmente em Bissau.

Esta era a triste realidade de muitos que naquela época se viram confrontados com o espectro duma guerra que não lhes dizia nada.
Já que não lhe podiam fugir, pelo menos que apanhassem uma cadeira e uma secretária num qualquer ar condicionado longe do mato e dos perigosos encontros com os malvados turras!
Eu não fiz excepção a estes pensamentos… mas tinha o destino traçado noutra direcção…e tive de o cumprir.

Seguindo o meu destino após a mobilização e uma vez desembarcado em Bissau a 19 de Fevereiro de 1970, depois dum cruzeiro marítimo, gentilmente oferecido pelo Ministério do Exército, numa viagem de carreira normal no N/M Alfredo da Silva da extinta SG – Sociedade Geral, uma Companhia de Navegação do Grupo dos Melos –, onde tive por companhia vários camaradas que iam em rendição individual – dos quais recordo um Capitão do Quadro Permanente de Transmissões, destinado ao respectivo Batalhão de Transmissões de Bissau – e um Destacamento de Fusos que ficaram em Cabo Verde, instalaram-me no Clube de Oficiais, onde fiquei a aguardar que quem desse pela minha falta me viessem reclamar

Como alguns dos desembarcados do Alfredo da Silva tínhamos combinado fazer a despedida numa refeição do Hotel (?), qual o meu espanto e, o dele, ao dar de caras com o amigo Covas de Lima, Eng.º Agrónomo – ex-Cap Mil José Covas de Lima que foi Cmdt duma CCaç em Farim, do BCaç aí estacionado de 1969-1971 e do qual também fazia parte outra CCaç cujo Cmdt era o então Cap do QP Vasco Lourenço – procurei situá-lo militarmente para o caso de algum Tertuliano ter sido seu camarada ou, como há alguns alentejanos que podem ser de Beja, conhecer esta família.

Nem eu sabia que ele já me tinha precedido no CPC/QC, nem ele tinha iguais notícias minhas. Daí o espanto de ambos.

Encontrava-se em Bissau a recuperar duma doença estando instalado no próprio Hotel e, dados os seus muito bons relacionamentos e conhecimentos, estava contactável com o Eng.º Agrónomo funcionário superior da Administração Ultramarina (?) que superintendia nos Serviços Agrícolas da Guiné e Cabo Verde (?), naquela ocasião em Bissau para tratar, com o Governador Geral (GG), precisamente de assuntos da área Agrícola.

Uma possibilidade de colocação

Naquela altura a Estação Agrícola e Florestal de Bissau (EAFB) encontrava-se sem chefia, pois o colega Agrónomo, por sinal também meu conhecido ainda que mais velho, que exercia o cargo, tinha terminado a comissão e regressado poucos dias antes à Metrópole. Convém recordar que depois de iniciada a guerra colonial aquele lugar deixou de ser cobiçado como lugar de carreira, passando então a ser ocupado, em regime de comissão militar, por colegas que assim se libertavam do comando de tropas, garantindo uma estadia mais calma em Bissau com todas as mordomias.

Estando por conseguinte o Covas de Lima conhecedor desta situação, que me transmitiu e, doutras preocupações que o dito colega da Administração Ultramarina lhe comunicara, sabendo da minha especialidade agronómica – Fitiatria e Fitofarmacologia com vastos conhecimentos no ramo dos Herbicidas –, logo me colocou ao corrente do seu plano. Precisavam de alguém com conhecimentos sobre o uso e aplicação daqueles produtos e como eu apareci e em rendição individual ia expor o caso ao Responsável da Agricultura e preparar um encontro com ele.

Embarquei logo naquilo que não passou dum sonho… de curta duração, mas julgando que o interesse fosse puramente agrícola… Nem outra coisa me passava pela cabeça. Julgava apenas que se tratava duma ferramenta técnica para aumentar a produção do arroz – uso de herbicidas nesta cultura onde tinha efectuado alguns trabalhos experimentais na Metrópole – e possivelmente no amendoim, duas das culturas que sabia mais importantes naquela Colónia.

O encontro e a desilusão

Tomei uma nova refeição no Hotel com ambos, que serviu de ponto de partida para uma longa conversa em que tive a possibilidade de responder às questões que me foram apresentadas e dar conta dos meus conhecimentos profissionais (não militares, claro), inclusive sobre os ditos herbicidas. Repiso este tema dos herbicidas, porque na realidade parecia ser este o busílis da questão… e não o da chefia da EAFB…que até talvez já tivesse destinatário… Tinha chegado em cima do acontecimento já que o assunto ia ser debatido um ou dois dias depois numa reunião com o GG.

Afinal a resposta que me deram foi negativa. Parece que já não havia interesse… e assim o meu sonho não durou mais do que 3 dias, pois tudo isto decorreu entre 20 e 22de Fevereiro. A 23 já tinha o destino traçado e na manhã de 24 lá estava o meu jeep no Clube de Oficiais, com o Alf Martinez a reclamar a sua substituição pela minha… à frente da CCaç.

Interrogações e evidências

Perguntarão então os que me lêem. Mas qual a piada desta estória? Qual o interesse nisto? O que é que isto tem a ver com o conteúdo do Blogue? De facto já estão a abastardar a finalidade e os objectivos dos fundadores, pensarão. É o resultado do alargamento e o aparecimento dalguns que andavam por lá com o rabinho metido entre as pernas e como não experimentaram outras sensações vêem agora com estas anedotas.

Pensem o que quiserem, porque eu também quando isto aconteceu não percebi bem a jogada em que me ia metendo e explico:

i) Não sabia que em 1970 a agricultura daquela Colónia estava desorganizada, pois as populações já não ocupavam as suas terras tradicionais, encontrando-se deslocalizadas. Só quando verdadeiramente desembarquei na guerra é que tomei conhecimento da real situação que se me apresentou;

ii) Quando uns tempos mais tarde vim a encontrar em Bissau o colega – um dos 4 que fizemos o 2.º Turno do CPC (Carne Para Canhão, como depreciativamente passei a traduzir a sigla) do QC de 1969, por sinal igualmente alentejano – cuja mobilização… lhe calhou… para a dita EAFB… atribui-lhe a culpa pela resposta negativa que me deram;

iii) Mas só muito mais tarde, então já na vida civil novamente, é que relacionei aquele possível interesse, depois de tomar conhecimento do uso desmedido e desregrado de desfolhantes feito pelas Forças Militares dos EUA no Vietname. Como é do conhecimento geral os Campeões das mais amplas Liberdades e Respeito pelos Povos de Todo o Mundo usaram herbicidas – dos designados totais e desfolhantes – em doses maciças para acabarem com o coberto vegetal natural formado pelas densas florestas equatoriais. Foram os também denominados agentes laranja – herbicidas primários do grupo 2,4 D – que na época ainda eram de uso agrícola e que eu bem conhecia e dominava – apliquei-os várias vezes. Só que os de uso agrícola, ainda que com os mesmos inconvenientes, eram um pouco mais seguros e mais purificados, isto é, mais limpos de certos componentes químicos por serem mais refinados, enquanto que os agentes laranjas usados no Vietname eram muito mais impuros… logo com ainda mais graves consequências não só para o meio ambiente, mas também e infelizmente para as pessoas, dados os seus efeitos toxicológicos e teratológicos.

A ideia de passar esta minha vivência ao blogue surgiu depois de ler tantos e tão bem documentados argumentos sobre a questão da “Guerra Estar ou Não Militarmente Perdida”. Será que algum dos camaradas com maior facilidade de consulta da vasta documentação militar poderá esclarecer se foi ou não aventada a hipótese de se empregar qualquer tipo de arma biológica na nossa Guerra Colonial?

É que, como disse, inicialmente julguei que as conversas que tive à minha chegada a Bissau com os meus colegas, se destinavam ao preenchimento da chefia da EAFB e, só muito mais tarde, associei tal interesse nos herbicidas à anologia com o Vietname… mas não tenho acesso a fontes bibliográficas que me confirmem as suposições… daí as muitas dúvidas que se me apresentaram quando descobri tal hipótese.

Um abraço
Jorge Picado

OBS:- Subtítulos da responsabilidade do editor
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Nota de CV:

Vd. último poste de Jorge Picado de 24 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2983: Dando a mão à palmatória (14): O Régulo Iero não veio na coluna (Jorge Picado)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2991: Com os páras da CCP 122 / BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (7): Depoimento do José Casimiro Carvalho

1. Mensagem, com data de 13 de Maio último, do José Casimiro Carvalho , ex- Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350, os Piratas de Guileje (1972/73) :


Ora, tendo eu lido na íntegra o texto que me foi enviado (1), só posso tentar rebuscar na minha memória o que ela me faculta, ou seja:

A hierarquia dos páras eu não posso comentar. Os actos heróicos e/ou de cobardia também não, mas umas verdades este homem diz, tais como as condições desumanas e cruéis em que estávamos colocados, a emboscada a uma patrulha , da qual eu era 2º cmdt, onde morreu o alferes Branco, 1 cabo e dois soldados, além de um ferido (o "pica") africano, que levou um tiro no cú.

Essa patrulha foi constituída ad hoc, com cerca de 16 homens, dois dos quais eu dispensei, pois eram 2 miúdos que se tinham oferecidos como voluntários. Saímos portanto 14 homens (!!!).

O estado dos cadáveres foi retratado tal e qual no texto, a emboscada em que caíram os páras foi interminável, com muitos RPG e dilagramas à mistura. Regressaram com cerca de desasseis feridos, um dos quais um sargento com um tiro numa perna, e que...sorria, pasme-se

A cena das salgadeiras foi verdade, pois até nós nos rimos de tanta urna sem ter ocupantes para elas e depois...foram insuficientes. Os mortos eram regados com creolina, na enfermaria, tal a putrefacção.

A fome, a sede, o cansaço e a desmoralização eram totais. Embora o autor tenha dito que o pessoal não saía das valas, eu acho que foi o contrário, o pessoal fugiu na maioria para o mato pois no quartel era onde caía a metralha.

Fui ferído em combate e fui evacuado ,e bem, pois fui num patrulha, o Orion, julgo eu, onde fui tratado e apaparicado pela Marinha. Fui para Cacine, donde mais tarde me ofereci voluntariamente para regressar ao "inferno", e aí o autor tem razão, eu não sei se foi um acto heróico ou de loucura, mas fui.

Imperava a lei do desenrasca, roubava-se e comprava-se cabritinhos aos pretos que eram cozinhados em bidões. Quando havia morteirada, eram esventrados bidões com vinho e o pessoal deitava-se por baixo com a boca aberta... Patético, mas verdadeiro. De um a dez em verdades, eu dava 7 ao autor.

O Rebocho (2) sabe bem do que se fala neste texto, duma boa parte pelo menos.

Um abraço

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Nota dos editores:


(1) Vd. os dois primeiros postes desta série:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

(2) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2969: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (6): O grande comandante Araújo e Sá (Manuel Rebocho)

Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina



Subintitulado «Crónica de uma cidade interior», Prefácio de Ferreira de Castro, Capa deslumbrante de António Domingues, Publicações Europa-América, 1960. É um romance gigantesco,uma obra susceptível de escapar à erosão do tempo.Gigante no recorte dos personagens,na trama, na história de amor,na tragicomédia do poder.São Jorge de Ilhéus ganha uma dimensão de um Novo Mundo,dos negócios,da multiculturidade,das paixões.A luta entre conservar e progredir, a tensão entre a velha e a nova classe,entre a paixão sem medida e a liberdade de um amor verdadeiro.Foi uma grande felicidade, reler este prodígio, 40 anos depois.


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 19 de Março de 2008:


Luís, aqui vai o episódio n.º 36, amanhã começo a escrever o 37. Interromperei entre 31 de Março e 10 de Abril, faço umas férias de desintoxicação, embora saiba já que os restantes episódios que faltam escrever andem a bailar na cabeça. Tens aí as ilustrações, agora vou para a neuropsiquiatria, é a vez do Jorge Cabral me invejar a capacidade de delirar, de gargalhar e surrealizar os territórios da guerra. Recebe um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVI > UM GRANDE BATUQUE PARA A SENHORA DE ALFERO
por Beja Santos (1)

(i) Chegou a vez de Cherno Suane entrar em cena


Ainda não era 9h de uma noite quente de Março de 2008 quando Abudu Soncó e eu atravessámos o Largo de São Paulo, ali ao lado no Mercado da Ribeira, enfiámos numa rua estreita e tocámos na campainha de um primeiro andar. A janela abriu-se de repelão e Cherno Suane, vasculhando demoradamente a rua com a sua miopia acentuada, recebeu-nos com uma casquinada, mandou-nos subir.

Entrámos numa dessas residenciais em trânsito onde os guineenses pernoitam por tempo limitado ou até por largos meses, até alugarem um quarto ou uma casa: uns, ouvem a telenovela da Guiné-Bissau, um deficiente visual (ex-combatente que picou uma mina numa estrada em Mansoa) desloca-se no corredor e fala ao telemóvel, há uma divisão onde as visitas estão a deixar encomendas, alguém parte em breve para Dakar.

Cherno abraça-me, perguntamos pelas nossas famílias, retiro o meu caderninho viajante do bolso, rememoro com a sua ajuda algumas datas dos últimos trinta e oito anos: em 1970, Cherno, com Mamadu Camará e Queta Baldé, abandona o Pel Caç Nat 52 e vai para a 2ª Companhia de Comandos Africana, que estava a constituir-se em Fá. Ficou nesta unidade até à independência. É preso e levado para o Cumeré, vê execuções, vive diariamente humilhado e aterrorizado. Um dia escapa-se e foge para Bambadinca, o comité local do PAIGC, ao princípio, nega-lhe a entrada no Cuor, ele esconde-se na mata, mais tarde consegue arranjar trabalho na importante serração da Socotran, em Biassa, Gambiel.



Cherno Suane regressou finalmente a Portugal, depois de 2 anos em Bissau e Missirá. O que lhe devo não tem preço,é uma desmedida que me tolhe o sentimento. Partiu do Pel Caç Nat 52 para a 2ª Companhia de Comandos Africana, em 1970, levava consigo uma folha de serviços invejável. Em 1974, foi preso e assistiu aos horrores do Cumeré, com as suas execuções sumárias e as humilhações mais degradantes a que se pode sujeitar o ser humano. Foi trabalhar para a Socotran, no Gambiel, depois de ter fugido. Reencontrámo-nos em 1990, em 1991, quando fui cooperante na Guiné-Bissau, fiz o que era possível para o trazer, depois aqui recebeu nacionalidade , tem uma pensão pequenina, continua a trabalhar.


É ali que eu o vou encontrar, em 1990, e em 1991 iniciou-se o processo para vir para Portugal, o que aconteceu no ano seguinte. Cherno é hoje cidadão português, tem uma pequena reforma da segurança social, e, como muitos outros militares com uma relevante folha de serviços de louvores e condecorações, tem um trabalho humilde para subsistir e ajudar a família.

Traz-me correio de antigos soldados, faço perguntas sobre a nossa gente e quando vem à baila o nome de Trilene, um valoroso milícia de Missirá que fora para os Comandos (Demba Baldé, mas que gostava tanto de calças em terilene, que ficou assim conhecido), o rosto de Cherno ensombrou-se, baixou ainda mais o seu melodioso fio de voz, parecia que me estava a segredar:
-Desculpa, nunca te disse, foi fuzilado também em 1977, por engano, não podes imaginar os gritos que deu diante dos que o mataram, a perguntar porquê, porquê, o que é que eu fiz?

E deu ainda mais notícias: Ussumane Baldé, que fora o 104, o meu soldado prussiano, morreu muito doente, também queria vir para Portugal ganhar a vida, Adulai Djaló, o Campino, trabalha agora no Senegal para sobreviver. Oiço-o atentamente, faço perguntas com a voz embargada, sinto pelo meu guarda-costas um grande enlevo. Não o vejo há mais de dois anos, no início de 2006 Cherno partiu para Bissau para construir uma nova casa, voltou a casar, foi fazer negócios ao Senegal, chegou há dias, trouxe escultura em madeira que tanto aprecio, aprazámos este encontro com toda a urgência. Estamos a pôr a escrita em dia, conto-lhe esta aventura narrativa de toda a minha comissão na Guiné, começara a escreve-la quando ele já partira, peço-lhe encarecidamente ajuda, ele foi cumprimentar-nos à Catedral de Bissau em 16 de Abril de 1970, a seguir organizou um grande batuque em honra da Cristina, um acontecimento memorável na Mãe d’Água, na rua de Boé, no Cancote, perto do mercado de Bandim.

- Cherno, por favor, conta-me tudo, houve batuque, dança e marimbas, lembras-te?
Felizmente que Cherno se lembra de quase tudo.


(ii) O grande batuque na Mãe d’Água


Os mandingas são grandes músicos e adoram dançar. Possuem um bailado individual, lento e muito cadenciado, à partida; depois, com os acordes do tambor, o ritmo cresce freneticamente. A batucada aparece associada à dança. São bailados que se executam em círculo, três tambores de diferente porte asseguram esse ritmo trepidante, avassalador. As raparigas têm um papel importante, competindo-lhes acompanhar o tambor com cânticos e palmas. Os três artistas do tambor, que respondem pelos diferentes ritmos do batuque, acompanham as danças das raparigas. Ela avançam devagar em direcção ao local onde está o músico, da lentidão passam à rapidez dos movimentos.

A tradição dos grandes batuques, nas tabancas, é realizarem-se só à noite, mas a guerra veio alterar tudo, naquele dia 18 de Abril de 1970 Cherno Suane encomendara o batuque para as 6h da tarde, dera instruções sobre o que queria que se cantasse, convidara um roda de raparigas, alguns caramôs (pessoal notável pelos conhecimentos do Alcorão, da escrita e da língua mandinga) iriam assistir, bem como familiares dos Soncó, dos Mané, gente de Farim, da família de Cherno, talvez aparecesse um tocador de Korá, mas só depois do batuque e da dança.

Saímos do Bairro da Ajuda, Cherno, Cristina e eu, foi um passeio agradável até à Mãe d’Água, o calor abrandara. Cherno insistiu em pagar tudo, não sei se pagou em dinheiro, em cabritos ou outros alimentos. Quando chegámos, já havia um círculo, a pequena multidão engrossava com mirones, alguns balantas-mané ofereceram-se para tocar marimbas. Como na Grécia clássica, dois jovens untavam o tronco, vestiam calções de algodão colados às coxas. Um simpático caramô procurava explicar-nos o essencial daquele torneio de luta: os lutadores têm uma dança própria, também ao som de três tambores, desafiam-se por gestos, mostram amuletos, são ovacionados, não aqueles que estamos agora a ver, são jovens amadores, mas os outros que pelejam em torneios são conhecidos por alcunhas artísticas: djató (leão), ñ ñ kumó (gato), çubá lóló (estrela da manhã). Assistimos a tudo de pé, os jovens faziam piruetas, desafiavam-se empinando busto, parece que tinham deitado pela cabeça abaixo um líquido que contera a tinta com que se escrevera versículos do Corão, eram ágeis nos golpes de braços e pernas, quando um deles caiu no chão, alguém, feito árbitro decidiu quem tinha sido o vencedor.

Os lutadores saíram, a roda estava cada vez maior, entraram os tocadores, um dançarino emplumado, as raparigas começaram a fazer o coro e a bater as palmas; o bailarino saracoteava-se, parecia recorrer à pantomima, depois falava, a assistência acenava, parecia confirmar o que ele dizia, depois o coro erguia a vozearia, os tambores irrompiam com a sua música. Cherno tinha-me avisado durante o percurso que o bailarino/cantor iria exaltar as minhas façanhas, imagine-se. Sei que foi a meio deste bailado que Cherno começou a vociferar, o olhar cuspia fogo, o bailarino protestava com igual veemência.

Achei estranho este repentino desaguisado, novamente o caramô justificava-me a zanga dizendo que Cherno exigia para que o bailarino/cantor falasse mais das minhas façanhas, era para isso que ele lhe tinha pago. Terão certamente chegado a um acordo, pois ainda houve mais música e dança, a seguir ainda apareceu outro bailarino enfeitado com um barrete, chegara a hora dos balantas-mané exibirem as suas marimbas de vinte teclas tocadas com pequenos paus, era um som muito agradável, debaixo das teclas viam-se pequenas cabaças, fiquei a pensar como a cabaça permite tão belas ressonâncias. À despedida, o bailarino percutiu intensamente o grande tambor, a assistência bateu as palmas apoteoticamente e depois veio cumprimentar-nos.

Anoitecera completamente, convidámos Cherno a vir jantar connosco, viemos passeando sem pressa, ao longe via-se o Bandim Alto e o cais da Dicol, em panorâmica, descemos como se fôssemos para a Amura, virámos à esquerda e fomos jantar ao Pelicano. Se reconstituo esta tarde inesquecível é porque Cherno guardou tudo e prometeu dar-me mais ajuda sobre os acontecimentos de Maio, Junho e Julho, em que disponho de pouca correspondência para a Cristina.

Findo o encontro com Cherno, quando voltámos a atravessar o Largo de São Paulo, em direcção ao Cais do Sodré, eu recordei a Abudu Soncóum acontecimento de grande delicadeza, que viera confirmar a amizade sem mácula que eu nutria por Cherno, ao longo destas décadas. No princípio de Agosto de 1970, o Pel Caç Nat 52, completamente aprumado e ataviado, leva-me ao Xime, de onde vou partir para Bissau. A lancha sairá dentro de minutos, faço questão de voltar a agradecer a todos a camaradagem que partilhara com eles durante dois anos, as lições de coragem que deles recebera.

Despeço-me emocionado de todos e quando pergunto pelo Cherno, o último de quem me faltava despedir, alguém me disse sem hesitação, justificando assim o seu desaparecimento:
- Não gostamos que nos vejam a chorar, Cherno sabe que acaba de perdeu um grande amigo, não vai voltar a ser guarda-costas de ninguém, e ele não quer que se saiba que está triste.

Fora esta mágoa de Cherno que eu levei para Bissau, quando a guerra acabara para mim.



(iii) Os nossos passeios pela península de Bissau


Até ao fim do mês de Abril [de 1970] vagabundeámos no que se chama a península de Bissau, entre o rio Mansoa e o Canal de Geba, onde estão Quinhámel, Prábis, o Cupelão, Safim, até Nhacra. Chegámos a ir até João Landim, mas houve o bom senso de não viajar para Mansoa ou mesmo Bula. Viajámos na companhia da Inês e do Alexandre Carvalho Neto (este desapareceu da circulação a partir de 21 de Abril, após o massacre, no dia anterior, de quatro oficiais no chamado “chão manjaco”), da Elzira e do Emílio Rosa, da Isabel e do David Payne, do Rui Gamito e outros. Era um turismo de fim de tarde, umas vezes íamos até junto ao mar, outras vezes internávamo-nos por estradões entre palmeiras poilões e bissilões, vimos Bissau no lado do Cumeré, petiscámos em Quinhámel e Nhacra.

Todos os passeios possíveis dentro da cidade de Bissau tiveram lugar: as cavernas de Ali Bábá da Taufik Saad e Casa Gouveia, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o museu, a Associação Comercial e Industrial, a Udib, o porto, os cafés, os serões no convívio do Quartel General, com ou sem cinema. Telefonámos para Lisboa, escrevemos, lemos. Recordo um livro espantoso que a Cristina tinha trazido, Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Deste autor lera anteriormente Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim. Aliás, encontrei afinidades entre este último e Gabriela, são passados em São Jorge de Ilhéus, nos tempos heróicos do cacau. Gabriela é um romance monumental, tem uma galeria de figuras de primeira água na literatura brasileira, com Gabriela e Nacib, o coronel Ramiro Bastos e Mundinho Falcão, o Capitão, o Doutor, Malvina, os ambientes como os bares e os bordéis parecem saídos de quadros em movimento, o presépio das irmãs Dos Reis é alucinante, a luta entre os conservadores e os progressistas é tão impressiva naqueles anos vinte como naquele 1970 em que dela partilhávamos o fulgor literário.

Líamos o livro da seguinte maneira: a Cristina estudava ou escrevia, eu lia a chegada da Gabriela a Ilhéus e como fora recrutada para o bar Vesúvio; enquanto eu escrevia, a Cristina lia o que se estava a passar no bar Vesúvio, com Chico Moleza e Bico Fino a servir de mesa em mesa, com a ajuda do negrinho Tuísca, seu Nacib a conversar com o coronel Manuel das Onças ou o Dr. Maurício. Depois comentávamos a vivacidade da prosa, a descrição das atmosferas, o prodígio dos diálogos. Aprendi pois que um bom livro pode entrar numa lua-de-mel, exercitar apreciações a dois, desenhar até um novo tipo de comunicação nos casados de fresco. À noite, visitámos amigos de amigos e foi assim que conheci o compositor Pedro Jordão, creio que fazia parte do Fotocine, voltei a vê-lo em Junho quando ele veio filmar as obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca.

Assim passávamos uma lua-de-mel serena, às vezes ouvindo o troar longínquo dos canhões e morteiros, às vezes os temas bélicos entravam insidiosamente nas conversas, como tínhamos projectos para o nosso futuro, como a Cristina ainda sonhava fazer alguns exames em Junho, andámos entre a casa dos Payne, o Grande Hotel e a pensão da D. Berta sempre divertidos, a Cristina mergulhada nos seus apontamentos de estudo, eu escrevia, lia policiais e até livros religiosos. Tinha levado O Senhor, de Romano Guardini, obra de grande profundidade, e li em pequenos sorvos Poemas para Rezar de Michel Quoist. Estes poemas impressionaram-me muito, como se a vida fosse tornada oração, um diálogo permanente com Deus no quotidiano, poemas sobre as crianças, sobre a paz, orações para acompanhar a Via-Sacra. Estas meditações trouxeram-me alívio, julguei-me melhor preparado para o Seu Reino de justiça e de amor.


Era um livro de referência na JUC (Juventude Universitária Católica, onde militei).

Tradução de Lucas Moreira Neves, revista por Pedro Tamen, capa de Sebastião Rorigues,4ª edição, 1967, Livraria Morais Editora.

Preces curtas, ajustáveis aos novos tempos de então:hinos para as crianças, reflexões do padre-operário,orações na escola,aceitação do Amor.Trouxe para os cristãos uma abordagem refrescada da oração,nessa nova atmosfera da recém aparecida sociedade de consumo.




Findava o mês de Abril quando o David Payne me recordou que chegara a hora de me apresentar no HM 241. Cordato, tudo aceitei. Uma noite, depois do jantar, ele preparou a Cristina para o insólito que se ia seguir: além de uma consulta de rotina à oftalmologia, iria ser internado nos serviços de neuropsiquiatria. Se é verdade que a guerra tem dimensões de crueldade inultrapassáveis, no meu caso iria beber uma volumosa taça de grotesco, ladeado por dois perturbados mentais com quem vivi alguns dos episódios mais hilariantes da minha vida.

Como passo a contar.
________________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2989: Recortes de imprensa (7): Combate à mutilação genital feminina na Guiné-Bissau

1. O nosso camarada Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, enviou-nos uma mensagem com esta notícia, veículada pela Lusa, Agência de Notícias de Portugal, em 9 de Junho de 2008.

Mansabá, 1971> Bajuda mandinga> Milhares de jovens como esta foram e ainda são sujeitas a tradições selváticas que violam os mais elementares direitos da mulher.

Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados


Internacional
Guiné-Bissau: Governo e UNICEF lançam programa combate à mutilação genital feminina

Bissau, 09 Jun (Lusa) - O Governo da Guiné-Bissau e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) lançaram hoje uma iniciativa para o combate à prática da mutilação genital feminina, um dos mais graves problemas sociais do país
.

A iniciativa, "Acelerar a mudança para o abandono da mutilação", vai durante os próximos três anos promover acções de sensibilização nas regiões de Bafatá, Gabu, Oio e Quinará, principais zonas onde o fenómeno da excisão é ainda bastante acentuado junto das raparigas.

A iniciativa hoje lançada também conta com a participação do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) e será executada pela TOSTAN , uma organização não governamental internacional com mais de 15 anos de experiência na mudança de mentalidade das comunidades afectadas por práticas tradicionais que trazem sofrimento.

De acordo com um comunicado conjunto distribuído à imprensa pelo FNUAP e UNICEF, o trabalho da TOSTAN na luta contra a excisão produziu "resultados positivos" em vários países africanos como são os casos do Senegal e da Guiné-Coancri pelo que se pretende aproveitar a experiência na Guiné-Bissau.

Dados das agências das Nações Unidas, baseados nos inquéritos aos indicadores múltiplos de 2006 (Mics III), apontam que 44,5% das mulheres guineenses entre os 15 e os 49 anos de idade sofreram mutilação genital, o que prova que as estratégias utilizadas até aqui para o combate ao fenómeno não produziram os efeitos esperados.

De acordo com as duas agências da ONU, a situação requer a "adopção de uma estratégia mais apropriada" que passará pela sensibilização directa e formação das comunidades.

Toda a estratégia será supervisionada pelo Governo guineense através do Ministério da Solidariedade, Família e Luta contra a Pobreza

MB.

Lusa/Fim
© 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
2008-06-09 16:35:01
_______________

Nota de CV:

Vd. postes sobre a mutilação genital feminina publicados no nosso Blogue em:

17 de Março de 200> Guiné 63/74 - P2654: A Mutilação Genital Feminina na Voz da América, por Nelson Herbert (Virgínio Briote)

23 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2575: Estórias do Juvenal Amado (4): A pequena e adorável Mariama que eu conheci no reordenamento de Bengacia (Juvenal Amado)

30 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2316: E as Nossas Palmas Vão Para... (2): Os que lutam, na Guiné-Bissau, contra a Mutilação Genital Feminina (MGF)

25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado

4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Guiné 63/74 - P2988: Cancioneiro de Cufar (1): Um poeta açoriano da CCAÇ 4740, Eduardo Manuel Simas (António Graça de Abreu)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CART 1687 / BART 1913 (1967/1969) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Foto 12> "Pista de Cufar, avião T6-Harvard em reabastecimento. (Operação Ciclone I, efectuada pelo BCP 12 em Caboxanque no dia 15 de Fevereiro de 1967, tendo por base de apoio a pista de Cufar).

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CART 1687 / BART 1913 (1967/1969) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Foto 6 > 15 de Fevereiro de 1967 > Meios aéreos na pista de Cufar, no âmbito da Operação Ciclone I.

Fotos e legendas: © Victor Condeço (2008). Direitos reservados.

1. Em 14 de Junho último recebemos do António Graça de Abreu um nexo com quadras de um militar açoriano, seu amigo: recorde-se que, depois de Teixeira Pinto e Mansoa, o António foi colocado em Cufar, no CAOP1, na última parte da sua comissão, de 25 de Junho de 1973 até quase às vésperas do 25 de Abril de 1974. Voltou nos TAM (Transportes Aéreos Militares) a 20 de Abril. Em Cufar, conviveu com, entre outros, os militares (na sua maioria açorianos) da CCAÇ 4740. O pessoal desta companhia reuniu-se recentemente em Fátima, notícia de que foi feito um poste, a pedido do António (1). Estes versos que agora se publica, em forma de quadras populares, alguns de pé quebrado, já constavam do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura, do António Graça de Abreu (Edição: Guerra & Paz, 2007), pp. 151-156.

Este tipo de material tem interesse documental, tem valor socio-antropológuico, se não mesmo literário: é uma espécie de romanceiro, em que se relata a pobre vida de um militar que vai para a guerra. É um género literário que tem uma larga tradição na nossa poesia popular (veja-se, por exemplo, A Nau Catrineta). Vou-lhe chamar Cancioneiro de Cufar (1), admitindo que outras recolhas possam ainda aparecer, relacionadas com Cufar e o sul da Guiné.

O autor é um militar de São Miguel, Açores, o Eduardo Manuel Simas, de que infelizmente não temos nenhuma foto*. É de sublinhar a importância que as saudades da família e das ilhas e a fé cristã tinham na capacidade de sofrimento e de resiliência da generalidade dos nossos camaradas açorianos, sobretudo nos momentos de maior provação e dor, numa terra que lhes é completamente estranha e hostil:

Quando a manhã nasceu,/ Cercámos o inimigo,/ Foi a Fé que me valeu / Porque Deus vinha comigo.

Querem homens para a guerra, /A padecer fel e dores, / Queremos sair desta terra, /Queremos ir para os Açores.

Assim fui tendo Fé, / Pedindo a Deus que me ajude / Pr’a que ao sair da Guiné /
Leve a vida e a saúde.


De qualquer modo, o nosso muito obrigado ao António, que é ele próprio um poeta de grande talento, sensibilidade e cultura, com vários livros publicados, um obrigado dizíamos, pela recolha e divulgação destes versos que agora podem mais facilmente chegar aos Açores, quiçá ao Cantanhez, seguramente a toda a blogosfera... LG


2. Eduardo Manuel Simas*, um poeta popular açoriano


Cufar, 3 de Novembro de 1974


Entre os soldados açorianos meus vizinhos, o Eduardo Manuel Simas é poeta. Descobrimos afinidades e o rapaz veio mostrar-me uns versos da sua autoria, bem melhores do que os meus. Como acha que eu sou mais entendido nas coisas da arte poética, pediu-me que lhe corrigisse os erros do português e melhorasse as quadras. Elas aqui estão:


É escrito com sangue e dor
Aquilo que vou falar
E com o maior fervor
Agora vou começar.

Com licença, meus senhores,
Minha história eu vou contar,
Quando eu saí dos Açores
Para ir pr’ó Ultramar.

Quando à Terceira cheguei
E segui para o quartel,
Logo em mim recordei
A ilha de São Miguel.

Sentia uma coisa estranha
Sem saber compreender,
Coisa esquisita e tamanha,
Difícil de entender.

O tempo se foi passando,
Dias bem, dias mal,
E fomos continuando,
Soldados de Portugal.

Passados dois meses,
Lá fomos jurar bandeira.
Sofremos, mas às vezes
Parecia uma brincadeira.

Quando um dia na parada,
À noite, a silêncio tocou,
Veio a notícia desamparada
Que o comandante contou.

Com umas folhas na mão,
Más notícias veio dar
O nosso capitão:
- Vão para o Ultramar.

Dez dias mais
E fui a São Miguel,
Despedir-me de meus pais,
Eu, Eduardo Manuel.

Ó meu Deus, eu vou partir
Sem saber se isto é justo,
Qual o dia em que hei-de vir,
Vou viver com tanto custo.

Quanto à nossa viagem
Melhor não podia ser,
Com espanto e coragem
Vendo o que tinha que ver.

Corrido cerca de um mês
Partimos para o mato,
Lá fomos para o Cantanhez
Onde não parava um rato.

Na LDG embarquei
E belezas eu não vi,
Aquilo em que eu pensei
Foi na terra onde nasci.

Os dias se vão passando
Dão vontade de chorar,
As horas vou recordando
Passo a vida a disfarçar.

Na primeira operação
Que nós fomos fazer,
Deu-me um baque o coração,
O que veio a acontecer.

Quando os homens voltaram,
Três grupos da operação,
Logo as minas rebentaram,
Meu Deus, grande traição.

Passou palavra o primeiro,
Diz-me lá o que é que queres,
Vai chamar o enfermeiro
Pr’a vir tratar os alferes.

Ó meu Deus, o que seria,
Quem serão os desgraçados?
Foram para a enfermaria
Três alferes estilhaçados.

Lá ficaram mutilados
Os infelizes sem sorte,
Turras serão apanhados
E todos irão à morte.

Que tristeza e amargura
Tanta vez aconteceu,
Morrer uma criatura
P’las mão de um irmão seu.

Meus versos não levam cunho
Do que eu amo ou adoro,
Eles são o testemunho
Do que canto, do que choro.

Assim se passa esta vida,
Horas tristes a chorar,
Se a dor fosse esquecida
Eu poderia cantar.

Sofrer vinte e quatro meses,
Um soldado nada tem,
Agonias, tantas vezes,
Só Deus sabe, mais ninguém.

Eu sei que estes versos são
Uma coisa escrita ao leve,
São pobres, sem perfeição,
Como a pena que os escreve.

Estive quase a dar um tiro,
Primeiro dia de Agosto,
Ó que noite de martírio,
Passei a noite no posto.

Meus olhos no firmamento
Horas e horas, ou mais,
Vieram-me ao pensamento
Os meus queridos pais.

No dia 9 de Agosto
Fomos pró mato arreados,
Vamos voltar com o gosto
De não sermos apanhados.

À saída do quartel
Eu pensei na minha cama
E pensando em São Miguel
Caí enterrado em lama.

Que será preciso mais,
Estamos aqui como uns parvos,
Tiram-se os filhos aos pais
E fazem deles escravos.

Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.

Lá por fora o dia inteiro,
Sem qualquer resultado,
Perdidos num cativeiro
Entre capim alteado.

Ao quartel quando chegámos
Sem forças e cheios de fome,
Quase não falámos,
Fogo dentro nos consome.

Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.

Dia 7 de Setembro
Saímos ao anoitecer,
Eu não quero que me lembre
Tantos homens a sofrer.

Era tanta a nossa mágoa
E com tantos embaraços
Apanhámos forte água
Que pareciam estilhaços.

A 23 de Dezembro,
Ó mãezinha muito querida,
Eu nem quero que me lembro
Parecia o fim da vida.

À noite dois pelotões
Saíram todos armados
E com nove foguetões
Lá fomos nós atacados.

O fogo acabou
Sem nos causar mal,
Nossa Senhora salvou
Os soldados de Portugal.

Isto foi acontecido,
Queiram todos acreditar,
Quanto se tem sofrido
Nesta vida militar.

Que vida tão rigorosa
Que até nos faz pasmar,
Que vida tão perigosa,
Soldados do Ultramar.

Assim fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que ao sair da Guiné
Leve a vida e a saúde.
____________

Notas de L.G.

(1) 14 de Junho de 2008 >Guiné 63/74 - P2943: Convívios (65): Pessoal da CCAÇ 4740, dia 21 de Junho em Fátima (António Graça de Abreu)

(2) Sobre os vários Cancioneiros, até agora recolhidos e divulgados no nosso blogue, vd.

Bafatá:

31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (1): Obras em Piche

31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXVI: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (2): Piche, BART 2857

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCII: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (3): O Hotel do RC 8

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (4): Lavantamento de rancho

Bambadinca:

24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1695: Cancioneiro de Bambadinca: Isto é tão bera (Gabriel Gonçalves)

Bissau:

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2557: Cancioneiro de Bissau (1): Uma estância de turismo (Florêncio Oliveira da Silva / Abreu dos Santos)

Canjadude:

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

Cuntima:

6 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2245: Cancioneiro de Cuntima (Vitor Silva, CART 3331, 1970/72)

Empada:

1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P828: Cancioneiro de
Empada (Xico Allen)


Gandembel:

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel (Zé Teixeira)


Mansoa (autor: Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, 1974)

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...

10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDIX: Cancioneiro de Mansoa (5): Para além do paludismo

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLIX: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXI: Cancioneiro de Mansoa (8): a amizade e a camaradagem ou o comando da 38ª

3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P837: Cancioneiro de Mansoa (9): A mais alta de todas as traições

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1698: Cancioneiro de Mansoa (10): O 25 de Abril, a Barragem de Castelo de Bode e a descoberta da palavra solidariedade

Niassa (Moçambique):

11 de Maio de 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1) (Luís Graça)

Xime:

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)

(*) Em tempo:

Graças à cortesia do nosso camarada Armando Faria, Ex-Fur Mil da CCAÇ4740, que nos indicou a página da CCAÇ 4740, de onde poderíamos retirar a fotografia do poeta popular Eduardo Manuel Simas, a mesma foi acrescentada nesta data ao poste.
2/Fev/2010
CV

Guiné 63/74 - P2987: Os nossos regressos (1): Lisboa, dois anos depois (Virgínio Briote)

O Uíge zarpou à hora prevista, mais minuto menos minuto. Tripulação civil e transporte de tropas, quase todos com as comissões terminadas. Como era costume naqueles tempos os oficiais e sargentos tinham direito a camarotes, as praças iam lá em baixo, nos porões. Repartia o compartimento com o capitão Viegas. Um homem calado, as falas que bastavam, mais simpático ainda. Não era tempo para grandes conversas.

Último jantar no Uíge. Serventes fardados, mesa com Vista Alegre e Cristofle, uma alegria entristecida.

Texto e fotos: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados

Ao jantar, o comandante do navio com o comandante de bandeira ao lado, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas. Que bom, ao menos isso. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, ficou sozinho, a olhar para trás. Uma brisa fresca, continuava febril, os olhos com água. O que fiz aqui, que levas na memória? Voltarias a esta Guiné, outra vez de arma na mão? Farias o mesmo, da mesma maneira?

Farim, o Ten Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um negro que caíra na emboscada em Sitató. As mãos, os nós dos dedos, e o infeliz não dizia nada, não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem por finda a festa. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair lá para as cinco. Pega no gajo e manda-o parar a merda do batuque. Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten Coronel de Farim lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, soldados a espancar nativos. A psico, que chatice, a dar passos para trás. Tempos depois, o Ten Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença, o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouvira-o dizer, não se bate nestes gajos, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns gajos de G-3 na mão! Custara-lhe ouvir, é certo, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e voltaram a ficar amigos, mais tarde.

Meses depois, lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier! Não pode ser. Mas era o mesmo saco do pão, a olhar para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado, o saco todo roto. Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, a gargalhada interrompida com as duas morteiradas da praxe.

A bela mulata escura de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara, sentados no alpendre da casa dela, com a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo. Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O Rasas que conheceste, os outros Rasas todos com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, em Tite, no Xitole, em Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até o Rasas tu encontraste em ti, não uma vez, mas muitas, vezes demais. O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, nossas, de quem havia de ser, o médico "legista" para ele, uns dias depois. O Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a assinar no envelope.

O Matos, o miúdo do AN-PRC10 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro. O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem areia e pedacinhos de ferro da cara, o Angola, um grande soldado. A saída prematura do Furriel Azevedo e a falta que fez.

E o Silva à procura da sua morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma azelhice sem retorno. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino. A MG-42 naqueles dedos de artista, a desenhar a cara de um gajo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da terra do Silva a querer saber pormenores. Que é que este gajo quer que eu diga? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Mamadú Djaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de alegria, o Bacar Djassi do caso de Barro, "intelectual" e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um alentejano de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato, pá? É um azul invulgar, lindo, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar. Mudara de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado. O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, amor de Mãe e de fetura noiva no braço. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, sempre a moderar-lhe os ímpetos. E outros que ficaram pelo caminho. E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que afinal o Ministro lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como, isso ainda mexe? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, prontinha a sair. Onde pára o nosso Brigadeiro, na vivenda dele? Onde fica? O nosso Comandante está lá dentro, preciso avisar, a sentinela negra à frente, é urgente? Pode entrar, o Brigadeiro e coronéis num salão, portas envidraçadas, à volta de uma mesa de bridge, então há problemas? 10 dias de prisão disciplinar agravada, do Ministro do Exército, sobre aquele assunto que o meu Brigadeiro tinha dito estar sob o seu controle. Para saber da minha boca, com os meus respeitos, meu brigadeiro, boa-noite. E o capitão Leandro, dias depois a dizer-lhe da conversa com o Comandante Militar que não apreciara nada a entrada intempestiva.

Crescera tão depressa, com tanta merda que tinha feito, se pudesse voltar atrás estes dois anos! Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora. Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo.



... E agora só paramos em Lisboa!

As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, memórias futuras, como seriam, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento. Só deveria ter à sua espera o conhecimento de Angra. Numa correspondência cada vez mais esporádica, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não? Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que é o Uíge que vai levar este esqueleto. No dia em que chegara com a mala nova ao quarto, já em Sta Luzia, tinha uma carta dela. Iria procurar saber a data da chegada do navio, esperava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo. Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou. Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meter águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água? Nunca mais chego a Lisboa.

O N/M Uíge, que tantos milhares de tropas transportou, de Lisboa para Bissau e de Bissau para Lisboa, ao longo da guerra do Ultramar, aqui visto do Mindelo, Cabo Verde, com o Monte Cara ao afundo...

Meio-dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio. Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, Clicks na Ricoh até acabar o rolo. Muitas mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez no bom caminho.
Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior no meio do rio, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.
 
Finalmente Lisboa e a sua belíssima nova ponte, que levou menos de 4 anos a construir (de 5 de Novembro de 1962 a 6 de Agosto de 1966), uma obra emblemática do Estado Novo

Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau, em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois. Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente de idade, muitas roupas escuras, de inverno, algumas jovens também. Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vai assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, sabe? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo. Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, um esqueleto qualquer lá de baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a caírem pelas escadas. Não vem? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, pelo menos quem eu queria.

Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria, e uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra. É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe aos gritos, o meu menino, o choro pela cara abaixo, Angra a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe, a dizer-lhe adeus para sempre. Depois, a Mercedes a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo. Mataste muitos turras? Juntaste muito dinheiro? Mal respondia ao que lhe perguntavam. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja (Lourenço e Santos?), na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco azul-escuro, calças cinzentas, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que era tudo dois números abaixo para aí. Almoçaram no Solmar. A olhar para o salão do restaurante, dois anos, tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil. ...., indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, talvez em casa dos pais em Fonte Seca, ou em casa dos tios em Gaia. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

vb

Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)






Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA! (1) ...

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento (?) do interior, seguia para 6 destinatários, incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... De um exército em armas (que chegou aos 40 mil) quantos não haveria, do cabo ao argento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação ?

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates do mato da Guiné...

Pela primeira vez oiço falar em Nhamate... Será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? Será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? Será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa ? Será que a Marinha seguiu mesmo ? E o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares!) não terá acabado na psiquiatria ? Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava por Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro (2)... Mas podia ser outro qualquer, mais contudente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, distinguindo Bissau e a guerra do ar condicionado, do resto, o inferno do mato... (LG).

Guiné > Região do Oio > 1970 > CCAÇ 13 > "Localização dos aquartelamentos de Bula, Binar, Nhamate, Manga e Unche, bem como a principal base da guerrilha no Choquemone, a uns escassos 4 Kms de Binar" (CF)...

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram a guerra da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros > CCAÇ 13, Binar, 1970.

Guiné > Região do Oio > Binar > Nhamate > CCAÇ 13 > 1970 > Tratava-se de um reordenamento, tendo a população sido substraída ao controlo do PAIGC. As NT tiveram que construir um aquartelamento de raíz. Vivia-se em tendas. " A nossa missão junto da população foi calma, em geral mostrou-se afável e colaborante, embora fosse clara a tristeza por abandonarem a sua antiga casa. Notou-se alguma influência da guerrilha, pois dois elementos da população (guerrilheiros?) chegaram a desafiar abertamente a nossa autoridade, um acabou por ser preso e o outro por ser morto, depois destes incidentes, as relações com a população foram sempre excelentes. Este reordenamento, tinha não só o objectivo de retirar a população do controlo do PAIGC, mas também de reforçar a defesa nesta zona, dado que com os novos foguetões 122mm, seria fácil à guerrilha atingir Bissau a partir daqui" (CF).(3) Foto de Adrina [ou Adriano ?] Silva, ex-Mil da CCaç 13.

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros
> CCAÇ 13, Binar, 1970. 

Ainda hoje o Carlos mantém com os seus antigos soldados (balantas, essencialmente) uma relação de grande afecto e carinho, bem como com os seus antigos camaradas. O último encontro (o 8º da CCAÇ 13) foi no passado dia 26 de Maio, no Lordelo, Guimarães. E o próximo será nos Açores.



Guiné > Região do Oio > Binar > Nhamate > 1970 > CCAÇ 13 > Spínola de visita ao reordenamento de Nhamate, cumprimenta o capitão Durão (Cap Mil Inf Álvaro Alberto Durão, o primeiro capitão da CCAÇ 13, 1969/71). 

Foto de Adrina [ou Adriano ?] Silva, ex-Fur Mil da CCaç 13. A Companhia passou por Bissau, Bolama, Bissorã, Encheia, Binar e Biambi. Foi substituída, em Binar, em finais de Março de 1970, pela CCAÇ 2658, que terá mais tarde, numa coluna de Nhamate a Binar, 8 mortos.

Foto: Cortesia de Carlos Fortunato, Fur Mil CCAÇ 13 (1969/71), o melhor sítio na Net sobre companhias individuais que fizeram da Guiné > Guerra na Guiné - Os Leões Negros
> CCAÇ 13, Binar, 1970


1. Mensagem de António José Pereira da Costa, coronel de artilharia ainda no activo, membro da nossa tertúlia, desde Dezembro de 2007:


Amigos Combatentes (e não só):

Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade.

Um Abraço
António José Pereira da Costa

2. Fixação e revisão do texto do documento: LG

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.
Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS: Quando ch0ver fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!

3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimento,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art


_________

Notas de L.G.:


(1) Vd. postes anteriores sobre esta expressão celebérrima expressão da caserna militar Siga a Marinha:

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira
)

1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)


1 de Outubro de 2006 >Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)


1 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1138: 'Siga a Marinha': uma expressão do tempo da República (?) (Pedro Lauret)


11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1166: A minha preguiça e a expressão 'Siga a Marinha' (Mário Dias)


11 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)


(...) Esta frase foi inventada pelo capitão José Joaquim Vilares Gaspar, mais tarde major, ainda na Guiné (...) e falecido por volta de 1977. Era o célebre Gasparinho de Quibaxe (Angola) de quem se contam muitos ditos e anedotas, quase todas verdadeiras, embora incríveis.

(...) Siga a Marinha que o Exército já lá está e Força Aérea já anda no ar há meia-hora.Era assim que ele a dizia. Talvez um desabafo ou uma crítica ou até um bordão para se sentir vivo. Não o dizia com qualquer espécie de humor. Conheci-o bem. Era um homem sério,muito inteligente, bom condutor de homens e com uma capacidade de crítica muito apurada, mas que bebia bastante. Além disso, a inteligência e a capacidade de crítica são uma mistura explosiva...

(2) Vd. postes desta série:

9 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)


1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)


26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)


23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)